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Teologia do trabalho comentário bíblico: Novo Testamento

Comentário Bíblico /
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Introdução ao livro de Mateus

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O trabalho é um componente essencial do Reino de Deus. Mateus, o coletor de impostos que se tornou apóstolo, relata as ações e os ensinamentos de Jesus com o propósito de nos mostrar como Deus deseja que vivamos e trabalhemos em seu novo Reino. Como seguidores de Jesus Cristo, vivemos em dois mundos. Posicionamo-nos com um pé no mundo humano, onde nosso trabalho pode estar sujeito a expectativas não declaradas que podem ou não estar de acordo com os caminhos de Deus. Ao mesmo tempo, como cristãos, estamos sujeitos ao Reino de Deus, comprometidos com seus valores e expectativas. Ao contar a história de Jesus, Mateus nos mostra como navegar pelo mundo humano usando a bússola de Deus. Por meio disso, ele constantemente nos aponta para a verdadeira identidade do mundo como “Reino dos céus” (Mateus usa “Reino dos céus” e “Reino de Deus” de forma intercambiável; ver Mateus 19.23-24). Esse reino “está próximo”, muito embora ainda não esteja completamente concretizado aqui na terra. Até que chegue à sua finalização, os seguidores de Jesus devem viver e trabalhar de acordo com o chamado de Deus como “estrangeiros”[1] no mundo presente.

Com o propósito de nos guiar nessa maneira de viver e trabalhar, Jesus discute questões relacionadas ao ambiente de trabalho como liderança e autoridade, poder e influência, práticas comerciais justas e injustas, verdade e engano, tratamento de funcionários, resolução de conflitos, riqueza e necessidades da vida, relações no ambiente de trabalho, investimento e poupança, descanso e o trabalho em organizações com políticas e práticas que estão em desacordo com as normas bíblicas.

O Reino dos céus está próximo (Mateus)

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No início do seu ministério terreno, Jesus anuncia que “o Reino dos céus está próximo” (Mateus 4.17). Ao ler a expressão “Reino dos céus”, podemos pensar em harpas, nuvens e corais de anjos, mas Jesus é claro ao dizer que o Reino dos céus se refere ao reinado de Deus sobre a terra. O Reino dos céus “está próximo”. Ele chegou aqui, a este mundo.

As consequências de se viver o Reino de Deus no ambiente de trabalho são profundas. Os reinos estão preocupados com governança, economia, agricultura, produção, justiça, defesa — questões que vemos na maioria dos locais de trabalho. Os ensinamentos de Jesus, conforme registrados por Mateus, falam diretamente à nossa vida no trabalho. No Sermão do Monte, ele inicia seus seguidores nos valores, na ética e nas práticas de seu novo reino. Na oração do Pai-Nosso, ele os instrui a orar “venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6.9-10). O Evangelho de Mateus conclui com Jesus comissionando seus seguidores a irem trabalhar por todo o mundo, uma vez que ele recebeu “toda a autoridade no céu e na terra” e estará presente junto deles em seu trabalho na terra (Mateus 28.18-20). Mateus deixa claro que este reino não está completamente estabelecido na terra neste momento, mas alcançará sua plena realização quando virmos “o Filho do homem vindo nas nuvens do céu com poder e grande glória” (Mateus 24.30). Enquanto isso, damos as costas à antiga maneira de trabalhar, de modo que o novo modo de ser do Reino dos céus seja visível em nós à medida que vivemos. Até mesmo neste momento, trabalhamos de acordo com seus valores e práticas.

Trabalhando como cidadãos do Reino de Deus (Mateus 1—4)

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Vivemos naquilo que os teólogos chamam de “já, mas ainda não”. O Reino dos céus já foi inaugurado por Jesus em seu ministério terreno, mas ainda não foi plenamente concretizado — não até que Cristo volte em pessoa como Rei. Enquanto isso, nossa vida — incluindo trabalho, lazer, adoração, alegrias e tristezas — está emoldurada pela realidade de viver em um mundo parcialmente controlado pelos caminhos antigos e corruptos da Queda (Gênesis 3), mas parcialmente governado por seu verdadeiro Senhor, Cristo. Como cristãos, colocamo-nos completamente sob o senhorio de Jesus. Nossos hábitos na terra devem agora refletir o Reino vindouro do céu. Não devemos fazer isso para nos orgulhar de sermos mais piedosos do que outros, mas para aceitar o desafio de crescer nos caminhos de Deus. Deus chama seu povo para desempenhar vários papéis e ocupações diferentes na terra. Em todos esses papéis e ocupações devemos viver a verdadeira realidade: o Reino de Deus que está vindo do céu para a terra.

Ao mesmo tempo, não podemos escapar dos males do mundo trazidos pela Queda, incluindo a morte (1Coríntios 15.15-26), o pecado (João 1.29) e Satanás (Apocalipse 12.9). O próprio Jesus experimentou um sofrimento terrível, ainda que temporário, nas mãos de homens pecadores, e o mesmo pode acontecer conosco. Em nossa ocupação, podemos sofrer grandemente por meio de trabalho forçado, desemprego permanente, até mesmo morte relacionada ao trabalho. Ou podemos sofrer de maneiras menores à medida que lidamos com colegas de trabalho desafiadores, condições de trabalho desagradáveis, promoções merecidas mas não recebidas ou milhares de outros contratempos. Às vezes sofremos as consequências de nosso próprio pecado no trabalho. Outros podem sofrer muito mais do que nós, mas todos podemos aprender a partir do Evangelho de Mateus como viver como seguidores de Cristo em um mundo caído.

Jesus, o Messias (Mateus 1—2)

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Os capítulos iniciais do Evangelho de Mateus narram com rapidez uma sucessão de histórias que demonstram que Jesus é o Senhor cuja vinda inaugura o Reino dos céus na terra. Elas explicam quem é Jesus em termos de cumprimento das Escrituras (o Messias) e mostram que sua entrada no mundo é o epicentro de todas as relações de Deus com a humanidade. O Evangelho de Mateus começa com uma descrição da genealogia e do nascimento de Jesus: o bebê deitado numa manjedoura em Belém faz parte da linhagem de Davi, o grande rei de Israel, e é um hebreu verdadeiro, com ascendência que chega até Abraão (Mateus 1.1—2.23). Em cada história, as referências de Mateus às Escrituras do Antigo Testamento mostram como a vinda de Jesus reflete um texto antigo em particular[1]. Damos ouvido a Jesus porque ele é o ungido de Deus, o Messias prometido, Deus que entra no mundo em carne humana (João 1.14).

A história dos magos (“sábios”, na NVT], “homens que estudavam as estrelas”, na NTLH) tem relevância especial para o trabalho. De acordo com Daniel 1.20; 2.27 e 5.15 e Atos 8.9; 13.6-8, os magos eram astrólogos que observavam as estrelas com o objetivo de interpretar sonhos e praticar outras magias. Tanto Daniel quanto Lucas (no livro de Atos) lançam um olhar de reprovação a essa profissão, vendo-os como charlatães ou falsos profetas. Todavia, enquanto realizam seu trabalho de observação das estrelas, eles vislumbram a realidade do poder de Deus no mundo. O trabalho deles, falho como era, os leva a reconhecer Jesus como o Filho de Deus. A resposta deles é adorar da melhor maneira que podem. Perceba sua generosidade, uma virtude que Deus valoriza grandemente por toda a Bíblia. Contraste-os com Herodes, que, embora sendo da comunidade da fé, reage à descoberta dos sábios com hostilidade. É difícil imaginar uma resposta mais gananciosa do que a dele. Esse contraste destaca como a graça de Deus se estende a todas as pessoas e a todo o cosmos, não apenas aos que creem. Por outro lado, o povo de Deus continua a cair em pecado, enquanto a moralidade dos descrentes pode ser exemplar.

Será possível que Deus ainda hoje atraia descrentes para si por meio de seu trabalho, incluindo realizações na ciência, na natureza ou no mundo material? Como Paulo coloca, “desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas” (Romanos 1.20). Isso pode ser aplicado quando falamos sobre Cristo no ambiente de trabalho. Podemos até pensar que estamos falamos sobre Cristo para pessoas que não o conhecem, mas a verdade é que Deus talvez já esteja se fazendo conhecido a essas pessoas por meio do trabalho delas, assim como fez com os magos. Podemos ser mais eficientes se reconhecermos que aquilo que estamos de fato fazendo é ajudar os colegas de trabalho a reconhecer e desfrutar a presença de Deus que seu trabalho já está lhes revelando. E nós mesmos faremos muito bem em reconhecer a presença de Deus em nosso trabalho. Os cristãos costumam tratar o trabalho secular com desconfiança, como se o conhecimento e as habilidades empregadas ali de alguma forma diminuíssem a fé. Em vez disso, que tal reconhecermos que todo tipo de trabalho revela a obra e a presença de Deus? Será que o reconhecimento da presença de Deus no trabalho comum de fato fortalece a nossa fé?

Jesus chama os discípulos (Mateus 3—4)

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Cerca de trinta anos se passaram entre os capítulos 2 e 3. João Batista revela a verdadeira identidade de Jesus como o Filho de Deus para as multidões junto ao rio Jordão (Mateus 3.17). Então, logo depois de ser batizado por João, Jesus é bem-sucedido em resistir às tentações do diabo no deserto (Mateus 4.1-11), em contraste com Adão e os israelitas, que falharam. (Para saber mais sobre as tentações de Jesus, veja “Lucas 4.1-13” em Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org). Temos aqui uma antevisão das raízes antigas do reino que vem: é “Israel” como Deus originalmente desejou. E vemos também seus aspectos revolucionários; ele traz vitória sobre o príncipe do mundo caído.

O trabalho é um elemento essencial do intento de Deus para o mundo. Quando Deus criou Adão, imediatamente deu a ele um trabalho para realizar (Gênesis 2.15); por todo o Antigo Testamento, o povo de Deus recebeu um trabalho para fazer (Êxodo 20.9). Não deveríamos nos surpreender com o fato de Jesus também ter sido um trabalhador (Mateus 13.55). O batismo de Jesus, sua tentação no deserto e sua experiência anterior como carpinteiro o prepararam para o trabalho público ao qual daria início agora (Mateus 4.12).

Encontramos aqui a primeira passagem que fala diretamente sobre a questão do chamado. Pouco depois de começar a pregar sobre a vinda do Reino dos céus, Jesus chama seus quatro primeiros discípulos para segui-lo (Mateus 4.18-21). Mais tarde, outros respondem ao seu chamado, formando os Doze — o grupo daqueles que foram chamados à parte por Jesus para servir como seus alunos íntimos e os primeiros líderes-servos do povo de Deus regenerado (cf. Mateus 10.1-4; 19.28; Efésios 2.19-21). É exigido de cada um dos Doze que deixe sua ocupação anterior, sua renda e seus relacionamentos com o objetivo de viajar com Jesus por toda a Galileia. (Os sacrifícios pessoais, familiares e sociais que isso exigiu são discutidos em “Marcos 1.16-20” em Marcos e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org). A estes e a outros seguidores Jesus não oferece esperança de segurança ou de laços familiares. Quando, mais tarde, Jesus chama o coletor de impostos Mateus, a implicação é que Mateus vai abandonar a atividade de recolher impostos (Mateus 9.9).[1]

Um chamado de Jesus significa que precisamos parar de trabalhar no nosso emprego atual e nos tornar pregadores, pastores ou missionários? Esta passagem estaria nos ensinando que o discipulado significa abandonar redes e barcos, serras e formões, folhas de pagamento e lucros?

A resposta é não. Esta passagem descreve o que aconteceu a quatro homens junto ao mar da Galileia naquele dia. Mas ela não prescreve a mesma coisa para todos os seguidores de Jesus Cristo. Para os Doze, seguir Jesus de fato significou deixar suas profissões e suas famílias com o objetivo de viajar com seu mestre itinerante. Tanto naquela época quanto agora existem profissões que exigem sacrifícios similares, incluindo o serviço militar, o comércio marítimo ou a diplomacia, entre muitas outras. Ao mesmo tempo, sabemos que no próprio ministério terreno de Jesus nem todos os que creram verdadeiramente nele abandonaram seus trabalhos diários para segui-lo. Muitos de seus seguidores permaneceram em seus lares e ocupações. Com frequência valeu-se da habilidade dessas pessoas para fornecer refeições, abrigo e apoio financeiro para ele e seus companheiros (p. ex., Simão, o leproso, em Marcos 14.3, ou Maria, Marta e Lázaro em Lucas 10.38, João 12.1-2). Em muitos casos, essas pessoas abriram as portas para que ele entrasse em suas comunidades locais, algo que seus companheiros de viagem não poderiam ter feito. O interessante é que Zaqueu também era coletor de impostos (Lucas 19.1-10) e, embora sua vida como coletor de impostos tenha sido transformada por Jesus, não encontramos evidências de que ele foi chamado para deixar sua profissão.

Mas esta passagem também nos leva a uma verdade mais profunda sobre nosso trabalho e o seguir a Cristo. Talvez não tenhamos de abandonar nosso emprego, mas precisamos abrir mão da lealdade a nós mesmos, a qualquer pessoa ou a qualquer sistema contrário aos propósitos de Deus. Em certo sentido, nós nos tornamos agentes duplos do Reino de Deus. Podemos continuar em nosso ambiente de trabalho. Podemos realizar as mesmas tarefas. Agora, porém, utilizamos nosso trabalho para servir ao novo Reino e ao nosso novo Mestre. Ainda trabalhamos para colocar comida sobre a mesa do nosso lar, mas, em um nível mais profundo, também trabalhamos para servir pessoas, como nosso mestre fez. Ao servir pessoas por causa da lealdade a Cristo, “é a Cristo, o Senhor, que vocês estão servindo”, como Paulo disse (Colossenses 3.24).

Isso é mais radical do que pode aparecer de início. Somos desafiados no trabalho que realizamos. Até onde for possível, devemos procurar fazer aquelas coisas que geram o despertamento humano, seja através de nossa parte em cumprir o mandato da criação ou nossa parte em cumprir o mandato da redenção. Em resumo, fazemos coisas que apoiam os sonhos das pessoas e trazemos cura para a dor ao nosso redor.

Desse modo, vemos que, apesar de um chamado de Jesus poder ou não mudar aquilo que fazemos como meio de subsistência, ele sempre muda o por que trabalhamos. Como seguidores de Jesus, trabalhamos acima de tudo para servi-lo. Por sua vez, isso leva a uma mudança no modo como trabalhamos, e especialmente como tratamos as outras pessoas. Os caminhos do novo Rei incluem compaixão, justiça, verdade e misericórdia; os caminhos do velho príncipe deste mundo são devastação, apatia, opressão, engano e vingança. Este último não pode mais ter qualquer papel em nosso trabalho. Isso é mais desafiador do que possa parecer, e jamais devemos esperar conseguir fazer isso sozinhos. As práticas exigidas para viver e trabalhar de acordo com esses novos caminhos podem surgir somente do poder de Deus ou de sua bênção em nosso trabalho, como ficará claro nos capítulos 5 a 7.

O Reino dos céus em ação em nós (Mateus 5—7)

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Os capítulos 5 a 7 do Evangelho de Mateus nos apresentam a versão mais completa do Sermão do Monte de Jesus. Muito embora esta passagem bastante longa (111 versículos) seja frequentemente tratada como uma série de segmentos distintos (considerada por alguns como tendo sido compilados a partir de momentos de ensino diferentes), existe uma coesão e um fluxo de pensamento no sermão que aprofundam nossa compreensão de como o Reino dos céus trabalha dentro de nós, em nosso trabalho e em nossa vida familiar e comunitária.

As bem-aventuranças (Mateus 5.1-12)

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O Sermão do Monte começa com as bem-aventuranças — oito declarações que iniciam com a expressão bem-aventurados.[1] Esta expressão afirma um estado de bênção que já existe. Cada bem-aventurança declara que um grupo de pessoas normalmente consideradas afligidas são, na verdade, abençoadas. Os abençoados não precisam fazer nada para obter essa bênção. Jesus simplesmente declara que eles já foram abençoados. Assim, as bem-aventuranças são antes de mais nada declarações da graça de Deus. Não são condições de salvação ou orientações para obter entrada no Reino do Deus.

Aqueles que pertencem a cada um dos grupos abençoados experimentam a graça de Deus porque o Reino dos céus chegou. Considere a segunda bem-aventurança — “Bem-aventurados os que choram” (Mateus 5.4). Normalmente as pessoas não pensam no choro como uma bênção. É uma tristeza. Mas, com a chegada do Reino dos céus, chorar se torna uma bênção porque aqueles que choram “serão consolados”. A implicação é que o próprio Deus proverá o consolo. A aflição do chorar se torna a bênção do profundo relacionamento com Deus. Isso é de fato uma bênção!

Embora o propósito original das bem-aventuranças seja declarar as bênçãos concedidas pelo Reino de Deus, a maioria dos estudiosos também considera que elas pintam um retrato do caráter desse reino.[2] Ao entrarmos no Reino de Deus, esperamos nos tornar mais semelhantes àqueles que são chamados de bem-aventurados — mais humildes, mais misericordiosos, com mais fome e sede de justiça, mais aptos a promover a paz e assim por diante. Isso dá às bem-aventuranças um imperativo moral. Mais tarde, quando Jesus diz “façam discípulos de todas as nações” (Mateus 28.19), as bem-aventuranças descrevem o caráter que esses discípulos devem assumir.

As bem-aventuranças descrevem o caráter do Reino de Deus, mas não são condições de salvação. Jesus não diz, por exemplo, que “apenas os puros de coração podem entrar no Reino dos céus”. Essa é uma boa notícia, pois as bem-aventuranças são absurdamente difíceis de serem cumpridas. Uma vez que Jesus diz que “qualquer que olhar para uma mulher para desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração” (Mateus 5.28), quem poderia ser verdadeiramente “puro de coração” (Mateus 5.8)? Se não fosse pela graça de Deus, ninguém seria verdadeiramente bem-aventurado. As bem-aventuranças não são um julgamento contra todo aquele que deixa de atingir um padrão. Em vez disso, são uma bênção para qualquer um que consentir em se juntar ao Reino de Deus uma vez que ele “está próximo”.

Uma graça adicional das bem-aventuranças é o fato de que elas abençoam a comunidade de Deus, e não apenas os indivíduos de Deus. Ao seguirmos Jesus, nós nos tornamos bem-aventurados membros da comunidade do Reino, mesmo que nosso caráter ainda não esteja formado na semelhança a Deus. Individualmente, deixamos de cumprir as características de algumas ou de todas as bênçãos. Mas somos abençoados, todavia, pelo caráter da comunidade inteira ao nosso redor. A cidadania no Reino de Deus começa agora. O caráter da comunidade do Reino será aperfeiçoado quando Jesus retornar, “vindo nas nuvens do céu com poder e grande glória” (Mateus 24.30).

De posse dessa compreensão, estamos prontos para explorar o caráter específico de cada uma das bem-aventuranças e analisar como elas se aplicam ao trabalho. Não podemos tentar discutir cada uma das bem-aventuranças de maneira exaustiva, mas esperamos poder lançar o fundamento para receber as bênçãos e colocar em prática as bem-aventuranças em nosso trabalho diário.[3]

“Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus” (Mateus 5.3)

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Os “pobres em espírito” são aqueles que se lançam na graça de Deus.[1] Reconhecemos pessoalmente nossa falência espiritual diante de Deus. É o publicano no templo, batendo no peito e dizendo “Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador” (Lucas 18.13). É uma confissão honesta de que somos pecadores e totalmente destituídos das virtudes morais necessárias para agradar a Deus. É o oposto da arrogância. Em sua forma mais profunda, reconhece nossa necessidade desesperada de Deus. Jesus está declarando que é uma bênção admitir que carecemos de ser cheios da graça de Deus.

Assim, logo no início do Sermão do Monte aprendemos que não temos em nós mesmos os recursos espirituais necessários para colocar os ensinamentos de Jesus em prática. Não podemos cumprir o chamado de Deus por nossos próprios meios. Bem-aventurados são aqueles que percebem que são espiritualmente falidos, pois essa percepção os leva até Deus, sem o qual não podemos cumprir aquilo que fomos criados para ser e fazer. A maior parte do restante do sermão arranca de nós a ilusão de que somos capazes de conquistar um estado de bênção por nossas próprias forças. O objetivo é produzir em nós uma genuína pobreza de espírito.

Qual é o resultado prático dessa bênção? Se somos pobres em espírito, então temos a capacidade de produzir uma avaliação honesta de nós mesmos em relação ao nosso trabalho. Não inflamos nosso currículo nem nos vangloriamos de nossa posição. Sabemos quão difícil é trabalhar com pessoas que não conseguem aprender, crescer ou aceitar a correção porque estão tentando manter uma imagem envaidecida de si próprias. Assim, nos comprometemos com a honestidade em relação a nós mesmos. Lembramo-nos de que até mesmo Jesus, quando começou a trabalhar com madeira, deve ter precisado de orientação e instrução. Ao mesmo tempo, reconhecemos que apenas tendo Deus trabalhando dentro de nós é que podemos colocar os ensinamentos de Jesus em prática no nosso emprego. Procuramos a presença e a força de Deus em nossa vida a cada dia ao vivermos como cristãos no lugar onde trabalhamos.

No mundo caído, a pobreza de espírito pode aparentar ser um impedimento para o sucesso e o avanço. É comum que isso seja uma ilusão. Quem tem mais probabilidade de ser bem-sucedido no longo prazo: um líder que diz “não tenha medo, eu consigo lidar com qualquer coisa, simplesmente faça o que eu digo” ou um líder que diz “juntos conseguiremos fazer isso, mas todo mundo terá de se esforçar muito mais do que antes”? Se já houve um tempo em que um líder arrogante e em busca de autopromoção foi considerado maior do que um líder humilde e capacitador, este tempo está passando, pelo menos dentro das melhores organizações. Um líder humilde, por exemplo, é a primeira marca característica de empresas que alcançam grandeza sustentável, de acordo com a renomada pesquisa de Jim Collins.[2] Naturalmente, muitos ambientes de trabalho permanecem presos ao velho reino da autopromoção e da autovalorização exagerada. Em algumas situações, o melhor conselho prático pode ser encontrar outro lugar para trabalhar, se isso for possível. Em outros casos, deixar o emprego pode não ser possível, ou pelo menos não desejável, porque, ao permanecer, um cristão pode ser uma força importante para o bem. Nessas situações, os pobres de espírito são uma bênção ainda maior para os que estão ao redor deles.

“Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados” (Mateus 5.4)

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A segunda bem-aventurança aprofunda o reconhecimento mental que fazemos de nossa pobreza de espírito ao adicionar uma resposta emocional de tristeza. Quando enfrentamos o mal em nossa própria vida, ele nos entristece; quando encaramos o mal no mundo — o que inclui possíveis males em nosso local de trabalho — isso também toca nossas emoções com o lamento. O mal pode vir de nós mesmos, de outros ou de fontes desconhecidas. Seja qual for o caso, quando choramos honestamente por palavras, ações e políticas malignas no trabalho, Deus vê a nossa tristeza e nos conforta com o reconhecimento de que não será sempre dessa maneira.

Os que são abençoados pelo choro em relação aos seus próprios fracassos podem receber conforto ao admitir seus erros. Se cometermos algum erro para com um colega de trabalho, um aluno, um cliente, um funcionário ou outra pessoa, admitimos isso e pedimos o perdão da outra parte. É uma atitude que exige coragem! Sem a bênção emocional da tristeza relacionada às nossas ações, provavelmente jamais reuniríamos as forças para admitir nossos erros. Mas, se o fizermos, podemos nos surpreender com a prontidão das pessoas em nos perdoar. E se, ocasionalmente, outros tirarem vantagem de nossa admissão de uma falha, podemos contar com a bênção da não arrogância que flui da primeira bem-aventurança.

Algumas empresas descobriram que expressar tristeza é uma maneira eficiente de operar. A empresa Toro, que fabrica de tratores e cortadores de grama, adotou a prática de mostrar preocupação pelas pessoas que se feriram ao usar seus produtos. Assim que toma conhecimento de alguém que se feriu, a empresa entra em contato com a pessoa afetada para expressar sua tristeza e oferecer ajuda. Ela também pede sugestões sobre como melhorar o produto. Por mais surpreendente que possa parecer, essa abordagem diminuiu o número de processos legais por parte de consumidores considerando um período de muitos anos.[1] O Hospital Virginia Mason alcançou resultados semelhantes a partir do reconhecimento de seu papel na morte de pacientes.[2]

“Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança” (Mateus 5.5)

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A terceira bem-aventurança intriga muitas pessoas no ambiente de trabalho, em parte porque não entendem o que significa ser humilde. Muitos presumem que o termo significa ser fraco, domesticado ou sem coragem. Mas o entendimento bíblico de humildade é poder sob controle. No Antigo Testamento, Moisés foi descrito como o homem mais humilde da terra (Números 12.3, NVT). Jesus descreveu a si mesmo como alguém “manso e humilde” (Mateus 11.28-29), o que era condizente com sua ação vigorosa na purificação do templo (Mateus 21.12-13).

Poder sob o controle de Deus significa duas coisas: 1) uma recusa a inflar nossa autoavaliação e 2) uma reserva em nos impormos em favor de nós mesmos. Paulo captura o primeiro aspecto perfeitamente em Romanos 12.3: “Pois pela graça que me foi dada digo a todos vocês: ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter; mas, pelo contrário, tenha um conceito equilibrado, de acordo com a medida da fé que Deus lhe concedeu”. As pessoas humildes veem a si próprias como servas de Deus, sem se consideraram superiores além do que deveriam pensar. Ser humilde é aceitar nossas forças e limitações exatamente como são, em vez de constantemente tentarmos retratar a nós mesmos sob a melhor luz possível. Mas isso não significa que devemos negar nossos pontos fortes e habilidades. Quando perguntado se era o Messias, Jesus respondeu: “Os cegos veem, os mancos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e as boas-novas são pregadas aos pobres; e feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa” (Mateus 11.4-6). Ele não tinha nem uma autoimagem inflada nem um complexo de inferioridade, mas o coração de um servo fundamentado naquilo que Paulo mais tarde chamaria de “conceito equilibrado” (Romanos 12.3).

O coração de um servo é o ponto crucial do segundo aspecto da humildade: reserva em nos impormos em favor de nós mesmos. Exercemos o poder, mas para benefício de todas as pessoas, não apenas de nós mesmos. O segundo aspecto é captado pelo texto de Salmos 37.1-11a, que começa com “não se aborreça por causa dos homens maus” e termina com “os humildes receberão a terra por herança”. Significa que refreamos nosso desejo de vingar os erros cometidos contra nós e, em vez disso, usamos qualquer poder que tenhamos para servir os outros. Flui da tristeza de nossa própria fraqueza, que compreende a segunda bem-aventurança. Se nos sentirmos tristes por causa de nossos próprios pecados, poderemos realmente nos sentir vingativos em relação aos pecados dos outros?

Pode ser bastante desafiador colocar nosso poder em ação debaixo do controle de Deus. Em um mundo caído, parece que o agressivo e o que se autopromove é quem segue adiante. “Você não recebe o que merece, você recebe o que negocia.”[1] No ambiente de trabalho, o arrogante e o poderoso parecem vencer, mas, no final, eles perdem. Eles não ganham nos relacionamentos pessoais. Ninguém quer um amigo arrogante e autocentrado. Homens e mulheres famintos por poder costumam ser pessoas solitárias. Também não alcançam segurança financeira. Pensam que possuem o mundo, mas o mundo é que as possui. E quanto mais dinheiro têm, menos segurança financeira sentem.

Em contraste, Jesus disse que os humildes “receberão a terra por herança”. Como já vimos, a terra se tornou o local do Reino dos céus. Nossa tendência é pensar no Reino dos céus como céu, um lugar completamente diferente (ruas de ouro, portões de pérola, mansões em colinas) daquilo que conhecemos aqui. Mas a promessa de Deus ligada ao Reino é um novo céu e uma nova terra (Apocalipse 21.1). Aqueles que submeterem seu poder a Deus herdarão o Reino perfeito que vem à terra. Nesse Reino, recebemos pela graça de Deus as coisas boas pelas quais o arrogante luta inutilmente na terra atual, e muito mais. E isso não é apenas uma realidade futura. Até mesmo em um mundo caído aqueles que reconhecem suas verdadeiras forças e fraquezas podem encontrar paz ao viver de forma realista. Aqueles que exercem o poder em benefício de outras pessoas normalmente são admirados. O humilde envolve outros no processo de decisão e experimenta melhores resultados e relacionamentos mais profundos.

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos“ (Mateus 5.6)

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A compreensão da quarta bem-aventurança requer um entendimento daquilo que Jesus chamou de justiça. No judaísmo antigo, justiça significava “inocentar, vindicar, restaurar a um relacionamento correto”.[1] Os justos são aqueles que mantêm relacionamentos justos — com Deus e com as pessoas ao redor deles. Com base em relacionamentos justos, aqueles que cometem infrações são inocentados da culpa.

Você recebeu a bênção de relacionamentos justos em abundância? Isso é resultado da humildade (a terceira bem-aventurança), porque só podemos formar relacionamentos justos com outras pessoas quando deixamos de fazer com que todas as nossas ações girem em torno de nós mesmos. Você tem fome e sede de relacionamento justos — com Deus, com seus colegas de trabalho, com sua família e com sua comunidade? A fome é um sinal de vida. Seremos genuinamente famintos por bons relacionamentos se ansiarmos por outros por causa deles próprios, não apenas como petiscos para satisfazer nossas próprias necessidades. Se entendermos que temos a graça de Deus para isso, teremos fome e sede de relacionamentos justos, não apenas com Deus, mas também com as pessoas com quem trabalhamos ou vivemos.

Jesus disse que aqueles que têm essa fome terão seu apetite satisfeito. É fácil ver os erros em nosso local de trabalho e querer batalhar para consertá-los. Se fizermos isso, estaremos famintos e sedentos por justiça, desejando que os erros sejam corrigidos. A fé cristã tem sido a fonte de muitas das maiores reformas realizadas no mundo do trabalho, talvez sendo as mais notáveis a Abolição da Escravatura na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos e a gênese do Movimento dos Direitos Civis. Mais uma vez, porém, o fluxo das bem-aventuranças é importante. Não nos envolvemos nessas batalhas com base em nossas próprias forças, mas apenas em reconhecimento de nosso próprio vazio, chorando nossa própria injustiça e submetendo nosso poder a Deus.

“Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia” (Mateus 5.7)

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Se você for bem-aventurado pela tristeza que sente por suas próprias falhas (a segunda bem-aventurança) e pelos relacionamentos justos (a quarta bem-aventurança), então não encontrará dificuldade para mostrar misericórdia aos outros, tanto no trabalho como em qualquer outro lugar. A misericórdia consiste em tratar as pessoas de um modo melhor do que elas merecem de nós. O perdão é um tipo de misericórdia. O mesmo vale quanto a acudir alguém a quem não temos obrigação de ajudar, ou refrear-nos de explorar a vulnerabilidade de uma pessoa. Em todos esses sentidos, a misericórdia é a força motriz da encarnação, da morte e da ressurreição de Cristo. Através dele, nossos pecados são perdoados e nós mesmos recebemos ajuda por meio do dom do espírito de Deus (1Coríntios 12). A razão de o Espírito nos mostrar essa misericórdia é simplesmente o fato de Deus nos amar (João 3.16).

No trabalho, a misericórdia tem um aspecto altamente prático. Devemos ajudar os outros a alcançar seus melhores resultados, independentemente de como nos sintamos em relação a essas pessoas. Quando ajuda um colega de trabalho, de quem você talvez não goste e que talvez possa até mesmo tê-lo prejudicado no passado, você está mostrando misericórdia. Quando você é o primeiro participante de uma audição e adverte os demais de que o juiz está de mau humor, você está mostrando misericórdia, ainda que isso possa dar a eles vantagem em relação a você. Quando o filho de um concorrente está adoentado e você concorda em remarcar sua apresentação para o cliente de modo que o seu concorrente não tenha de escolher entre cuidar do filho e concorrer a um negócio, você está mostrando misericórdia.

Esses tipos de misericórdia podem lhe custar uma vantagem que, em outras circunstâncias, estaria disponível a você. Contudo, elas beneficiam o resultado do trabalho, assim como a outra pessoa. Auxiliar uma pessoa de quem você não gosta ajuda sua unidade de trabalho a alcançar seus objetivos, ainda que isso não beneficie você pessoalmente. Ou, como no caso do concorrente com um filho adoentado, se isso não beneficia a sua empresa, certamente traz um benefício para o cliente ao qual você pretende servir. A realidade subjacente da misericórdia é que a misericórdia beneficia alguém além de você mesmo.

Um ambiente de perdão em uma empresa oferece outro resultado surpreendente. Ele melhora a performance da organização. Se alguém comete um erro numa empresa na qual a misericórdia não é demonstrada, é bem provável que a pessoa não diga nada em relação àquilo, na esperança de que o erro não seja notado e que a pessoa não seja responsabilizada.

Isso diminui o desempenho de duas maneiras. A primeira é que um erro encoberto pode ser muito mais difícil de ser tratado posteriormente. Imagine um trabalho de construção no qual um trabalhador comete um erro no preenchimento de uma fundação. É fácil consertar o problema se ele for trazido à luz e reparado imediatamente. Mas será muito caro consertar depois que a estrutura estiver construída e a fundação enterrada. A segunda maneira é que a melhor experiência de aprendizado surge do aprendizado a partir dos erros. Como Soichiro Honda disse, “o sucesso só pode ser alcançado através do fracasso repetido e da introspecção. O fato é que o sucesso representa o 1% do seu trabalho que surge somente depois de 99% daquilo que é chamado de fracasso”.[1] As organizações não terão oportunidade de aprender se os erros não forem analisados.

“Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus” (Mateus 5.8)

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A sexta bem-aventurança ecoa Salmos 24.3-5:

Quem poderá subir o monte do SENHOR? Quem poderá entrar no seu Santo Lugar? Aquele que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por deuses falsos. Ele receberá bênçãos do Senhor, e Deus, o seu Salvador lhe fará justiça.

A frase “as mãos limpas e o coração puro” denota integridade, singeleza de devoção, lealdade plena. Ter integridade vai muito além de evitar o engano e o mau comportamento. A raiz da integridade é a inteireza, o que significa que nossas ações não são escolhas que fazemos ou deixamos de fazer em função da conveniência, mas que se baseiam na totalidade do nosso ser. Perceba que Jesus pronuncia a bênção de ser puro de coração não imediatamente depois da bênção de ter fome de justiça, mas depois da bênção de mostrar misericórdia. A pureza de coração surge não da perfeição de nossa vontade, mas do recebimento da graça de Deus.

Podemos determinar o quanto dessa bênção temos recebido ao perguntarmos a nós mesmos: qual é o meu compromisso com a integridade naquelas ocasiões em que consigo me livrar através de um engano habilidoso? Recuso-me a deixar que minha opinião sobre alguém seja moldada pela fofoca e pela insinuação, por mais atraente que isso possa ser? Até que ponto minhas ações e palavras são um reflexo preciso daquilo que está no meu coração?

É difícil argumentar contra a integridade pessoal no ambiente de trabalho, mas, em um mundo caído, ela costuma ser alvo de piadas. Assim como a misericórdia e a humildade, ela pode ser vista como fraqueza. Mas são as pessoas de integridade que “verão a Deus”. Embora a Bíblia seja clara ao afirmar que Deus é invisível e que “habita em luz inacessível” (1Timóteo 1.17; 6.16), o puro de coração pode perceber e sentir a realidade de Deus em sua vida. De fato, sem integridade, a falsidade que propagamos contra outras pessoas terminará nos tornando incapazes de perceber a verdade. Inevitavelmente começamos a acreditar em nossas próprias falsificações. Isso leva à ruína no ambiente de trabalho, porque trabalho baseado em algo irreal logo se torna ineficiente. O impuro não tem desejo de ver a Deus, mas aqueles que fazem parte do Reino de Cristo são bem-aventurados porque enxergam a realidade como ela verdadeiramente é, incluindo a realidade de Deus.

“Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5.9)

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A sétima bem-aventurança leva todo cristão à tarefa da resolução de conflitos. Os conflitos surgem toda vez que pessoas têm diferenças de opinião. Em um mundo caído, a tendência é ignorar o conflito ou suprimi-lo usando força, ameaça ou intimidação. Mas todas essas são violações da integridade (a sexta bem-aventurança) das pessoas em conflito. No Reino de Deus, é uma bênção reunir pessoas que estão em conflito. Somente assim é possível resolver o conflito e restaurar os relacionamentos. (Mais adiante neste artigo exploraremos o método de Jesus para a resolução de conflitos, apresentado em Mateus 18.17-19).

O resultado da resolução do conflito é a paz, e os pacificadores serão chamados “filhos de Deus”. Eles refletirão o caráter divino em suas ações. Deus é o Deus da paz (1Tessalonicenses 5.23) e mostramos que nós mesmos somos seus filhos quando buscamos promover a paz no ambiente de trabalho, na comunidade, em nosso lar e no mundo inteiro.

“Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça“ (Mateus 5.10)

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A oitava e última bem-aventurança pode nos parecer negativa. Até este ponto, as bem-aventuranças se concentraram em humildade, mansidão, relacionamentos justos, misericórdia, pureza de coração e pacificação — todas elas qualidades positivas. Mas Jesus inclui a possibilidade de perseguição “por causa da justiça”. Isso surge em razão das sete anteriores, porque as forças que se opõem aos caminhos de Deus ainda detêm grande poder no mundo.

Perceba que a perseguição que surge a partir de um comportamento injusto não é abençoada. Se falharmos por nossas próprias faltas, devemos esperar sofrer consequências negativas. Jesus está falando sobre a bênção de ser perseguido por fazer o que é certo. Mas por que seriamos perseguidos por causa da justiça? A realidade em um mundo caído é que, se demonstrarmos justiça genuína, muitos nos rejeitarão. Jesus detalha a questão ao destacar que os profetas — que, como ele, anunciaram o Reino de Deus — foram perseguidos. “Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a recompensa de vocês nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês” (Mateus 5.11-12). Pessoas justas no ambiente de trabalho podem estar sujeitas a perseguição ativa e até mesmo severa da parte de pessoas que se beneficiam — ou que acreditam que se beneficiam — da injustiça presente ali. Se, por exemplo, você defender pessoas que são vítimas de fofoca ou discriminação em seu ambiente de trabalho (ou se simplesmente tiver amizade com elas), espere perseguição. Se você for presidente de uma associação comercial e se opuser a um subsídio acima do normal que seus membros estejam recebendo, não espere ser reeleito. A bênção é que a perseguição ativa pelo comportamento correto indica que os poderes das trevas acreditam que você está sendo bem-sucedido em propagar o Reino de Deus.

Até mesmo as melhores organizações e as pessoas mais admiráveis ainda estão manchadas pela Queda. Ninguém é perfeito. A oitava bem-aventurança serve como um lembrete a nós de que trabalhar em um mundo caído exige coragem.

Sal e luz no mundo do trabalho (Mateus 5.13-16)

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Logo após as bem-aventuranças no Sermão do Monte, Jesus diz aos seus seguidores que as pessoas que recebem essas bênçãos são importantes:

Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens. Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Pelo contrário, coloca-a no lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus. (Mateus 5.13-16)

Se você é um seguidor de Jesus vivendo as bem-aventuranças, você é importante e tem um papel fundamental a desempenhar, porque é o sal da terra. O sal preserva, e os cristãos ajudam a preservar o que é bom na cultura. No mundo antigo, o sal era muito valioso: os gregos achavam que ele continha alguma coisa quase divina e os romanos às vezes pagavam seus soldados com sal. Um soldado que não cumpria suas tarefas “não valia o seu sal”. Você é um agente de tempero. Em certo sentido, você pode trazer o sabor distintivo dos valores de Deus a tudo na vida. Você pode tornar a vida palatável.

Perceba que, para ser eficiente, o sal deve estar em contato com a carne ou o peixe a ser preservado. Para sermos eficientes, devemos estar envolvidos com as pessoas dos locais onde trabalhamos e vivemos. Isso nos coloca em tensão, pois a cultura dominante não necessariamente gosta de nós. Na maioria das vezes, viver de acordo com as bem-aventuranças pode nos tornar mais bem-sucedidos no trabalho. Mas precisamos estar preparados para os momentos em que isso não acontece. O que faremos se o fato de mostrar misericórdia, promover a paz ou trabalhar pela justiça colocar em risco nossa posição no trabalho? Afastar-se do mundo não é uma alternativa para os cristãos. Mas é difícil viver no mundo, sempre pronto a exigir que as coisas sejam do seu modo a qualquer instante. Em Mateus 5.10-12 Jesus reconheceu a realidade da perseguição. Contudo, em nossos contatos com a cultura, devemos reter nossa “salinidade”, nossa particularidade. É um ato de equilíbrio que somos chamados a manter.

“Vocês são a luz do mundo.” A descrição de função de um cristão não é apenas manter a santidade pessoal, mas também tocar a vida de todos ao nosso redor. No trabalho, tocamos muitas pessoas que não encontram Cristo na igreja. Pode ser nosso lugar mais eficaz para testemunhar de Cristo. Mas precisamos ser cuidadosos em relação à maneira como testemunhamos de Cristo no trabalho. Somos pagos para realizar nosso trabalho, e seria desonesto fraudar nosso empregador usando o tempo do trabalho para fazer evangelismo. Além disso, seria desonroso criar divisões no trabalho ou um ambiente hostil para os descrentes. Devemos evitar qualquer possível mancha por buscar autopromoção por meio do proselitismo. E sempre corremos o risco de que nossos erros no trabalho possam trazer vergonha para o nome de Cristo, especialmente se parecermos entusiasmados com o evangelismo mas realizarmos nosso verdadeiro trabalho com má qualidade.

Diante de todos esses perigos, como podemos ser sal e luz no trabalho? Jesus disse que nossa luz não necessariamente está no testemunho de nossas palavras, mas no testemunho de nossos atos — as nossas “boas obras”. “Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus.” As bem-aventuranças revelaram algumas dessas boas obras. Em humildade e submissão a Deus, trabalhamos em favor dos relacionamentos justos, das ações misericordiosas e da paz. Quando vivemos como pessoas de bênção, somos sal e luz — no ambiente de trabalho, em nosso lar e em nossa nação.

O que é justiça? (Mateus 5.17-48)

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Jesus faz uma declaração surpreendente em Mateus 5.20: “Pois eu lhes digo que se a justiça de vocês não for muito superior à dos fariseus e mestres da lei, de modo nenhum entrarão no Reino dos céus”. Pessoas comuns da época de Jesus reverenciavam a justiça aparente dos líderes religiosos e não imaginavam serem capazes de se igualar a eles em sua piedade. Jesus choca seus ouvintes ao dizer que a entrada no Reino de Deus estava disponível apenas para aqueles cuja justiça excedesse à dos fariseus e mestres da lei. Sendo assim, quem poderia ser salvo? O problema reside em igualar justiça com piedade exterior, uma compreensão comum da palavra tanto naquela época quanto agora. Contudo, por toda a Bíblia, a palavra justiça (conforme destacado acima na quarta bem-aventurança) sempre denota relacionamentos justos — com Deus e com as pessoas ao nosso redor. Isso inclui aqueles que fazem parte de nosso ambiente de trabalho.

Isto fica bastante claro na ilustração que se segue. Em Mateus 5.21-26 não é suficiente não matar alguém; devemos nos precaver quanto a guardar dentro de nós a ira que leva a insultos e a relacionamentos partidos. Podemos sentir ira, mas a maneira correta de lidar com ela é buscar resolver o conflito (Mateus 18.15-19), não afastar a pessoa com insultos ou difamação. Jesus deixa claro que um relacionamento correto entre você e seu irmão ou irmã é tão vital que é necessário abster-se de práticas religiosas até que a questão entre vocês dois tenha sido resolvida.

No ambiente de trabalho, a ira pode ser usada para manipular outras pessoas. Ou então a ira pode dominar sua vida porque você sente que é tratado de forma injusta. Lide com a questão: dê o primeiro passo rumo à reconciliação, ainda que isso possa colocar você numa posição de ser humilhado. Envolver-se numa resolução de conflito justa e aberta é o caminho do novo reino. Mais uma vez, bem-aventurados os pacificadores.

Riqueza e provisão (Mateus 6)

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Jesus fala sobre riqueza com bastante frequência. Riqueza e provisão não são em si mesmas trabalho, mas costumam ser resultado do trabalho, seja nosso ou de outra pessoa. Um dos princípios da economia é que o propósito do trabalho é aumentar a riqueza, fazendo desta um assunto relacionado ao trabalho. Veja a seguir os ensinamentos de Jesus sobre riqueza e provisão diária conforme apresentados no Sermão do Monte.

Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia (Matthew 6.11)

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Imediatamente antes deste pedido pelo pão diário na Oração do Pai-Nosso lemos o seguinte: “Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6.10). No Reino de Deus, receber nosso pão de cada dia é uma certeza, mas, no mundo desfigurado pelo pecado, o sustento é questionável. Embora Deus tenha dado à humanidade tudo de que precisamos para produzir comida suficiente para alimentar todas as pessoas da terra, não demos fim à fome. Desse modo, a primeira palavra de Jesus sobre riqueza ou provisão diária é esta petição: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia”. Buscamos a Deus para obter o pão de que precisamos.

Mas perceba que a petição está no plural: “Dá-NOS hoje o NOSSO pão de cada dia”. Não oramos apenas pelo nosso próprio pão, mas pelo pão para aqueles que não têm nenhum. Na condição de pessoas que desejam manter relacionamentos justos com outras, levamos em consideração a necessidade de pão das outras pessoas: compartilhamos aquilo que temos com aqueles que têm necessidade. Se cada pessoa, negócio, instituição ou governo trabalhasse de acordo com os propósitos e os princípios do Reino de Deus, ninguém teria fome.

Acumulem tesouros no céu, não na terra (Mateus 6.19-34)

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Não apenas devemos pedir a Deus a nossa provisão diária, mas também somos advertidos contra a acumulação de riqueza material e outros tesouros na terra:

Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas acumulem para vocês tesouros no céu, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração. (Mateus 6.19-21)

“Tesouros no céu” não é uma referência etérea a pensamentos bondosos no coração de Deus nem algum tipo de clichê. O Reino de Deus terminará governando a terra. “Tesouros no céu” são coisas de valor no futuro Reino de Deus, como justiça, oportunidade para todos serem produtivos, provisão para as necessidades de todos e respeito pela dignidade de toda pessoa. A implicação é que é melhor investirmos nosso dinheiro em iniciativas que transformam o mundo do que na segurança para proteger os excedentes que acumulamos.

Então é errado ter um portfólio de aposentadoria ou até mesmo nos importar com as coisas materiais deste mundo, seja para nós ou para outras pessoas? A resposta, mais uma vez, é tanto não quanto sim. O não vem do fato de que esta passagem não é a única na Bíblia que fala sobre questões de riqueza e provisão para aqueles que dependem de nós. Outras passagens aconselham a prudência e o planejamento, como “quem o ajunta aos poucos terá cada vez mais” (Provérbios 13.11) e “o homem bom deixa herança para os filhos de seus filhos” (Provérbios 13.22); Deus orienta José a armazenar comida por sete anos antes de uma fome (Gênesis 41.25-36) e, na parábola dos talentos (Mateus 25.14-30, que será discutida mais adiante), Jesus fala favoravelmente sobre investir dinheiro. À luz do restante das Escrituras, Mateus 6.19-34 não pode ser uma proibição geral.

Mas a parte do sim da resposta é uma advertência, lindamente resumida no versículo 21: “Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração”. Talvez esperássemos que essa sentença seria melhor ao contrário, algo como “onde estiver o seu coração, aí também estará o seu tesouro”. Mas as palavras reais de Jesus são mais profundas. O dinheiro muda o coração mais do que o coração decide como lidar com o dinheiro. O que Jesus quer destacar não é “você tende a colocar seu dinheiro nas coisas que importam para você”, mas “suas posses mudarão você, de modo que vai se importar mais com elas do que com outras coisas”. Escolha cuidadosamente as coisas que possui, pois você inevitavelmente começará a valorizá-las e protegê-las, até possivelmente chegar ao desprezo de tudo mais.

Podemos chamar isso de “Princípio do tesouro”, a saber, que o tesouro transforma. Aqueles que investem seus tesouros mais profundos nas coisas deste mundo descobrirão que não estão mais servindo a Deus, mas ao dinheiro (Mateus 6.24). Isso pode levar à ansiedade proveniente das incertezas do dinheiro (Mateus 6.25-34). Ele será corroído pela inflação? O mercado de ações vai desabar? Os títulos vão desvalorizar? O banco vai falir? Posso ter certeza de que aquilo que poupei será suficiente para lidar com qualquer coisa que possa vir a acontecer?

O antidoto é investir em coisas que possam satisfazer as necessidades genuínas das pessoas. Uma empresa que forneça água limpa ou roupas bem-feitas pode estar investindo no Reino de Deus, enquanto um investimento que depende de subsídios baseados em motivação política, mercado imobiliário superaquecido ou escassez de matéria-prima pode não estar. Esta passagem de Mateus 6 não é uma regra para gerenciamento de portfólio de investimento, mas de fato nos diz que nosso compromisso com os caminhos e meios do Reino de Deus se estendem para a maneira como gerenciamos a riqueza que temos.

A pergunta, então, está ligada ao tipo de atenção que você deveria dar às necessidades materiais e à acumulação de riqueza. Se você der uma atenção ansiosa, você é um tolo. Se permitir que elas destruam sua confiança em Deus, você está se tornando infiel. Se der atenção excessiva a elas, você se tornará ganancioso. Se adquirir coisas às custas de outras pessoas, você se tornará um tipo de opressor contra o qual o Reino de Deus se coloca.

Como discernir a linha entre a atenção à riqueza própria e a imprópria? Jesus responde: “Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas” (Mateus 6.33). As primeiras coisas em primeiro lugar. A despeito de nossa grande capacidade de enganarmos a nós mesmos, essa pergunta pode nos ajudar a observar cuidadosamente onde nosso tesouro nos colocou. Isso vai nos dizer alguma coisa sobre o nosso coração.

Orientação Moral (Mateus 7)

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Jesus nos chama à realidade em relação a nós mesmos, o que vai impedir que tenhamos preferências ou julguemos outras pessoas.

“Não julguem, para que vocês não sejam julgados” (Mateus 7.1-5)

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Jesus nos chama à realidade em relação a nós mesmos, o que vai impedir que tenhamos preferências ou julguemos outras pessoas:

Não julguem, para que vocês não sejam julgados. Pois da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será usada para medir vocês.
Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão, e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho? Como você pode dizer ao seu irmão: “Deixe-me tirar o cisco do seu olho”, quando há uma viga no seu? Hipócrita, tire primeiro a viga do seu olho, e então você verá claramente para tirar o cisco do olho do seu irmão. (Mateus 7.1-5)

Aparentemente isto cria um problema no ambiente de trabalho. O trabalho bem-sucedido costuma depender de avaliações do caráter e do trabalho de outras pessoas. Os chefes precisam avaliar seus subordinados e, em algumas organizações, vice-versa. É comum termos de decidir em quem confiar, quem escolher como parceiro, quem empregar, a quais organizações nos unir. Mas Mateus 7.5, com a palavra hipócrita e a admoestação “tire primeiro a viga do seu olho”, mostra que Jesus está falando contra o julgamento falso ou desnecessário, não contra a avaliação honesta. O problema é que estamos constantemente fazendo julgamentos de forma inconsciente. As imagens mentais que formamos de outros em nossos ambientes de trabalho se baseiam mais em nossas percepções tendenciosas do que na realidade. Em parte, isso acontece porque vemos nos outros qualquer coisa que sirva para nos fazer sentir melhor em relação a nós mesmos. Em parte, é para justificar nossas próprias ações quando não agimos como servos dos outros. Em parte, é porque carecemos de tempo ou disposição para reunir informação verdadeira, o que é muito mais difícil de fazer do que armazenar impressões aleatórias.

Pode ser impossível superar essa tendência de emitir falso julgamento por nossa própria iniciativa. É por isso que sistemas de avaliação consistentes e baseados em fatos são tão importantes no ambiente de trabalho. Um bom sistema de avaliação de desempenho exige que gerentes reúnam evidências reais de performance, discutam diferentes percepções com os empregados e reconheçam as propensões comuns. Em nível pessoal, com pessoas entre as quais não exista uma relação chefe-subordinado, podemos alcançar um tanto das mesmas imparcialidades perguntando a nós mesmos “que papel tenho nisso?” quando notarmos que estamos formando um julgamento contra outra pessoa. “Quais evidências me levam a essa conclusão? De que maneira esse julgamento me beneficia? O que aquela pessoa diria em resposta a esse julgamento?” Talvez a maneira mais segura de remover a viga do nosso próprio olho é levar nosso julgamento diretamente à outra pessoa e pedir-lhe que responda à nossa percepção. (Veja a seção sobre resolução de conflitos em Mateus 18.15-17, mais adiante.)

“Façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam”: a Regra de Ouro (Mateus 7.12)

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“Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mateus 7.12). Isso nos leva de volta à justiça verdadeira, o reparo e a sustentação de relacionamentos justos tanto no trabalho como em outros lugares. Se tivermos tempo para apenas uma pergunta antes de tomar uma decisão sobre uma ação, a melhor pergunta pode ser: “É isso que eu gostaria que fosse feito para mim?”.

Jesus cura várias pessoas (Mateus 8—9)

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Nos capítulos 5 a 7, ouvimos Jesus ensinar sobre o Reino dos céus que chega à terra. Nos capítulos 8 a 9, nós o vemos encenando este Reino por meio de atos de compaixão e misericórdia. Ele cura um leproso condenado ao ostracismo (Mateus 8.1-4), tem compaixão de um oficial das forças de ocupação romanas (Mateus 8.5-13) e liberta endemoninhados que estavam no meio de uma tempestade perfeita de miséria (Mateus 8.28—9.1). Em todos esses casos, a compaixão de Jesus levou-o a agir para reivindicar a criação de Deus. A compaixão de seus seguidores pode ser expressa em maneiras igualmente práticas.

Enquanto demonstra a chegada do Reino, Jesus chama aqueles que o seguem de “trabalhadores” (Mateus 9.37-38). Alguns de nós são levados a trabalhar em cura física e emocional, algo semelhante à obra de Jesus mostrada nestes capítulos. Outros são levados a trabalhar em ocupações que fornecem alimento, água, abrigo, transporte, educação, cuidados de saúde, justiça, segurança ou bom governo, similar à obra de Jesus de fornecer produtos de madeira até por volta dos trinta anos de idade. Dado o tempo que Jesus passou curando pessoas, é surpreendente que a maioria das pessoas pense nele como um pregador, em vez de como um médico. Ainda outros são levados a expressar sua criatividade na arte, no empreendedorismo, design, moda, pesquisa e desenvolvimento, feitos como somos à imagem de um Deus criativo (Gênesis 1). A questão é que, para Jesus, não existe separação entre o secular e o sagrado, entre os aspectos espiritual e físico de anunciar o Reino de Deus.

O trabalhador é digno do seu sustento (Mateus 10)

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No capítulo 10, Jesus envia seus discípulos para proclamar o Reino que chega e para demonstrá-lo por meio de atos poderosos de misericórdia e compaixão. Ele os instrui a não preparar provisões para suas necessidades (Mateus 10.9-10), mas, em vez disso, depender da generosidade das pessoas. Ele deixa claro que o evangelho não deve se tornar uma questão de comércio: “Vocês receberam de graça; deem também de graça” (Mateus 10.8).

A lição para nós aqui é que ganhar dinheiro e pensar em finanças não é algo ruim; o fato é que Deus nos provê através de nosso trabalho, porque “o trabalhador é digno do seu sustento” (Mateus 10.10). Mas a advertência é contra permitir que nossos ganhos se tornem o foco principal no trabalho. Como trabalhadores sujeitos ao Senhor do novo Reino, nosso foco principal está no valor do trabalho, não no contracheque. As instruções de Jesus aqui têm o propósito de manter Deus no lugar de destaque de nosso coração (cf. Tiago 4.13-16). Seja qual for a assinatura que aparece no nosso holerite, em última análise é Deus quem está assinando tudo.

O meu jugo é suave (Mateus 11.28-30)

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À medida que caminhamos pelo Evangelho de Mateus, vemos que a oposição a Jesus — sua mensagem e suas ações — está aumentando. Ela chega ao ápice em Mateus 12.14, diante da decisão dos líderes religiosos de pará-lo, ainda que isso significasse ter de matá-lo. Isso prefigura e dá início ao final para o qual a narrativa inteira está apontando: a crucificação de Jesus em Jerusalém. Ciente do que o espera no futuro, Jesus ainda assim diz aos seus seguidores:

Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. (Mateus 11.28-30)

Se realizarmos nosso trabalho em união com ele, encontraremos satisfação e experimentaremos bons relacionamentos com Deus e com as pessoas.[1] Quando Deus deu uma tarefa para Adão realizar no Jardim do Éden, o trabalho era suave e o fardo era leve sob a autoridade de Deus. Quando o casal humano se rebelou contra seu Criador, o caráter do trabalho mudou para uma labuta pesada contra espinhos e ervas daninhas (Gênesis 3). Jesus nos convida a trabalhar em parceria com ele com a promessa de descanso para a nossa alma. (Você encontrará mais sobre trabalhar juntamente com Cristo em “2Coríntios 6.14-18” em 2Coríntios e o trabalho, em www.teologiadotrabalho.org.)

Trabalho no sábado (Mateus 12.1-8)

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Uma das principais áreas de conflito entre Jesus e seus oponentes era a questão da guarda do sábado. Nesta passagem, Jesus é criticado pelos líderes religiosos por permitir que seus seguidores colhessem e comessem grãos no sábado. Os fariseus consideravam que isso era um trabalho, o que era proibido no sábado. Jesus despreza tanto a interpretação quanto a motivação deles. Ele argumenta que colher apenas grãos suficientes para satisfazer a fome imediata não é uma quebra do sábado, porque tanto o rei Davi quanto os sacerdotes do templo fizeram isso sem incorrer numa repreensão por parte de Deus (Mateus 12.3-5). Além do mais, a verdadeira fidelidade à lei de Moisés deveria ser motivada pela compaixão e pela misericórdia (Mateus 12.6). O amor de Deus pela misericórdia (permitir que pessoas famintas colhessem grãos para comer) é maior do que o desejo de Deus pelos sacrifícios (seguir as regulamentações do sábado), como já havia sido revelado em Miqueias 6.6-8. O presente de um dia de descanso a cada semana é uma promessa de Deus de que não temos de trabalhar incessantemente apenas para nos sustentar. Não é um julgamento contra aliviar a fome ou a necessidade de alguém no sábado.

A conexão entre o sábado judaico e a adoração cristã no domingo, bem como a aplicação da lei do sábado judaico à vida cristã, são discutidas em maior profundidade nas seções “Marcos 1.21-45” e “Marcos 2.23—3.6” em Marcos e o trabalho, nas seções “Lucas 6.1-11; 3.10-17” em Lucas e o trabalho e no artigo Descanso e trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Parábolas do Reino (Mateus 13)

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A partir do capítulo 13, em razão da oposição, o estilo de ensino de Jesus muda. Em vez de proclamar o Reino claramente, ele começa a falar por meio de parábolas, as quais são significativas para os crentes, mas incompreensíveis para os descrentes. A maioria dessas histórias breves tem relação com trabalhadores: um semeador lançando sementes (Mateus 13.3-9); um mulher misturando fermento numa massa (Mateus 13.33); um caçador de tesouros (Mateus 13.44); um negociante de pérolas (Mateus 13.45-46); alguns pescadores (Mateus 13.47-50) e o dono de uma casa (Mateus 13.52). Em sua maioria, não são histórias que tratam do trabalho que mencionam. Jesus não nos diz como semear adequadamente um campo, como assar um pão ou como investir em commodities. Em vez disso, Jesus usa objetos materiais e trabalho humano como elementos de histórias que nos dão insights sobre o Reino de Deus. Nosso trabalho é capaz de produzir significado, mesmo na ilustração de realidades eternas. Isso nos lembra que nós e o mundo ao nosso redor brotamos da criação de Deus e continuamos sendo parte do Reino de Deus.

Pagamento de impostos (Mateus 17.24-27 e 22.15-22)

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Nos dias de Jesus, os judeus pagavam impostos tanto localmente, ao templo judaico, quanto ao governo pagão, de Roma. Mateus registra dois casos distintos que descrevem a visão de Jesus sobre o pagamento desses impostos. O primeiro incidente é registrado em Mateus 17.24-27, quando os coletores do imposto do templo perguntam a Pedro se Jesus pagava esse tributo. Ciente dessa conversa, Jesus indaga a Pedro: “O que você acha, Simão? De quem os reis da terra cobram tributos e impostos: de seus próprios filhos ou dos outros?”. Pedro responde: “Dos outros”. Jesus então lhe diz: “Então os filhos estão isentos. Mas para não escandalizá-los, vá ao mar e jogue o anzol. Tire o primeiro peixe que você pegar, abra-lhe a boca, e você encontrará uma moeda de quatro dracmas. Pegue-a e entregue-a a eles, para pagar o meu imposto e o seu”.

O segundo incidente, envolvendo o imposto romano, está registrado em Mateus 22.15-22. Aqui, fariseus e herodianos querem enganar Jesus fazendo-lhe a seguinte pergunta: “É certo pagar imposto a César ou não?”. Jesus percebe a malícia no coração deles e responde com uma pergunta penetrante: “Hipócritas! Por que vocês estão me pondo à prova? Mostrem-me a moeda usada para pagar o imposto”. Quando lhe entregam um denário, ele pergunta: “De quem é esta imagem e esta inscrição?”. Eles respondem: “De César”. Jesus, então, põe fim à conversa com estas palavras: “Então, deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Nossa verdadeira cidadania é a do reino de Deus, a cujos propósitos dedicamos nossos recursos. No entanto, entregamos aos poderes terrenos o que é devido. O pagamento de impostos é uma das obrigações fundamentais que nós, cidadãos ou residentes, assumimos pelos serviços que desfrutamos em qualquer sociedade civilizada. Esses serviços incluem o trabalho dos que prestam socorro (polícia, bombeiros, médicos e assim por diante), bem como as estruturas sociais em vigor que garantem justiça ou ajudam pobres, idosos e outros necessitados. O governo do Império Romano não tinha como foco principal o benefício do povo, mas, mesmo assim, fornecia estradas, água, policiamento e, às vezes, ajuda aos pobres. Talvez nem sempre concordemos quanto ao tipo ou à extensão dos serviços que nosso governo deve fornecer, mas sabemos que os impostos são essenciais para garantir nossa proteção pessoal e a ajuda àqueles que não podem se manter sozinhos.

Embora nem todas as atividades governamentais sirvam aos propósitos de Deus, Jesus não pede que desrespeitemos as exigências fiscais das nações onde residimos (Rm 13.1-10; 1Ts 4.11-12). Jesus está dizendo, em essência, que não precisamos necessariamente resistir ao pagamento de impostos por uma questão de princípio. A todo momento devemos fazer “todo o possível para viver em paz com todos” (Rm 12.18; Hb 12.14; cf. 1Pe 2.12), ao mesmo tempo em que também devemos viver como luzes que brilham nas trevas (Mt 5.13-16; Fp 2.15). Termos emprego e nos recusarmos a pagar os impostos, uma atitude que desonra o reino de Deus, não seria pacificador nem simpático.

Isso tem relação direta com o trabalho. Os ambientes de trabalho estão sujeitos às leis e aos poderes governamentais, além de aos impostos. Alguns governos têm leis e práticas que podem violar a ética e os propósitos cristãos, como era o caso de Roma no primeiro século. Governos ou seus funcionários podem exigir subornos, impor regras e regulamentos antiéticos, sujeitar pessoas a sofrimento e injustiça, e usar os impostos para fins contrários à vontade de Deus. Como acontece com os impostos, Jesus não exige que resistamos a cada um desses abusos. Somos como espiões ou guerrilheiros em território inimigo. Não podemos ficar atolados, lutando contra o reino inimigo em todas as frentes. Em vez disso, devemos agir estrategicamente, sempre perguntando o que mais promoverá o estabelecimento do reino de Deus na terra. É claro que nunca devemos nos envolver em práticas abusivas para benefício próprio. (Esse tópico também é discutido em Questões com impostos (Lucas 19.1-10; 20.20-26) em Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.)

Vivendo no Novo Reino (Mateus 18—25)

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Nos capítulos 18 a 25 do Evangelho de Mateus, Jesus apresenta imagens concretas de como é a vida no reino de Deus. Em muitos casos, essas imagens se aplicam particularmente ao trabalho.

Resolução de conflitos (Mateus 18.15-35)

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Todos os locais de trabalho experimentam conflitos. Nesta passagem, Jesus nos dá um modelo para lidar com alguém que nos prejudicou. Ele não diz “vingue-se!” ou “revide!”. Em vez disso, apresenta um processo que começa com a busca individual da reconciliação. A bem-aventurança da humildade (Mt 5.5) significa deixar sua autojustificação de lado por tempo suficiente para que você possa se expressar de maneira respeitosa e factual à pessoa que o feriu, bem como para se abrir à perspectiva dela (Mt 18.15). Isso não significa submeter-se a mais abusos, mas abrir-se para a possibilidade de que sua percepção não seja universal. Mas suponha que isso não resolva o conflito. O segundo passo alternativo é pedir a pessoas que conhecem ambas as partes que o acompanhem enquanto você retoma o problema com a pessoa que lhe causou dor ou feriu-o. Se o conflito ainda não for resolvido, leve o assunto à liderança (a igreja, em Mateus 18.16, passagem que aborda especificamente o conflito na igreja) para um julgamento imparcial. Se esse julgamento não resolver o problema, o ofensor que não acatá-lo deve ser removido da comunidade (Mt 18.17).

Embora Jesus estivesse falando sobre conflito com outro membro da igreja (Mt 18.15), seu método é um notável precursor daquela que agora é reconhecida como a melhor prática a ser adotada no local de trabalho. Mesmo os melhores ambientes de trabalho vivenciam conflitos. Quando isso acontece, a única solução eficaz é que aqueles em desacordo conversem diretamente, em vez de reclamarem com outros. Em lugar de tornar público um conflito pessoal, converse com a pessoa em particular. Na era da comunicação eletrônica, a abordagem de Jesus é mais importante do que nunca. Basta um ou dois nomes na linha “cc:” ou um toque no botão “responder a todos” para transformar uma simples diferença em uma briga no escritório. Mesmo que duas pessoas consigam manter a troca de e-mails apenas entre si, as possibilidades de mal-entendidos se multiplicam quando um meio impessoal, como o e-mail, é usado. Talvez seja melhor seguir o conselho de Jesus de forma literal: “Vá e, a sós com ele, mostre-lhe o erro” (Mt 18.15).

Apontar falhas é uma via de mão dupla. Também precisamos estar abertos a ouvir as falhas que nos são atribuídas. Ouvir — Jesus menciona três vezes a palavra “ouvir” nesses três versículos — é o elemento crucial. Os modelos contemporâneos de resolução de conflitos geralmente se concentram em fazer com que as partes se ouçam, preservando a opção de discordarem. É comum que a escuta atenta leve à descoberta de uma resolução mutuamente aceitável. Caso contrário, outras pessoas com as habilidades e a autoridade apropriadas são convidadas a se envolver.

O jovem rico (Mateus 19.16-30)

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A questão do dinheiro, discutida anteriormente em Mateus 6, surge novamente aqui, com a história do jovem rico que foi atraído a Jesus. O jovem pergunta a Jesus: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna?”. Jesus lhe diz que guarde os mandamentos, e ele responde que já tem feito isso. Um elemento distintivo na narrativa de Mateus é que o jovem então pergunta a Jesus: “O que me falta ainda?”. Ele mostra grande perspicácia ao fazer essa pergunta. Podemos fazer tudo que parece certo, e ainda assim ter consciência de que algo não está certo. Jesus responde: “Venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois, venha e siga-me” (Mt 19.21).

Sabemos pelos quatro Evangelhos que Jesus não chamou todos os seus ouvintes a doarem todos os seus bens. Nem todas as pessoas estão de tal forma sobrecarregadas por suas posses quanto esse jovem estava. Em seu caso, o desafio foi radical em razão de seu forte apego à riqueza (Mt 19.22). Deus sabe exatamente o que está em nosso coração e o que é necessário para que o sirvamos.

Estaria nosso tesouro em coisas como trabalho, emprego, desempenho, habilidades e fundos de aposentadoria? Essas coisas são boas (presentes de Deus) em seu devido lugar. Mas são secundárias quando se trata de buscar em primeiro lugar o reino de Deus (Mt 6.33) e um relacionamento correto (justo) com Deus e com os outros. Devemos preservar nossa riqueza e nosso trabalho com as mãos abertas, para que, como o jovem rico, não acabemos lamentavelmente nos afastando de Deus. (Essa história é discutida em maior profundidade nos comentários de Marcos 10.17-31 e Lucas 18.18-30 em www.teologiadotrabalho.org.)

Os trabalhadores da vinha (Mateus 20.1-16)

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Esta parábola é exclusiva do Evangelho de Mateus. O proprietário de uma vinha contrata diaristas em vários horários ao longo do dia. Os contratados às seis horas da manhã trabalham um dia inteiro. Os contratados às cinco horas da tarde trabalham apenas uma hora. Mas o proprietário paga a todos o salário de um dia inteiro (um denário). Ele faz questão de garantir que todos saibam que todos são pagos da mesma forma, apesar da quantidade diferente de horas trabalhadas. Não é surpresa que os primeiros contratados reclamem ao proprietário por trabalharam mais tempo sem ganhar mais que aqueles que começaram no final do dia. “Mas ele respondeu a um deles: ‘Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em trabalhar por um denário? [...] Não tenho o direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou generoso?’ Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos” (Mt 20.13,15-16).

Ao contrário da parábola do semeador (Mt 13.3-9; 18-23), Jesus não nos dá uma interpretação explícita. Como resultado, os estudiosos já ofereceram muitas interpretações. Como as pessoas da história são trabalhadores e gerentes, alguns supõem que ela trata de trabalho. Nesse caso, parece dizer “não compare seu salário com o dos outros” ou “não fique insatisfeito se os outros receberem mais ou trabalharem menos do que você em um cargo semelhante”. Pode-se argumentar se essas são de fato boas práticas para os trabalhadores. Se você ganha um salário decente, por que sentir-se infeliz pelo fato de outros terem um salário melhor? Mas essa interpretação da parábola também pode ser usada para justificar práticas trabalhistas injustas ou abusivas. Alguns trabalhadores podem receber salários mais baixos por razões injustas, como raça, sexo ou condição de imigrante. Jesus estaria dizendo que devemos nos contentar quando nós ou outros trabalhadores são tratados injustamente?

Além disso, pagar o mesmo às pessoas, independentemente do volume de trabalho realizado, é uma prática comercial questionável. Não seria um forte incentivo para todos os trabalhadores aparecerem às cinco horas da tarde do dia seguinte? E que tal tornar pública a remuneração de todos? Isso de fato reduziria o escopo para intrigas. Mas seria uma boa ideia forçar aqueles que trabalham mais horas a assistir àqueles que trabalharam apenas uma hora receberem um salário idêntico? Parece algo calculado para causar conflitos trabalhistas. Pagar por desempenho inferior, para levar a parábola ao pé da letra, não parece ser uma receita para o sucesso nos negócios. Será que Jesus realmente defende essa prática de pagamento?

Talvez a parábola não seja realmente sobre trabalho. O contexto geral é que Jesus está dando exemplos surpreendentes daqueles que pertencem ao reino de Deus: por exemplo, crianças (Mt 19.14), que legalmente nem sequer são donas de si mesmas. Ele deixa claro que o reino não pertence aos ricos, ou pelo menos não a muitos deles (Mt 19.23-26). Pertence àqueles que o seguem, especialmente se sofrerem perdas. “Muitos primeiros serão últimos, e muitos últimos serão primeiros” (Mt 19.30). A presente parábola é seguida imediatamente por outra que termina com as mesmas palavras: “Os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos” (Mt 20.16). Isso sugere que a história é uma continuação da discussão em torno daqueles a quem o reino pertence. A entrada no reino de Deus não é conquistada por trabalho ou ação de nossa parte, mas pela generosidade de Deus.

Mesmo entendendo que a parábola trata da generosidade de Deus no reino dos céus, ainda assim podemos perguntar como ela se aplica ao trabalho. Se você está sendo pago de forma justa, o conselho sobre se contentar com seu salário permanece. Se outro trabalhador recebesse um benefício inesperado, não seria elegante se alegrar, em vez de resmungar?

Mas há também uma aplicação mais ampla. Na parábola, o proprietário paga a todos os trabalhadores o suficiente para que sustentem sua família. [1] A situação social nos dias de Jesus forçava muitos pequenos agricultores a deixarem suas terras por causa de dívidas contraídas para pagar os impostos romanos. Isso violava a ordem do Deus de Israel segundo a qual a terra não poderia ser tirada de quem a cultivasse (Lv 25.8-13), mas isso sem dúvida não tinha importância para os romanos. Consequentemente, grandes grupos de homens desempregados se formavam todas as manhãs, na esperança de que fossem contratados para o dia. Eles eram os trabalhadores deslocados, desempregados e subempregados de sua época. Aqueles que ainda esperavam às cinco horas da tarde tinham poucas chances de ganhar o suficiente para comprar comida para a família naquele dia. No entanto, o proprietário da vinha paga até mesmo a esses o salário de um dia inteiro.

Se o proprietário da vinha representa Deus, então essa é uma mensagem poderosa que proclama que, no reino de Deus, trabalhadores deslocados e desempregados encontram um trabalho que atende a suas necessidades e às daqueles que dependem deles. Já ouvimos Jesus dizer que “o trabalhador é digno do seu sustento” (Mt 10.10). Isso não significa necessariamente que os empregadores terrenos tenham a responsabilidade de atender a todas as necessidades de seus funcionários. Os empregadores terrenos não são Deus. Em vez disso, a parábola é uma mensagem de esperança para todos que lutam a fim de encontrar um emprego adequado. No reino de Deus, todos encontraremos um trabalho que atenda a nossas necessidades. A parábola também é um desafio para aqueles que participam da formação das estruturas de trabalho na sociedade de hoje. Os cristãos podem fazer algo para promover esse aspecto do reino de Deus neste momento?

Liderança servidora (Mateus 20.20-28)

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Apesar dessa parábola sobre a graça e a generosidade de Deus, apesar de ouvir Jesus comentar duas vezes que os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros, os discípulos de Jesus ainda não tinham entendido a questão. A mãe de Tiago e de João pede a Jesus que conceda a seus dois filhos os lugares de maior destaque em seu reino vindouro. Os dois homens estão ali, e Jesus se volta para eles e pergunta: “Podem vocês beber o cálice que eu vou beber?”. Eles respondem: “Podemos”. “Quando os outros dez discípulos ouviram isso, ficaram indignados”. Jesus aproveita essa oportunidade para questionar suas noções de proeminência.

Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. (Mt 20.25-28)

A verdadeira liderança é encontrada no servir aos outros. A forma como isso acontece varia de acordo com o local de trabalho e a situação. Isso não significa que um CEO deva varrer o chão ou limpar os banheiros uma vez por mês, nem que qualquer trabalhador possa usar a ajuda a outra pessoa como desculpa para não fazer bem o seu trabalho. Significa, sim, que realizamos nosso trabalho com o objetivo de servir a clientes, colegas de trabalho, acionistas e outras pessoas a quem nosso trabalho afeta. Max De Pree foi por muito tempo CEO da Herman Miller e membro do Hall da Fama da Fortune. Ele escreveu em seu livro Liderar é uma arte: “A primeira responsabilidade de um líder é definir a realidade. A última é agradecer. Entre as duas, o líder deve se tornar um servo e um devedor. Isso resume o progresso de um líder habilidoso”. [1]

O servo é a pessoa que conhece sua pobreza espiritual (Mt 5.3) e exerce poder sob o controle de Deus (Mt 5.5) para manter relacionamentos corretos. O líder-servo pede desculpas por seus erros (Mt 5.4), mostra misericórdia quando outros falham (Mt 5.7), promove a paz quando possível (Mt 5.9) e suporta críticas imerecidas ao tentar servir a Deus (Mt 5.10) com integridade (Mt 5.8). Jesus estabeleceu o padrão em suas próprias ações em nosso favor (Mt 20.28). Mostramos que somos seguidores de Cristo ao seguir seu exemplo.

A Parábola dos Dois Filhos (Mateus 21.28-32)

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A parábola dos dois filhos (Mt 21.28-32) é a história de dois irmãos que ouvem do pai que devem ir trabalhar em sua vinha. Um diz ao pai que o fará, mas não o faz. O outro diz ao pai que não vai, mas acaba trabalhando o dia todo entre as videiras. Jesus então faz a seguinte pergunta: “Qual dos dois fez a vontade do pai?”. A resposta é clara: aquele que de fato trabalhou, embora inicialmente tivesse se recusado a fazê-lo. Essa parábola é uma continuação de histórias anteriores em Mateus sobre as pessoas que realmente fazem parte do reino de Deus. Dirigindo-se aos líderes religiosos presentes em sua audiência, Jesus diz que “os publicanos e as prostitutas estão entrando antes de vocês no Reino de Deus” (Mt 21.31). [1] As pessoas que parecem menos religiosas entrarão no reino de Deus à frente dos líderes religiosos, porque, no final, farão a vontade de Deus.

No trabalho, isso nos lembra que as ações falam mais alto que as palavras. Muitas organizações têm declarações de missão que afirmam que seus principais objetivos são atendimento ao cliente, qualidade do produto, integridade diante do Estado, e a primazia de seu pessoal entre outras coisas do gênero. No entanto, muitas dessas organizações deixam a desejar no serviço, na qualidade, na integridade e na relação com os funcionários. Os indivíduos podem fazer a mesma coisa, exaltando seus planos mas falhando em sua implementação. Organizações e indivíduos que caem nessa armadilha podem ter boas intenções e talvez não reconheçam que estão deixando de praticar sua retórica. Os locais de trabalho precisam tanto de sistemas eficazes para implementar sua missão e objetivos como sistemas de monitoramento imparciais para fornecer feedback confiável.

A Parábola dos Lavradores (Mateus 21.33-41)

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A parábola contada logo em seguida é a dos lavradores perversos (Mt 21.33-41), que se passa em um local de trabalho, a saber, uma vinha. No entanto, Jesus deixa claro que ele não está falando sobre administrar uma vinha, mas sobre a rejeição e o assassinato dos quais seria vítima por instigação das autoridades religiosas judaicas de sua época (Mt 21.45). A chave para aplicá-la ao local de trabalho de hoje é o versículo 43: “O Reino de Deus será tirado de vocês e será dado a um povo que dê os frutos do Reino”. Todos nós recebemos responsabilidades no trabalho. Se nos recusarmos a cumpri-las em obediência a Deus, estaremos trabalhando em desacordo com o reino de Deus. Em todo trabalho, nossa derradeira avaliação de desempenho vem de Deus.

O Grande Mandamento é uma Grande Estrutura (Mateus 22.34-40)

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Os líderes judeus dos dias de Jesus debatiam com frequência sobre a importância relativa dos mandamentos. Alguns sustentavam que a observância do sábado era o mais importante deles. Outros valorizavam a circuncisão acima de tudo. Ainda outros acreditavam, como muitos judeus modernos acreditam hoje, que o mandamento mais importante é encontrado em Deuteronômio 6.5: “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças”.

Portanto, quando um perito da lei pede a Jesus que pondere sobre a questão “qual é o maior mandamento da Lei?” (Mateus 22.36), poderia estar pedindo a Jesus que escolhesse um lado em um debate já contencioso.

No entanto, Jesus mergulha em uma nova área de discernimento, respondendo não apenas qual mandamento é o maior, mas apresentando como as pessoas poderiam cumpri-lo. “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento”, diz Jesus, acrescentando um segundo mandamento — de Levítico 19.18, “ame cada um o seu próximo como a si mesmo” — que ele une ao primeiro ao dizer que é “semelhante a ele”. (Veja o Comentário Bíblico PTT sobre Levítico 19.17-18). Pela lógica de Jesus, amar a Deus está ligado de forma indissociável a amar as pessoas. João ecoa essa declaração quando diz que “se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4.20).

O trabalho é uma das principais maneiras pelas quais podemos amar as pessoas. O local de trabalho costuma ser o lugar onde encontramos a maior diversidade de pessoas, e sua proximidade conosco, dia após dia, lança-nos o desafio único de amar pessoas diferentes de nós. Também amamos os outros por meio do trabalho quando ele atende às necessidades importantes dos clientes ou de outras partes interessadas. Para obter mais exemplos, consulte Nosso trabalho cumpre o maior mandamento (Mc 12.28-34) e O bom samaritano em ação – amando o próximo como a si mesmo (Lc 10.25-37).

Jesus, porém, não apenas nos ordena que amemos os outros, mas que amemos os outros como amamos a nós mesmos. Como isso se dá no local de trabalho? É a atitude de uma cozinheira que verifica duas vezes a temperatura interna de um hambúrguer depois que alguém diz “isso parece bom para você?”, porque é o que ela faria se preparasse o hambúrguer para si mesma. É um vendedor que chama um colega mais experiente quando um cliente faz uma pergunta para a qual ele não tem certeza de saber a resposta — em vez de dar uma resposta que ele supõe ser a certa — porque ele mesmo gostaria de obter essa informação antes de fechar a compra. É um mecânico que refaz o trabalho no freio que ele acabou de concluir porque ouviu um barulho estranho e é isso que ele faria antes de dirigir seu próprio carro. É um empresário perguntando a seus colegas: “É possível que não a estejamos levando a sério o suficiente pelo fato de ela ser mulher?”, ciente de que gostaria que um colega o defendesse quando ele estivesse sendo incompreendido.

Esses são pequenos exemplos, mas cada um deles pode ter um preço — uma comissão perdida, uma hora de tempo não faturável, uma noite de sono curta, perda de acesso ao círculo interno do poder. Nosso trabalho como um todo tem o potencial de servir e, portanto, amar o próximo. Contudo, amar o próximo como a si mesmo pode exigir riscos que certamente correríamos para servir nossos próprios fins, mas que se agigantam quando são assumidos apenas em benefício de outra pessoa. É realmente um padrão alto, e talvez essa seja a razão de Jesus unir “ame o seu próximo como a si mesmo” a “ame o Senhor” no Grande Mandamento.

A Parábola do Servo Fiel (Mateus 24.45-51)

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Esta parábola é sobre um servo que foi encarregado de toda a casa, o que incluía a responsabilidade de dar a outros servos sua porção de alimento no tempo devido. Jesus diz: “Feliz o servo que seu senhor encontrar fazendo assim quando voltar” (Mt 24.46). Esse servo será promovido e assumirá uma responsabilidade adicional. Em contrapartida, Jesus observou:

Mas suponham que esse servo seja mau e diga a si mesmo: “Meu senhor está demorando”, e então comece a bater em seus conservos e a comer e a beber com os beberrões. O senhor daquele servo virá num dia em que ele não o espera e numa hora que não sabe. Ele o punirá severamente e lhe dará lugar com os hipócritas, onde haverá choro e ranger de dentes. (Mt 24.48-51)

Em um contexto de trabalho moderno, o servo da parábola seria equivalente a um gerente com um dever para com os proprietários enquanto gerencia outros trabalhadores. Os interesses do proprietário são atendidos apenas quando as necessidades dos trabalhadores são atendidas. O gerente tem responsabilidades para com aqueles que estão acima e abaixo dele em termos de autoridade. Jesus diz que é dever do líder-servo estar atento às necessidades daqueles que estão tanto abaixo quanto acima dele. Não pode justificar os maus-tratos àqueles sob sua autoridade alegando que isso de alguma forma visa ao benefício de seus superiores. Jesus retrata essa realidade de forma dramática na punição aplicada ao trabalhador que se preocupa apenas com os próprios interesses (Mt 24.48-51).

A Parábola dos Talentos (Mateus 25.14-30)

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Uma das parábolas mais significativas de Jesus a respeito do trabalho tem como contexto os investimentos (Mt 25.14-30). Um homem rico delega a administração de sua riqueza a seus servos, assim como fazem os investidores nos mercados de hoje. Ele dá cinco talentos (uma grande soma de dinheiro) [1] ao primeiro servo, dois talentos ao segundo e um talento ao terceiro. Dois dos servos ganham 100% de retorno negociando os fundos, mas o terceiro servo esconde o dinheiro no chão e não ganha nada. O rico volta, recompensa os dois que ganharam dinheiro, mas pune severamente o servo que não fez nada.

O significado da parábola vai muito além dos investimentos financeiros. Deus deu a cada pessoa uma grande variedade de dons e espera que os empreguemos em seu serviço. Não é aceitável simplesmente colocar esses presentes na prateleira do armário e ignorá-los. Assim como os três servos, não temos dons do mesmo grau. O retorno que Deus espera de nós é proporcional aos dons que recebemos. O servo que recebeu um talento não foi condenado por não alcançar a meta de cinco talentos; ele foi condenado por não fazer nada com o que lhe foi dado. O dons que recebemos de Deus incluem aptidões, habilidades, conexões familiares, posições sociais, educação, experiências e muito mais. O ponto da parábola é que devemos usar tudo que nos foi dado para os propósitos de Deus. As graves consequências para o servo improdutivo, muito além de qualquer coisa desencadeada pela pura mediocridade nos negócios, nos dizem que devemos investir nossa vida, não desperdiçá-la.

No entanto, o talento específico investido na parábola é dinheiro, da ordem de um milhão de dólares americanos em valores atuais. Em nosso idioma, essa informação é perdida, uma vez que a palavra talento passou a se referir principalmente a habilidades ou aptidões. Mas essa parábola diz respeito ao dinheiro. Ela mostra o investimento, e não a acumulação, como algo piedoso a se fazer, contanto que ele cumpra propósitos piedosos de maneira piedosa. No final, o mestre elogia os dois servos de confiança com as palavras “muito bem, servo bom e fiel!” (Mt 25.23). Vemos nessas palavras que o mestre se preocupa com os resultados (“muito bem”), os métodos (“bom”) e a motivação (“fiel”).

Apontando mais especificamente para o local de trabalho, a parábola recomenda colocar o capital em risco em busca de retorno. Às vezes, os cristãos falam como se o crescimento, a produtividade e o retorno do investimento fossem profanos para Deus. Mas essa parábola derruba essa ideia. Devemos investir habilidades e aptidões, bem como riqueza e recursos disponibilizados a nós no trabalho, enfim, tudo para os assuntos do reino de Deus. Isso inclui a produção de bens e serviços necessários. O voluntário que ensina na escola dominical está cumprindo essa parábola. O mesmo acontece com o empresário que abre um novo negócio e dá emprego a outras pessoas, o administrador de serviços de saúde que inicia uma campanha de conscientização sobre a AIDS e o operador de máquina que desenvolve uma inovação de processo.

Deus não concede às pessoas dons idênticos ou necessariamente iguais. Se fizer o melhor que puder com os dons dados a você por Deus, ouvirá seu “muito bem”. Não apenas os dons, mas também as pessoas têm o mesmo valor. Ao mesmo tempo, a parábola termina com o talento retirado do terceiro servo sendo dado ao que tinha dez talentos. Valor igual não significa necessariamente compensação igual. Algumas posições exigem mais habilidade ou aptidão e, portanto, são compensadas de acordo. Os dois servos que se saíram bem são recompensados ​​com quantias diferentes. Mas ambos são elogiados de forma idêntica. A implicação da parábola é que devemos usar todos os talentos que nos foram dados da melhor maneira possível para a glória de Deus e, quando assim fizermos, estaremos em igualdade de condições com outros servos de Deus fiéis e confiáveis.

Para uma discussão da parábola muito semelhante das dez minas, ver Lucas 19.11-27 em Lucas e o Trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Para ler mais sobre dons e chamado, consulte Visão geral do chamado e da vocação. Para ler mais sobre como usar nossos dons em comunidade, consulte Comunidades repletas de dons (1Coríntios 12.1—14.40).

Ovelhas e bodes (Mateus 25.31-46)

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O ensinamento final de Jesus nesta seção examina o tratamento que damos aos necessitados. Segundo este relato, quando Jesus voltar em sua glória, ele se sentará em seu trono e separará as pessoas “como o pastor separa as ovelhas dos bodes” (Mt 25.32). A separação se baseia em como tratamos as pessoas necessitadas. Para as ovelhas, ele diz:

Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que foi preparado para vocês desde a criação do mundo. Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram. (Mt 25.34-36)

Essas são todas pessoas necessitadas, a quem as ovelhas serviram, pois Jesus diz: “O que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram” (Mt 25.40). Para os bodes, ele diz:

Malditos, apartem-se de mim [...]. Pois eu tive fome, e vocês não me deram de comer; tive sede, e nada me deram para beber; fui estrangeiro, e vocês não me acolheram; necessitei de roupas, e vocês não me vestiram; estive enfermo e preso, e vocês não me visitaram [...]. O que vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também a mim deixaram de fazê-lo. (Mt 25.41-43,45)

Somos chamados, individual e coletivamente, a ajudar os necessitados. Nossa vida está “firmemente segura como a dos que são protegidos pelo Senhor” (1Sm 25.29), e não podemos ignorar a situação dos seres humanos que sofrem fome, sede, nudez, falta de moradia, doença ou prisão. Trabalhamos para atender a nossas próprias necessidades e às daqueles que dependem de nós; mas também trabalhamos para ter algo para dar aos necessitados (Hb 13.1-3). Unimo-nos a outras pessoas para encontrar maneiras de nos aproximarmos daqueles que não têm as coisas básicas da vida, as quais podemos considerar como certas. Se as palavras de Jesus nesta passagem forem levadas a sério, mais coisas do que imaginamos podem depender de nossa caridade.

Jesus não diz exatamente como as ovelhas serviram aos necessitados. Pode ter sido por meio de doações e trabalho de caridade. Mas talvez parte disso tenha sido realizado por meio do trabalho comum de cultivar e preparar alimentos e bebidas; ajudar os novos colegas a se familiarizarem com o trabalho; projetar, fabricar e vender roupas. Todo trabalho legítimo serve às pessoas que precisam dos produtos e serviços do trabalho e, ao fazê-lo, ele também serve a Jesus.

A Última Ceia (Mateus 26.17-30)

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O plano para matar Jesus avança quando Judas (um dos Doze) vai até os líderes religiosos com uma oferta para entregá-lo aos soldados do templo. Com os eventos caminhando rapidamente rumo à crucificação, Jesus compartilha uma última refeição com seus discípulos. Nessa refeição, ele escolhe os itens manufaturados do pão e do vinho para representar a si mesmo e a seu sacrifício vindouro. Segurando o pão, ele diz: “Isto é o meu corpo” (Mt 26.26); então, segurando o cálice, ele diz: “Isto é o meu sangue” (Mt 26.28). O Filho de Deus não é produto da obra de ninguém, nem mesmo da obra do Pai. Nas palavras do Credo de Niceia, ele é “gerado, não criado”. Mas ele escolhe coisas comuns e tangíveis, como pão e vinho, feitas por pessoas, para ilustrar seu sacrifício. Como Alan Richardson coloca:

Sem a labuta e a habilidade do agricultor, sem o trabalho dos padeiros, dos transportadores, dos bancos e escritórios, das lojas e distribuidores – sem, de fato, a labuta das minas, dos estaleiros, das siderúrgicas e assim por diante –, este pão não estaria aqui para ser colocado sobre o altar esta manhã. Na verdade, o mundo do trabalho humano como um todo está envolvido na fabricação do pão e do vinho que oferecemos... Eis o estranho e inquebrável vínculo que existe entre o pão que se ganha com o suor do rosto do homem e o pão da vida que se compra sem dinheiro e sem preço. [1]

A comunidade inteira participa.

Não podemos ter a pretensão de saber a razão de Jesus ter escolhido produtos tangíveis do trabalho humano para representar a si mesmo em vez de artigos naturais, ideias abstratas ou imagens criadas por ele próprio. Mas o fato é que ele dignificou esses produtos do trabalho como a representação de sua própria dignidade infinita. Quando nos lembramos de que, em sua ressurreição, ele também carrega um corpo físico (Mt 28.9, 13), não pode haver espaço para imaginar o reino de Deus como um reino espiritual divorciado da realidade física da criação de Deus. Depois de nos criar (Gn 2.7; Jo 1), ele escolheu artigos feitos por nós para representar a si mesmo. Essa é uma graça quase além da compreensão.

A morte e a ressurreição de Jesus (Mateus 27—28)

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Mais do que qualquer outro autor dos Evangelhos, Mateus enfatiza as implicações devastadoras da morte e da ressurreição de Jesus Cristo e nos traz de volta ao tema central dos reinos do céu e da terra. O escurecimento dos céus, o tremor da terra e a ressurreição dos mortos (Mt 27.45-54) teriam sido sinais claros para os judeus de que a era presente estava terminando e a era vindoura havia começado. No entanto, a vida e o trabalho parecem continuar como sempre; tudo estava normal. Alguma coisa realmente mudou naquela cruz no Gólgota?

O Evangelho de Mateus responde com um retumbante sim. A crucificação de Jesus foi o golpe mortal para um sistema mundial fundado em pretensões de poder e sabedoria humanos. Sua ressurreição marca a entrada abrupta e definitiva dos caminhos de Deus no mundo. O reino de Deus ainda não tomou toda a terra, mas Cristo governa todos aqueles que o seguirão.

Vão e façam discípulos (Mateus 28.16-20)

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O ministério terreno de Jesus estava terminando. Mateus 28.16-20 narra o comissionamento daqueles que o seguiram:

Os onze discípulos foram para a Galileia, para o monte que Jesus lhes indicara. Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvidaram. Então, Jesus aproximou-se deles e disse: “Foi-me dada toda a autoridade nos céus e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu ordenei a vocês. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos”.

Essa passagem é frequentemente chamada de Grande Comissão, e os cristãos tendem a se concentrar em seu aspecto evangelístico. Mas a comissão é, na verdade, “fazer discípulos”, não apenas “ganhar convertidos”. Como vimos ao longo deste artigo, o trabalho é um elemento essencial de ser discípulo. Compreender nosso trabalho no contexto do senhorio de Cristo é parte do cumprimento da Grande Comissão.

Temos nossas ordens de marcha. Devemos levar as boas-novas a todas as nações, batizando aqueles que creem nas boas-novas e ensinando-os “a obedecer a tudo o que eu ordenei a vocês” (Mt 28.20). Ao olharmos para trás, para esses vinte e oito capítulos de Mateus, vemos muitos mandamentos que nos afetam no local de trabalho. Esses ensinamentos são para nós e para aqueles que vierem depois de nós.

Conclusão para Mateus

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Deus se preocupa com nosso trabalho, e as Escrituras têm muito a dizer sobre isso. Como observado no início, o Evangelho de Mateus aborda a teologia e a prática do trabalho em muitas frentes: liderança e autoridade, poder e influência, práticas comerciais, verdade e engano, tratamento de trabalhadores, resolução de conflitos, riqueza e necessidades da vida, relacionamentos no local de trabalho, investir e economizar, descansar e viver no reino de Deus enquanto trabalha em lugares seculares.

Os cristãos geralmente supõem que nossa vida deve ser dividida em duas esferas, a secular e a sagrada. Nosso trabalho pode se tornar apenas uma forma de ganhar a vida, uma atividade secular sem nenhuma ligação com a piedade. Comparecimento à igreja e devoção pessoal são considerados os únicos elementos sagrados da vida. Uma leitura errada de Mateus poderia apoiar essa divisão. O reino da terra poderia representar as partes materiais e seculares da vida; o reino dos céus, as partes sagradas e etéreas. Mas uma leitura apropriada de Mateus ensina que ambos os reinos abarcam toda a vida. O reino de Deus tem aspectos materiais e espirituais, assim como o reino da Terra caída. A maneira cristã de viver é colocar toda nossa vida, incluindo a profissional, a serviço do reino de Deus, que Cristo está trazendo à Terra agora mesmo.

Jesus chama seus seguidores a viverem e trabalharem no mundo caído, enquanto se agarram aos propósitos, às virtudes e aos princípios de Deus. Para o cristão, o sagrado e o secular não podem ser separados. “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6.24). Neste universo criado e sustentado por Deus, não há espaço “secular”, imune a sua influência, fora de seu controle ou sobre o qual ele não reivindique soberania.

Contudo, ao mesmo tempo em que o reino das trevas permanece, o reino de Deus também está próximo. As pessoas e os sistemas do mundo muitas vezes não refletem os caminhos de Deus. Aqueles que foram chamados por Cristo precisam aprender a servir fielmente ao reino de Deus, enquanto aprendem a existir em meio aos poderes reais que se opõem aos caminhos de Deus. A cosmovisão cristã não pode ser de fuga ou de desconsideração por este mundo. Acima de todas as pessoas, os cristãos devem, com razão, estar engajados na criação de estruturas que reflitam o reino de Deus em todas as esferas da vida, incluindo o local de trabalho. Devemos servir de modelo das práticas do reino de Deus no trabalho, especialmente daquelas em que entregamos o poder e a riqueza a Deus, dependendo de seu poder e provisão. Isso é o que significa viver (não apenas dizer) a oração paradigmática do Senhor: “Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu”.

Versículos e temas-chave em Mateus

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Versículo

Tema

Mateus 4.18-22 Andando à beira do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Eles estavam lançando redes ao mar, pois eram pescadores. E disse Jesus: “Sigam-me, e eu os farei pescadores de homens”. No mesmo instante eles deixaram as suas redes e o seguiram. Indo adiante, viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão. Eles estavam num barco com seu pai, Zebedeu, preparando as suas redes. Jesus os chamou, e eles, deixando imediatamente seu pai e o barco, o seguiram.

O chamado de Jesus para nós é radical e profundamente transformador, mas não significa necessariamente um chamado para abandonar a profissão e o local de trabalho.

Mateus 5.1-16 Vendo as multidões, Jesus subiu ao monte e se assentou. Seus discípulos aproximaram-se dele, e ele começou a ensiná-los, dizendo:

“Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o Reino dos céus.

Bem-aventurados os que choram, pois serão consolados.

Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança.

Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos.

Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia.

Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus.

Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.

Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos céus.

“Bem-aventurados serão vocês quando, por minha causa, os insultarem, os perseguirem e levantarem todo tipo de calúnia contra vocês. Alegrem-se e regozijem-se, porque grande é a sua recompensa nos céus, pois da mesma forma perseguiram os profetas que viveram antes de vocês.

“Vocês são o sal da terra. Mas se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens.

“Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha. Ao contrário, coloca-a no lugar apropriado, e assim ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus.”

Essas bem-aventuranças são imagens do tipo de caráter orientado para o reino que deve marcar todo crente, incluindo no local de trabalho. Às vezes o resultado será a perseguição, mas será um testemunho fiel da luz em meio às trevas.

Mateus 5.33-37 “Vocês também ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não jure falsamente, mas cumpra os juramentos que você fez diante do Senhor’. Mas eu lhes digo: Não jurem de forma alguma: nem pelos céus, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o estrado de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei. E não jure pela sua cabeça, pois você não pode tornar branco ou preto nem um fio de cabelo. Seja o seu ‘sim’, ‘sim’, e o seu ‘não’, ‘não’; o que passar disso vem do Maligno.”

O cristão deve ser alguém cujas ações correspondem a suas palavras. Essa virtude aplica-se à vida pessoal e profissional.

Mateus 6.19-34 “Não acumulem para vocês tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os ladrões arrombam e furtam. Mas acumulem para vocês tesouros nos céus, onde a traça e a ferrugem não destroem, e onde os ladrões não arrombam nem furtam. Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração.

“Os olhos são a candeia do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz. Mas se os seus olhos forem maus, todo o seu corpo será cheio de trevas. Portanto, se a luz que está dentro de você são trevas, que tremendas trevas são!

“Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro.

“Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Não é a vida mais importante que a comida, e o corpo mais importante que a roupa? Observem as aves do céu: não semeiam nem colhem nem armazenam em celeiros; contudo, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas? Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida? Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles. Se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada ao fogo, não vestirá muito mais a vocês, homens de pequena fé? Portanto, não se preocupem, dizendo: ‘Que vamos comer?’ ou ‘Que vamos beber?’ ou ‘Que vamos vestir?’ Pois os pagãos é que correm atrás dessas coisas; mas o Pai celestial sabe que vocês precisam delas. Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas essas coisas lhes serão acrescentadas.

“Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal.”

O cristão é alguém que valoriza corretamente o reino vindouro de Deus, acima do dinheiro e das posses deste mundo. Em todos os aspectos do trabalho devemos manter o reino vindouro de Deus e seus caminhos como nossa motivação central.

Mateus 8.18-22 Quando Jesus viu a multidão ao seu redor, deu ordens para que atravessassem para o outro lado do mar. Então, um mestre da lei aproximou-se e disse: “Mestre, eu te seguirei por onde quer que fores”. Jesus respondeu: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça”. Outro discípulo lhe disse: “Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar meu pai”. Mas Jesus lhe disse: “Siga-me, e deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos”.

Mateus 9.9 Saindo, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: “Siga-me”. Mateus levantou-se e o seguiu.

Mateus 9.37-38 Então disse aos seus discípulos: “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Peçam, pois, ao Senhor da colheita que envie trabalhadores para a sua colheita”.

O chamado de Jesus ao discipulado pode, às vezes, exigir mudança de ocupação e ruptura radical na vida.

Mateus 10.5-15 Jesus enviou os doze com as seguintes instruções: “Não se dirijam aos gentios, nem entrem em cidade alguma dos samaritanos. Antes, dirijam-se às ovelhas perdidas de Israel. Por onde forem, preguem esta mensagem: O Reino dos céus está próximo. Curem os enfermos, ressuscitem os mortos, purifiquem os leprosos, expulsem os demônios. Vocês receberam de graça; deem também de graça. Não levem nem ouro, nem prata, nem cobre em seus cintos; não levem nenhum saco de viagem, nem túnica extra, nem sandálias, nem bordão; pois o trabalhador é digno do seu sustento.

“Na cidade ou povoado em que entrarem, procurem alguém digno de recebê-los, e fiquem em sua casa até partirem. Ao entrarem na casa, saúdem-na. Se a casa for digna, que a paz de vocês repouse sobre ela; se não for, que a paz retorne para vocês. Se alguém não os receber nem ouvir suas palavras, sacudam a poeira dos pés quando saírem daquela casa ou cidade. Eu lhes digo a verdade: No dia do juízo haverá menor rigor para Sodoma e Gomorra do que para aquela cidade.”

O relacionamento do cristão com o dinheiro é delicado, e ele deve ter o cuidado de lembrar que, no trabalho, tudo o que se ganha é um dom de Deus.

Mateus 17.24-27 Quando Jesus e seus discípulos chegaram a Cafarnaum, os coletores do imposto de duas dracmas vieram a Pedro e perguntaram: “O mestre de vocês não paga o imposto do templo?” “Sim, paga”, respondeu ele. Quando Pedro entrou na casa, Jesus foi o primeiro a falar, perguntando-lhe: “O que você acha, Simão? De quem os reis da terra cobram tributos e impostos: de seus próprios filhos ou dos outros?” “Dos outros”, respondeu Pedro. Disse-lhe Jesus: “Então os filhos estão isentos. Mas, para não escandalizá-los, vá ao mar e jogue o anzol. Tire o primeiro peixe que você pegar, abra-lhe a boca, e você encontrará uma moeda de quatro dracmas. Pegue-a e entregue-a eles, para pagar o meu imposto e o seu”.

O cristão vive uma vida de dupla cidadania. A lealdade é devida apenas a Deus, mas também devemos brilhar como luzes neste mundo de trevas, vivendo de acordo com suas regras (quando possível) no trabalho, no dinheiro e nos impostos, de modo a não causar afronta.

Mateus 19.16-30 Eis que alguém se aproximou de Jesus e lhe perguntou: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna?” Respondeu-lhe Jesus: “Por que você me pergunta sobre o que é bom? Há somente um que é bom. Se você quer entrar na vida, obedeça aos mandamentos”. “Quais?”, perguntou ele. Jesus respondeu: “‘Não matarás, não adulterarás, não furtarás, não darás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe’ e ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’”. Disse-lhe o jovem: “A tudo isso tenho obedecido. O que me falta ainda?” Jesus respondeu: “Se você quer ser perfeito, vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois, venha e siga-me”. Ouvindo isso, o jovem afastou-se triste, porque tinha muitas riquezas.

Então Jesus disse aos discípulos: “Digo-lhes a verdade: Dificilmente um rico entrará no Reino dos céus. E lhes digo ainda: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. Ao ouvirem isso, os discípulos ficaram perplexos e perguntaram: “Neste caso, quem pode ser salvo?” Jesus olhou para eles e respondeu: “Para o homem é impossível, mas para Deus todas as coisas são possíveis”.

Então Pedro lhe respondeu: “Nós deixamos tudo para seguir-te! Que será de nós?” Jesus lhes disse: “Digo-lhes a verdade: Por ocasião da regeneração de todas as coisas, quando o Filho do homem se assentar em seu trono glorioso, vocês que me seguiram também se assentarão em doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel. E todos os que tiverem deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou campos, por minha causa, receberão cem vezes mais e herdarão a vida eterna. Contudo, muitos primeiros serão últimos, e muitos últimos serão primeiros”.

As riquezas deste mundo podem, de fato, dificultar a entrada no reino de Deus. A questão é o que o coração mais valoriza: o trabalho e as posses ou o reino de deus e o rei.

Mateus 20.1-16 “Pois o Reino dos céus é como um proprietário que saiu de manhã cedo para contratar trabalhadores para a sua vinha. Ele combinou pagar-lhes um denário pelo dia e mandou-os para a sua vinha. Por volta das nove horas da manhã, ele saiu e viu outros que estavam desocupados na praça, e lhes disse: ‘Vão também trabalhar na vinha, e eu lhes pagarei o que for justo’. E eles foram. Saindo outra vez, por volta do meio-dia e das três horas da tarde, fez a mesma coisa. Saindo por volta das cinco horas da tarde, encontrou ainda outros que estavam desocupados e lhes perguntou: ‘Por que vocês estiveram aqui desocupados o dia todo?’ ‘Porque ninguém nos contratou’, responderam eles. Ele lhes disse: ‘Vão vocês também trabalhar na vinha’. Ao cair da tarde, o dono da vinha disse a seu administrador: ‘Chame os trabalhadores e pague-lhes o salário, começando com os últimos contratados e terminando nos primeiros’. Vieram os trabalhadores contratados por volta das cinco horas da tarde, e cada um recebeu um denário. Quando vieram os que tinham sido contratados primeiro, esperavam receber mais. Mas cada um deles também recebeu um denário. Quando o receberam, começaram a se queixar do proprietário da vinha, dizendo-lhe: ‘Estes homens contratados por último trabalharam apenas uma hora, e o senhor os igualou a nós, que suportamos o peso do trabalho e o calor do dia’. Mas ele respondeu a um deles: ‘Amigo, não estou sendo injusto com você. Você não concordou em trabalhar por um denário? Receba o que é seu e vá. Eu quero dar ao que foi contratado por último o mesmo que lhe dei. Não tenho o direito de fazer o que quero com o meu dinheiro? Ou você está com inveja porque sou generoso?’ Assim, os últimos serão primeiros, e os primeiros serão últimos.”

Esta parábola exemplifica a virtude cristã da fé humilde na graça de Deus — sem murmurar contra a graça de Deus em relação aos outros nem se autocongratular.

Mateus 20.20-28 Então, aproximou-se de Jesus a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos e, prostrando-se, fez-lhe um pedido. “O que você quer?”, perguntou ele. Ela respondeu: “Declara que no teu Reino estes meus dois filhos se assentarão um à tua direita e o outro à tua esquerda”. Disse-lhes Jesus: “Vocês não sabem o que estão pedindo. Podem vocês beber o cálice que eu vou beber?” “Podemos”, responderam eles. Jesus lhes disse: “Certamente vocês beberão do meu cálice; mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não cabe a mim conceder. Esses lugares pertencem àqueles para quem foram preparados por meu Pai”. Quando os outros dez ouviram isso, ficaram indignados com os dois irmãos. Jesus os chamou e disse: “Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”.

A verdadeira liderança não se autopromove nem advém da grandeza segundo os olhos do mundo. A verdadeira liderança é servir e cuidar dos outros.

Mateus 21.33-41 “Ouçam outra parábola: Havia um proprietário de terras que plantou uma vinha. Colocou uma cerca ao redor dela, cavou um tanque para prensar as uvas e construiu uma torre. Depois arrendou a vinha a alguns lavradores e foi fazer uma viagem. Aproximando-se a época da colheita, enviou seus servos aos lavradores, para receber os frutos que lhe pertenciam. Os lavradores agarraram seus servos; a um espancaram, a outro mataram e apedrejaram o terceiro. Então enviou-lhes outros servos em maior número, e os lavradores os trataram da mesma forma. Por último, enviou-lhes seu filho, dizendo: ‘A meu filho respeitarão’. Mas, quando os lavradores viram o filho, disseram uns aos outros: ‘Este é o herdeiro. Venham, vamos matá-lo e tomar a sua herança’. Assim eles o agarraram, lançaram-no para fora da vinha e o mataram. Portanto, quando vier o dono da vinha, o que fará àqueles lavradores?” Responderam eles: “Matará de modo horrível esses perversos e arrendará a vinha a outros lavradores, que lhe deem a sua parte no tempo da colheita”.

Mateus 24.45-51 “Quem é, pois, o servo fiel e sensato, a quem seu senhor encarrega dos demais servos de sua casa para lhes dar alimento no tempo devido? Feliz o servo que seu senhor encontrar fazendo assim quando voltar. Garanto que ele o encarregará de todos os seus bens. Mas suponham que esse servo seja mau e diga a si mesmo: ‘Meu senhor está demorando’, e então comece a bater em seus conservos e a comer e a beber com os beberrões. O senhor daquele servo virá num dia em que ele não o espera e numa hora que não sabe. Ele o punirá severamente e lhe dará lugar com os hipócritas, onde haverá choro e ranger de dentes.

Mateus 25.1-13 “O Reino dos céus será, pois, semelhante a dez virgens que pegaram suas candeias e saíram para encontrar-se com o noivo. Cinco delas eram insensatas, e cinco eram prudentes. As insensatas pegaram suas candeias, mas não levaram óleo. As prudentes, porém, levaram óleo em vasilhas, junto com suas candeias. O noivo demorou a chegar, e todas ficaram com sono e adormeceram. À meia-noite, ouviu-se um grito: ‘O noivo se aproxima! Saiam para encontrá-lo!’ Então todas as virgens acordaram e prepararam suas candeias. As insensatas disseram às prudentes: ‘Deem-nos um pouco do seu óleo, pois as nossas candeias estão se apagando’. Elas responderam: ‘Não, pois pode ser que não haja o suficiente para nós e para vocês. Vão comprar óleo para vocês’. E saindo elas para comprar o óleo, chegou o noivo. As virgens que estavam preparadas entraram com ele para o banquete nupcial. E a porta foi fechada. Mais tarde vieram também as outras e disseram: ‘Senhor! Senhor! Abra a porta para nós!’ Mas ele respondeu: ‘A verdade é que não as conheço!’ Portanto, vigiem, porque vocês não sabem o dia nem a hora!”

Mateus 25.14-30 “E também será como um homem que, ao sair de viagem, chamou seus servos e confiou-lhes os seus bens. A um deu cinco talentos, a outro dois, e a outro um; a cada um de acordo com a sua capacidade. Em seguida partiu de viagem. O que havia recebido cinco talentos saiu imediatamente, aplicou-os, e ganhou mais cinco. Também o que tinha dois talentos ganhou mais dois. Mas o que tinha recebido um talento saiu, cavou um buraco no chão e escondeu o dinheiro do seu senhor. Depois de muito tempo o senhor daqueles servos voltou e acertou contas com eles. O que tinha recebido cinco talentos trouxe os outros cinco e disse: ‘O senhor me confiou cinco talentos; veja, eu ganhei mais cinco’. O senhor respondeu: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco, eu o porei sobre o muito. Venha e participe da alegria do seu senhor!’ Veio também o que tinha recebido dois talentos e disse: ‘O senhor me confiou dois talentos; veja, eu ganhei mais dois’. O senhor respondeu: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Você foi fiel no pouco, eu o porei sobre o muito. Venha e participe da alegria do seu senhor!’ Por fim, veio o que tinha recebido um talento e disse: ‘Eu sabia que o senhor é um homem severo, que colhe onde não plantou e junta onde não semeou. Por isso, tive medo, saí e escondi o seu talento no chão. Veja, aqui está o que pertence ao senhor’. O senhor respondeu: ‘Servo mau e negligente! Você sabia que eu colho onde não plantei e junto onde não semeei? Então você devia ter confiado o meu dinheiro aos banqueiros, para que, quando eu voltasse, o recebesse de volta com juros. ‘Tirem o talento dele e entreguem-no ao que tem dez. Pois a quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade. Mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado. E lancem fora o servo inútil, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes’.”

Em todos os aspectos da vida, incluindo o trabalho, nosso caráter deve ser marcado pela fidelidade e confiabilidade. Isso significa viver e trabalhar de tal maneira que nossa vida reflita a esperança no reino vindouro de Deus.

Introdução a Lucas

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O evangelho de Lucas proclama Jesus como o rei que vem ao mundo. Designado por Deus, seu governo corrigirá tudo o que deu errado após a rebelião e a queda da humanidade que começaram com Adão e Eva. Atualmente, grande parte do mundo é governada por pessoas rebeldes à autoridade de Deus. No entanto, este mundo é o reino de Deus, e as coisas da vida cotidiana — incluindo o trabalho — são as do reino de Deus. Ele se preocupa profundamente com a governança, a produtividade, a justiça e a cultura de seu mundo.

Jesus é o rei e o modelo para todos aqueles que detêm autoridade inferior. Embora os cristãos estejam habituados a se referir a Jesus como “rei”, de alguma forma, para muitos de nós, esse título passou a ter uma conotação principalmente religiosa, em vez de se referir a um reino de fato. Dizemos que Jesus é o rei, mas muitas vezes queremos dizer que ele é o rei dos sacerdotes. Pensamos nele como o fundador de uma religião, mas Lucas demonstra que ele é o refundador de um reino — o reino de Deus na terra. Quando Jesus está pessoalmente presente, até mesmo Satanás e seus aliados reconhecem seu governo (por exemplo, Lc 8.32) e seu poder é incontestável. Depois de retornar temporariamente ao céu, seu modelo mostra aos cidadãos de seu reino como exercer autoridade e poder em seu lugar.

A liderança de Jesus se estende a todos os aspectos da vida, incluindo o trabalho. Não é surpresa, então, que o Evangelho de Lucas tenha ampla aplicação no trabalho. Lucas presta muita atenção a tópicos relacionados ao trabalho, como riqueza e poder, economia, governo, conflito, liderança, produtividade e provisão, e investimento, como discutiremos. Prosseguiremos mais ou menos na ordem do texto de Lucas, embora ocasionalmente utilizemos passagens fora de sequência, para que possamos considerá-las como unidade relativamente a outras passagens que compartilham o mesmo tema. Não tentaremos discutir as passagens que pouco contribuem para a compreensão do trabalho, dos trabalhadores e dos locais de trabalho. Talvez seja uma surpresa constatar quanto do Evangelho de Lucas está relacionado ao trabalho.

Deus em ação (Lc 1,2,4)

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O surpreendente dia de trabalho de Zacarias (Lc 1.8-25)

O evangelho de Lucas começa em um local de trabalho. Isso dá continuidade à longa história de Yahweh de aparecer nos locais de trabalho (por exemplo, Gn 2.19-20; Êx 3.1-5). Zacarias é visitado pelo anjo Gabriel no dia de trabalho mais importante de sua vida: o dia em que foi escolhido para ministrar no lugar santo do templo de Jerusalém (Lc 1.8). Embora talvez não estejamos acostumados a pensar no templo como um local de trabalho, os sacerdotes e levitas ali estavam envolvidos em abate (os animais usados nos sacrifícios não se matavam sozinhos), cozinhavam, faziam trabalhos de zeladoria, cuidavam da contabilidade e realizavam várias outras atividades. O templo não era simplesmente um centro religioso, mas o centro da vida econômica e social judaica. Zacarias é profundamente impactado por seu encontro com o Senhor — ele fica incapacitado de falar até que tenha dado testemunho da verdade da palavra de Deus.

O bom pastor aparece entre os pastores (Lc 2.8-20)

O próximo encontro num local de trabalho ocorre a alguns quilômetros do templo. Um grupo de pastores que cuidava de seus rebanhos à noite é visitado por uma hoste angelical que anuncia o nascimento de Jesus (Lc 2.9). De modo geral, os pastores eram considerados desonestos, e as pessoas os desprezavam. Mas Deus olha para eles com favor. Como Zacarias, o sacerdote, os pastores têm seu dia de trabalho interrompido por Deus de maneira surpreendente. Lucas descreve uma realidade em que o encontro com o Senhor não é reservado para domingos, retiros ou viagens missionárias. Em vez disso, cada momento aparece como uma ocasião potencial em que Deus pode se revelar. A rotina diária pode levar ao entorpecimento de nossos sentidos espirituais, como foi com as pessoas da geração de Ló, que estavam “comendo e bebendo, comprando e vendendo, plantando e construindo” e, assim, ficaram cegas em relação ao juízo vindouro sobre sua cidade (Lc 17.28-30). [1] Mas Deus é capaz de irromper no meio da vida cotidiana com sua bondade e sua glória.

Descrição de trabalho de Jesus: Rei (Lc 1.26-56, 4.14-22)

Se parece estranho Deus anunciar seu plano para salvar o mundo bem no meio de dois locais de trabalho, pode parecer ainda mais estranho que ele apresente Jesus com uma descrição de trabalho. Mas ele o faz, quando o anjo Gabriel diz a Maria que ela dará à luz um filho. “Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim” (Lc 1.32-33).

Embora talvez não estejamos acostumados a pensar em “rei de Israel” como o cargo de Jesus, esse é definitivamente o trabalho dele, de acordo com o Evangelho de Lucas. Detalhes de seu trabalho como rei são apresentados: realizar poderosos feitos, dispersar os soberbos, derrubar governantes de seu trono, exaltar os humildes, encher os famintos de coisas boas, despedir de mãos vazias os ricos, ajudar Israel e mostrar misericórdia aos descendentes de Abraão (Lc 1.51-55). Esses versículos tão conhecidos, frequentemente chamados de Magnificat, retratam Jesus como um rei que exerce poder econômico, político e talvez até militar. Ao contrário dos reis corruptos do mundo caído, ele emprega seu poder para beneficiar seus súditos mais vulneráveis. Ele não bajula os poderosos e bem relacionados a fim de fortalecer sua dinastia. Ele não oprime seu povo nem o sobrecarrega para sustentar hábitos luxuosos. Ele estabelece um reino adequadamente governado, onde a terra produz coisas boas para todas as pessoas, segurança para o povo de Deus e misericórdia para aqueles que se arrependem do mal. Ele é o rei que Israel nunca teve.

Mais tarde, Jesus confirma essa descrição de trabalho quando aplica Isaías 61.1-2 para si mesmo. “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4.18-19). Essas são tarefas políticas e governamentais. Assim, pelo menos em Lucas, a ocupação de Jesus está mais intimamente relacionada ao trabalho político atual do que às profissões pastorais ou religiosas de hoje. [2] Jesus tem profundo respeito pelos sacerdotes e seu papel especial na ordem de Deus, mas ele não se identifica primariamente como um deles (Lc 5.14; 17.14).

As tarefas que Jesus reivindica para si beneficiam as pessoas necessitadas. Ao contrário dos governantes do mundo decaído, ele governa em nome dos pobres, dos prisioneiros, dos cegos, dos oprimidos e dos endividados (cujas terras lhes são devolvidas durante o ano da graça do Senhor; ver Lv 25.8-13). Sua preocupação não é apenas com as pessoas em necessidade profunda. Ele cuida das pessoas em qualquer estado e condição, como veremos. Mas sua preocupação com os pobres, os sofredores e os impotentes o distingue nitidamente dos governantes que ele veio substituir.

João Batista ensina ética no local de trabalho (Lc 3.8-14)

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Grande parte do Evangelho de Lucas consiste no ensino de Jesus. Na realidade, o primeiro ensinamento em Lucas é diretamente sobre trabalho, embora venha de João Batista, e não de Jesus. João exorta seu público a dar “frutos que mostrem o arrependimento” (Lc 3.8), para que não enfrente o julgamento. Quando eles perguntam especificamente “o que devemos fazer então?” (Lc 3.10, 12, 14), João dá respostas de teor econômico, não religioso. Primeiro, ele diz àqueles que têm muitos bens (duas túnicas ou comida suficiente) que compartilhem com aqueles que nada têm (Lc 3.10). Ele, então, dá instruções a cobradores de impostos e soldados, relacionandas diretamente com o trabalho deles. Os cobradores de impostos devem coletar apenas o que são obrigados a fazer, em vez de inflacionar a conta de impostos e embolsar a diferença. Os soldados não devem usar seu poder para extorquir dinheiro e acusar falsamente as pessoas. Eles devem se contentar com seu salário (Lc 3.13-14).

Quando diz aos cobradores de impostos “Não cobrem nada além do que foi estipulado” (Lc 3.13), João usava termos radicais para uma profissão marcada por uma injustiça sistêmica e arraigada. Os impostos em toda a Palestina eram recolhidos por meio de um sistema de “criação de impostos”, no qual governadores e outros funcionários de alto escalão terceirizavam o direito de coletar impostos em suas jurisdições. [1] A fim de ganhar um contrato, um potencial coletor de impostos teria de concordar em dar ao funcionário uma certa quantia além do imposto romano real. Da mesma forma, os lucros dos cobradores de impostos vinham dos valores que cobravam acima do que repassavam aos funcionários do governo. Como o povo não tinha como saber qual era o imposto romano real, tinham de pagar o valor que o coletor de impostos cobrava. Seria difícil resistir à tentação do autoenriquecimento, e quase impossível ganhar licitações sem oferecer grandes lucros aos funcionários do governo.

Observe que João não lhes oferece a opção de deixarem de ser coletores de impostos. A situação é semelhante para aqueles que Lucas chama de “soldados”. Esses provavelmente não eram soldados romanos disciplinados, mas funcionários de Herodes, que na época governava a Galileia como rei cliente de Roma. Os soldados de Herodes podiam usar (e usaram) sua autoridade para intimidar, extorquir e garantir o ganho próprio. A instrução de João a esses trabalhadores é trazer justiça a um sistema profundamente marcado pela injustiça. Não devemos subestimar a dificuldade disso. Manter a cidadania no reino de Deus enquanto se vive sob o domínio dos reis do mundo caído pode ser perigoso e difícil.

Observe também que cobradores de impostos e soldados respondem ao anúncio de João sobre o julgamento de Deus perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”. Eles fazem essa pergunta como grupos (“nós”) que compartilham a mesma ocupação. Os grupos profissionais de hoje poderiam fazer o mesmo?

  • Professores de escola perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

  • Executivos de negócios perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

  • Balconistas de supermercado perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

  • Trabalhadores de escritório perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

O texto nos convida a entender a intenção de Deus para nosso trabalho específico, não apenas para o trabalho em geral. Como podemos responder ao chamado do Evangelho em nossa ocupação atual?

Na passagem, um líder religioso — o profeta João Batista — desenvolve tamanha credibilidade entre grupos de trabalhadores — coletores de impostos e soldados — que eles se dispõem a pedir-lhe orientação sobre a ética no trabalho que eles desenvolvem. É possível que grupos de trabalhadores de hoje obtenham ajuda de líderes religiosos — ou de pessoas com capacidade bíblica/teológica entre eles — para discernir mutuamente o que Deus deseja deles em suas próprias ocupações? O próprio Jesus promete guiar aqueles que se reúnem em busca de orientação, afirmando que “onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles” (Mt 18.20).

O artigo “A igreja que capacita” explora como as igrejas podem ajudar os trabalhadores em ocupações comuns a reconhecerem e agirem de acordo com o desejo de Deus para seu trabalho.

Jesus é tentado a abandonar o serviço a Deus (Lc 4.1-13)

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Pouco antes de Jesus começar seu trabalho como rei, Satanás o tenta a abandonar sua lealdade a Deus. Jesus vai ao deserto, onde jejua por quarenta dias (Lc 4.2). Então, enfrenta as mesmas tentações que o povo de Israel enfrentou no deserto do Sinai. (As respostas que Jesus dá a Satanás são todas citações de Deuteronômio 6—8, que conta a história de Israel no deserto.) Primeiro, ele é tentado a confiar em seu próprio poder para satisfazer suas necessidades, em vez de confiar na provisão de Deus (Lc 4.1-3; Dt 8.3, 17-20). “Se és o Filho de Deus, manda esta pedra transformar-se em pão” (Lc 4.3). Segundo, ele é tentado a entregar sua lealdade a alguém (Satanás) que o lisonjeia com atalhos para o poder e a glória (Lc 4.5-8; Dt 6.13; 7.1-26). “Se me adorares, tudo será teu”. Terceiro, ele é tentado a questionar se Deus realmente está com ele e, portanto, a tentar forçar a mão de Deus, em desespero (Lc 4.9-12; Dt 6.16-25). “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui [do templo] para baixo”. Ao contrário de Israel, Jesus resiste a essas tentações confiando na palavra de Deus. Ele é o homem que o povo de Israel — bem como Adão e Eva antes deles — deveria ser, mas nunca foi.

Como paralelos às tentações de Israel em Deuteronômio 6—8, essas tentações não são exclusivas de Jesus. Ele as experimenta tanto quanto todos nós. “Pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, porém, sem pecado” (Hb 4.15). Como Israel, e como Jesus, podemos esperar ser tentados também, tanto no trabalho como em todos os aspectos da vida.

A tentação de trabalhar apenas para atender a nossas necessidades é muito grande. O trabalho destina-se a atender a nossas necessidades (2Ts 3.10), mas não apenas a elas. Nosso trabalho também deve servir aos outros. Ao contrário de Jesus, não temos a opção de servir a nós mesmos por meio de milagres. Mas podemos ser tentados a trabalhar apenas o suficiente para receber o salário, a desistir quando as coisas ficam difíceis, a evitar nossa parte da carga ou a ignorar o fardo que nossos maus hábitos de trabalho forçam os outros a carregarem. A tentação de tomar atalhos também é grande no trabalho.

A tentação de questionar a presença e o poder de Deus no trabalho pode ser a maior delas. Jesus foi tentado a testar Deus, forçando sua mão. Fazemos o mesmo quando nos tornamos preguiçosos ou agimos tolamente esperando que Deus cuide de nós. Ocasionalmente, isso acontece quando alguém decide que Deus o chamou para alguma profissão ou cargo e depois fica sentado esperando que Deus faça isso acontecer. Mas é mais provável que sejamos tentados a desistir da presença e do poder de Deus no trabalho. Podemos pensar que o trabalho não significa nada para Deus, ou que ele se importa apenas com a vida da igreja, ou que não podemos orar pedindo sua ajuda para as atividades diárias do trabalho. Jesus esperava a participação de Deus em seu trabalho todos os dias, mas não exigiu que Deus fizesse o trabalho por ele.

Todo o episódio começa com o Espírito de Deus levando Jesus ao deserto para jejuar por quarenta dias. Naquela época, como agora, jejuar e fazer um retiro era uma maneira de se aproximar de Deus antes de embarcar em uma grande mudança de vida. Jesus estava prestes a começar seu trabalho como rei e queria receber o poder, a sabedoria e a presença de Deus antes de começar. Isso de fato aconteceu. Quando Satanás o tentou, Jesus havia passado quarenta dias no espírito de Deus. Ele estava totalmente preparado para resistir. No entanto, seu jejum também tornou a tentação mais visceral. Jesus “teve fome” (Lc 4.2). A tentação muitas vezes vem sobre nós muito mais cedo do que esperamos, mesmo no início de nossa vida profissional. Podemos ser tentados a nos inscrever em um esquema de enriquecimento rápido, em vez de começar no primeiro degrau da escada de uma profissão genuinamente produtiva. Podemos ficar cara a cara com nossas fraquezas pela primeira vez e ser tentados a compensar com trapaças, intimidações ou enganos. Podemos pensar que não conseguiremos o emprego que queremos com as habilidades que temos, de modo que somos tentados a nos apresentar de maneira falsa ou fabricar qualificações. Podemos assumir uma posição financeiramente atraente, mas insatisfatória, “apenas por alguns anos, até que eu esteja estabelecido”, na fantasia de que mais tarde faremos algo mais alinhado com nosso chamado.

A preparação é a chave para a vitória sobre a tentação. As tentações geralmente vêm sem aviso prévio. Você pode ser obrigado a enviar um relatório falso. Você pode receber informações confidenciais hoje que serão de conhecimento público amanhã. Uma porta destrancada pode oferecer uma oportunidade repentina de pegar algo que não é seu. A pressão para participar de fofocas sobre um colega de trabalho pode surgir repentinamente durante o horário de almoço. A melhor preparação é imaginar possíveis cenários com antecedência e, em oração, planejar como responder a eles, talvez até anotá-los junto com as respostas que você entrega a Deus. Outra proteção é ter um grupo de pessoas que o conheçam intimamente, a quem você possa ligar imediatamente para discutir sua tentação. Se você puder informá-los antes de agir, eles poderão ajudá-lo a superar a tentação. Jesus, estando em comunhão com seu Pai no poder do Espírito Santo, enfrentou suas tentações com o apoio de sua comunidade de colegas — se assim pudermos descrever a Trindade.
Nossas tentações não são idênticas às de Jesus, ainda que tenham grandes semelhanças. Todos temos as próprias tentações, grandes e pequenas, dependendo de quem somos, de nossas circunstâncias e da natureza de nosso trabalho. Nenhum de nós é o Filho de Deus, mas a resposta que damos à tentação traz consequências capazes de transformar a vida. Imagine as consequências se Jesus tivesse se afastado de seu chamado como rei de Deus e passado a vida criando luxos para si mesmo, ou cumprindo as ordens do mestre do mal, ou permanecendo deitado à espera de que o Pai fizesse seu trabalho por ele.

Jesus chama pessoas para trabalhar (Lc 5.1-11; 27-32)

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Por duas vezes, Jesus se dirige ao local de trabalho das pessoas para chamá-las a segui-lo. A primeira é quando Jesus pede que alguns pescadores interrompam seu trabalho e o deixem usar o barco deles como pódio. Então, ele lhes dá excelentes dicas de pesca e, de repente, os chama para se tornarem seus primeiros discípulos (Lc 5.1-11). A segunda é quando ele chama Levi, que está em seu trabalho de coleta de impostos (Lc 5.27-32). Essas pessoas são chamadas a seguir Jesus e deixar sua profissão. Tendemos a pensar nelas como obreiros em tempo integral, mas “embaixadores” em tempo integral (2Co 5.20) seria uma descrição mais precisa. Embora esses indivíduos sejam chamados para um tipo específico de trabalho no reino de Jesus, Lucas não está dizendo que alguns chamados (por exemplo, pregar) são mais elevados que outros (por exemplo, pescar). Alguns dos seguidores de Jesus — como Pedro, João e Levi — seguem Jesus deixando o emprego que tinham (Lc 5.11). Em breve conheceremos outros — como Maria e Marta (Lc 10.38-41), outro cobrador de impostos chamado Zaqueu (Lc 19.1-10) e um oficial militar romano (Lc 1-10) — que seguem Jesus vivendo vidas transformadas nas ocupações atuais. Em um caso (Lc 8.26-39 ), Jesus ordenou que uma pessoa não deixasse sua casa nem viajasse com ele.

Aqueles que viajam com Jesus aparentemente encerram o trabalho assalariado e dependem de doações para se alimentarem (Lc 9.1-6; 10.1-24). Mas isso não é sinal de que a forma mais elevada de discipulado seja deixar o emprego. É um chamado específico para esses indivíduos e um lembrete de que toda nossa provisão vem de Deus, mesmo que ele normalmente nos sustente por meio de um emprego convencional. Existem muitos modelos para seguir a Cristo em nossas várias ocupações.

Além de aparecer nos locais de trabalho, Jesus também apresenta muitas de suas parábolas nos locais de trabalho, incluindo as parábolas das vasilhas de couro novas ou dos odres novos (Lc 5.36-39), do construtor prudente e o insensato (Lc 6.46-49), do semeador (Lc 8.4-15), dos servos vigilantes (Lc 12.35-41), do servo mau (Lc 12.42-47), do grão de mostarda (Lc 13.18-19), do fermento (Lc 13. 20-21), da ovelha perdida (Lc 15.1-7), da moeda perdida (Lc 15.8-10), o filho perdido ou pródigo (Lc 15.11-32) e dos lavradores perversos (Lc 20.9-19). É para os locais de trabalho que Jesus se volta quando quer dizer “o reino de Deus é como…”. Essas passagens geralmente não se destinam a ensinar sobre os locais de trabalho onde se passam, embora às vezes forneçam um pouco de orientação sobre o local de trabalho onde estão ambientadas. Em vez disso, Jesus usa aspectos familiares dos locais de trabalho principalmente para destacar pontos sobre o reino de Deus que transcendem o contexto específico das parábolas. Isso sugere que o trabalho comum tem grande significado e valor aos olhos de Jesus. Caso contrário, não faria sentido ilustrar o reino de Deus em termos de ambiente de trabalho.

Para saber mais sobre o chamado de Jesus aos discípulos, consulte Marcos 1.16-20 em Marcos e o trabalho e Mateus 3—4 em Mateus e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org. Para saber mais sobre o chamado em geral, consulte o artigo Visão geral do chamado e da vocação em www.teologiadotrabalho.org.

Cura no livro de Lucas

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Nos dias de Jesus, assim como agora, o trabalho de cura e saúde era essencial. Jesus cura pessoas em treze episódios do Evangelho de Lucas: 4.31-37; 4.38-44; 5.12-16; 5.17-26; 7.1-10; 7.11-17; 7.21; 8.26-39; 8.40-56; 9.37-45; 13.10-17; 17.11-19 e 18.35-43. Ao fazer isso, ele traz bem-estar às pessoas que sofrem, como anunciou que faria quando colocou sobre si o manto de rei. Além disso, as curas são atualizações do vindouro reino de Deus, no qual não haverá males (Ap 21.4). Deus não apenas ordena pessoas a trabalharem para o benefício dos outros, como as capacita a fazê-lo. O poder de Deus não se restringe ao próprio Jesus, pois, em duas passagens, Jesus capacita seus seguidores a curarem pessoas (Lc 9.1-6, 10.9). No entanto, todas as curas dependem do poder de Deus. O teólogo Jürgen Moltmann resume isso lindamente: “As curas de Jesus não são milagres sobrenaturais em um mundo natural. Eles são a única coisa verdadeiramente ‘natural’ em um mundo que é antinatural, demonizado e ferido”. [1] Elas são um sinal tangível de que Deus está retornando o mundo ao normal.

As curas relatadas nos evangelhos são geralmente milagrosas. Mas os esforços não milagrosos dos cristãos para restaurar corpos humanos também podem ser vistos como extensões do ministério vivificante de Jesus. Seria um erro não notar como a cura é importante para a obra redentora do reino de Deus. Esse trabalho é realizado diariamente por médicos, enfermeiros, tecnólogos, analistas de sinistros, atendentes de estacionamento de hospitais e inúmeras outras pessoas cujo trabalho possibilita a cura. O próprio Lucas era médico (Cl 4.14), e podemos imaginar seu interesse particular pela cura. No entanto, seria um erro inferir que as profissões de cura são chamados inerentemente mais elevados do que outras profissões.

Sábado e trabalho (Lc 6.1-11; 13.10-17)

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O sábado é uma parte essencial da compreensão bíblica do trabalho, e Jesus ensina sobre o sábado no evangelho de Lucas. Trabalho e descanso não são forças opostas, mas elementos de um ritmo que torna possível o bom trabalho e a verdadeira recreação. Idealmente, esse ritmo atende às necessidades das pessoas de provisão e saúde, mas em um mundo caído há momentos em que isso não acontece.

Senhor do sábado (Lc 6.1-11)

Em Lucas 6.1-5, é sábado, e Jesus e seus discípulos estão com fome. Eles colhem espigas em um campo, esfregam-nas nas mãos e comem os grãos. Alguns fariseus reclamam que isso constitui debulha e, portanto, é trabalhar no sábado. Jesus responde que Davi e seus companheiros também quebraram as regras sagradas quando estavam com fome, entrando na casa de Deus e comendo o pão consagrado que somente os sacerdotes tinham permissão de comer. Podemos imaginar que a conexão entre esses dois episódios é a fome. Quando se está com fome, é permitido trabalhar para se alimentar, mesmo que isso signifique trabalhar no sábado. Mas Jesus tira uma conclusão um pouco diferente. “O Filho do homem é Senhor do sábado” (Lc 6.5). Isso sugere que guardar o sábado se baseia na compreensão do coração de Deus, em vez de no desenvolvimento de regras e exceções cada vez mais detalhadas.

Libertos no sábado (Lc 13.10-17)

Outras curas que Jesus realiza no sábado são descritas em Lucas 6.9 e 14.5. No entanto, seria difícil desenvolver uma teologia do sábado apenas a partir dos eventos narrados em Lucas. Mas podemos observar que Jesus ancora sua compreensão do sábado nas necessidades das pessoas. As necessidades humanas vêm antes da guarda do sábado, embora guardar o sábado seja um dos Dez Mandamentos. No entanto, ao atender às necessidades humanas no sábado, o mandamento é cumprido, não abolido. A cura da mulher aleijada no sábado fornece um exemplo particularmente rico disso. “Há seis dias em que se deve trabalhar”, repreende a multidão, indignado, o chefe da sinagoga. “Venham para ser curados nesses dias, e não no sábado” (Lc 13.14). A resposta de Jesus começa com a lei. Se as pessoas davam de beber a seus animais no sábado, como era lícito, “esta mulher, uma filha de Abraão a quem Satanás mantinha presa por dezoito longos anos, não deveria no dia de sábado ser libertada daquilo que a prendia?” (Lc 13.16).

Discussões adicionais sobre o sábado — em alguns casos, com uma perspectiva diferente — podem ser encontradas em Marcos 1.21-45 e Marcos 2.23—3.6 em Marcos e o trabalho e no artigo Descanso e trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

A ética do conflito (Lc 6.27-36; 17.3-4)

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Faça o bem aos que o odeiam (Lc 6.27-36)

Todos os locais de trabalho experimentam conflitos. Em Lucas 6.27-36, Jesus aborda situações de conflito. “Amem os seus inimigos, façam o bem aos que os odeiam, abençoem os que os amaldiçoam, orem por aqueles que os maltratam” (Lc 6.27-28). Lucas não deixa dúvidas de que esse é um ensinamento para o mundo financeiro, pois ele o relaciona especificamente com emprestar dinheiro. “Emprestem [aos seus inimigos], sem esperar receber nada de volta” (Lc 6.35). Essa não parece uma estratégia viável de empréstimo comercial, mas talvez possamos entendê-la de forma mais abstrata. Os cristãos não devem usar seu poder para esmagar pessoas com quem estão em conflito. Em vez disso, devem trabalhar ativamente para o bem delas. Isso pode se aplicar ao local de trabalho em dois níveis.

No nível individual, significa que devemos trabalhar para o bem daqueles com quem estamos em conflito. Isso não significa evitar conflitos ou afastar-se da competição. Mas que, se você está competindo com um colega de trabalho por uma promoção, por exemplo, deve ajudá-lo a realizar o trabalho dele da melhor maneira possível, enquanto tenta fazer o seu ainda melhor.

No nível corporativo, significa não esmagar sua concorrência, fornecedores ou clientes, especialmente com ações injustas ou improdutivas, como ações judiciais frívolas, monopolização, rumores falsos, manipulação de ações e coisas do gênero. Cada ocupação tem suas próprias circunstâncias, e seria tolice extrair uma aplicação universal dessa passagem de Lucas. Competir arduamente nos negócios por meio de fraude intencional pode ser diferente de competir arduamente no basquete por meio de uma falta intencional. Portanto, um elemento essencial da participação dos crentes em uma ocupação é tentar descobrir quais são os modos adequados de conflito e competição à luz dos ensinamentos de Jesus.

Repreender — Arrepender-se — Perdoar (Lc 17.3-4)

Mais adiante, Jesus aborda novamente o conflito interpessoal. “Se o seu irmão pecar, repreenda-o e, se ele se arrepender, perdoe-lhe” (Lc 17.3). Não devemos tomar isso apenas como terapia familiar, porque Jesus aplica o termo “irmão” a todos aqueles que o seguem (Mc 3.35). É um bom comportamento organizacional confrontar as pessoas diretamente e restaurar bons relacionamentos quando o conflito for resolvido. Mas o versículo seguinte quebra os limites do senso comum. “Se pecar contra você sete vezes no dia, e sete vezes voltar a você e disser: ‘Estou arrependido’, perdoe-lhe” (Lc 17.4). Na verdade, Jesus não apenas ordena o perdão, mas, em primeiro lugar, a ausência de julgamento. “Não julguem e vocês não serão julgados. Não condenem e não serão condenados” (Lc 6.37). “Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho?” (Lc 6.41).

Seria sábio ser tão imparcial no trabalho? O bom senso não é um requisito para uma boa governança e desempenho organizacional? Talvez Jesus esteja falando sobre desistir não do bom senso, mas do julgamento e da condenação — a atitude hipócrita que acredita que os problemas ao redor são inteiramente culpa de outra pessoa. Talvez Jesus não queira tanto dizer “ignore repetidos lapsos morais ou incompetência”, mas sim “pergunte a si mesmo como suas ações podem ter contribuído para o problema”. Talvez ele não queira dizer “não avalie o desempenho dos outros”, mas sim “descubra o que você pode fazer para ajudar as pessoas ao seu redor a terem sucesso”. Talvez o ponto de Jesus não seja clemência, mas misericórdia. “Como vocês querem que os outros lhes façam, façam também vocês a eles” (Lc 6.31).

A provisão de Deus (Lc 9.10-17; 12.4-7; 12.22-31)

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Por todo o Evangelho de Lucas, Jesus ensina que viver no reino de Deus significa olhar para Deus, e não para o esforço humano, como a fonte última das coisas de que precisamos para a vida. Nosso trabalho não é opcional, mas também não é absoluto. Nosso trabalho é sempre uma participação na graça da provisão de Deus.

Jesus alimenta cinco mil (Lc 9.10-17)

Jesus demonstra isso em ações antes de ensiná-lo em palavras. Ao alimentar os cinco mil (Lc 9.10-17), Deus, na pessoa de Jesus, assume a responsabilidade de satisfazer a necessidade de comida da multidão. Faz isso porque eles estão com fome. Não está exatamente declarada a maneira como Jesus opera esse milagre. Ele faz uso de alimentos comuns — os cinco pães e os dois peixes — e, pelo poder de Deus, um pouco de comida se torna suficiente para alimentar tantas pessoas. Alguns dos discípulos de Jesus (os pescadores) trabalhavam no ramo de alimentação, e outros (por exemplo, Levi, o cobrador de impostos) estavam no serviço público. Jesus aproveita o trabalho costumeiro deles, enquanto eles organizam a multidão e servem o pão e o peixe. Em vez de substituir os meios humanos comuns de fornecer alimento, Jesus os incorpora, e os resultados são milagrosamente bem-sucedidos. O trabalho humano é capaz de fazer o bem ou o mal. Quando fazemos o que Jesus orienta, nosso trabalho é bom. Como tantas vezes vemos no Evangelho de Lucas, Deus extrai resultados milagrosos do trabalho comum — neste caso, o trabalho de suprir as necessidades da vida.

Jesus ensina sobre a provisão de Deus (Lc 12.4-7; 12.22-31)

Mais tarde, Jesus ensina sobre a provisão de Deus. “Portanto eu digo a vocês: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir... Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida?” (Lc 12.22-31). Jesus oferece isso como puro bom senso. Visto que a preocupação não pode acrescentar nem uma hora sequer à sua vida, por que se preocupar? Jesus não diz que não trabalhemos, apenas que não nos preocupemos se nosso trabalho fornecerá o suficiente para atender às necessidades.

Em uma economia de abundância, este é um excelente conselho. Por causa da preocupação, muitos de nós são movidos a trabalhar em empregos de que não gostamos, cumprindo horas que prejudicam nosso prazer de viver, negligenciando as necessidades dos que nos rodeiam. Para nós, o objetivo não parece ser “mais” dinheiro, mas sim “dinheiro suficiente”, o suficiente para nos sentirmos seguros. No entanto, raramente nos sentimos seguros, por mais dinheiro que ganhemos. Na verdade, muitas vezes é verdade que, quanto mais bem-sucedidos somos em ganhar mais dinheiro, menos seguros nos sentimos, porque agora temos mais a perder. É quase como se estivéssemos em melhor situação se tivéssemos algo genuíno com que nos preocupar, assim como os pobres (“Bem-aventurados vocês que agora têm fome, pois serão satisfeitos” Lc 6.21). Para sair dessa rotina, Jesus orienta a buscar “o Reino de Deus, e essas coisas serão acrescentadas a vocês” (Lc 12.31). Por quê? Porque, se seu objetivo final é o reino de Deus, então você tem a certeza de que seu objetivo final será alcançado. E, sentindo essa segurança, você é capaz de reconhecer que o dinheiro que ganha é de fato suficiente, que Deus está suprindo suas necessidades. Ganhar um milhão de dólares e ter medo de perdê-lo é como ter uma dívida de um milhão de dólares. Ganhar mil dólares e saber que, no fim das contas, você ficará bem é como receber um presente de mil dólares.

Mas e se você não tiver mil dólares? Cerca de um terço da população mundial subsiste com menos de mil dólares por ano. [1] Essas pessoas podem ter o suficiente para viver hoje, mas enfrentam a ameaça de fome ou coisa pior a qualquer momento, sejam elas crentes ou não. É difícil conciliar o duro fato da pobreza e da fome com a promessa de provisão de Deus. Jesus não ignora essa situação. “Vendam o que têm e deem esmolas”, diz ele (Lc 12.33, NVI), pois sabe que algumas pessoas são desesperadamente pobres. É por isso que devemos dar a elas. Talvez, se todos os seguidores de Jesus usassem seu trabalho e suas riquezas para aliviar e prevenir a pobreza, nos tornaríamos os meios de provisão de Deus para os desesperadamente pobres. Mas, como os cristãos não o fizeram, não fingiremos falar aqui em nome de pessoas que são tão pobres que sua provisão é duvidosa. Em vez disso, perguntemos se nossa própria provisão está atualmente em risco. Nossa preocupação é proporcional a qualquer perigo genuíno de não ter o que realmente precisamos? As coisas com as quais nos preocupamos são necessidades genuínas? As coisas com as quais nos preocupamos são remotamente comparáveis ​​às coisas de que os pobres precisam desesperadamente, e que não fazemos nada para lhes proporcionar? Caso contrário, qualquer coisa que não seja o conselho de Jesus de não se preocupar com as necessidades da vida seria imprudente.

O bom samaritano em ação — amando o próximo como a si mesmo (Lc 10.25-37)

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O tema da provisão de Deus por meio do trabalho humano continua na parábola do bom samaritano. Nessa parábola, a provisão de Deus para a vítima de um crime vem por meio da compaixão de um viajante estrangeiro, que evidentemente tem riqueza suficiente para pagar os cuidados médicos a um estranho. Essa pode ser a mais conhecida de todas as parábolas de Jesus, embora ocorra apenas no Evangelho de Lucas. Segue-se imediatamente após o relato de Lucas sobre o Grande Mandamento. Nos evangelhos de Mateus e Marcos, Jesus diz que o maior mandamento de toda a Escritura é “amar a Deus” e “amar o próximo”. Em Lucas 10.25-37 a discussão do maior mandamento continua diretamente na parábola do bom samaritano. Para as implicações do Grande Mandamento no local de trabalho, consulte “ O Grande Mandamento é uma Grande Estrutura (Mateus 22.34-40)” e “Nossa obra cumpre o grande mandamento (Mc 12.28-34)”.

No relato de Lucas, o perito na lei começa perguntando a Jesus o que ele deve fazer para herdar a vida eterna. Jesus pede ao perito que ele próprio resuma o que está escrito na lei, e o perito responde com o Grande Mandamento: “Ame o Senhor, o seu Deus [...] e ame o seu próximo como a si mesmo”. E Jesus reafirma ser que essa, de fato, a chave para a vida.

O perito então faz a seguinte pergunta a Jesus: “E quem é o meu próximo?”. Jesus responde contando uma história que foi chamada de “A parábola do bom samaritano”. Essa história é tão convincente que penetrou no conhecimento popular muito além dos círculos cristãos. As pessoas que nunca pegaram uma Bíblia ainda reconhecerão o significado do termo “bom samaritano” como alguém que cuida de um estranho em necessidade.

Dada a ideia cultural de um “bom samaritano” como alguém com um talento extraordinário para a compaixão, podemos ser tentados a ignorar o verdadeiro samaritano da história de Jesus. E, no entanto, é importante para a compreensão de nosso próprio trabalho examinar por que o samaritano que Jesus descreve era um homem de negócios bem-sucedido.

O samaritano da história de Jesus se depara com um judeu ferido por ladrões ao longo de uma conhecida rota comercial. O samaritano provavelmente viajava por essa rota com frequência, como fica evidente pelo fato de ser conhecido em uma pousada próxima e considerado confiável o suficiente pelo dono da pousada para exigir uma extensão dos serviços a crédito. Seja qual for a natureza de seu negócio, o samaritano era bem-sucedido o suficiente para poder comprar azeite e vinho para fins medicinais e fornecer hospedagem em uma estalagem para um completo estranho. Ele está disposto a gastar seu dinheiro, assim como seu tempo, com o estranho. O samaritano suspende seus outros negócios para atender às necessidades do estrangeiro ferido.

A parábola do bom samaritano pode, portanto, ser interpretada como uma história sobre como usar o sucesso material em benefício de outros. O herói da parábola gasta seu dinheiro com um estranho sem nenhuma obrigação direta de fazê-lo. Eles não mantêm nenhuma relação de parentesco e nem mesmo de fé. De fato, os samaritanos e os judeus eram frequentemente antagônicos. E, no entanto, na mente de Jesus, amar a Deus é transformar qualquer pessoa que precise de nossa ajuda em nosso “próximo”. Jesus enfatiza esse ponto invertendo o foco da pergunta original do perito na lei. O perito pergunta “quem é meu próximo?”, uma pergunta que começa com o eu e depois pergunta a quem o eu é obrigado a ajudar. Jesus inverte a pergunta: “Qual destes três você acha que foi o próximo do homem?”, uma pergunta que se concentra no homem necessitado e pergunta quem é obrigado a ajudá-lo. Se começarmos pensando na pessoa necessitada, e não em nós mesmos, será que teremos uma perspectiva diferente sobre se Deus nos chama para ajudar?

Isso não significa que somos chamados à disponibilidade absoluta e infinita. Ninguém é chamado a atender a todas as necessidades do mundo. Está além de nossa capacidade. O samaritano não larga o emprego para procurar todos os viajantes feridos no Império Romano. Mas, quando ele cruza — literalmente — com alguém que precisa da ajuda que ele pode dar, ele age. “Um próximo”, diz o pregador Haddon Robinson, “é alguém cujas necessidades você tem a capacidade de atender”.

O samaritano não ajuda o homem ferido apenas jogando algumas moedas em seu caminho. Em vez disso, ele garante que todas suas necessidades sejam atendidas, tanto no que se refere às questões médicas imediatas quanto à de um espaço para se recuperar. O samaritano, portanto, cuida do homem como cuidaria de si mesmo. Isso cumpre Levítico 19.18: “Ame cada um o seu próximo como a si mesmo”. O samaritano assume um grau extraordinário de risco para ajudar esse estranho. Ele corre o risco de ser atacado pelos mesmos bandidos quando se abaixa para ver o que aconteceu com o homem. Corre o risco de ser enganado pelo hospedeiro. Corre o risco de ficar sobrecarregado pelas despesas e pelo peso emocional de cuidar de alguém em situação grave de saúde. Mas ele assume esses riscos porque age como se se tratasse de sua própria vida. Esse é o melhor exemplo de Jesus do que significa ser alguém que ama “seu próximo como a si mesmo”.

Outra característica da história que teria surpreendido os ouvintes de Jesus é a etnia do herói, um samaritano. Os judeus, o povo de Jesus, consideravam os samaritanos étnica e religiosamente inferiores. No entanto, o samaritano está mais sintonizado com a Lei de Moisés do que os líderes religiosos judeus que passam do outro lado da estrada. Sua presença em território judeu não é um perigo a ser temido, mas uma graça salvadora bem-vinda.

No trabalho, temos muitas chances de, muito além de divisões étnicas ou culturais, ser próximos de colegas de trabalho, clientes e outras pessoas. Ser um bom samaritano no local de trabalho significa cultivar uma consciência específica das necessidades do outro. Existem pessoas em seu local de trabalho que estão sendo roubadas de alguma forma? Muitas vezes, grupos étnicos específicos são privados de reconhecimento ou promoção. Um cristão consciencioso deve ser aquele que diz: “Estamos dando uma chance justa a essa pessoa?”.

Assim como havia crescido a inimizade entre judeus e samaritanos, a administração e os funcionários muitas vezes se veem como duas tribos distintas. Mas não precisa ser assim. Uma empresa não via as coisas dessa forma. Arthur Demoulas, CEO da rede de supermercados Market Basket, fazia questão de tratar seus funcionários excepcionalmente bem. Ele lhes pagava bem acima do salário-mínimo e se recusou a abandonar o plano de participação nos lucros da empresa mesmo com a perda financeira oriunda de uma crise econômica. Estabeleceu conexões diretas com seus funcionários, aprendendo o nome do maior número possível de funcionários. Isso não era pouca coisa em uma empresa de 25 mil funcionários. Quando o conselho de administração da Market Basket demitiu Arthur Demoulas, em 2014, em grande parte devido a suas práticas generosas, os funcionários da rede de supermercados entraram em greve. Os trabalhadores se recusaram a reabastecer as prateleiras até que Arthur Demoulas recuperasse o controle da empresa. Talvez tenha sido a primeira vez que trabalhadores do escalão inferir de uma grande empresa se organizaram para escolher seu próprio CEO, e isso foi impulsionado pela generosidade abnegada de Arthur Demoulas.

Nesse caso, ser um bom samaritano realmente impulsionou o sucesso de Arthur Demoulas. Talvez Jesus tenha dado não apenas um bom conselho espiritual, mas um bom conselho de negócios quando diz “vá e faça o mesmo”.

O administrador astuto e o filho pródigo (Lc 16.1-13; 15.11-32)

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A parábola do administrador astuto (Lc 16.1-13)

A chave para a segurança em relação às coisas de que precisamos não é ganhar e economizar com ansiedade, mas servir e gastar de forma digna de confiança. Se Deus puder confiar em nós para gastarmos o dinheiro em atender às necessidades dos outros, então o dinheiro de que precisamos também será fornecido. Essa é a ideia da parábola do administrador desonesto. Nela, um gerente desperdiça os bens de seu senhor e, como resultado, é notificado de que será demitido. Ele usa seus últimos dias no trabalho para desfalcar ainda mais seu mestre, mas há uma estranha reviravolta em como ele faz isso. Ele não tenta roubar de seu mestre. Talvez ele saiba que será impossível levar qualquer coisa consigo ao deixar a propriedade. Em vez disso, ele reduz fraudulentamente as dívidas dos devedores de seus patrões, esperando que eles retribuam o favor e o sustentem quando estiver desempregado.

Como o gerente desonesto, não podemos levar nada conosco quando partirmos desta vida. Mesmo durante esta vida, nossas economias podem ser destruídas por hiperinflação, quebra de mercado, roubo, confisco, ações judiciais, guerra e desastres naturais. Portanto, acumular grandes quantias não oferece segurança real. Em vez disso, devemos gastar nossa riqueza para prover o sustento de outras pessoas e depender delas para fazer o mesmo por nós quando surgir a necessidade. “Usem a riqueza deste mundo ímpio para ganhar amigos, de forma que, quando ela acabar, estes os recebam nas moradas eternas” (Lc 16.9). Ao ajudar os devedores de seu senhor, o mordomo desonesto está criando amizades. A fraude mútua provavelmente não é a melhor maneira de construir relacionamentos. Mas, aparentemente, é melhor do que não construir relacionamentos. Construir relacionamentos é muito mais eficaz para obter segurança do que construir riqueza. A palavra “eternas” significa que bons relacionamentos nos ajudam em tempos de dificuldade, e eles também permanecerão na vida eterna.

Um exemplo extremo desse princípio ocorre sempre que guerras, ações terroristas ou desastres destroem e estrutura econômica da sociedade. Em um campo de refugiados, em uma prisão ou em uma economia hiperinflacionada, a riqueza que você talvez tenha acumulado não é capaz de ajudá-lo a conseguir nem mesmo um pedaço de pão. Mas, se você cuidou dos outros, pode ser que eles cuidem de você nos momentos mais difíceis. Observe que aqueles a quem o gerente desonesto ajuda não são ricos. Eles são devedores. O gerente desonesto não depende da riqueza deles, mas do relacionamento de dependência mútua que construiu com eles.

No entanto, Jesus não está dizendo que dependa dos sentimentos inconstantes das pessoas que você pode ter ajudado ao longo dos anos. `

A medida que avança, a história passa rapidamente dos devedores para o mestre (Lc 16.8), e Jesus endossa a máxima do mestre: “Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito” (Lc 16.10). Isso aponta para Deus como aquele que garante que usar o dinheiro em relacionamentos levará a uma segurança duradoura. Quando você constrói bons relacionamentos com as pessoas, passa a ter um bom relacionamento com Deus. Jesus não diz o que é mais importante para Deus, se a generosidade com os pobres ou o bom relacionamento com as pessoas. Talvez sejam ambos. “Assim, se vocês não forem dignos de confiança em lidar com as riquezas deste mundo ímpio, quem confiará as verdadeiras riquezas a vocês?” (Lc 16.11). As verdadeiras riquezas são os bons relacionamentos, baseados em nossa adoção mútua como filhos de Deus, e um bom relacionamento com Deus, que se concretiza por meio da generosidade com os pobres. Bons relacionamentos produzem bons frutos, o que nos dá maior capacidade de construir bons relacionamentos e ser generosos com os outros. Se Deus puder confiar em você como alguém generoso com pouco dinheiro e usá-lo para construir bons relacionamentos, ele poderá lhe confiar mais recursos.

Isso sugere que, se você não economizou o suficiente para se sentir seguro, a resposta não é tentar economizar mais. Em vez disso, gaste o pouco que tem exercendo generosidade ou hospitalidade. As reações das pessoas a sua generosidade e hospitalidade podem proporcionar mais segurança do que o ato de economizar mais dinheiro. É desnecessário dizer que isso deve ser feito com sabedoria, de maneira que realmente beneficie os outros, e não apenas para aliviar sua consciência ou lisonjear as pessoas que serão escolhidas como futuras beneficiárias. De qualquer forma, sua segurança máxima está na generosidade e na hospitalidade de Deus.

Ecos do Filho Pródigo (Lc 15.11-32)

Este pode ser um conselho financeiro surpreendente: não poupe, mas gaste o que tiver para se aproximar de pessoas. Observe, no entanto, que o conselho aparece imediatamente após a história do filho pródigo, ou filho perdido (Lc 15.11-32). Nessa história, o filho mais novo desperdiça toda sua fortuna, enquanto o filho mais velho economiza seu dinheiro com uma atitude tão frugal que nem consegue entreter seus amigos mais próximos (Lc 15.29). A devassidão do filho mais novo o leva à ruína. No entanto, o desperdício de sua riqueza o leva a recorrer ao pai em total dependência. A alegria do pai por tê-lo de volta elimina quaisquer sentimentos negativos que ele tenha sobre o filho que lhe custou metade da fortuna. Em contraste, o firme apego do filho mais velho àquilo que resta da riqueza da família o afasta de um relacionamento próximo com o pai.

Nas histórias do administrador desonesto e do filho pródigo, Jesus não diz que a riqueza é inerentemente ruim. Em vez disso, ele diz que o uso adequado da riqueza é gastá-la, de preferência nos propósitos de Deus — mas, se não for nisso, então que seja usada em coisas que aumentarão nossa dependência de Deus.

Jesus e a riqueza no livro de Lucas

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As duas últimas passagens passaram do tópico da provisão para o tópico da riqueza. Embora Jesus não tenha nada contra a riqueza, ele a vê com desconfiança. A economia de mercado baseia-se na geração, troca e acúmulo de riqueza de propriedade privada. Essa realidade está tão profundamente enraizada em muitas sociedades que a busca e o acúmulo de riqueza pessoal se tornaram, para muitos, fins em si mesmos. Mas, como vimos, Jesus não vê o acúmulo de riqueza como um fim adequado em si mesmo. Assim como o trabalho de alguém (modelado na vida de Jesus) deve exibir uma profunda preocupação pelos outros e uma relutância em usar o poder ou a autoridade relacionados ao trabalho apenas para ganho próprio, a riqueza também deve ser usada com uma profunda preocupação com o próximo. Embora o segundo volume de Lucas, Atos (ver Atos e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org), tenha mais material relacionado à riqueza, seu Evangelho também apresenta desafios significativos às suposições dominantes sobre riqueza.

Preocupação com os ricos (Lc 6.25; 12.13-21; 18.18-30)

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O primeiro problema de Jesus com a riqueza é que ela tende a substituir Deus na vida das pessoas ricas. “Pois, onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração” (Lc 12.34). Jesus quer que as pessoas reconheçam que sua vida é definida não pelo que elas têm, mas pelo amor de Deus por elas e seu chamado para sua vida. Lucas espera que nós — bem como o trabalho que realizamos — sejamos fundamentalmente transformados por nossos encontros com Jesus.

Mas ter riqueza parece nos tornar teimosamente resistentes a qualquer transformação de vida. Ela nos proporciona os meios para manter o status quo, para nos tornarmos independentes, para fazer as coisas do nosso jeito. A vida verdadeira, a eterna, é uma vida de relacionamento com Deus (e com as pessoas), e a riqueza que substitui Deus leva, em última análise, à morte eterna. Como Jesus disse, “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder-se ou destruir a si mesmo?” (Lc 9.25). Os ricos podem ser atraídos para longe da vida com Deus por sua própria riqueza, um destino do qual os pobres escapam. “Bem-aventurados vocês os pobres, pois a vocês pertence o Reino de Deus”, diz Jesus (Lc 6.20). Esta não é uma promessa de recompensa futura, mas uma declaração da realidade presente. Os pobres não têm riquezas que os impeçam de amar a Deus. Mas “ai de vocês que agora têm fartura, porque passarão fome” (Lc 6.25). “Passar fome” parece um eufemismo para “perder a vida eterna, colocando Deus fora de sua órbita de interesse”, mas essa é claramente a implicação. No entanto, talvez haja esperança até mesmo para os miseravelmente ricos.

A parábola do rico insensato (Lc 12.13-21)

A parábola do rico insensato (Lc 12.13-21) aborda esse tema de forma dramática. “A terra de certo homem rico produziu muito”, demais para caber nos seus celeiros. “O que vou fazer?”, preocupa-se ele, e decide derrubar seus celeiros e construir outros maiores. Ele está entre aqueles que acreditam que mais riqueza levará a menos preocupação com dinheiro. Mas antes de descobrir quão vazia é sua preocupante riqueza, ele encontra um destino ainda mais difícil: a morte. Enquanto ele se prepara para morrer, a pergunta zombeteira de Deus é uma espada de dois gumes: “Então, quem ficará com o que você preparou?” (Lc 12.20). Um dos gumes é a resposta: “não será você”, pois a riqueza com a qual ele contou para satisfazê-lo por muitos anos passará instantaneamente para outra pessoa. O outro gume corta ainda mais profundo, e é a resposta: “você”. Você — o rico insensato — de fato terá o que preparou para si mesmo, uma vida após a morte sem Deus, a verdadeira morte. Sua riqueza o impediu de desenvolver um relacionamento com Deus, o que é evidenciado por seu fracasso em sequer pensar em usar sua safra abundante para prover aos necessitados. “Assim acontece com quem guarda para si riquezas, mas não é rico para com Deus” (Lc 12.21).

A amizade com Deus é vista aqui em termos econômicos. Os amigos de Deus que são ricos proveem aos amigos de Deus que são pobres. O problema do rico insensato é que ele acumula coisas para si mesmo, sem produzir empregos ou prosperidade para os outros. Isso significa que ele ama as riquezas em vez de Deus e que não é generoso com os pobres. Podemos imaginar uma pessoa rica que realmente ama a Deus e que mantém a riqueza com leveza, alguém que dá liberalmente aos necessitados, ou melhor ainda que investe dinheiro na produção de bens e serviços genuínos, emprega uma força de trabalho crescente e trata as pessoas com justiça e equidade no trabalho. De fato, podemos encontrar muitas pessoas assim na Bíblia (por exemplo, José de Arimateia, Lc 23.50) e no mundo que nos rodeia. Essas pessoas são abençoadas tanto na vida quanto depois. No entanto, não queremos remover o aguilhão da parábola: se é possível crescer (economicamente e de outra forma) com graça, também é possível crescer apenas com ganância; a prestação de contas final é com Deus.

O homem rico (Lc 18.18-30)

O encontro de Jesus com o homem rico (Lc 18.18-30) aponta para a possibilidade de redenção das garras da riqueza. Esse homem não permitiu que a riqueza substituísse inteiramente seu desejo por Deus. Ele começa perguntando a Jesus: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?”. Em resposta, Jesus resume os Dez Mandamentos. “A tudo isso tenho obedecido desde a adolescência”, responde o homem (Lc 18.21), e Jesus acredita no que ele diz. Mesmo assim, Jesus enxerga a influência corruptível que a riqueza está exercendo sobre o homem. Então, ele lhe oferece uma maneira de acabar com essa influência perniciosa. “Venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois venha e siga-me” (Lc 18.22). Qualquer pessoa que tenha o mais profundo desejo por Deus certamente aceitaria o convite para uma intimidade diária e pessoal com o Filho de Deus. Mas é tarde demais para o homem rico — seu amor pela riqueza já excede seu amor por Deus. “Ouvindo isso, ele ficou triste, porque era muito rico” (Lc 18.23). Jesus reconhece os sintomas e diz: “Como é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus! De fato, é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Lc 18.24-25).

Em contraste, os pobres muitas vezes mostram uma incrível generosidade. A viúva pobre é capaz de dar tudo o que tem por amor a Deus (Lc 21.1-4). Não se trata de um julgamento sumário de Deus contra pessoas ricas, mas uma observação do forte poder de sedução da riqueza. As pessoas próximas de Jesus e do homem também reconhecem o problema e se desesperam diante da quase impossibilidade de resistir à atração da riqueza, embora eles mesmos tenham deixado tudo para seguir Jesus (Lc 18.28). Jesus, no entanto, não se desespera, pois “o que é impossível para os homens é possível para Deus” (Lc 18.27). O próprio Deus é a fonte de força para o desejo de amá-lo mais que às riquezas.

Talvez o efeito mais insidioso da riqueza seja que ela pode nos impedir de desejar um futuro melhor. Se você é rico, as coisas estão bem agora. A mudança se torna uma ameaça, e não uma oportunidade. No caso do homem rico, isso o cega para a possibilidade de que a vida com Jesus possa ser incomparavelmente maravilhosa. Jesus oferece ao homem rico um novo senso de identidade e segurança. Se ele pudesse imaginar como isso mais do que compensaria a perda de sua riqueza, talvez pudesse ter aceitado o convite. A moral da história vem com a fala dos discípulos de sua desistência de tudo diante da promessa de Jesus de alcançarem riquezas transbordantes por pertencerem ao reino de Deus. Mesmo nesta era, Jesus diz, eles receberão “muitas vezes mais” em recursos e relacionamentos, e “na era futura, a vida eterna” (Lc 18.29-30). É isso o que o homem rico está tragicamente perdendo. Ele só consegue enxergar o que perderá, não o que ganhará.

A história do homem rico é discutida em mais detalhes em Marcos 10.17-31 em Marcos e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Preocupação com os pobres (Lc 6.17-26; 16.19-31)

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O bem-estar dos ricos não é a única preocupação de Jesus com relação à riqueza. Ele também se preocupa com o bem-estar dos pobres. “Vendam o que têm”, diz ele, “e deem esmolas [aos pobres]. Façam para vocês bolsas que não se gastem com o tempo, um tesouro nos céus que não se acabe, onde ladrão algum chega perto e nenhuma traça destrói" (Lc 12.33). Se o acúmulo de riqueza está prejudicando os ricos, quanto mais prejudicará os pobres?

A preocupação persistente de Deus pelos pobres e impotentes é inerente ao Magnificat (Lc 1.46-56) e ao Sermão da Planície (Lc 6.17-26) e, de fato, a todo o Evangelho de Lucas. Mas Jesus leva isso ao ápice na parábola do rico e Lázaro (Lc 16.19-31). Esse homem rico se veste com roupas majestosas e vive no luxo, sem preocupar-se com ajudar a aliviar a situação de Lázaro, que está morrendo devido à fome e à doença. Lázaro morre, mas também, é claro, o homem rico, o que nos lembra que, afinal, a riqueza não tem grande poder. Os anjos carregam Lázaro para o céu, aparentemente sem nenhuma razão além de sua pobreza (Lc 16.22), exceto, talvez, por um amor a Deus que nunca fora substituído pela riqueza. O rico vai para o Hades (palavra que também pode ser traduzida como “inferno”), aparentemente sem nenhuma razão além de sua riqueza (Lc 16.23), exceto, talvez, por um amor à riqueza que não deixou espaço para Deus ou para outras pessoas. A implicação do dever do homem rico por cuidar das necessidades de Lázaro enquanto podia é forte (Lc 16.25). Talvez, se o fizesse, poderia ter reencontrado espaço em si mesmo para um relacionamento correto com Deus, e assim evitado seu fim miserável. Além disso, como muitos ricos, ele se importava com sua família, ao querer avisá-los sobre o julgamento que estava por vir, mas o cuidado com a família mais ampla de Deus, como revelado na lei e nos profetas, estava tristemente ausente, e nem mesmo alguém que voltasse dos mortos poderia remediar isso.

Investindo na obra de Jesus (Lc 8.3; 10.7)

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A parábola do administrador astuto (Lc 16.1-13) ensina a importância de usar o dinheiro com sabedoria. Lucas fornece exemplos por meio daqueles que investem seu dinheiro na obra de Jesus: Maria Madalena, Joana e Susana são citadas ao lado dos doze discípulos em razão de seu apoio financeiro à obra de Jesus. É surpreendente como as mulheres figuram com destaque nessa lista, porque poucas delas no mundo antigo possuíam riqueza. No entanto, “essas mulheres ajudavam a sustentá-los com os seus bens” (Lc 8.3). Mais tarde, quando Jesus envia evangelistas, ele lhes diz que devem depender da generosidade das pessoas entre as quais servem, “pois o trabalhador merece o seu salário” (Lc 10.7).

O que pode parecer surpreendente é que esses dois comentários um tanto informais ​​são tudo o que Lucas diz sobre doar para o que hoje reconheceríamos como a igreja. Comparado com a preocupação incessante que Jesus mostra em dar aos pobres, ele não dá muita importância à contribuição à igreja. Em nenhum lugar, por exemplo, ele interpreta o dízimo do Antigo Testamento como algo pertencente à igreja. Isso não quer dizer que Jesus opõe a generosidade aos pobres à generosidade à igreja. Trata-se apenas de uma questão de ênfase. Devemos observar que dar dinheiro não é o único meio de exercer a generosidade. As pessoas também participam da obra redentora de Deus quando empregam criativamente suas habilidades, paixões, relacionamentos e orações.

Maria e Marta (Lc 10.38-42)

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A história de Marta e Maria (Lc 10.38-42) também coloca a generosidade no contexto do amor por Deus. Marta trabalha para preparar o jantar, enquanto Maria se senta e ouve Jesus. Marta pede a Jesus que repreenda sua irmã por não ajudar, mas, em vez disso, Jesus elogia Maria. Lamentavelmente, essa história muitas vezes sofreu interpretações duvidosas, com Marta se tornando a garota-propaganda de tudo o que há de errado com a vida de ocupações e distrações, ou o que a Igreja Medieval chamava de vida ativa ou profissional de Marta, que embora era permitida era inferior à vida perfeita de contemplação ou à do mosteiro. Mas a história deve ser lida tendo como pano de fundo o Evangelho de Lucas como um todo, em que a obra da hospitalidade (uma forma vital de generosidade no antigo Oriente Próximo) é um dos principais sinais da irrupção do reino de Deus. [1]

Maria e Marta não são inimigas, mas irmãs. Duas irmãs que brigam sobre os deveres domésticos não podem ser razoavelmente interpretadas como uma batalha de modo de vida incompatível. O serviço generoso de Marta não é minimizado por Jesus, mas as preocupações dela mostram que seu serviço precisa ser fundamentado no tipo de amor de Maria pelo Senhor. Juntas, as irmãs encarnam a verdade de que generosidade e amor a Deus são realidades entrelaçadas. Marta realiza o tipo de generosidade que Jesus recomenda em Lucas 14.12-14, pois ele é alguém que não pode retribuir na mesma moeda. Ao sentar-se aos pés de Jesus, Maria mostra que todo o nosso serviço deve ser fundamentado em um relacionamento pessoal vívido com ele. Seguir a Cristo significa tornar-se como Marta e Maria. Seja generoso e ame a Deus. Isso se reforça mutuamente, assim como o relacionamento das duas irmãs.

Generosidade: O segredo para romper as garras da riqueza (Lc 10.38-42; 14.12-14; 24.13-15)

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Isso sugere que a arma secreta de Deus é a generosidade. Se pelo poder de Deus você pode ser generoso, a riqueza começa a perder domínio sobre você. Já vimos como a generosidade agia profundamente no coração da viúva pobre. É muito mais difícil para os ricos serem generosos, mas Jesus ensina como a generosidade também pode ser possível para eles. Um caminho crucial para a generosidade é doar a pessoas pobres demais para retribuírem.

Jesus disse também àquele que o havia convidado: “Quando você der um banquete ou jantar, não convide seus amigos, irmãos ou parentes, nem seus vizinhos ricos; se o fizer, eles poderão também, por sua vez, convidá-lo, e assim você será recompensado. Mas, quando der um banquete, convide os pobres, os aleijados, os mancos e os cegos. Feliz será você, porque estes não têm como retribuir. A sua recompensa virá na ressurreição dos justos” (Lc 14.12-14).

A generosidade que recebe favores em troca não é generosidade, mas compra de favores. A verdadeira generosidade é dar quando não há retorno possível, e é isso que é recompensado na eternidade. É claro que a recompensa no céu poderia ser vista como uma espécie de gratificação adiada, e não como verdadeira generosidade: você dá porque espera ser recompensado na ressurreição, e não durante a vida terrena. Esse parece ser um tipo mais sábio de compra de favores, mas, mesmo assim, ainda é compra de favores. As palavras de Jesus não excluem a interpretação da generosidade como compra de favores eternos, mas há uma interpretação mais profunda e satisfatória. A verdadeira generosidade — do tipo que não espera ser recompensada nesta vida ou na próxima — rompe o domínio da riqueza que substitui Deus. O dinheiro, quando doado, só perde domínio sobre você se colocado permanentemente fora de seu alcance. É uma realidade psicológica, mas também material e espiritual. A generosidade permite que Deus seja seu Deus novamente, e isso leva à verdadeira recompensa da ressurreição: a vida eterna com Deus.

Poder e liderança em Lucas

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Como rei, Jesus é o líder do reino de Deus. Ele emprega seu poder de muitas maneiras registradas no Evangelho de Lucas. No entanto, os cristãos muitas vezes relutam em exercer liderança ou poder, como se os dois fossem inerentemente maus. Jesus ensina o contrário. Os cristãos são chamados para liderar e exercer poder, mas, diferentemente dos poderes do mundo caído, devem usá-lo para os propósitos de Deus, e não para seus próprios interesses.

Persistência: A Parábola da Viúva Persistente (Lc 18.1-8)

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Na parábola da viúva persistente (Lc 18.1-8), uma pessoa pobre e impotente (a viúva) persiste em incomodar uma pessoa corrupta e poderosa (o juiz) para que faça justiça por ela. A parábola presume o ensino de João Batista de que ocupar uma posição de poder e liderança obriga a pessoa a trabalhar com justiça, especialmente em favor dos pobres e fracos. Mas Jesus enfoca a parábola em um ponto diferente, que devemos “orar sempre e nunca desanimar” (Lc 18.1). Ele identifica os ouvintes — nós — com a mulher, e a pessoa a quem se ora — Deus — com o juiz corrupto, uma combinação estranha. Assumindo que Jesus não quer dizer que Deus é corrupto, o ponto deve ser que, se a persistência compensa com um humano corrupto de poder limitado, quanto mais valerá com um Deus justo de poder infinito.

O propósito da parábola é encorajar os cristãos a perseverarem na fé, apesar de todas as adversidades. Mas também tem duas aplicações para quem trabalha em cargos de liderança. Primeiro, a justaposição de um juiz corrupto com um Deus justo implica que a vontade de Deus atua, mesmo em um mundo corrupto. O trabalho do juiz é fazer justiça e, por Deus, ele fará justiça quando a viúva terminar. Em outros pontos, a Bíblia ensina que as autoridades civis servem com a autorização de Deus, quer reconheçam quer não (Jo 19.11; Rm 13.1; 1Pe 2.13). Portanto, há esperança de que, mesmo em meio à injustiça sistêmica, a justiça possa ser feita. O trabalho de um líder cristão deve focar-se o tempo todo nessa esperança. Embora não possamos corrigir todos os erros do mundo, nunca devemos perder a esperança nem deixar de trabalhar por um bem maior [1] em meio aos sistemas imperfeitos. Os legisladores, por exemplo, raramente têm a opção de votar em um projeto de lei bom ou em um projeto de lei ruim. Normalmente, o melhor que podem fazer é votar em projetos de lei que fazem mais bem do que mal. Apesar disso, eles devem procurar continuamente oportunidades para levar à votação de projetos de lei que causem ainda menos danos e ainda mais benefícios.

O segundo ponto é que somente Deus pode trazer justiça em um mundo corrupto. É por isso que devemos orar e não desistir de nosso trabalho. Deus pode trazer justiça milagrosa em um mundo corrupto, assim como pode trazer cura milagrosa em um mundo doente. De repente, o muro de Berlim se abre, o regime do apartheid desmorona, a paz irrompe. Na parábola da viúva persistente, Deus não intervém. Só a persistência da viúva leva o juiz a agir com justiça. Mas Jesus indica que Deus é o ator invisível. “Acaso Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele dia e noite?” (Lc 18.7).

Risco: A Parábola das Dez Minas (Lc 19.11-27)

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A parábola das dez minas se passa no ambiente de trabalho das altas finanças. Um nobre rico — e iminentemente poderoso — faz uma longa viagem para ser coroado rei. A maioria de seu povo o odeia e manda avisar que se opõe a essa coroação (Lc 19.14). Em sua ausência, ele designa três de seus servos para investir seu dinheiro. Dois deles assumem o risco de investir o dinheiro de seu mestre. Eles obtêm retornos consideráveis. Um terceiro servo tem medo de correr riscos, então coloca o dinheiro em um lugar seguro. Não obtém retorno. Quando volta, o mestre se torna rei de todo o território. Ele recompensa os dois servos que ganharam dinheiro para ele, promovendo-os a altos cargos, e pune o servo que manteve o dinheiro seguro, mas improdutivo. Em seguida, ordena que todos os que se opõem a ele sejam mortos em sua presença.

Jesus conta essa parábola imediatamente antes de ir a Jerusalém, onde será coroado rei (“Bendito é o rei que vem em nome do Senhor”, Lc 19.38), mas logo é rejeitado por seu povo. Isso identifica Jesus com o nobre da parábola, e a multidão que grita “crucifica-o!” (Lc 23.21) com as pessoas da parábola que se opõem à coroação do nobre. Por meio disso, sabemos que o povo julgou profundamente mal seu futuro rei, exceto os dois servos que trabalharam diligentemente em sua ausência. Nesse contexto, a parábola nos adverte que devemos decidir se Jesus é de fato o rei designado por Deus e estar preparados para suportar as consequências de nossa decisão de servi-lo ou de nos opormos a ele. [1]

Essa parábola deixa explícito que os cidadãos do reino de Deus são responsáveis ​​por trabalhar com foco nos objetivos e propósitos de Deus. O rei diz diretamente a seus servos o que ele espera que eles façam, ou seja, que invistam seu dinheiro. Esse chamado ou mandamento específico deixa claro que pregar, curar e evangelizar (os chamados dos apóstolos) não são as únicas coisas que Deus chama as pessoas a fazerem. É claro que nem todos no reino de Deus são chamados para ser investidores. Nessa parábola, apenas três dos residentes do país são chamados para esse fim. O ponto é que, independentemente de sua área de atuação, reconhecer Jesus como rei requer trabalhar com foco nos propósitos dele.

Vista sob essa ótica, a parábola sugere que, se escolhermos aceitar Jesus como rei, devemos esperar levar uma vida arriscada. Os servos que investiram o dinheiro do senhor corriam o risco de serem atacados por aqueles ao redor que rejeitavam a autoridade do senhor. E corriam o risco de decepcionar seu mestre, fazendo investimentos que poderiam resultar em perda de dinheiro. Mesmo o sucesso os expõe a riscos. Agora que experimentaram o sucesso e foram promovidos, correm o risco de se tornarem gananciosos ou loucos por poder. Eles enfrentam o risco de que seus próximos investimentos — que envolverão somas muito maiores — fracassem e os exponham a consequências muito mais graves. Na prática anglo-americana de negócios (e esportes), CEOs (e treinadores) são em geral demitidos por resultados medíocres, enquanto aqueles que ocupam cargos de nível inferior são demitidos apenas por desempenho excepcionalmente ruim. Nem o fracasso nem o sucesso são seguros nessa parábola, tal como no ambiente de trabalho de hoje. É tentador se esconder e procurar uma maneira segura de se acomodar ao sistema enquanto se espera que as coisas melhorem. Mas abaixar-se para se proteger é a única ação que Jesus condena na parábola. O servo que tenta evitar riscos é apontado como infiel. Não nos é dito o que teria acontecido se os outros dois servos tivessem perdido dinheiro em seus investimentos, mas a implicação é que todos os investimentos feitos no serviço fiel a Deus lhe são agradáveis, independentemente de alcançarem ou não o retorno pretendido.

Para uma discussão sobre a parábola dos talentos, bastante similar, ver Mateus 25.14-30 em Mateus e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Serviço humilde (Lc 9.46-50, 14.7-11, 22.24-30)

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Jesus declara que a liderança requer um serviço humilde aos outros, como vemos em três passagens adicionais. Na primeira (Lc 9.46-50), os discípulos de Jesus começam a discutir qual deles será o maior. Jesus responde que o maior é aquele que recebe uma criança em seu nome. “Aquele que entre vocês for o menor, este será o maior.” Observe que o modelo não é a criança, mas a pessoa que a acolhe. Servir aqueles que todos os outros consideram indignos de seu tempo é o que torna um líder excelente.

A segunda passagem (Lc 14.7-11) é a resposta de Jesus à postura social que ele vê em um banquete. Não é apenas uma perda de tempo, diz Jesus, mas na verdade é contraproducente. “Todo o que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado.” Aplicado à liderança, isso significa que, se você tentar levar o crédito por tudo, as pessoas desejarão parar de segui-lo ou se distrairão do trabalho delas, tentando fazer você parecer mau. Mas, se você der crédito aos outros, as pessoas desejarão segui-lo e isso levará ao verdadeiro reconhecimento.

A terceira passagem (Lc 22.24-30) retorna à questão de quem é o maior entre os discípulos. Desta vez, Jesus se torna o modelo de liderança por meio do serviço. “Eu estou entre vocês como quem serve.” Nas três histórias, os conceitos de serviço e humildade estão interligados. A liderança eficaz requer — ou é — serviço. Servir exige que você aja como se fosse menos importante do que pensa ser.

Veja * Liderança (CONTEÚDO AINDA NÃO DISPONÍVEL) em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.

Questões tributárias (Lc 19.1-10; 20.20-26)

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O tempo todo, Lucas identifica Jesus como aquele que está trazendo o governo de Deus à Terra. No capítulo 19, o povo de Jerusalém finalmente o reconhece como rei. Enquanto ele entra na cidade montado em um jumentinho, multidões se alinham na estrada e cantam louvores. “Bendito é o rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas alturas!” (Lc 19.38) Como sabemos, o reino de Deus abrange toda a vida, e as questões que Jesus escolhe discutir imediatamente antes e depois de sua entrada em Jerusalém dizem respeito a impostos e investimentos.

Zaqueu, o Publicano (Lc 19.1-10)

Ao passar por Jericó a caminho de Jerusalém, Jesus encontra um publicano — ou cobrador de impostos — chamado Zaqueu, que está sentado em uma árvore para ter uma visão melhor de Jesus. “Zaqueu, desça depressa. Quero ficar em sua casa hoje”, diz Jesus (Lc 19.5). O encontro com Jesus muda profundamente a maneira de Zaqueu trabalhar. Como todos os cobradores de impostos nos estados clientes romanos, Zaqueu ganhava dinheiro cobrando das pessoas um valor acima dos impostos devidos. Embora isso fosse o que hoje poderíamos chamar de “prática padrão do setor”, dependia de fraude, intimidação e corrupção. Uma vez que entra no reino de Deus, Zaqueu não pode mais trabalhar dessa maneira. “Zaqueu levantou-se e disse ao Senhor: ‘Olha, Senhor! Estou dando a metade dos meus bens aos pobres; e se de alguém extorqui alguma coisa, devolverei quatro vezes mais’” (Lc 19.8). Exatamente como — ou se — ele continuará a ganhar a vida, ele não diz, pois não vem ao caso. Como cidadão do reino de Deus, ele não pode se envolver em práticas comerciais contrárias aos caminhos de Deus.

Deem a Deus o que é de Deus (Lc 20.20-26)

Depois que Jesus é recebido como rei em Jerusalém, há uma passagem em Lucas que muitas vezes tem sido usada erroneamente para separar o mundo do trabalho do reino de Deus: o pronunciamento de Jesus sobre os impostos. Os mestres da lei e os principais sacerdotes tentam “apanhar Jesus em alguma coisa que ele dissesse, de forma que o pudessem entregar ao poder e à autoridade do governador” (Lc 20.20). Eles perguntam se é certo pagar imposto a César. Em resposta, Jesus pede que eles lhe mostrem uma moeda e, imediatamente, exibem um denário. Ele pergunta de quem é a imagem na moeda, e eles respondem: “De César”. Jesus diz: “Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lc 20.25).

Essa resposta às vezes tem sido interpretada como uma separação entre o material e o espiritual, o político e o religioso, o terreno e o celestial. Na igreja (o reino de Deus), devemos ser honestos e generosos, e cuidar dos bens de nossos irmãos e irmãs. No trabalho (o reino de César), devemos ocultar a verdade, ser movidos pela preocupação com o dinheiro e cuidar de nós mesmos acima de tudo. Mas isso é uma compreensão errônea da ironia aguda presente na resposta de Jesus. Quando diz “deem a César o que é de César”, Jesus não está sancionando uma separação entre o material e o espiritual. A premissa de que o mundo de César e o mundo de Deus não se sobrepõem não faz sentido à luz do que Jesus vem dizendo em todo o Evangelho de Lucas. O que é de Deus? Tudo! A vinda de Jesus ao mundo como rei é a afirmação de Deus de que o mundo inteiro é de Deus. Tudo o que pode pertencer a César também pertence a Deus. O mundo dos impostos, do governo, da produção, da distribuição e de todos os outros tipos de trabalho é aquele que o reino de Deus está invadindo. Os cristãos são chamados a se envolverem com esse mundo, não a abandoná-lo. Essa passagem se opõe à justificativa de separar o mundo do trabalho do mundo cristão. Dê a César o que é de César (impostos) e a Deus o que é de Deus (tudo, impostos incluídos). Para uma discussão mais completa sobre esse incidente, consulte a seção sobre Mateus 17.24-27 e 22.15-22 em Mateus e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

A Paixão de Jesus (Lc 22.47—24.53)

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A obra de Jesus culmina em seu sacrifício voluntário na cruz, quando, em seu último suspiro, ele exala confiança em Deus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Pelo autossacrifício de Jesus e pelo poderoso ato de ressurreição do Pai, Jesus assume plenamente a posição de rei eterno preconizada em seu nascimento. “O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim” (Lc 1.32-33). Esse é verdadeiramente o Filho amado de Deus, fiel até a morte à medida que trabalha em favor de todos os que caíram na pobreza do pecado e da morte e que necessitam de uma redenção que não podemos fornecer a nós mesmos. Sob essa ótica, vemos que o cuidado de Jesus pelos pobres e impotentes é tanto um fim em si mesmo quanto um sinal de seu amor por todos os que o seguirão. Somos todos pobres e impotentes diante de nosso pecado e do quebrantamento do mundo. Em sua ressurreição, somos transformados em todos os aspectos da vida, à medida que somos apanhados nesse amor extravagante de Deus.

O Caminho de Emaús (Lc 24.13-35)

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O episódio no caminho de Emaús é um exemplo adequado de generosidade para todos os seguidores de Jesus. A princípio, parece que a morte de Jesus é tratada de maneira muito leve, ou estamos errados em ver algo bem-humorado nos dois discípulos que atualizam Jesus sobre as últimas notícias? “Você é o único visitante em Jerusalém que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?”, eles perguntam (Lc 24.18). Quase se pode imaginar Cleopas acrescentando: “Onde você esteve?”. Jesus leva o assunto com calma e os deixa falar, mas depois muda a maré e os faz ouvir. Gradualmente, começa a raiar sobre eles a luz de que talvez a história das mulheres sobre a ressurreição milagrosa do Messias não fosse tão louca quanto pensaram inicialmente.

Se isso fosse tudo o que havia na história, não aprenderíamos nada além de que muitas vezes “[custamos] a entender e ... [demoramos] a crer” (Lc 24.25) em tudo o que Deus escreveu. Mas os discípulos fazem uma coisa certa nessa história — algo tão aparentemente insignificante que seria fácil passar despercebido. Eles oferecem hospitalidade a Jesus. “Fique conosco, pois a noite já vem; o dia já está quase findando” (Lc 24.29). Jesus abençoa esse pequeno ato de generosidade com a revelação de sua presença. Ao partir o pão, eles finalmente o reconhecem (Lc 24.32). Quando oferecemos hospitalidade, Deus a usa não apenas como um meio de servir aos que precisam de descanso, mas também como um convite para que experimentemos a presença de Jesus.

Conclusão para Lucas

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O Evangelho de Lucas é a história do surgimento do reino de Deus na terra na pessoa de Jesus Cristo. Como o verdadeiro rei do mundo, Cristo é o governante a quem devemos nossa lealdade e o modelo para exercer qualquer autoridade que nos seja dada na vida.

Como nosso governante, ele nos dá um grande mandamento em duas partes. “‘Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’ e ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’ [...]. Faça isso e viverá” (Lc 10.27-28). Em certo sentido, esse mandamento não é nada novo. É simplesmente um resumo da Lei de Moisés. O novo é que o reino baseado nessa lei foi inaugurado pela encarnação de Deus na pessoa de Jesus. Desde o início, era intenção de Deus que a humanidade vivesse nesse reino. Mas, desde o pecado de Adão e Eva, as pessoas têm vivido no reino das trevas e do mal. Jesus veio para reivindicar a terra como o reino de Deus e para criar uma comunidade do povo de Deus que viva sob seu domínio, mesmo enquanto o reino das trevas detém grande parte de seu controle. A resposta essencial daqueles que chegam à cidadania no reino de Cristo é que vivam toda sua vida — incluindo o trabalho — em busca dos propósitos e de acordo com os caminhos de seu reino.

Como nosso modelo, Jesus nos ensina esses propósitos e caminhos. Ele nos chama para trabalhar em tarefas como cura, proclamação, justiça, poder, liderança, produtividade e provisão, investimento, governo, generosidade e hospitalidade. Ele envia o espírito de Deus para nos dar tudo o que precisamos para cumprir nosso chamado específico. Ele nos promete provisão. Ele nos ordena a prover para os outros e, assim, sugere que sua provisão para nós geralmente virá na forma de outras pessoas trabalhando em nosso favor. Ele nos adverte sobre a armadilha de buscar a autossuficiência por meio da riqueza e nos ensina que a melhor maneira de evitar a armadilha é usar a riqueza para promover o relacionamento com Deus e com as pessoas. Quando surgem conflitos de relacionamentos, ele nos ensina a resolvê-los para que cheguemos à justiça e à reconciliação. Acima de tudo, ele ensina que a cidadania no reino de Deus significa trabalhar como servo de Deus e das pessoas. Seu autossacrifício na cruz serve como o modelo final de liderança servil. Sua ressurreição ao trono do reino de Deus confirma e estabelece para sempre o amor ativo ao próximo, como o caminho da vida eterna.

Introdução a João

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O trabalho permeia o Evangelho de João. Começa com a obra do Messias, que é o agente de Deus na criação do mundo. A obra de criação realizada por Cristo é anterior à Queda, à sua encarnação na forma de Jesus de Nazaré e à sua obra de redenção. Ele é enviado por Deus como o redentor do mundo justamente por ser seu cocriador. Sua obra de redenção não é uma nova linha de ação, mas a restauração do mundo para seguir o caminho para o qual sempre foi destinado. É o cumprimento da promessa feita na criação.

O trabalho humano faz parte do cumprimento da criação (Gn 2.5). No entanto, a obra dos seres humanos se corrompeu e, por isso, a redenção do trabalho se tornou parte da redenção do mundo pelo Messias. Vemos que a obra que Jesus realiza para o Pai durante seu ministério terreno se constitui em um aspecto do amor mútuo entre o Pai e o Filho. “As palavras que eu digo não são apenas minhas. Ao contrário, o Pai, que vive em mim, está realizando a sua obra” (Jo 14.10). Isso fornece o modelo do trabalho humano redimido, que também tem o propósito de nutrir o amor uns pelos outros à medida que trabalhamos juntos no bom mundo de Deus. Além de servir de modelo do bom trabalho, Jesus ensina sobre tópicos relacionados ao local de trabalho, como chamado, relacionamentos, criatividade e produtividade, ética, verdade e engano, liderança, serviço, sacrifício e sofrimento, e dignidade do trabalho.

Um dos principais interesses de João é lembrar as pessoas de que um olhar informal para Jesus nunca será suficiente. Aqueles que permanecem com ele descobrem que as imagens simples que ele usa se abrem para uma maneira inteiramente nova de enxergar o mundo. Isso vale tanto para o trabalho quanto para qualquer outra coisa. A palavra grega para “trabalho” (ergon) aparece mais de vinte e cinco vezes no Evangelho, enquanto o termo mais geral para “fazer” (poieō) ocorre mais de cem vezes. Na maioria dos casos, as palavras se referem à obra de Jesus para o Pai; mas, mesmo isso, ao que parece, será promissor para o emprego humano comum. A chave para dar sentido a esse material é o fato de que é preciso trabalhar para descobrir o significado do Evangelho de João, que muitas vezes é mais profundo do que uma leitura superficial pode revelar. Portanto, vamos nos aprofundar em um número limitado de passagens cujo significado particular refira-se a aspectos como trabalho, trabalhadores e locais de trabalho. Deixaremos de lado passagens que não contribuem de maneira específica para o nosso tema.

No princípio era aquele que é a Palavra (Jo 1.1-18)

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“No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito” (Jo 1.1). A majestosa abertura do Evangelho de João nos mostra o escopo ilimitado da obra daquele que é a Palavra. Ele é a autoexpressão definitiva de Deus, aquele por meio de quem Deus criou todas as coisas no princípio. Ele estende o cosmos como a tela sobre a qual é expressa a glória de Deus.

A Palavra está trabalhando; e, como seu trabalho começou no princípio, todo trabalho humano subsequente é derivado de seu trabalho inicial. Não é exagero usar o termo derivado, porque tudo com que as pessoas trabalham foi criado por ele. A obra que Deus fez em Gênesis 1 e 2 foi realizada pela Palavra. Isso pode parecer um ponto de insistência bastante delicado, mas muitos cristãos continuam a trabalhar sob a ilusão de que o Messias só começou a trabalhar quando as coisas deram irremediavelmente erradas e que seu trabalho se restringe a salvar almas (invisíveis) para levá-las ao céu (imaterial). Uma vez que reconheçamos que o Messias estava trabalhando materialmente com Deus desde o princípio, poderemos rejeitar toda teologia que negue a criação (e que, portanto, denigre o trabalho).

Portanto, precisamos corrigir um mal-entendido comum. O Evangelho de João não está fundamentado na dicotomia do espiritual versus o material, ou do sagrado versus o espiritual, nem em qualquer outro dualismo. Não retrata a salvação como a libertação do espírito humano das algemas do corpo material. Filosofias dualistas como essas são lamentavelmente comuns entre os cristãos. Seus proponentes muitas vezes se voltaram para a linguagem do Evangelho de João em busca de apoio para seu ponto de vista. É verdade que João frequentemente registra o uso de contrastes por Jesus, como luz/escuridão (Jo 1.5; 3.19; 8.12; 11.9-10; 12.35-36), crença/descrença (Jo 3.12-18; 4.46-54; 5.46-47; 10.25-30; 12.37-43; 14.10-11; 20.24-39) e espírito/carne (Jo 3.6-7). Esses contrastes destacam o conflito entre os caminhos de Deus e os caminhos do mal. Mas eles não constituem uma divisão do universo em subuniversos duais. Certamente não chamam os seguidores de Jesus a abandonar algum tipo de mundo “secular” a fim de entrar em um mundo “espiritual”. Em vez disso, Jesus emprega os contrastes para chamar seus seguidores a receberem e usarem o poder do espírito de Deus no mundo atual. Jesus afirma isso diretamente em João 3.17: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fosse salvo por meio dele”. Jesus veio para restaurar o mundo de modo que este voltasse a ser como Deus pretendia que fosse, não para liderar um êxodo do mundo.

Se forem necessárias mais evidências do compromisso contínuo de Deus com a criação, podemos nos voltar para João 1.14: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós”. A encarnação não é o triunfo do espírito sobre a carne, mas o cumprimento do propósito para o qual a carne foi criada, no princípio. E a carne não é uma base temporária de operações, mas a morada permanente da Palavra. Após sua ressurreição, Jesus convida Tomé e os outros discípulos a tocarem em sua carne (Jo 20.24-31) e, mais tarde, compartilha com eles um café da manhã com peixes (Jo 21.1-15). No final do Evangelho, Jesus lhes diz que esperem “até que eu volte” (Jo 21.22-23), não “até que eu tire todos nós daqui”. Um Deus sem interesse pelo reino material ou hostil a ele dificilmente estaria inclinado a estabelecer residência permanente aqui. Se Deus está tão grandemente interessado no mundo em geral, é lógico que o trabalho feito nesse mundo também é importante para ele.

Eu os tenho chamado amigos (Jo 1.35-51; 15.15)

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Voltaremos em breve ao termo convencional “discípulos”. O termo “amigos”, porém, captura a essência da descrição que João faz dos discípulos. “Eu os tenho chamado amigos”, diz Jesus (Jo 15.15). O elemento relacional é crítico: eles são amigos de Jesus que, acima de tudo, permanecem na presença de Jesus (Jo 1.35-39; 11.54 ; 15.4-11). No capítulo 1, João parece fazer de tudo para reunir com Jesus, no palco, o maior número de pessoas possível. João Batista aponta Jesus para André e outro discípulo. André chama seu irmão, Simão. Filipe, que é da mesma cidade que André e Simão, encontra Natanael. A questão não é que Jesus simplesmente fará avançar sua missão por meio de uma teia de relacionamentos interpessoais. Tecer uma teia de relacionamentos é o objetivo de todo o empreendimento.

Mas os discípulos não são apenas amigos que desfrutam do esplendor da amizade com Jesus. Também são seus obreiros. Eles ainda não estão trabalhando de maneira óbvia no capítulo 1 (ainda que até mesmo a busca por irmãos e vizinhos seja um tipo de trabalho evangelístico), mas trabalharão. De fato, como veremos, é precisamente essa conexão entre amizade e trabalho que detém a chave para a teologia do trabalho de João. O trabalho produz resultados, ao mesmo tempo que constrói relacionamentos, sendo esse outro eco de Gênesis 2.18-22.

Água transformada em vinho no casamento em Caná (João 2.1-11)

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O “primeiro sinal” de Jesus (Jo 2.11), a transformação de água em vinho durante um casamento em Caná, estabelece as bases para a compreensão dos sinais subsequentes. Não se trata de um truque de salão feito para atrair atenção para si mesmo. Ele faz isso com relutância, e o milagre é escondido até mesmo do encarregado da festa. Jesus faz isso apenas em função de uma necessidade humana urgente e para honrar o pedido de sua mãe. (Ficar sem vinho no casamento traria grande vergonha para a noiva, o noivo e a família deles, e essa vergonha teria perdurado por muito tempo na cultura da aldeia de Caná.) Longe de ser o primeiro motor imóvel (como alguns gregos consideravam Deus), Jesus se mostra o Filho amoroso e responsivo do Pai amoroso e eterno e da mãe humana amada.

O fato de Jesus transformar água em vinho mostra que ele é como o Pai não apenas no amor, mas também no poder sobre a criação. Os leitores atentos de João não devem se surpreender com o fato de a Palavra que fez todas as coisas, agora feita carne, ser capaz de trazer bênçãos materiais ao seu povo. Negar que Jesus pode fazer milagres seria negar que Cristo estava com Deus no princípio. O mais surpreendente, talvez, é que esse milagre — que, ao que tudo indica, não foi planejado — acaba apontando de maneira inequívoca para o propósito derradeiro de Jesus. Ele veio para atrair as pessoas para a consumada festa de casamento de Deus, onde elas jantarão com ele num encontro repleto de alegria. As obras poderosas de Jesus, feitas com o material da ordem mundial vigente, são bênçãos surpreendentes no aqui e agora; elas também apontam para bênçãos ainda maiores no mundo vindouro.

Jesus ensina Nicodemos (Jo 3.1-21)

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Os debates de Jesus com Nicodemos e com seus discípulos guardam inúmeros tesouros. Começaremos com um versículo que tem profundas implicações para o trabalho humano. “O Pai ama o Filho e entregou tudo em suas mãos” (Jo 3.35). Embora o contexto imediato destaque o fato de que o Filho fala as palavras do Pai, o restante do Evangelho deixa claro que “tudo” significa realmente “tudo”. Deus autorizou seu Messias a criar todas as coisas, Deus sustenta todas as coisas por meio dele e, através dele, Deus levará todas as coisas ao seu objetivo designado.

Essa passagem reitera o que aprendemos no prólogo: o Pai envolve o Filho na fundação e na sustentação do mundo. O fato novo é a revelação do motivo pelo qual o Pai escolheu incluir o Filho, em vez de simplesmente criar por si mesmo. Foi um ato de amor. O Pai mostra seu amor pelo Filho colocando todas as coisas em suas mãos, a começar pelo ato da criação. O mundo é um “trabalho de amor” no sentido mais amplo da expressão. O trabalho precisa ser algo mais maravilhoso do que costumamos acreditar se aumentar a carga de trabalho de alguém for um ato de amor. Desenvolveremos ainda mais essa ideia tão importante à medida que virmos Jesus em ação ao longo do restante do Evangelho.

Mas o capítulo 3 faz mais do que reiterar como a Palavra assumiu a condição humana. Também ilustra o processo inverso, ou seja, como a carne humana pode se tornar cheia do espírito de Deus. “Digo a verdade: Ninguém pode entrar no Reino de Deus se não nascer da água e do Espírito” (Jo 3.5). Recebemos o Espírito de Deus (“entrar no Reino de Deus”) por meio de uma forma de nascimento. O nascimento é um processo que ocorre na carne. Quando nos tornamos verdadeiramente espirituais, não abandonamos a carne e entramos em algum estado imaterial. Em vez disso, nascemos de forma mais perfeita — nascidos “de novo” (Jo 3.3) — em um estado de união de Espírito e carne, como o próprio Jesus.

Durante sua conversa com Nicodemos, Jesus diz que “quem pratica a verdade vem para a luz, para que se veja claramente que as suas obras são realizadas por intermédio de Deus” (Jo 3.21). Mais tarde, ele usa a metáfora de andar na luz para ilustrar a mesma ideia (Jo 8.12; 11.9-10; 12.35-36). Isso tem implicações éticas importantes para o trabalho. Se realizarmos todo o nosso trabalho abertamente, teremos uma ferramenta poderosa para permanecermos fiéis à ética do reino de Deus. Contudo, esconder ou obscurecer nosso trabalho poderá ser uma forte indicação de que estamos seguindo um caminho antiético. Não se trata de uma regra rígida, pois o próprio Jesus às vezes agia em segredo (Jo 7.10), assim como seus seguidores, como José de Arimateia (Jo 19.38). Mas, pelo menos, poderíamos perguntar: “A quem meu segredo está realmente protegendo?”.

Considere, por exemplo, uma pessoa que faz negócios em um local onde as autoridades locais solicitam suborno frequentemente. A solicitação é sempre feita em segredo. Não se trata de um pagamento documentado e aberto, como é o caso de uma gorjeta ou de uma taxa de urgência. Não há recibos, e a transação não é registrada em lugar algum. As palavras de João 3.20-21: “quem pratica a verdade vem para a luz", podem ser uma inspiração para dar transparência a essas solicitações. O empresário poderia dizer ao funcionário que está solicitando o suborno: "Não sei muito sobre esse tipo de pagamento. Gostaria de chamar o embaixador ou a gerência para documentá-lo". Não se trata de uma recusa direta, mas de uma solicitação para que o pagamento seja feito com transparência. Algumas pessoas consideram essa resposta gentil como uma estratégia útil para lidar com expectativas de suborno.

É importante entender que a metáfora de andar na luz não constitui uma regra universal. Confidencialidade e sigilo podem ter um lugar adequado no trabalho, como em questões pessoais, privacidade on-line ou segredos comerciais. Porém, mesmo que lidemos com informações que não devem ser tornadas públicas, raramente precisamos agir em completa obscuridade. Se estivermos escondendo nossas ações das pessoas do departamento ou das que têm um interesse legítimo, ou ainda, se tivermos vergonha de ver tais ações relatadas nos noticiários, talvez seja uma boa indicação de que estamos agindo de forma antiética.

Jesus e a mulher samaritana junto ao poço (Jo 4)

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A história da mulher junto ao poço (Jo 4.1-40) traz tanta discussão direta sobre o trabalho humano quanto qualquer outra história em João; mas é preciso ir a fundo para saborear tudo. Muitos cristãos estão familiarizados com a incapacidade da mulher de fazer a transição do trabalho diário de tirar água para a fala de Jesus sobre o poder vivificante de sua palavra. É um tema que permeia todo o Evangelho: as multidões mostram repetidamente sua incapacidade de transcender as preocupações cotidianas e abordar os aspectos espirituais da vida. As pessoas não entendem como Jesus pode lhes oferecer seu corpo como pão (Jo 6.51-61). Pensam que sabem de onde ele é (Nazaré, Jo 1.45), mas não conseguem compreender de onde ele realmente é (céu); e são igualmente ignorantes sobre para onde ele está indo (Jo 14.1-6).

Tudo isso é certamente relevante quando se trata de refletir sobre o trabalho. Independentemente do que pensemos sobre o benefício intrínseco de possuir um suprimento constante de água (e cada gole de água que bebemos confirma que isso é realmente algo bom!), essa história certamente nos diz que a água física por si só não pode nos conferir a vida eterna. Além disso, os ocidentais modernos facilmente desprezam o enfado das tarefas diárias daquela mulher relativas à água e atribuem à mais pura preguiça sua relutância em buscá-la. Mas a maldição sobre o trabalho (Gn 3.14-19) tem um impacto enorme, e a mulher pode ser perdoada por querer um sistema de entrega mais eficiente.

Não devemos concluir, no entanto, que Jesus vem para nos libertar do trabalho no mundo material imundo para que, assim, possamos nos banhar nas águas sublimes da serenidade espiritual. Como sempre, devemos primeiro nos lembrar da natureza abrangente da obra de Cristo, conforme descrita no capítulo 1 de João: o Messias fez a água do poço, e a fez boa. Se ele, então, usa essa água para ilustrar a dinâmica da obra do Espírito no coração de aspirantes a adoradores, isso pode ser visto como um enobrecimento da água, em vez de sua degradação. O fato de contarmos primeiro com o Criador, depois com a criação, não é um desprezo para com a criação, especialmente porque uma das funções dela é nos direcionar para o Criador.

Vemos algo semelhante no desdobramento da história, quando Jesus usa a colheita como metáfora para ajudar os discípulos a entenderem sua missão no mundo:

“Vocês não dizem: ‘Daqui a quatro meses haverá a colheita’? Eu digo a vocês: Abram os olhos e vejam os campos! Eles estão maduros para a colheita. Aquele que colhe já recebe o seu salário e colhe fruto para a vida eterna, de forma que se alegram juntos o que semeia e o que colhe.”(Jo 4.35-36)

Além de fornecer as bênçãos palpáveis ​​do pão de cada dia, pelo qual somos instruídos a orar, o trabalho agrícola também pode servir como uma maneira de entender o avanço do reino de Deus.

Mais do que isso, nesta passagem Jesus dignifica diretamente o trabalho. Primeiro, temos a declaração “a minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou e concluir a sua obra [gr. ergon]” (Jo 4.34). Vale a pena notar que a palavra grega ergon aparece pela primeira vez na Bíblia [1] em Gênesis 2.2: “No sétimo dia Deus já havia concluído a obra [literalmente “suas obras”, gr. erga] que realizara, e nesse dia descansou”. Embora não possamos ter certeza de que Jesus esteja se referindo a esse versículo de Gênesis, à luz do restante do Evangelho faz sentido considerar que a expressão presente em João 4.34 (“a sua obra”) significa a restauração abrangente ou a conclusão da obra que Deus havia feito no princípio.

Também há algo mais sutil em ação aqui. Em João 4.38, Jesus faz uma declaração um tanto enigmática: “Eu os enviei para colherem o que vocês não cultivaram. Outros realizaram o trabalho árduo, e vocês vieram a usufruir do trabalho deles”. Ele está se referindo ao fato de que os discípulos têm um campo de samaritanos maduros para o reino, bastando que abram os olhos para a oportunidade. Mas quem são os “outros [que] realizaram o trabalho”? Parte da resposta parece ser, surpreendentemente, a mulher junto ao poço, que é lembrada mais por sua lentidão espiritual do que por seu subsequente testemunho eficaz de Jesus. “Muitos samaritanos daquela cidade creram nele por causa deste testemunho dado pela mulher: ‘Ele me disse tudo o que tenho feito’” (Jo 4.39). Os discípulos simplesmente colherão onde a mulher semeou. No entanto, há ainda outro trabalhador aqui: o próprio Cristo. No início da história, lemos que Jesus estava “cansado da viagem”. Uma tradução mais literal seria que Jesus estava cansado de sua jornada laboriosa. A palavra traduzida como “cansado” é kekopiakōs, literalmente “trabalhou”. Trata-se da mesma raiz que aparece em João 4.38 (e em nenhum outro lugar no Evangelho de João): “... vocês não cultivaram [kekopiakate]... Outros realizaram o trabalho [kekopiakasin]... vocês vieram a usufruir do trabalho deles [kopon]...”. Na verdade, Jesus estava cansado de sua jornada em Samaria. O campo de Samaria está maduro para a colheita em parte porque Cristo trabalhou ali. Qualquer trabalho que façamos como seguidores de Cristo é cheio da glória de Deus, pois Cristo já trabalhou nos mesmos campos para prepará-los para nós.

Como vimos, a obra redentora de Cristo após a queda é semelhante a sua obra criativa/produtiva desde o início dos tempos. Semelhantemente, o trabalho redentor de seus seguidores está na mesma esfera que seu trabalho criativo/produtivo, tipificado por donas de casa pegando água e agricultores realizando a colheita.

O evangelismo é uma das muitas formas de trabalho humano, nem superior nem inferior ao cuidado com o lar ou à agricultura. É uma forma distinta de trabalho, e nada mais pode substituí-lo. O mesmo pode ser dito sobre tirar água e colher grãos. O evangelismo não despreza o trabalho criativo/produtivo com o propósito de se tornar a única atividade humana verdadeiramente digna, principalmente porque qualquer trabalho bem-feito pelos cristãos é um testemunho do poder renovador do Criador.

Jesus cura no sábado (Jo 5)

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A cura do homem junto ao tanque de Betesda traz à tona uma controvérsia comumente apresentada em Mateus, Marcos e Lucas: a propensão de Jesus a curar no sábado. Apesar de a controvérsia ser familiar, a autodefesa de Jesus, no entanto, assume um ângulo um pouco diferente em João. Seu longo argumento é claramente resumido em João 5.17: “Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando”. O princípio é claro. Deus mantém a criação em funcionamento mesmo no sábado e, portanto, Jesus, que compartilha da identidade divina, tem permissão para fazer o mesmo. É quase certo que Jesus não fosse o único a argumentar que Deus estava trabalhando no sábado, mas sua dedução sobre justificar o próprio trabalho é singular.

Como resultado, não podemos usar essa história para determinar se é apropriado ou não realizarmos nosso trabalho no sábado. Ainda que possamos realizar a obra de Deus, não compartilhamos a identidade divina como Cristo. O trabalho humano que envolve questões de vida ou morte — a autodefesa militar (1Macabeus 2.41) ou a retirada de um animal de uma vala — já era legitimamente aceito no sábado. A cura em si não é questionada neste episódio, embora o homem não viesse a sofrer nenhum dano se Jesus tivesse esperado até o domingo para curá-lo. Em vez disso, Jesus é criticado por permitir que o homem carregue uma maca — uma forma de trabalho, de acordo com a lei judaica — no sábado. Porventura isso implica que Jesus permite que saiamos de carro, para as férias, no sábado? Que voemos no domingo para uma reunião de negócios que começa na manhã de segunda-feira? Que operemos uma planta de lingotamento contínuo 24/7/365? Não existem aqui indícios de que Jesus esteja simplesmente ampliando a lista de atividades permitidas no sábado. Em vez disso, apliquemos o tema percebido por todo o Evangelho de João: um trabalho que mantém e redime a criação (material ou espiritual) e contribui para um relacionamento mais próximo com Deus e as pessoas é apropriado para o sábado. A(s) pessoa(s) envolvida(s) deve(m) discernir se algum trabalho específico atende a essa descrição. Para saber mais sobre esse tópico, consulte “Mateus 12.1-8” em Mateus e o trabalho, “Marcos 1.21-45” e “Marcos 2.23—3.6” em Marcos e o trabalho, “Lucas 6.1-11; 13.10-17” em Lucas e o trabalho e o artigo Descanse e trabalhe em www.teologiadotrabalho.org.

Uma lição mais clara e mais importante para nós a partir dessa narrativa é que Deus ainda está trabalhando para manter a presente criação, e Jesus promove essa obra em seu ministério de cura. Os sinais de Jesus são, em certo nível, a entrada do novo mundo. Eles demonstram “os poderes da era que há de vir” (Hb 6.5). Ao mesmo tempo, são também a manutenção do mundo atual. Parece perfeitamente apropriado ver isso como um paradigma para nossa miríade de empregos. Ao agirmos com fé para restaurar o que sofreu danos (como médicos, enfermeiros, mecânicos de automóveis e assim por diante), chamamos as pessoas a se lembrarem da bondade do Deus criador. À medida que agimos com fé para desenvolver a potencialidade da criação (como programadores, professores, artistas e assim por diante), chamamos as pessoas a refletir sobre a bondade do domínio sobre o mundo, dado por Deus à humanidade. A obra da redenção e a obra da criação/produção, feitas com fé, proclamam nossa confiança no Deus que é, que era e que há de vir. Deus criou todas as coisas por meio de Cristo, as está restaurando a sua intenção original por meio de Cristo e as levará ao objetivo designado por meio de Cristo.

Jesus, o Pão da Vida (Jo 6)

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O relato de João sobre a alimentação dos cinco mil (Jo 6.1-15) ecoa muitos dos temas que vimos na festa de casamento em Caná e na cura do paralítico. Mais uma vez, Jesus trabalha para sustentar a vida no mundo atual, muito embora o sinal aponte para a vida suprema que apenas ele pode oferecer. O texto de João 6.27-29, no entanto, apresenta um desafio particular para a teologia do trabalho:

“Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem dará a vocês. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação”. Então perguntaram-lhe: “O que precisamos fazer para realizar as obras que Deus requer?”. Jesus respondeu: “A obra de Deus é esta: crer naquele que ele enviou”.

Uma leitura rápida revela pelo menos duas questões principais: primeiro, Jesus parece emitir uma ordem direta para não trabalhar; e, segundo, ele parece reduzir até mesmo a obra de Deus à crença.

O primeiro ponto é uma questão de contexto. Toda Escritura, assim como toda comunicação, deve ser vista em seu contexto. A questão em João 6 é que as pessoas querem manter Jesus por perto para que ele lhes sirva como um Rei Padeiro Mágico, que fará que os pães continuem a ser entregues. Assim, quando diz “vocês estão me procurando, não porque viram os sinais milagrosos, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos” (Jo 6.26), Jesus está repreendendo a miopia espiritual delas. As pessoas comeram o pão, mas não conseguiram ver o que esse sinal significava.

Uma maneira de entender o que Jesus diz a seguir é reconhecer suas palavras como a mesma lição que aprendemos no capítulo 4. A vida eterna não vem de um suprimento inesgotável de alimentos, mas da Palavra viva que procede da boca de Deus. Jesus cessa o trabalho preliminar (servir pães) quando este já não resulta no produto desejado (relacionamento com Deus). Qualquer trabalhador competente faria o mesmo. Se a adição de mais sal deixar de melhorar o sabor da sopa, um cozinheiro experiente deixará de adicionar sal. Jesus não quer dizer “pare de trabalhar”, mas pare de trabalhar por mais coisas (comida) quando você não precisar de mais coisas. Isso pode parecer óbvio demais para que seja dito pela Palavra de Deus, mas quem entre nós não precisa ouvir essa verdade novamente hoje mesmo? A aparente proibição de trabalhar para obter ganho material é uma expressão hiperbólica cujo propósito é enfatizar a necessidade da multidão de restaurar o relacionamento com Deus.

Além disso, podemos fazer a pergunta: “Qual é a diferença entre comida que se estraga e comida que permanece para a vida eterna?”. De acordo com Jesus, a comida que se estraga é o alimento que apenas nos sacia. Ela satisfaz a necessidade imediata, e nada mais. Levando-se em conta o local de trabalho, isso pode significar trabalhar apenas pelo salário, sem preocupação com o valor do trabalho em si. Em contraste, trabalhar por comida que permanece para a vida eterna é uma analogia ao trabalho que cumpre os propósitos de Deus.

Quanto à questão dos propósitos de Deus para o trabalho serem simplesmente reduzidos à crença, deve ser vista no contexto do restante do Evangelho e da teologia das cartas de João. João se deleita em levar as coisas ao extremo. Por um lado, sua visão elevada da soberania e do poder criativo de Deus o leva a exaltar a humilde dependência de Deus, como veremos neste capítulo. A obra de Deus em nosso favor é infinita — precisamos apenas acreditar nele e aceitar sua obra em Cristo. Por outro lado, Jesus é igualmente capaz de enfatizar nossa obediência ativa. “Aquele que afirma que permanece nele deve andar como ele andou” (1Jo 2.6). E novamente: “Porque nisto consiste o amor a Deus: em obedecer aos seus mandamentos” (1Jo 5.3). Podemos unir esses dois extremos à expressão paulina “a obediência que vem pela fé” (Rm 1.5), ou a Tiago 2.18: “Eu mostrarei a minha fé pelas obras”. Em outras palavras, de acordo com a Bíblia, a crença não é mero assentimento intelectual, mas inclui ação fiel. Acreditar naquele que Deus enviou não é apenas concordar que Jesus é o Filho de Deus, mas também segui-lo fazendo a boa obra que Deus deseja para nós.

Jesus cura um cego de nascença (Jo 9)

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Jesus e seus discípulos encontram um homem que nasceu cego (todo o capítulo 9). Os discípulos o veem como uma lição ou um estudo de caso sobre as fontes do pecado. Jesus o olha com compaixão e trabalha para amenizar sua condição. O método incomum de cura empregado por Jesus e as ações subsequentes do homem que já não é cego mostram mais uma vez que o mundo de carne e osso — e lama — é o ambiente do reino de Deus. O método de Jesus — misturar saliva com terra e aplicar nos olhos do homem — não é loucura, mas um eco calculado da criação da humanidade (Gn 2.7). Tanto na tradição bíblica quanto na grega, a lama (pēlos) é usada para descrever do que as pessoas são feitas. Observe, por exemplo, Jó 10.9: “Lembra-te de que me moldaste como o barro; e agora me farás voltar ao pó?”. [1]

O sacrifício de Jesus (Jo 10—12)

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Ao se aproximar de Jerusalém pela última vez, Jesus realiza seu maior sinal: a ressurreição de Lázaro, em Betânia (Jo 11.1-44). Os oponentes de Jesus, que já haviam tentado apedrejá-lo (Jo 8.59; 10.31), decidem que Jesus e Lázaro deveriam desaparecer. Diante da aproximação de sua morte, Jesus fala sobre a cruz de maneira paradoxal. Ele usa o que parece ser uma linguagem de exaltação, dizendo que será “levantado” e atrairá todos a si. No entanto, João deixa claro na nota que se segue que isso se refere ao “tipo de morte que haveria de sofrer”, ou seja, a crucificação. Seria isso um mero jogo de palavras? Não. Como Richard Bauckham aponta, é na obra do supremo sacrifício pessoal na cruz que Jesus revela plenamente que ele é, de fato, o Filho de Deus exaltado. “Sendo Deus quem de fato é na graciosa entrega que faz de si mesmo, podemos dizer que a identidade de Deus não é simplesmente revelada, mas retratada no evento da salvação concedida ao mundo, realizada por meio do serviço e da humilhação pessoal de seu Filho”. [1]

O sacrifício pessoal iminente de Jesus revelaria muitas facetas negativas. Isso lhe custaria a vida, é claro, bem como provocaria dor e sede excruciantes (Jo 19.28). Causou-lhe o desgosto de ver seus discípulos (exceto João) abandonarem-no e sua mãe ser afastada dele (Jo 19.26-27). Gerou a vergonha de ser incompreendido e condenado injustamente (Jo 18.19-24). Esse preço era inevitável para que pudesse realizar a obra a que Deus o destinara. O mundo não poderia existir sem a obra de Cristo no princípio. O mundo não poderia ser restaurado à intenção original de Deus sem a obra de Cristo na cruz.

O trabalho também pode nos exigir custos injustos, mas que não podem ser evitados se quisermos concluir nossa obra. Jesus trabalhou para trazer vida verdadeira aos outros. À medida que usamos o trabalho como fórum para a autoglorificação, nos afastamos do padrão que o Senhor estabeleceu para nós. Jesus está reconhecendo que o trabalho realizado em favor de outros tem um custo inevitável? Talvez sim. Os médicos ganham um bom salário curando pessoas (pelo menos no Ocidente moderno), mas sofrem um fardo inevitável de dor ao testemunhar o sofrimento de seus pacientes. Os encanadores recebem um bom valor por sua hora de trabalho, mas também ficam cobertos de excrementos de vez em quando. As autoridades eleitas trabalham por justiça e prosperidade para seus cidadãos, mas, como Jesus, suportam a tristeza de saber que “os pobres vocês sempre terão consigo” (Jo 12.8). Em cada uma dessas profissões pode haver maneiras de evitar o sofrimento ao lado dos outros: minimizar a interação com pacientes não sedados, trabalhar apenas com o encanamento de casas novas e sem uso, ou endurecer o coração para com as pessoas mais vulneráveis ​​da sociedade. Isso seria seguir o padrão de Jesus? Embora muitas vezes falemos do trabalho como a forma de ganhar a vida, qualquer trabalhador compassivo também experimenta o trabalho como algo que parte seu coração. Dessa forma, trabalhamos como Jesus.

Liderança servidora (Jo 13.1-20)

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Até este ponto do Evangelho de João, vimos Jesus realizar trabalhos que ninguém jamais havia feito: transformar água em vinho, dar visão aos cegos, ressuscitar mortos. Agora, ele faz o que praticamente qualquer um pode fazer, mas que poucos desejam. Ele lava os pés das pessoas. O rei faz o trabalho de um escravo.

Agindo assim, Jesus traz à tona a questão que tem nos acompanhado ao longo de todo o Evangelho de João: até que ponto o trabalho de Jesus é um exemplo para o nosso próprio trabalho? Seria fácil responder “em nenhum aspecto”. Nenhum de nós é o Senhor. Nenhum de nós morre pelos pecados do mundo. Mas, quando lava os pés dos discípulos, Jesus lhes diz explicitamente — e, por extensão, a nós – que devemos seguir seu exemplo. “Se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei os seus pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu dei o exemplo” (Jo 13.14-15). Jesus é um exemplo que devemos seguir, naquilo em que nos for possível.

Essa atitude de serviço humilde deve acompanhar tudo que fizermos. Se o CEO anda pelo chão de fábrica, deve fazê-lo como se estivesse vindo lavar os pés dos trabalhadores da linha de montagem. Do mesmo modo, o funcionário do posto de combustíveis deve limpar o chão do banheiro como se estivesse lá para lavar os pés dos motoristas. Isso não é tanto uma questão de ação, mas de atitude. É bem provável que tanto o CEO quanto o funcionário do posto possam servir melhor às pessoas por meio de outras atividades ao invés de lavar pés, ainda que seus funcionários ou clientes tivessem disposição para tal. Mas eles devem se ver como pessoas que prestam um serviço humilde. Jesus, o mestre cheio do Espírito que reina sobre todo o cosmos, realiza deliberadamente um ato concreto de serviço humilde para demonstrar qual deve ser a atitude habitual de seu povo. Ao fazer isso, ele tanto dignifica seus seguidores como exige deles atos humildes de serviço. Por quê? Porque fazer isso nos coloca tangivelmente cara a cara com a realidade de que o trabalho piedoso é realizado para o benefício dos outros, e não apenas para nossa própria satisfação.

Nos últimos anos, o conceito de liderança servidora tem recebido ampla atenção nos negócios e nos governos. Ele está presente não apenas no Evangelho de João, mas também em muitas partes da Bíblia. [1]

Palavras de despedida: Discurso no Cenáculo (Jo 14—17)

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Os capítulos 13 a 17, frequentemente chamados de Discurso do Cenáculo, contêm uma teologia tão profunda que só alguns pontos de destaque podem ser analisados e de modo superficial. Para nossos propósitos, estamos interessados ​​em examinar especificamente os capítulos 14 a 17. É importante reconhecer que as palavras de Jesus não constituem um discurso desapaixonado. Ele se sente angustiado por causa dos discípulos a quem ama e a quem deve deixar em breve, e suas palavras são destinadas, acima de tudo, a consolá-los diante do sofrimento.

A importância dos relacionamentos no local de trabalho (Jo 14—17)

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Uma ênfase nos relacionamentos pessoais permeia a teologia desses capítulos. Jesus chama os discípulos não mais de “servos”, mas de “amigos” (Jo 15.15). Embora trabalhem para ele, o fazem com um espírito de amizade e coleguismo. No sentido mais amplo do termo, é um empreendimento familiar. O trabalho e os relacionamentos se entrelaçam, pois Jesus não está trabalhando sozinho. “As palavras que eu digo não são apenas minhas. Ao contrário, o Pai, que vive em mim, está realizando a sua obra. Creiam em mim quando digo que estou no Pai e que o Pai está em mim” (Jo 14.10-11). Os discípulos também não serão deixados órfãos para que se percam no mundo a seu bel-prazer (Jo 14.18). Por meio do Espírito, Jesus estará com eles, e eles farão as mesmas coisas que ele tem feito (Jo 14.12).

Isso é mais profundo do que pode parecer. Não significa apenas que, depois que Jesus morrer, seus discípulos/amigos ainda poderão experimentá-lo em oração. Significa que eles são participantes ativos na criação/restauração do mundo que alimenta o relacionamento de amor entre o Pai e o Filho. Eles fazem a obra do Filho e do Pai e se unem à intimidade do Filho e do Pai (e do Espírito, como veremos em breve). O Pai mostra seu amor pelo Filho, permitindo que ele participe da glória da formação e da recriação do mundo. [1] O Filho mostra seu amor pelo Pai fazendo sempre e somente a sua vontade, criando e recriando o mundo para a glória do Pai, de acordo com a vontade do Pai, no poder do Espírito. Os discípulos/amigos entram nesse amor sempre fluente do Pai, do Filho e do Espírito não apenas pela reflexão mística, mas também ao abraçar a missão do Filho e trabalhar como ele o fez. O chamado para compartilhar o amor é inseparável do chamado para compartilhar o trabalho. A oração “eu neles e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unidade” (Jo 17.23) está casada com “assim como me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo” (Jo 17.18) e resulta em “você me ama?... Cuide das minhas ovelhas” (Jo 21.17).

Um aspecto essencial do trabalho humano é a oportunidade de comunhão que ele oferece por meio de projetos em comum. Para muitas pessoas, o local de trabalho fornece o contexto mais significativo, além da família, para relacionamentos pessoais. Mesmo aqueles que trabalham sozinhos — dentro ou fora de casa — costumam estar envolvidos em uma teia de relacionamentos que inclui fornecedores, clientes e similares. [2] Vimos que Jesus chama seus discípulos não apenas como colaboradores, mas também como uma comunidade de amigos. O aspecto relacional do trabalho não é um subproduto acidental de um empreendimento de trabalho essencialmente utilitário. Em vez disso, trata-se de um componente absolutamente crítico do próprio trabalho, que remonta ao tempo em que Adão e Eva trabalhavam juntos no jardim. “Então o Senhor Deus declarou: ‘Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie’” (Gn 2.18). A criação se torna o meio de conexão interpessoal à medida que os seres humanos trabalham lado a lado e, ao fazê-lo, entram no trabalho de Deus para levar a criação a sua plenitude.

Isso pode ser um enorme encorajamento para pessoas focadas em projetos, as quais às vezes se sentem não espirituais dada sua relutância em gastar muito tempo falando sobre seus sentimentos. Conversar com as pessoas é uma atividade necessária para desenvolver relacionamentos, no entanto não devemos negligenciar a importância do trabalho como meio de nutrir relacionamentos. Trabalhar em conjunto pode, por si só, construir relacionamentos. Não é por acaso que passamos um bom tempo trabalhando com e para as pessoas. Tendo como modelo a obra do próprio Deus dentro da Trindade, somos capazes de encontrar relacionamento no trabalho. Trabalhar visando a um objetivo comum é uma das principais maneiras pelas quais Deus nos une e nos torna verdadeiramente humanos.

Eu sou a videira; vocês são os ramos (Jo 15)

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A metáfora da videira e dos ramos começa com a bênção do relacionamento com Jesus e, por meio dele, com o Pai (Jo 15.1). “Como o Pai me amou, assim eu os amei; permaneçam no meu amor” (Jo 15.9). No entanto, o resultado desse amor não é a bênção passiva, mas o trabalho produtivo, expresso metaforicamente por meio da produção de frutos. “Se alguém permanecer em mim e eu nele, esse dará muito fruto” (Jo 15.5). O Deus que produziu o universo quer que seu povo também seja produtivo. “Meu Pai é glorificado pelo fato de vocês darem muito fruto” (Jo 15.8). Nossa capacidade de realizar um trabalho que cause uma diferença perene no mundo é um grande presente de Deus. “Eu os escolhi para irem e darem fruto, fruto que permaneça, a fim de que o Pai conceda a vocês o que pedirem em meu nome” (Jo 15.16). A promessa de eficácia ecoa a promessa de Jesus feita anteriormente, segundo a qual “aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas” (Jo 14.12).

O fruto produzido pelos seguidores de Jesus às vezes é tido como uma referência aos convertidos ao cristianismo. “Coisas ainda maiores do que estas” significaria, então, “mais convertidos do que eu mesmo consegui”. Para aqueles que são chamados ao evangelismo, isso certamente é verdade. Se, nessa passagem, Jesus estiver falando apenas para os apóstolos — designados como foram para pregar as boas-novas —, talvez o fruto citado se refira apenas aos convertidos. Contudo, se ele estiver falando aos crentes em geral, então o fruto deve se referir a toda a gama de trabalhos aos quais os crentes são chamados. Uma vez que o mundo inteiro foi criado por meio dele, “as obras que tenho realizado” incluem todo tipo imaginável de boa obra. Para nós, fazer “coisas ainda maiores” do que as vistas até então poderia significar projetar softwares melhores, alimentar mais pessoas, tornar alunos mais sábios, melhorar a eficácia das organizações, aumentar a satisfação do cliente, empregar capital de forma mais produtiva e governar nações com mais justiça. O valor de dar frutos não reside no fato de trabalharmos no ramo dos negócios, no governo, na saúde, na educação, na religião ou em qualquer outro campo. O valor está em ter certeza de que nosso trabalho atende às necessidades das pessoas. “Este é o meu mandamento: Amem-se uns aos outros” (Jo 15.17). O serviço é a forma ativa de amor.

O meu Reino não é deste mundo (Jo 18.36)

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Em vez de correr o risco de reduzir a narrativa da Paixão de João a um texto base para questões de trabalho, abordaremos um único versículo que é tão importante pelo que não diz quanto pelo que diz. “Disse Jesus: ‘O meu Reino não é deste mundo. Se fosse, os meus servos lutariam para impedir que os judeus me prendessem. Mas agora o meu Reino não é daqui’”(Jo 18.36). Pelo aspecto positivo, encontramos aqui um maravilhoso resumo da Paixão. Jesus está proclamando que ele é de fato um rei, mas não do tipo que pode ser reconhecido por um político ardiloso como Pilatos. Se for preciso que Jesus se sacrifique pela vida do mundo, ele o fará. E ele deve, de fato, se sacrificar, porque seu reinado, que é absoluto e absolutamente doador de si mesmo, inevitavelmente atrairá sobre si uma sentença de morte da parte dos poderes constituídos.

Mas é igualmente importante reconhecer o que Jesus não está proclamando. Ele não está dizendo que seu reino é uma experiência religiosa interna e efêmera, que não afeta questões econômicas, políticas ou sociais do mundo real. Como o texto bíblico indica, seu reino é, em vez disso, de outro mundo (Jo 18.36). Seu governo — como ele mesmo — se origina do céu. Mas ele veio à terra, e seu reino é um reino real nesta terra, mais real do que Roma jamais poderia ser. Seu reino que veio à terra tem um conjunto diferente de princípios operacionais. Está poderosamente em ação dentro do mundo, mas não recebe ordens de comando dos atuais governantes do mundo. Jesus não explica naquele ponto o que significa seu reino ser de outro mundo, ainda que esteja no mundo que ele mesmo construiu. Mas ele revela isso em termos vívidos mais tarde, na visão relatada em Apocalipse 21 e 22, quando a Nova Jerusalém desce do céu. O reino de Jesus desce para ocupar seu lugar de direito como a capital deste mundo, onde todos os seus discípulos encontram seu lar eterno. Sempre que fala da vida eterna ou do reino de Deus, Jesus está se referindo à terra onde habitamos agora, transformada e aperfeiçoada pela Palavra e pelo poder de Deus.

O discípulo a quem Jesus amava (Jo 21.20)

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O capítulo final de João oferece uma oportunidade para refletir não tanto sobre o trabalho em si, mas sobre a identidade do trabalhador. Os discípulos estavam pescando quando encontraram Jesus. Isso às vezes é visto como algo ruim, como se eles pescassem quando deveriam estar pregando o reino de Deus. Mas não há nada no texto que sugira desaprovação. Em vez disso, Jesus abençoa o trabalho deles com uma pesca milagrosa. Depois disso, eles retornam ao trabalho que lhes foi designado como pregadores, mas mesmo essa atitude reflete apenas seu chamado específico, sem representar um desprezo pela pesca em si.

Seja como for, o ponto alto do capítulo é a restauração de Pedro e o contraste do futuro de Pedro com o do “discípulo a quem Jesus amava” (Jo 21.20). A tríplice afirmação de Pedro quanto a seu amor pelo Mestre restaura seu relacionamento com Jesus após sua tríplice negação anterior. Olhando para o futuro, Pedro suportará o martírio, ao mesmo tempo em que é enigmaticamente sugerido que o Discípulo Amado desfrutará de uma vida mais longa. Concentraremos nossa atenção nesta última figura, uma vez que sua autodesignação fala diretamente à questão da identidade humana.

É curioso que a identidade do Discípulo Amado nunca seja revelada no Quarto Evangelho. A maioria dos estudiosos deduz que ele é o apóstolo João (embora haja alguns dissidentes [1]), mas a verdadeira questão é por que ele esconde seu nome com tanto sigilo. Uma possível resposta seria que ele deseja se distinguir dos outros discípulos. Ele é amado de modo especial por Jesus. Mas seria um motivo estranho em um Evangelho permeado pelo modelo de humildade e abnegação de Cristo.

Uma explicação muito melhor é que ele se autodenomina o “discípulo a quem Jesus amava” como uma forma de representar o que é verdade em relação a todos os discípulos. Todos devemos encontrar nossa identidade, acima de tudo, no fato de que Jesus nos ama. Quando você pergunta a João quem ele é, ele não responde revelando seu nome, suas conexões familiares ou sua ocupação. Ele responde: “Eu sou alguém que Jesus ama”. Nas palavras de João, o Discípulo Amado se encontra “reclinado no seio de Jesus” (Jo 13.23, ARC) e, da mesma forma, o Messias encontra sua identidade “no seio do Pai” (Jo 1.18, ARC). [2] Da mesma forma, devemos descobrir quem somos não naquilo que fizemos, ou em quem conhecemos, ou no que temos, mas no amor de Jesus por nós.

No entanto, se o amor de Jesus por nós — ou, poderíamos dizer, o amor do Pai por nós por meio de Jesus — se tornar a fonte de nossa identidade e a motivação de nossa vida, desenvolveremos esse amor em nossa atividade na criação de Deus. Um aspecto crucial dessa atividade é o nosso trabalho diário. Por meio da graça de Deus, o trabalho pode se tornar uma arena na qual vivemos nosso relacionamento com Deus e com os outros por meio do serviço amoroso. Nosso trabalho diário, por mais humilde ou exaltado que seja na opinião dos outros, torna-se o lugar onde a glória de Deus é exibida. Pela graça de Deus, ao trabalharmos, tornamo-nos parábolas vivas do amor e da glória de Deus.

Introdução a Atos

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O livro de Atos, também conhecido como Atos dos Apóstolos, retrata a igreja primitiva trabalhando arduamente para crescer e servir aos outros diante de oposição, escassez de pessoas e de dinheiro, hierarquia governamental (a hierarquia da igreja surgiria mais tarde), conflitos internos e até mesmo forças da natureza. Seu trabalho apresenta semelhanças com o que os cristãos enfrentam hoje em locais de trabalho não relacionados à igreja. Um pequeno grupo coloca todo seu coração no trabalho que leva o amor de Cristo às pessoas em todas as esferas da vida, e seus membros descobrem o incrível poder do Espírito Santo trabalhando neles enquanto agem. Se não estamos experimentando isso no trabalho diário, talvez Deus queira guiar, conceder dons e capacitar nosso trabalho como fez com o deles.

O trabalho ocupa posição de destaque no livro, como seria de esperar em uma obra que fala sobre os “atos” dos líderes da igreja primitiva. A narrativa está repleta de pessoas caminhando, falando, curando, ofertando com generosidade, tomando decisões, governando, servindo comida, administrando dinheiro, lutando, fabricando roupas, tendas e outros bens, batizando (ou lavando), debatendo, discutindo, fazendo julgamentos, lendo e escrevendo, cantando, defendendo-se no tribunal, recolhendo lenha, fazendo fogueiras, escapando de multidões hostis, abraçando e beijando, participando de conselhos, pedindo desculpas, navegando, abandonando navios, nadando, resgatando pessoas e, em meio a tudo isso, louvando a Deus. Os homens e as mulheres do livro de Atos estão prontos para fazer o que for preciso para cumprir sua missão. Nenhum trabalho é servil demais para os mais importantes entre eles, e nenhum trabalho é excessivamente assustador para os mais humildes.

No entanto, a profundidade do livro de Atos decorre não tanto do que as pessoas da igreja primitiva fazem, mas do porquê e de como elas se envolvem nessa incrível explosão de atividade. O porquê é o serviço. Servir a Deus, servir aos colegas, servir à sociedade, servir a estranhos — o serviço é a motivação por trás do trabalho que os cristãos realizam ao longo do livro. Isso não deve ser surpresa, porque Atos é, de fato, o segundo volume da história iniciada no Evangelho de Lucas, e o serviço também é a motivação que impulsiona Jesus e seus seguidores, em Lucas. (Veja Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org para obter informações básicas essenciais sobre Lucas e seu público.)

Se o porquê é o serviço, então o como é desafiar constantemente as estruturas da sociedade romana, que não se baseava no serviço, e sim na exploração. Lucas contrasta continuamente os caminhos do reino de Deus com os do Império Romano. Sua atenção se volta para as muitas interações de Jesus e de seus seguidores com os oficiais do império. Possui grande consciência dos sistemas de poder — e dos fatores socioeconômicos que os sustentam — em operação no Império Romano. Partindo do imperador e descendo para os nobres, os oficiais, os proprietários de terras, os homens livres, os servos e os escravos, cada camada da sociedade existia com base no exercício de poder sobre a camada logo abaixo. O caminho de Deus, como visto no Evangelho de Lucas e no livro de Atos, é exatamente o oposto. A sociedade de Deus existe para servir, e em especial para servir aqueles em posições mais fracas, os mais pobres e os mais vulneráveis.

Em última análise, portanto, Atos não é um modelo dos tipos de atividades em que devemos nos envolver como seguidores de Cristo, mas um modelo do compromisso com o serviço que deve formar a base de nossas ações. Nossas atividades são diferentes das dos apóstolos, mas nosso compromisso com o serviço é o mesmo.

Comunidade missional (Atos 1.6)

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No livro de Atos, a missão de Jesus, a de restaurar o mundo como Deus pretendia que fosse, é transformada na missão da comunidade dos seguidores de Jesus. Atos apresenta a vida da comunidade dos seguidores de Jesus à medida que o Espírito os transforma em um grupo de pessoas que trabalha e usa o poder e a riqueza relacionados ao trabalho de maneira diferente da do mundo ao seu redor. O trabalho tem início com a criação de uma comunidade singular chamada igreja. Lucas começa com os membros da comunidade “reunidos” e prossegue com a missão de “restaurar o reino a Israel” (At 1.6). Para realizar esse trabalho, a comunidade deve primeiro se voltar para sua vocação para o reino de Deus e, depois, para sua identidade como testemunha do reino de Deus na vida cotidiana.

Uma vocação orientadora para o reino de Deus (Atos 1.8)

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O livro de Atos começa com uma interação pós-ressurreição entre Jesus e seus discípulos. Jesus ensina seus discípulos sobre o “Reino de Deus” (At 1.3). Eles respondem com uma pergunta sobre o estabelecimento de um reino sociopolítico: “Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a Israel?” (At 1.6). [1] A resposta de Jesus tem uma relação profunda com nossa vida como trabalhadores.

“Não compete a vocês saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade. Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra”. (Atos 1.7-8)

Primeiro, Jesus põe fim à curiosidade dos discípulos sobre a linha do tempo do plano de Deus. “Não compete a vocês saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade” (At 1.7). Devemos viver à espera da plenitude do reino de Deus, mas não de uma maneira inquisidora sobre o momento preciso do retorno de Deus em Cristo. Segundo, Jesus não nega que Deus estabelecerá um reino sociopolítico, ou seja, que ele vai “restaurar o reino a Israel”, como a pergunta dos discípulos coloca.

Os discípulos de Jesus eram todos bem versados ​​nas Escrituras de Israel. Eles sabiam que o reino descrito pelos profetas não era uma realidade de outro mundo, mas sim um reino real de paz e justiça em um mundo renovado pelo poder de Deus. Jesus não nega a realidade desse reino vindouro, mas expande os limites da expectativa dos discípulos ao incluir toda a criação no reino esperado. Não é simplesmente um novo reino para o território de Israel, mas “em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1.8).

A realização desse reino ainda não está aqui (“neste tempo”), mas está aqui, neste mundo.

Vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus [...]. Ouvi uma forte voz que vinha do trono e dizia: “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens...”. (Apocalipse 21.2-3)

O reino dos céus vem à terra, e Deus habita aqui, no mundo redimido. Por que ainda não está aqui? O ensino de Jesus sugere que parte da resposta é porque seus discípulos têm trabalho a fazer. O trabalho humano foi necessário para completar a criação de Deus, mesmo no jardim do Éden (Gn 2.5), mas nosso trabalho foi prejudicado pela Queda. Em Atos 1 e 2, Deus envia seu Espírito para capacitar o trabalho humano. “Receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas” (At 1.8a). Jesus está dando a seus seguidores uma vocação — testemunhar, no sentido de tornar manifesto o poder do Espírito em todas as esferas da atividade humana — que é essencial para a vinda do reino. O dom divino do Espírito Santo preenche a lacuna entre o papel essencial que Deus atribuiu ao trabalho humano e nossa capacidade de cumprir esse papel. Pela primeira vez desde a Queda, nosso trabalho tem o poder de contribuir para a realização do reino de Deus na volta de Cristo. A grande maioria dos estudiosos entende Atos 1.8 como a declaração programática deste segundo volume dos dois escritos por Lucas.

De fato, todo o livro de Atos pode ser considerado uma expressão (às vezes vacilante) da vocação cristã de dar testemunho do Jesus ressuscitado. Mas dar testemunho significa muito mais que evangelizar. Não devemos cair no erro de pensar que Jesus está falando apenas sobre o trabalho do indivíduo de compartilhar com as próprias palavras o evangelho com um incrédulo. Em vez disso, dar testemunho do reino vindouro significa principalmente viver agora de acordo com os princípios e as práticas do reino de Deus. Veremos que a forma mais eficaz de testemunho cristão é, muitas vezes — talvez principalmente —, compartilhar da vida da comunidade à medida que ela realiza seu trabalho.

A vocação cristã compartilhada de testemunho só é possível por meio do poder do Espírito Santo. O Espírito transforma indivíduos e comunidades de maneiras que resultam no compartilhamento dos frutos do trabalho humano — especialmente poder, recursos e influência — com a comunidade e a cultura ao redor. A comunidade testemunha quando os fortes ajudam os fracos. A comunidade testemunha quando seus membros usam seus recursos para beneficiar a cultura em geral. A comunidade testemunha quando aqueles ao redor veem que trabalhar nos caminhos da justiça, da bondade e da beleza leva a uma vida mais plena.

Os locais mencionados por Jesus revelam que o testemunho dos discípulos os coloca em perigo social. Ao grupo de discípulos judeus de Jesus é ordenado que falem em nome de um homem que havia pouco tempo fora crucificado como inimigo do Império Romano e blasfemador do Deus de Israel. Eles são chamados a assumir essa vocação na cidade em que seu mestre foi morto, entre os samaritanos — inimigos históricos e étnicos dos judeus — e nos rincões do Império Romano. [2]

Em resumo, Atos começa com uma vocação orientadora que chama os seguidores de Jesus para a tarefa fundamental do testemunho. Testemunhar significa, acima de tudo, viver de acordo com os caminhos do reino vindouro de Deus. Como veremos em breve, o elemento mais importante desta vida é que trabalhamos principalmente para o bem dos outros. Essa vocação se torna possível pelo poder do Espírito Santo e deve ser exercida sem preocupação excessiva com as barreiras sociais. Essa vocação orientadora não menospreza o valor do trabalho humano ou da vida profissional dos discípulos de Jesus em favor apenas da proclamação verbal do evangelho. Bem ao contrário, Atos argumentará vigorosamente que todo trabalho humano pode ser uma expressão fundamental do reino de Deus.

Uma identidade cristã como testemunha do reino de Deus na vida cotidiana (Atos 2.1-41)

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Não há dúvida de que o evento do Pentecoste é central para a vida da comunidade cristã primitiva. É o evento que inicia a vocação de testemunho descrita em Atos 1.8. Esta seção de Atos traz dois tipos de reivindicação a todos os trabalhadores. Primeiro, o relato do Pentecoste identifica seus ouvintes cristãos dentro de uma nova comunidade que traz à vida a recriação do mundo — isto é, o reino de Deus — prometido por Deus por meio dos profetas. Pedro explica o fenômeno ocorrido no Pentecoste referindo-se ao profeta Joel.

Estes homens não estão bêbados, como vocês supõem. Ainda são nove horas da manhã! Ao contrário, isto é o que foi predito pelo profeta Joel: “Nos últimos dias, diz Deus, derramarei do meu Espírito sobre todos os povos. Os seus filhos e as suas filhas profetizarão, os jovens terão visões, os velhos terão sonhos. Sobre os meus servos e as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e eles profetizarão. Mostrarei maravilhas em cima, no céu, e sinais em baixo, na terra: sangue, fogo e nuvens de fumaça. O sol se tornará em trevas e a lua em sangue, antes que venha o grande e glorioso dia do Senhor. E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo!” (Atos 2.15-21)

Pedro se refere a uma seção de Joel que descreve a restauração do povo de Deus exilado para afirmar que Deus iniciou a libertação definitiva de seu povo. [3] O retorno do povo de Deus à terra cumpre tanto as promessas da aliança de Deus quanto inicia a recriação do mundo. Joel descreve essa recriação com imagens de tirar o fôlego. À medida que o povo de Deus volta à terra, o deserto ganha vida como uma espécie de novo Éden. Terra, animais e pessoas se regozijam com a vitória de Deus e a libertação de seu povo (ver Jl 2). Entre as ricas imagens dessa seção de Joel, lemos que a restauração do povo de Deus levará a um impacto econômico imediato. “O Senhor respondeu ao seu povo:

‘Estou enviando para vocês trigo, vinho novo e azeite, o bastante para satisfazê-los plenamente; nunca mais farei de vocês objeto de zombaria para as nações’” (Jl 2.19). Para Joel, o clímax desse ato de libertação é o derramamento do Espírito sobre o povo de Deus. Pedro entende que a vinda do Espírito significa que os primeiros seguidores de Jesus são — de alguma maneira real, ainda que profundamente misteriosa — participantes do novo mundo de Deus.

Um segundo ponto importante e intimamente relacionado ao primeiro é que Pedro descreve a salvação como o resgate de uma “geração corrompida” (At 2.40). Duas coisas precisam de esclarecimento. Primeiro, Lucas não descreve a salvação como uma fuga deste mundo para uma existência celestial. Em vez disso, a salvação começa bem no meio deste mundo atual. Segundo, Lucas espera que a salvação tenha um componente de tempo presente. Começa agora, como um modo de vida diferente, contrário aos padrões dessa “geração corrompida”. Uma vez que o trabalho e suas consequências econômicas e sociais são tão centrais para a identidade humana, não é de surpreender que um dos primeiros padrões da vida humana a ser reconstituído seja como os cristãos administram seu poder e suas posses. Assim, o fluxo desta seção inicial de Atos se desenvolve do seguinte modo: (1) Jesus sugere que toda a vida humana deve dar testemunho de Cristo; (2) a vinda do Espírito marca o início do “dia do Senhor” há muito prometido e introduz as pessoas no novo mundo de Deus; e (3) as expectativas do “dia do Senhor” incluem profundas transformações econômicas. O próximo passo de Lucas é apontar para um novo povo, capacitado pelo Espírito e que vive de acordo com a economia do reino.

Uma comunidade orientadora que pratica os caminhos do reino de Deus: Atos 2.42—4.32

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Depois de Pedro anunciar que o Espírito criou um novo tipo de comunidade, Atos relata o rápido crescimento delas em vários lugares. Os resumos das características dessa comunidade em Atos 2.42-47 e 4.32-38 são descrições bastante específicas. De fato, os próprios textos são notáveis ​​ao descrever o escopo do compromisso e da vida compartilhada dos primeiros crentes. [1] Como os resumos têm muitas semelhanças, vamos discuti-los em conjunto.

Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações. Todos estavam cheios de temor, e muitas maravilhas e sinais eram feitos pelos apóstolos. Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em casa e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos. (Atos 2.42-47)
Da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham. Com grande poder os apóstolos continuavam a testemunhar da ressurreição do Senhor Jesus, e grandiosa graça estava sobre todos eles. Não havia pessoas necessitadas entre eles, pois os que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro da venda e o colocavam aos pés dos apóstolos, que o distribuíam segundo a necessidade de cada um. José, um levita de Chipre a quem os apóstolos deram o nome de Barnabé, que significa “encorajador”, vendeu um campo que possuía, trouxe o dinheiro e o colocou aos pés dos apóstolos. (Atos 4.32-37)

Embora não descrevam o trabalho diretamente, esses textos preocupam-se profundamente com a distribuição de poder e de posses, duas realidades que muitas vezes resultam do trabalho humano. A primeira coisa a notar, comparativamente com a sociedade ao redor, é que as comunidades cristãs cultivam um conjunto muito diferente de práticas em relação ao uso do poder e das posses. Está claro que os primeiros cristãos compreendiam que o poder e as posses do indivíduo não deveriam ser guardados para conforto próprio, mas serem gastos ou sabiamente investidos para o bem da comunidade cristã. Dito de forma sucinta, os bens são para o bem de outros. Mais do que qualquer coisa, a vida no reino de Deus significa trabalhar para o bem dos outros.

Duas afirmações precisam ser feitas aqui. Primeiro, esses textos nos pedem que compreendamos nossa identidade principalmente como membros da comunidade cristã. O bem da comunidade é o bem de cada membro, individualmente. Em segundo lugar, trata-se de um afastamento radical da economia clientelista que marcou o Império Romano. Em um sistema de clientelismo, os benefícios dados pelos ricos aos pobres criam uma estrutura de obrigação sistemática. Cada presente de um benfeitor implica uma dívida social assumida pelo beneficiário. Esse sistema criou uma espécie de pseudogenerosidade na qual patrícios generosos muitas vezes doavam por interesse próprio, buscando acumular honras ligadas ao clientelismo. [2] Em essência, a economia romana via a “generosidade” como um caminho para o poder e o status social. Essas noções de obrigação recíproca sistemática estão completamente ausentes nas descrições apresentadas em Atos 2 e 4. Na comunidade cristã, a doação deve ser motivada por uma preocupação genuína com a prosperidade do beneficiário, não com a honra do benfeitor. Dar tem pouco a ver com quem doa e tudo a ver com quem recebe.

É um sistema socioeconômico completamente diferente. Tal como o Evangelho de Lucas, Atos demonstra regularmente que a conversão cristã resulta na reorientação de abordagem das posses e do poder. Além disso, essa insistência de que os bens devem ser usados ​​em benefício do próximo é modelada explicitamente a partir da vida e da missão de Jesus e, de modo especial, por meio de sua morte abnegada. (Veja Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.)

A economia da generosidade radical (Atos 2.45; 4.34-35)

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Estamos diante de um debate contínuo sobre se esses resumos comunitários defendem ou não um determinado sistema econômico, com alguns comentaristas descrevendo a prática da comunidade como “protocomunismo” e outros enxergando uma alienação obrigatória de bens. O texto, no entanto, não sugere uma tentativa de mudar as estruturas além da comunidade cristã. De fato, seria difícil pensar em um grupo pequeno, marginalizado e socialmente impotente com planos de mudar o sistema econômico imperial. Está claro que a comunidade não se afastou completamente dos sistemas econômicos do império. Provavelmente, os pescadores permaneceram membros de cooperativas de pesca e os artesãos continuaram a fazer negócios no mercado. [1] Paulo, afinal, continuou fazendo tendas para apoiar suas viagens missionárias (At 18.3).

Em vez disso, o texto sugere algo muito mais exigente. Na igreja primitiva, pessoas de posses e poder vendiam suas propriedades em favor dos mais necessitados “conforme a sua necessidade” (At 2.45 ; 4.34,35). Isso descreve um tipo de disponibilidade radical em relação à situação das posses individuais. Ou seja, os recursos — materiais, políticos, sociais ou práticos — de qualquer membro da comunidade eram constantemente colocados à disposição da comunidade cristã, ao mesmo tempo em que membros individuais continuavam a supervisionar seus recursos específicos. Em vez de prescrever sistematicamente a distribuição da riqueza de forma a garantir igualdade absoluta, a igreja primitiva aceitou a realidade do desequilíbrio econômico, mas praticou a generosidade radical, ou seja, os bens existiam verdadeiramente para o benefício do todo, não do indivíduo. Essa forma de generosidade é, em muitos aspectos, mais desafiadora do que um sistema rígido de regras. Ela exige responsividade contínua, envolvimento mútuo na vida dos membros da comunidade e a disposição contínua de desapego das posses, valorizando mais os relacionamentos dentro da comunidade do que a (falsa) segurança das posses. [2]

É altamente provável que esse sistema dentro de um sistema tenha sido inspirado pelos ideais econômicos expressos na lei de Israel, culminando com a prática do Jubileu — a redistribuição de terras e riquezas dentro de Israel, uma vez a cada cinquenta anos (Lv 25.1-55). O Jubileu foi planejado por Deus para garantir que todas as pessoas tivessem acesso aos meios de subsistência, um ideal que parece nunca ter sido amplamente praticado pelo povo de Deus. Jesus, no entanto, apresenta seu ministério fazendo uso de um conjunto de textos de Isaías 61 e 58 que reproduzem muitos temas do Jubileu:

“O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor.” (Lc 4.18-19)

É possível perceber uma alusão à ética do Jubileu em Atos 4.34, onde Lucas nos diz que “não havia pessoas necessitadas entre eles”. Isso parece ser um eco direto de Deuteronômio 15.4, onde se vê que a prática do ano sabático (um minijubileu que ocorre a cada sete anos) foi projetada para garantir que não houvesse “pobre algum” no meio do povo.

É apropriado que a comunidade cristã veja isso como um modelo para sua vida econômica. Porém, enquanto no antigo Israel o ano sabático e o Jubileu eram praticados apenas a cada sete e a cada cinquenta anos, respectivamente, a disponibilidade radical marcou o uso dos recursos da comunidade cristã primitiva. Podemos imaginá-la em termos semelhantes aos do Sermão do Monte: “Vocês ouviram o que foi dito antigamente: 'Devolva sua terra aos que nada têm uma vez a cada cinquenta anos', mas eu lhes digo: 'Torne seu poder e seus recursos disponíveis sempre que perceber uma necessidade'”. A generosidade radical, baseada nas necessidades dos outros, torna-se o fundamento da prática econômica na comunidade cristã. Analisaremos isso em profundidade através dos acontecimentos narrados no livro de Atos.

As práticas das primeiras igrejas cristãs desafiam os cristãos contemporâneos a pensarem de maneira imaginativa sobre modelos de generosidade radical para hoje. Como a disponibilidade radical poderia servir de testemunho do reino de Deus e produzir uma forma alternativa plausível de estruturar a vida humana em uma cultura marcada pela busca obstinada de riqueza e segurança pessoais?

O Espírito Santo capacita a generosidade radical com todo tipo de recurso (At 2.42-47; 4.32-38)

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É importante destacar dois pontos derradeiros a serem observados com relação ao uso de recursos na comunidade cristã primitiva. O primeiro é a necessidade do Espírito Santo para a prática da generosidade radical. As descrições da comunidade em Atos 2.42-47 e 4.32-38 surgem imediatamente após as duas primeiras grandes manifestações do Espírito Santo. Lucas não poderia ser mais claro ao estabelecer um vínculo entre a presença e o poder do Espírito, e a capacidade da comunidade de viver com a generosidade cristã. Devemos entender que uma das obras fundamentais do Espírito na vida dos primeiros cristãos foi o cultivo de uma comunidade que assumiu uma postura radicalmente diferente no que se refere à distribuição de recursos. Portanto, embora muitas vezes sejamos pegos pela procura por manifestações mais espetaculares do Espírito (visões, línguas etc.), precisamos considerar o fato de que o simples ato de compartilhar e a hospitalidade consistente podem ser alguns dos mais extraordinários dons do Espírito Santo.

Em segundo lugar, para que não comecemos a pensar que essa palavra é apenas para aqueles que dispõem de recursos financeiros, vemos Pedro e João demonstrar que todos os recursos devem ser usados em benefício dos outros. Em Atos 3.1-10, Pedro e João encontram um aleijado pedindo esmola junto à porta do templo, Embora Pedro e João não tenham dinheiro algum, possuem um testemunho da chegada do reino por meio da vida, morte e ressurreição de Jesus. Por isso, Pedro responde: “Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isto lhe dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, ande” (At 3.6). Vemos aqui um exemplo de compartilhamento de recursos não relacionado com a riqueza monetária. O uso de poder e posição para edificar a comunidade ocorrerá em várias outras ocasiões em Atos.

Talvez a expressão mais comovente ocorra quando Barnabé — que, em Atos 4.32-38, é um exemplo de generosidade radical de recursos financeiros — também coloca seus recursos sociais à disposição de Paulo, ajudando-o a ser recebido na relutante comunidade dos apóstolos em Jerusalém (ver At 9.1-31). Outro exemplo é Lídia, que faz uso de sua alta posição social na indústria têxtil, em Tiatira, como porta de entrada para Paulo naquela cidade (At 16.11-15). O capital social deve ser empregado, como qualquer outro, para o bem do reino, conforme entendido pela comunidade cristã.

Uma comunidade justa é uma testemunha para o mundo (At 2.47; 6.7)

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Quando os recursos são adequadamente empregados na vida da comunidade cristã — como acontece após a escolha dos que ajudariam na distribuição de alimentos em Atos 6 —, a comunidade se torna um ímã. A vida de justiça da comunidade, marcada principalmente pelo uso altruísta do poder e das posses, atrai as pessoas a ela e a seu líder, Jesus. Quando a comunidade usa suas posses e privilégios para dar vida aos necessitados, quando os recursos do indivíduo estão totalmente comprometidos em beneficiar outros na comunidade, as pessoas acorrem para participar. Já vimos que “o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos” (At 2.47). Isso também fica evidente nos resultados do serviço capacitado pelo Espírito, em Atos 6. O trabalho dos sete diáconos, de formação de comunidade e promoção da justiça, resulta em vida para muitos. “Assim, a palavra de Deus se espalhava. Crescia rapidamente o número de discípulos em Jerusalém; também um grande número de sacerdotes obedecia à fé.” (At 6.7)

Um confronto de reinos: comunidade e poder (At 5—7)

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Atos acontece na realidade terrena de uma comunidade genuína, e não encobre a ameaça que os efeitos do pecado representam para as comunidades. As duas primeiras grandes ameaças à comunidade cristã que Lucas apresenta são questões relacionadas a recursos. Como veremos, Ananias e Safira, bem como o setor de língua hebraica/aramaica da comunidade, caem em pecado em relação à administração de recursos e poder. Para Lucas, essa deficiência ameaça a própria vida da comunidade.

Ananias e Safira: um caso de identidade de má índole (At 5.1-11)

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A morte de Ananias e Safira (At 5.1-11) é completamente assustadora e intrigante. Os dois, um casal, vendem uma propriedade e doam publicamente os lucros para a comunidade. No entanto, retêm secretamente uma parte do dinheiro para si mesmos. Pedro detecta a fraude e confronta os dois separadamente. O simples fato de ouvir a acusação de Pedro faz que cada um deles caia morto no local. Para nós, seu destino parece desproporcional a sua infração. Pedro reconhece que eles não tinham obrigação de doar o dinheiro: “Ela não pertencia a você? E, depois de vendida, o dinheiro não estava em seu poder?” (At 5.4). A propriedade privada não foi abolida, e mesmo aqueles que fazem parte da comunidade de amor ao próximo podem legitimamente optar por manter para si os recursos que Deus lhes confiou. Então, por que a mentira sobre o dinheiro traz morte instantânea?

Muitas tentativas foram feitas para descrever o motivo da morte deles e até mesmo de nomear o pecado que cometeram. [1] Em essência, parece que a transgressão de Ananias e Safira é o fato de serem falsos membros da comunidade. Como diz o estudioso Scott Bartchy: “Ao mentir para alcançar uma honra que não conquistaram, Ananias e Safira não apenas se desonraram e se envergonharam como patrícios, mas também se revelaram forasteiros, alheios”. [2] Eles são mais impostores do que avarentos. [3]

Enquanto fingem ter se tornado membros do sistema cristão de amor ao próximo, sua falsidade demonstra que eles ainda agem como membros do sistema de clientelismo romano. Eles tentam se parecer com Barnabé em sua abordagem altruísta de administração de recursos (At 4.36-37). Mas a motivação do casal é, na verdade, ganhar honra para si mesmos de forma medíocre. Ao fazê-lo, eles realmente agem como parte da economia patronal romana. Aparentam generosidade, mas doam em busca de status, e não por amor. Além disso, sua mentira sobre a forma de administrar recursos é interpretada por Pedro como uma mentira ao Espírito Santo e a Deus (At 5.3-4). Como é impressionante o fato de uma mentira à comunidade ser equiparada a uma mentira ao Espírito de Deus! E uma mentira sobre recursos é tão séria quanto uma mentira sobre questões “religiosas”. Já vimos que um dos papéis principais do Espírito Santo é transformar o povo de Deus em uma comunidade que usa os recursos tendo como base uma profunda preocupação pelos outros. Não é de surpreender, então, que o falso ato de generosidade de Ananias e Safira seja descrito como uma falsificação da obra do Espírito. Sua falsa generosidade e sua tentativa de enganar o Espírito Santo são uma ameaça à identidade da comunidade cristã. Esse é um claro lembrete sobre os sérios riscos associados à comunidade cristã e a nossa própria participação nela.

A fraude de Ananias e Safira ocorre no âmbito monetário. E se isso ocorresse no próprio campo do trabalho? E se eles tivessem fingido servir a seus senhores como se estivessem servindo a Deus (Cl 3.22-24), ou tratar seus subordinados com justiça (Cl 3.25) ou se envolver em conflitos honestamente (Mt 18.15-17)? Enganar a comunidade cristã sobre essas coisas teria causado uma ameaça igualmente inaceitável para a comunidade? Lucas não relata nenhum caso como esses em Atos, mas o mesmo princípio se aplica. Pertencer genuinamente à comunidade cristã traz consigo uma mudança fundamental de orientação. Agora agimos em todos os aspectos — inclusive no trabalho — visando amar o próximo como a nós mesmos, não aumentar fatores pessoais como status social, riqueza e poder.

O Espírito e o obreiro (At 6.1-7)

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Temas do relato de Ananias e Safira estão presentes em Atos 6.1-7, e marca a primeira disputa interna da comunidade cristã. Os judeus de fala grega (“helenistas” ou “gregos” em outras versões) provavelmente retornaram a Jerusalém vindos de uma das muitas comunidades da diáspora do Império Romano. Os judeus de fala hebraica (ou “hebreus”) são provavelmente judeus da terra histórica de Israel (Palestina) que falam principalmente aramaico e/ou hebraico. Não é preciso muita imaginação social para entender o que está acontecendo nessa situação. Em uma comunidade que se vê como o cumprimento da aliança de Israel com Deus, os membros que se consideram israelitas típicos estão recebendo mais recursos do grupo do que os demais. Esse tipo de situação acontece regularmente em nosso mundo. Aqueles que mais se assemelham aos líderes de um movimento quanto à formação, cultura, ao status e assim por diante, muitas vezes se beneficiam de sua identidade em detrimento daqueles que de alguma forma são diferentes.

O Ministério da Palavra e o servir as mesas são igualmente valiosos (At 6.2-4)

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Uma das maiores contribuições de Atos à teologia do trabalho está na resposta dos apóstolos à injustiça intracomunitária de Atos 6.1-7. O trabalho de exercer justiça — neste caso, supervisionando a distribuição de alimentos — é tão importante quanto o trabalho de pregar a Palavra. Isso pode não ficar claro a princípio por causa de uma tradução de certo modo confusa na NVI e outras:

Não é certo negligenciarmos o ministério da palavra de Deus, a fim de servir às mesas. (At 6.2, NVI )

O termo “servir às mesas” (At 6.2) pode soar um pouco condescendente comparativamente com dedicar-se “ao ministério da palavra” (At 6.4). Os Doze estariam dizendo que cuidar da necessidade de alimento das pessoas é menos importante do que pregar a palavra? Uma maneira de interpretar essa passagem diz que servir às mesas é “trivialidade” [1] , uma “tarefa humilde” [2] ou uma das “tarefas inferiores” [3] na comunidade. Essa linha de interpretação vê a pregação subsequente de Estêvão como o propósito “real” por trás da influência do Espírito em Atos 6.3. [4] De acordo com essa visão, não haveria necessidade de o Espírito Santo se envolver na tarefa servil de gerenciar a alocação de recursos.

Mas isso reflete um viés na tradução que não é encontrado no grego original. Quando as traduções em português mencionam “servir às mesas” (At 6.2), em contraste com “ministério da palavra” (At 6.4), elas lançam mão de termos diferentes — “servir” e “ministrar” — para traduzir a mesma palavra grega, diakaneo, que é a original em Atos 6.2 e 6.4, e que significa “servir”. Portanto, uma tradução mais literal seria “servir às mesas” e “servir a palavra”. Ambos são diakaneo, serviço. Não há razão para usar uma palavra mais leve para servir às mesas.

Assim, o original grego dá a importante noção de que o trabalho de servir os necessitados está em pé de igualdade com o trabalho apostólico de oração e pregação. Os apóstolos servem a palavra, e os diáconos (como passaram a ser chamados) servem os necessitados. Seu serviço é qualitativamente o mesmo, embora as tarefas e habilidades específicas sejam diferentes. Ambos são essenciais para a formação do povo de Deus e para seu testemunho no mundo. A vida da comunidade depende dessas formas de serviço, e Lucas não nos passa a sensação de que uma é mais poderosa ou mais espiritual que a outra.

Apesar de tudo isso, seria possível argumentar que a condescendência em relação a servir às mesas é não apenas uma questão de tradução, mas sim algo realmente presente nas próprias palavras dos discípulos? Os próprios apóstolos poderiam ter imaginado que foram escolhidos para servir a palavra porque são mais talentosos do que aqueles que foram escolhidos para servir às mesas? É isso que eles querem dizer quando afirmam que não seria certo negligenciar o serviço da palavra para servir às mesas? Nesse caso, eles estariam voltando para algo semelhante ao sistema de clientelismo romano, colocando-se numa posição alta demais para se macularem ao servir às mesas. Eles estariam substituindo a antiga fonte de status romana (o clientelismo) por uma nova fonte de status (os dons do Espírito Santo). O evangelho de Deus vai mais fundo do que isso! Não há fonte de status na comunidade cristã. Um entendimento mais consistente seria que, se você é chamado a servir a palavra de Deus, não deve negligenciar o serviço à palavra para fazer outra coisa. Da mesma forma, se você é chamado para servir às mesas, não deve negligenciar o serviço às mesas para fazer outra coisa. As pessoas podem ser chamadas para tarefas diferentes, mas não há razão bíblica para considerar alguns chamados mais elevados do que outros.

Ironicamente, um dos que servem às mesas, Estêvão, acaba sendo ainda mais talentoso como pregador do que a maioria dos apóstolos (At 6.8—7.60). No entanto, apesar de seu dom de pregação, ele é designado para o serviço de distribuição de recursos. Naquele momento, pelo menos, era mais importante para os propósitos de Deus que ele atuasse como servidor junto às mesas do que como servidor da palavra. Para ele, nenhuma fome persistente de status o impede de aceitar esse chamado para servir às mesas.

Isso tem fortes ressonâncias no mundo de hoje. Com muita frequência, trabalhadores em ocupações de serviços de alimentação — o equivalente moderno de "servir às mesas" — encontram-se em empregos de status inferior, com remuneração inadequada, baixos benefícios, alta rotatividade e condições de trabalho difíceis ou até mesmo abusivas. Essa passagem do livro de Atos fala diretamente sobre essa situação. Aos olhos de Deus, o trabalho no setor de alimentação — ou em qualquer outro— não é insignificante ou degradante, mas uma forma de serviço semelhante à dos apóstolos. O que os cristãos podem fazer para transformar essa visão em realidade nos locais de trabalho, hoje?

A obra da liderança comunitária é uma obra do Espírito Santo (At 6.3)

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Os obreiros mais adequados para sanar a divisão étnica na comunidade de Atos 6 são qualificados porque são “cheios do Espírito e de sabedoria”. Como aqueles qualificados para a oração e a pregação, a habilidade dos que servem à mesa é resultado de poder espiritual. Nada menos do que o poder do Espírito possibilita a realização de um trabalho significativo, de construção de comunidade e de pacificação entre os cristãos. Essa passagem nos ajuda a ver que todo trabalho que edifica a comunidade — ou, mais amplamente, que promove justiça, bondade e beleza — é, em um sentido profundo, serviço (ou ministério) ao mundo.

Será que, em nossas igrejas, reconhecemos como iguais o ministério do pastor que prega a palavra, da mãe e do pai que provêm um lar amoroso para os filhos e do contador que faz uma declaração justa e honesta das despesas de seu empregador? Entendemos que todos eles dependem do Espírito para fazer seu trabalho pelo bem da comunidade? Pelo poder do Espírito, todo tipo de boa obra pode ser um meio de participação na renovação do mundo realizada por Deus.

Trabalho e identidade cristã (At 8—12)

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A próxima seção de Atos move a comunidade cristã, pelo poder do Espírito, através das barreiras culturais, à medida que o evangelho de Jesus Cristo é estendido a estrangeiros (samaritanos), párias sociais (o eunuco etíope), inimigos (Saulo) e todas as etnias (gentios). Esta seção tende a apresentar os personagens informando (grosso modo) sua ocupação. Aqui encontramos:

  • Simão, um feiticeiro (At 8.9-24)

  • Um eunuco etíope, um importante oficial da área econômica da rainha da Etiópia (At 8.27)

  • Saulo, o fariseu e perseguidor dos cristãos (At 9.1)

  • Tabita, uma costureira (At 9.36-43)

  • Cornélio, um centurião romano (At 10.1)

  • Simão, um curtidor (At 10.5)

  • Herodes, um rei (At 12)

Questões de trabalho não são a principal preocupação de Lucas nesta seção; portanto, devemos ter cuidado para não exagerar na citação de ocupações. O ponto de Lucas é que a maneira como eles exercem sua vocação indica se eles seguem na direção do reino ou se afastam dele.

Aqueles que se dirigem ao reino usam os frutos de seu trabalho para servir aos outros como testemunhas do reino de Deus. Aqueles que se afastam do reino usam os frutos de seu trabalho apenas para ganho pessoal. Isso fica evidente a partir de um breve resumo de alguns desses personagens. Vários deles buscam apenas ganho pessoal com seu trabalho, e com o poder e os recursos que o acompanham:

  • Simão oferece dinheiro aos apóstolos para que possa ter o poder de conceder o Espírito Santo (At 8.18-19) — um esforço claro para manter seu status social como “homem [que] é o poder divino conhecido como Grande Poder” (At 8.10).

  • Saulo usa sua rede de relacionamentos para perseguir os seguidores de Jesus (At 9.1-2), a fim de proteger o status social que ele desfrutava como judeu zeloso (At 22.3) e fariseu (At 26.5).

  • Herodes usa seu poder como rei-cliente de Roma para aumentar sua popularidade, matando o apóstolo Tiago (At 12.1-3). Mais tarde, Herodes se permite ser aclamado como um deus, o status de patronato final reivindicado pelos imperadores romanos (At 12.20-23).

As consequências desses atos são terríveis. Simão é fortemente repreendido por Pedro (At 8.20-23). Saulo é confrontado pelo Jesus ressuscitado, que se identifica com a própria comunidade que Saulo está perseguindo (At 9.3-9). Herodes é morto por um anjo do Senhor e comido por vermes (At 12.23). Em contraponto a eles estão várias pessoas que usam sua posição, poder ou recursos para abençoar e trazer vida:

  • Tabita, uma costureira, faz roupas para compartilhar com as viúvas de sua comunidade (At 9.39).

  • Simão, um curtidor de couro, abre sua casa para Pedro (At 10.5).

  • Cornélio, um centurião romano já conhecido por sua generosidade (At 10.4), usa suas conexões para convidar um grande número de amigos e familiares para ouvir a pregação de Pedro (At 10.24).

Embora tenha sido apresentado antes desta seção, Barnabé — que, por Atos 4.36, sabemos que é um levita — usa sua posição dentro da comunidade para inserir Saulo na comunidade apostólica, mesmo quando os apóstolos resistem (At 9.26-27), e para validar a conversão de gentios em Antioquia (At 11.22-24). Devemos observar que Atos 11.24 compartilha conosco o segredo da capacidade de Barnabé de usar seus recursos e sua posição de forma a edificar a comunidade de cristãos. Ali aprendemos explicitamente que Barnabé era “cheio do Espírito Santo”.

A mensagem em todos esses exemplos é consistente. O poder, o prestígio, a posição e os recursos advindos do trabalho devem ser usados em benefício dos outros — e não apenas em benefício próprio. Isso, novamente, é exemplificado por ninguém menos que o próprio Jesus, que, no Evangelho de Lucas, usa sua autoridade para o benefício do mundo, e não apenas para seu próprio bem.

Vemos em Atos 11.27-30 um exemplo comunitário do uso de recursos para o bem de outros que passam por necessidades. Em resposta a uma profecia inspirada pelo Espírito sobre uma fome por todo o mundo romano, “os discípulos, cada um segundo as suas possibilidades, decidiram providenciar ajuda para os irmãos que viviam na Judeia” (At 11.29). Vemos aqui o uso do fruto do trabalho humano em benefício de outros, que essa generosidade não era apenas espontânea e episódica, mas planejada, organizada e profundamente intencional. A coleta para a igreja em Jerusalém é discutida com mais detalhes na seção “1Coríntios 16.1-3” em 1Coríntios e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Em Atos 11.1-26 vemos o início de um relato a respeito de como a comunidade cristã resolveu uma séria disputa sobre se os gentios deveriam se converter ao judaísmo antes de se tornarem seguidores de Jesus. Essa disputa é discutida em um artigo no capítulo 15.

Choque de reinos: Comunidade e mercadores de poder (At 13—19)

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Exploraremos esta seção de acordo com quatro temas principais relevantes para a teologia do trabalho presente em Atos. Primeiro, examinaremos mais uma passagem relacionada à vocação como testemunho. Segundo, discutiremos como a comunidade cristã exerce o poder de liderança e de tomada de decisão. Terceiro, veremos como a comunidade liderada pelo Espírito se envolve com os poderes existentes na cultura mais ampla. Quarto, examinaremos se o fato de seguir a Cristo exclui certas formas de vocação e engajamento cívico. Por fim, exploraremos a prática do próprio Paulo de continuar trabalhando como fabricante de tendas em suas jornadas missionárias.

Vocação no contexto da comunidade (Atos 13.1-3)

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A passagem de Atos 13.1-3 nos traz um conjunto de práticas presentes na igreja de Antioquia. Essa comunidade é notável tanto por sua diversidade étnica quanto por seu compromisso com o testemunho prático do reino de Deus. [1] Já vimos como Lucas mostra que o trabalho — especialmente o uso de poder e recursos — funciona como uma forma de testemunho. [2] Vimos em Atos 6.1-7 que isso se aplica igualmente às vocações que associamos mais naturalmente ao ministério (como a missionária) e àquelas que mais provavelmente chamamos de “trabalho” (como a hospitalidade). Todas as vocações têm o potencial de servir e testemunhar do reino, especialmente quando empregadas na busca da justiça e da retidão.

Em Atos 13.1-3 vemos a comunidade cristã tentando discernir como o Espírito conduz os crentes ao testemunho. Paulo e Barnabé são escolhidos para trabalhar como evangelistas e promotores de cura itinerantes. O ponto de destaque é que esse discernimento se dá de forma comunitária. A comunidade cristã, e não o indivíduo, é mais capaz de discernir as vocações de seus membros individualmente. Isso pode significar que as comunidades cristãs de hoje devem atuar ao lado de famílias e jovens enquanto estes buscam respostas para perguntas como “o que você quer fazer quando crescer?”, “o que você fará depois da formatura?” ou “para o que Deus está chamando você?”. Isso exigiria que as comunidades cristãs desenvolvessem uma experiência muito maior em discernimento vocacional do que acontece atualmente. Também exigiria que houvesse um interesse muito mais sério no trabalho que serve ao mundo, além das estruturas da igreja. Apenas declarar autoridade sobre a vida profissional dos jovens não é suficiente. Os jovens só prestarão atenção se a comunidade cristã puder ajudá-los a realizar um trabalho de discernimento mais completo do que são capazes por outros meios.

Fazer isso de maneira adequada seria uma dupla forma de testemunho. Primeiro, jovens de todas as tradições religiosas — e de nenhuma — enfrentam enormes dificuldades para a tarefa de escolher ou encontrar trabalho. Imagine se a comunidade cristã pudesse de fato ajudar a reduzir esse fardo e melhorar os resultados. Segundo, a grande maioria dos cristãos trabalha fora das estruturas da igreja. Imagine se todos nos engajássemos em nosso trabalho como um meio de serviço cristão ao mundo, melhorando a vida de bilhões de pessoas com quem e para quem trabalhamos. Quão mais visível ao mundo Cristo se tornaria por meio disso?

O discernimento comunitário da vocação continua ao longo de Atos, com a convocação por parte de Paulo de muitos parceiros missionários da comunidade: Barnabé, Timóteo, Silas e Priscila, para citar apenas alguns. Em segundo lugar, testemunhando novamente do realismo de Lucas, vemos que essa vocação compartilhada para testemunhar não elimina a tensão relacional provocada pela pecaminosidade humana. Paulo e Barnabé têm um desentendimento tão sério sobre a inclusão de João Marcos (que havia abandonado a equipe em um compromisso anterior) que seguem caminhos distintos (At 15.36-40).

Liderança e tomada de decisões na comunidade cristã (At 15)

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Um exemplo da reorientação radical das interações sociais na comunidade cristã surge durante uma intensa discussão sobre se os cristãos gentios deveriam adotar leis e costumes judaicos. Na sociedade romana hierárquica, o patrício de uma organização social ditava a decisão a seus seguidores, talvez depois de ouvir várias opiniões. Na comunidade cristã, porém, as decisões importantes eram tomadas pelo grupo como um todo, confiando no igual acesso à orientação do Espírito Santo.

A discussão, na verdade, começa no capítulo 11. Pedro experimenta uma revelação surpreendente, segundo a qual Deus está oferecendo o “arrependimento para a vida” (At 11.18) aos gentios, sem exigir que eles primeiro se tornassem judeus. Porém, quando ele viaja para Jerusalém na companhia de alguns homens incircuncisos (gentios), alguns dos cristãos de lá reclamam que ele está violando a lei judaica (At 11.1-2). Quando desafiado dessa maneira, Pedro não fica com raiva, não tenta dominar os homens, lembrando-lhes sua posição de liderança entre os discípulos de Jesus, não menospreza a opinião deles nem contesta seus motivos. Em vez disso, ele conta a história dos acontecimentos para que chegasse a essa conclusão, e como vê a mão de Deus nisso: “Se, pois, Deus lhes deu o mesmo dom que nos tinha dado quando cremos no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para pensar em opor-me a Deus?” (At 11.17). Observe que ele se retrata não como sábio nem moralmente superior, mas como alguém que estava à beira de cometer um erro grave até ser corrigido por Deus.

Então, ele deixa que seus desafiantes respondam. Tendo ouvido a experiência de Pedro, eles não reagem na defensiva, não desafiam a autoridade de Pedro em nome de Tiago (irmão do Senhor e líder da igreja de Jerusalém) nem o acusam de exceder sua autoridade. Em vez disso, também enxergam a ação da mão de Deus e chegam à mesma conclusão que Pedro. O que começou como um confronto termina em comunhão e louvor. “Ouvindo isso, não apresentaram mais objeções e louvaram a Deus” (At 11.18). Não podemos esperar que todos os desentendimentos sejam resolvidos de forma tão amigável, mas podemos compreender que, quando as pessoas reconhecem e observam a graça de Deus na vida umas das outras, há todos os motivos para esperar um resultado mutuamente edificante.

Pedro deixa Jerusalém em clima de concordância com seus antigos antagonistas, mas na Judeia permanecem outros que estão ensinando que os gentios devem primeiro se converter ao judaísmo. “Se vocês não forem circuncidados conforme o costume ensinado por Moisés, não poderão ser salvos” (At 15.1). Paulo e Barnabé estão em Antioquia nessa época e, assim como Pedro, experimentaram a graça de Deus aos gentios sem necessidade de conversão ao judaísmo. O texto nos diz que a divisão era séria, mas que foi tomada uma decisão conjunta de buscar a sabedoria da comunidade cristã como um todo. “Isso levou Paulo e Barnabé a uma grande contenda e discussão com eles. Assim, Paulo e Barnabé foram designados, com outros, para irem a Jerusalém tratar dessa questão com os apóstolos e com os presbíteros.” (At 15.2)

Eles chegam a Jerusalém e são recebidos calorosamente pelos apóstolos e presbíteros (At 15.4). Aqueles que mantêm a opinião contrária — que os gentios devem primeiro se converter ao judaísmo — também estão presentes (At 15.5). Todos decidem se reunir para considerar o assunto e se envolvem em um grande debate (At 15.7). Então Pedro, que, é claro, está entre os apóstolos em Jerusalém, repete a história de como Deus lhe revelou sua graça para os gentios, sem a exigência de se converterem ao judaísmo (At 15.8). Paulo e Barnabé relatam as experiências semelhantes que tiveram, também se concentrando no que Deus está fazendo, em vez de reivindicar qualquer sabedoria superior ou autoridade (At 15.12). Todos os oradores são ouvidos com respeito. Em seguida, o grupo considera o que cada um disse à luz das Escrituras (At 15.15-17). Tiago, que atua como chefe da igreja em Jerusalém, propõe uma resolução: “Julgo que não devemos pôr dificuldades aos gentios que estão se convertendo a Deus. Ao contrário, devemos escrever a eles, dizendo-lhes que se abstenham de comida contaminada pelos ídolos, da imoralidade sexual, da carne de animais estrangulados e do sangue” (At 15.19-20).

Se Tiago exercesse autoridade como um patrício romano, seria o fim da questão. Seu status, por si só, decidiria a questão. Mas não é assim que a decisão se desenrola na comunidade cristã. Ela aceita sua decisão, mas por concordância, e não imposição. Não apenas Tiago, mas todos os líderes — na verdade, toda a igreja — têm voz na decisão: “Os apóstolos e os presbíteros, com toda a igreja, decidiram…” (At 15.22). E, quando enviam uma mensagem às igrejas gentias sobre sua decisão de “não [lhes] impor [...] nada além das seguintes exigências necessárias” (At 15.28b), o fazem em nome de todo o corpo, não em nome de Tiago, como patrício: “Concordamos todos em escolher alguns homens e enviá-los a vocês” (At 15.25). Além disso, não reivindicam autoridade pessoal, mas afirmam apenas que tentaram ser obedientes ao Espírito Santo: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós...” (At 15.28a). A palavra pareceu indica humildade em sua decisão, ressaltando que eles renunciaram ao sistema de clientelismo romano, com suas reivindicações de poder, prestígio e status.

Antes de encerrarmos esse episódio, observemos mais um elemento. Os líderes em Jerusalém mostram notável consideração sobre a experiência dos obreiros no campo — Pedro, Paulo e Barnabé — que trabalham por conta própria, longe da sede, cada um enfrentando uma situação específica que exigia uma decisão prática. Os líderes em Jerusalém respeitam muito sua experiência e seu julgamento. Eles comunicam de forma cautelosa os princípios que devem orientar as decisões (At 15.19-21), mas delegam o processo decisório aos mais próximos da ação e confirmam as decisões tomadas por Pedro, Paulo e Barnabé no campo. Mais uma vez, trata-se de um afastamento radical do sistema de clientelismo romano, que concentrava poder e autoridade nas mãos do patrício.

Os efeitos benéficos da prática da educação uniforme sobre missão, princípios e valores, combinados com a delegação localizada da tomada de decisão e ação, são bem conhecidos devido à sua ampla adoção por instituições empresariais, militares, educacionais, sem fins lucrativos e governamentais na segunda metade do século 20. A gestão de praticamente todo tipo de organização foi radicalmente transformada por ela. A resultante liberação de criatividade, produtividade e serviço humanos não seria surpresa para os líderes da igreja primitiva, que experimentaram a mesma explosão na rápida expansão da igreja na era apostólica.

No entanto, não está claro se as igrejas de hoje adotaram plenamente essa lição no que diz respeito à atividade econômica. Por exemplo, os cristãos que trabalham em países em desenvolvimento frequentemente reclamam que são prejudicados por posturas rígidas das igrejas distantes do mundo desenvolvido. Boicotes bem-intencionados, regras de comércio justo e outras táticas de pressão podem ter consequências opostas às pretendidas. Um missionário de desenvolvimento econômico em um país asiático, por exemplo, relatou os resultados negativos causados pela imposição de restrições ao trabalho infantil por parte de sua organização patrocinadora nos Estados Unidos. Uma empresa que ele ajudava a desenvolver foi obrigada a parar de comprar materiais produzidos por trabalhadores com menos de dezesseis anos. Um de seus fornecedores era uma empresa composta por dois irmãos adolescentes. Por causa das novas restrições, a empresa teve que parar de comprar peças dos irmãos, o que deixou sua família sem nenhuma fonte de renda. Diante disso, sua mãe teve de voltar à prostituição, o que tornou as coisas muito piores para ela, os irmãos e o restante da família. “O que precisamos da igreja nos Estados Unidos é uma comunhão não opressiva”, disse o missionário mais tarde. “A obediência aos bem-intencionados ditames cristãos ocidentais significa que temos de ferir as pessoas em nosso país.” [1]

A comunidade do Espírito confronta os agentes do poder (At 16 e 19)

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Na segunda metade de Atos, Paulo, seus companheiros e várias comunidades cristãs entram em conflito com os que detêm o poder econômico e cívico local. O primeiro incidente ocorre em Antioquia da Pisídia, onde “as mulheres religiosas de elevada posição e os principais da cidade” (At 13.50) são incitados contra Paulo e Barnabé, terminando por expulsá-los da cidade. Então, em Icônio, Paulo e Barnabé são maltratados por “gentios e judeus, com os seus líderes” (At 14.5). Em Filipos, Paulo e Silas são presos por estarem “perturbando” a cidade (At 16.19-24). Paulo se desentende com os oficiais da cidade de Tessalônica (At 17.6-9) e com o procônsul da Acaia (At 18.12). Mais tarde, ele entra em conflito com a associação dos ourives de Éfeso (At 19.23-41). Os conflitos culminam com o julgamento de Paulo por perturbação da paz em Jerusalém, que ocupa os oito capítulos finais de Atos.

Esses confrontos com os poderes locais não devem ser surpresa, dada a vinda do Espírito de Deus anunciada por Pedro em Atos 2. Ali, vimos que a vinda do Espírito foi, de alguma forma misteriosa, o início do novo mundo de Deus. Isso certamente ameaçaria os poderes do velho mundo. Vimos que o Espírito trabalhou na comunidade para formar uma economia baseada em dons, muito diferente da economia romana baseada no clientelismo. As comunidades cristãs formavam um sistema dentro do sistema, em que os crentes, embora ainda participassem da economia romana, tinham uma maneira diferente de usar os recursos. O conflito com os líderes locais se devia precisamente ao fato de que o maior interesse deles era a manutenção da economia clientelista de Roma.

Os confrontos relatados em Atos 16.16-24 e Atos 19.23-41 merecem ambos uma discussão mais profunda. Neles, o caminho do reino colide de maneira intensa com as práticas econômicas do mundo romano.

Confronto em razão da libertação de uma escrava em Filipos (At 16.16-24)

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O primeiro dos dois confrontos ocorre em Filipos, onde Paulo e Silas encontram uma moça possuída por um espírito de adivinhação. [1] No contexto greco-romano, esse tipo de espírito estava associado à adivinhação — uma conexão que gerava “muito dinheiro para os seus senhores” (At 16.16). Esse parece ser um exemplo da forma mais grosseira de exploração econômica. É curioso que Paulo e Silas não ajam mais rapidamente (At 16.18). Talvez seja porque Paulo queira estabelecer uma conexão com seus donos antes de corrigi-los. Quando Paulo age, no entanto, o resultado é libertação espiritual para a moça e perda financeira para seus senhores. A reação dos proprietários é arrastar Paulo e Silas perante as autoridades, sob a acusação de perturbação da paz.

Esse incidente demonstra de forma poderosa que o ministério de libertação que Jesus proclamou em Lucas 4 pode contrariar pelo menos uma prática comercial comum, a exploração de escravos. Negócios que produzem lucro econômico às custas da exploração humana conflitam com o evangelho cristão. (Governos que exploram seres humanos são igualmente ruins. Discutimos anteriormente como a violência de Herodes contra seu povo — e até mesmo contra seus próprios soldados — o levou à morte nas mãos de um anjo do Senhor.) Paulo e Silas não estavam em uma missão para reformar as práticas econômicas e as políticas corruptas do mundo romano, mas o poder de Jesus de libertar as pessoas do pecado e da morte não se furta a quebrar os laços da exploração. Não pode haver libertação espiritual sem consequências econômicas. Paulo e Silas estavam dispostos a se expor ao ridículo, ao espancamento e à prisão a fim de trazer libertação econômica a alguém cujo gênero, situação econômica e idade a tornavam vulnerável a abusos.

Se olharmos dois mil anos adiante, será possível que os cristãos tenham se acomodado ou até lucrado com produtos, empresas, indústrias e governos que violam os princípios éticos e sociais cristãos? É fácil protestar contra indústrias ilegais, como as de narcóticos e a prostituição, mas e quanto às muitas indústrias legalizadas que prejudicam trabalhadores, consumidores ou o público em geral? E as brechas legais, os subsídios e as regulamentações governamentais injustos que beneficiam alguns cidadãos às custas de outros? Será que ao menos reconhecemos que talvez estejamos nos beneficiando da exploração de outros? Em uma economia global, pode ser difícil rastrear as condições e consequências da atividade econômica. É necessário discernir com base em informações confiáveis, e a comunidade cristã nem sempre foi rigorosa em suas críticas. O fato é que o livro de Atos não fornece princípios para avaliar a atividade econômica. Mas ele demonstra que questões econômicas são questões do evangelho. Nas pessoas de Paulo e Silas, dois dos maiores missionários e heróis da fé, vemos todo o exemplo de que precisamos de que os cristãos são chamados a enfrentar os abusos econômicos do mundo.

Os capítulos 17 e 18 contêm muito material interessante no que diz respeito ao trabalho, mas, para continuar a discussão dos confrontos decorrentes do desafio do evangelho aos sistemas do mundo, este artigo é seguido pelo relato do confronto no capítulo 19.21-41, retornando então aos capítulos 17, 18 e às outras partes do capítulo 19.

Confronto sobre a interrupção do comércio em Éfeso (At 19.21-41)

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A discussão a seguir está um pouco fora de ordem (vamos pular o relato de Atos 19.17-20, por enquanto) para que possamos cobrir o segundo incidente de confronto. Ele ocorre em Éfeso, onde fica o Templo de Ártemis (também conhecida pelo nome romano Diana). O culto a Ártemis em Éfeso era uma poderosa força econômica na Ásia Menor. Peregrinos afluíam ao templo (uma estrutura tão grandiosa a ponto de ser considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo) na esperança de receber de Ártemis mais fertilidade na caça, no campo ou na família. Nesse contexto, tal como em outros centros turísticos, muitas das indústrias locais estavam ligadas à relevância contínua da atração. [19]

Um ourives chamado Demétrio, que fazia miniaturas de prata do templo de Ártemis e que dava muito lucro aos artífices, reuniu-os com os trabalhadores desse ramo e disse: “Senhores, vocês sabem que temos uma boa fonte de lucro nesta atividade e estão vendo e ouvindo como este indivíduo, Paulo, está convencendo e desviando grande número de pessoas aqui em Éfeso e em quase toda a província da Ásia. Diz ele que deuses feitos por mãos humanas não são deuses. Não somente há o perigo de nossa profissão perder sua reputação, mas também de o templo da grande deusa Ártemis cair em descrédito e de a própria deusa, adorada em toda a província da Ásia e em todo o mundo, ser destituída de sua majestade divina”. Ao ouvirem isso, eles ficaram furiosos e começaram a gritar: “Grande é a Ártemis dos efésios!” Em pouco tempo a cidade toda estava em tumulto. O povo foi às pressas para o teatro, arrastando os companheiros de viagem de Paulo, os macedônios Gaio e Aristarco. (Atos 19.24-29)

Como Demétrio reconhece, quando as pessoas se tornam seguidoras de Jesus, pode-se esperar que mudem seu jeito de usar o dinheiro. Deixar de comprar itens relacionados à adoração a ídolos é apenas a mudança mais óbvia. Também se pode esperar que os cristãos gastem menos com artigos de luxo para si mesmos e mais em coisas necessárias para o bem-estar dos outros. Talvez eles consumam menos, doem ou invistam mais de maneira geral. Não há nada que proíba os cristãos de comprarem itens de prata em geral. Mas Demétrio está certo em sua percepção de que os padrões de consumo mudarão se muitas pessoas começarem a acreditar em Jesus. Isso sempre será ameaçador para aqueles que lucram mais com o status quo das coisas.

Isso nos leva a pensar quais aspectos da vida econômica em nosso próprio contexto podem ser incompatíveis com o evangelho cristão. Por exemplo, é possível que, ao contrário dos temores de Demétrio, os cristãos tenham continuado a comprar bens e serviços incompatíveis com o fato de seguirem a Jesus? Tornamo-nos cristãos, mas continuamos a comprar o equivalente a miniaturas de prata do templo de Ártemis? Certos itens de marca “desejáveis” vêm à mente, e eles apelam aos desejos dos compradores de se associarem a status social, riqueza, poder, inteligência, beleza ou outros atributos implícitos na “promessa da marca”. Se os cristãos afirmam que sua posição vem exclusivamente do amor incondicional de Deus em Cristo, a associação pessoal com marcas funciona como um tipo de idolatria? Comprar uma marca de prestígio é essencialmente semelhante a comprar um santuário de prata para Ártemis? Esse incidente em Éfeso nos adverte de que seguir Jesus tem consequências econômicas que às vezes podem nos deixar desconfortáveis, para dizer o mínimo.

Envolvimento respeitoso com a cultura (Atos 17.16-34)

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Apesar da necessidade de confrontar os agentes do poder na cultura mais ampla, a confrontação nem sempre é a melhor maneira de a comunidade cristã se envolver com o mundo. Com muita frequência, embora a cultura seja equivocada, apresente dificuldades ou desconheça a graça de Deus, não é verdadeiramente opressora. Nesses casos, a melhor maneira de proclamar o evangelho pode ser cooperar com a cultura e envolver-se com ela de forma respeitosa.

Em Atos 17, Paulo nos fornece um exemplo de como envolver a cultura respeitosamente. Ele começa com a observação. Paulo passeia pelas ruas de Atenas e observa o templo dos vários deuses que ali encontra. Relata que observou “cuidadosamente” os “objetos de culto” que viu naquela cidade (At 17.23), os quais, destaca ele, foram feitos “pela arte e imaginação” das pessoas (At 17.29). Ele leu obras literárias deles, conhecendo-as tão bem a ponto de citá-las e tratando-as com respeito suficiente para incorporá-las a sua pregação sobre Cristo. De fato, Paulo afirma que a literatura deles contém até mesmo um pouco da verdade de Deus, pois ele a cita dizendo: “como disseram alguns dos poetas de vocês: ‘Também somos descendência dele’” (At 17.28). Um compromisso com a transformação radical da sociedade não significa que os cristãos tenham que se opor a tudo que diz respeito à sociedade. Ela não é totalmente ímpia — “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” –, embora não tenha consciência de Deus.

Do mesmo modo, precisamos ser observadores no local de trabalho. Podemos encontrar muitas boas práticas nas escolas, nos negócios, no governo ou em outros locais de trabalho, mesmo que não derivem da comunidade cristã. Se formos verdadeiramente observadores, veremos que mesmo aqueles que não têm consciência de Cristo ou que o desprezam são feitos à imagem de Deus. Como Paulo, devemos cooperar com eles, em vez de tentar desacreditá-los. Podemos trabalhar com descrentes para melhorar as relações trabalhistas e administrativas, o atendimento ao cliente, a pesquisa e o desenvolvimento, a governança corporativa e cívica, a educação pública e outras áreas. Devemos fazer uso das habilidades e percepções desenvolvidas em universidades, corporações, organizações sem fins lucrativos e outros lugares. Nosso papel não é condenar o trabalho deles, mas aprofundá-lo e mostrar que se trata de uma prova de que Deus “não [está] longe de cada um de nós” (At 17.27). Imagine a diferença entre dizer “como você não conhece a Cristo, todo o seu trabalho está errado” e “como conheço a Cristo, acho que posso apreciar seu trabalho ainda mais do que você”.

No entanto, ao mesmo tempo, precisamos estar atentos ao quebrantamento e ao pecado evidentes no local de trabalho. Nosso propósito não é julgar, mas curar, ou pelo menos limitar os danos. Paulo é particularmente observador em relação ao pecado e à distorção da idolatria. “Paulo ficou profundamente indignado ao ver que a cidade estava cheia de ídolos.” (At 17.16) Assim como os ídolos da antiga Atenas, os ídolos dos locais de trabalho modernos são muitos e variados. Um líder cristão na cidade de Nova York diz:

Quando estou trabalhando com educadores, cujo ídolo é que todos os problemas do mundo serão resolvidos pela educação, meu coração se conecta ao coração deles no que tange ao desejo de resolver os problemas do mundo, mas eu lhes diria que não podem ir tão longe com a educação, mas sim que a verdadeira solução vem de Cristo. O mesmo vale para muitas outras profissões. [1]

Nossas observações cuidadosas, tal como as de Paulo, nos tornam testemunhas mais perspicazes do poder único de Cristo de corrigir o mundo.

No passado Deus não levou em conta essa ignorância, mas agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam. Pois estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do homem que designou. E deu provas disso a todos, ressuscitando-o dentre os mortos. (Atos 17.30-31)

Fabricação de tendas e vida cristã (At 18.1-4)

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A passagem mais frequentemente ligada ao trabalho no livro de Atos é a fabricação de tendas realizada por Paulo em Atos 18.1-4. Embora essa passagem seja familiar, muitas vezes é entendida de forma muito restrita. Na leitura familiar, Paulo ganha dinheiro fazendo tendas a fim de se sustentar em seu ministério real de testemunhar de Cristo. Essa visão é muito estreita, porque não vê que a fabricação de tendas em si é um ministério real de testemunho de Cristo. Paulo é uma testemunha quando prega e quando faz tendas, e usa seus ganhos para beneficiar a comunidade em geral.

Isso se encaixa diretamente na visão de Lucas, segundo a qual o Espírito capacita os cristãos a usarem seus recursos para o bem de toda a comunidade, o que, por sua vez, se torna um testemunho do evangelho. É preciso lembrar que a ideia orientadora de Lucas para a vida cristã é a de testemunho, e a totalidade da vida de uma pessoa tem o potencial para testemunhar. É impressionante, então, que Paulo seja um exemplo dessa prática moldada pelo Espírito.

Certamente é verdade que Paulo quer se sustentar. No entanto, seu impulso não era apenas se sustentar em seu ministério de pregação, mas também fornecer apoio financeiro a toda a comunidade. Quando descreve seu impacto econômico entre os efésios, Paulo diz:

“Não cobicei a prata, nem o ouro, nem as roupas de ninguém. Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos supriram minhas necessidades e as de meus companheiros. Em tudo o que fiz, mostrei a vocês que mediante trabalho árduo devemos ajudar os fracos, lembrando as palavras do próprio Senhor Jesus, que disse: ‘Há maior felicidade em dar do que em receber’” (Atos 20.33-35, ênfase adicionada)

O trabalho lucrativo de Paulo era um esforço para edificar economicamente a comunidade. [1] Paulo emprega suas habilidades e posses em prol da comunidade, e diz explicitamente que se trata de um exemplo a ser seguido. Ele não diz que todos devem seguir seu exemplo de pregação. Mas de fato diz que todos devem seguir seu exemplo de trabalhar para ajudar os fracos e doar generosamente, como o próprio Jesus ensinou. Ben Witherington argumenta de forma convincente que Paulo não está reivindicando nenhum status mais elevado em decorrência de sua posição apostólica, mas está “descendo a escada social por causa de Cristo”. [2]

Em outras palavras, Paulo não se envolve na fabricação de tendas porque precisa fazer seu “verdadeiro trabalho” de pregar. Em vez disso, as variedades de trabalho de Paulo — na oficina de costura, no mercado, na sinagoga, no auditório e na prisão — são todas formas de testemunho. Em qualquer um desses contextos, Paulo participa do projeto restaurador de Deus. Em qualquer um desses contextos, Paulo vive sua nova identidade em Cristo em favor da glória de Deus e por amor ao próximo — até mesmo aos seus antigos inimigos. Mesmo quando está sendo transportado pelo mar como prisioneiro, ele emprega seus dons de liderança e encorajamento para guiar em segurança, durante uma forte tempestade, os soldados e os marinheiros que o mantêm cativo (At 27.27-38). Se ele não tivesse o dom de ser pregador e apóstolo, ainda assim teria sido uma testemunha de Cristo simplesmente por seu engajamento na fabricação de tendas, no esforço pelo bem da comunidade e no trabalho pelo bem dos outros em todas as situações.

Fabricar tendas tornou-se uma metáfora comum para os cristãos que se envolvem em uma profissão remunerada como meio de apoiar o que é frequentemente chamado de “ministério profissional”. O termo “bivocacional” é frequentemente usado para indicar que duas profissões distintas estão envolvidas: a que gera renda e a do ministério. Mas o exemplo de Paulo mostra que todos os aspectos da vida humana devem ser um testemunho ininterrupto. Há pouco espaço para estabelecer distinções entre “ministério profissional” e outras formas de testemunho. De acordo com Atos, os cristãos, na verdade, têm apenas uma vocação: testemunhar do evangelho. Temos muitas formas de serviço, incluindo pregação e cuidado pastoral, fabricação de tendas, construção de móveis, doação de dinheiro e assistência aos fracos. Um cristão que se envolve em uma profissão remunerada, como a de fabricar tendas, a fim de apoiar uma profissão não remunerada, como ensinar sobre Jesus, seria descrito com mais precisão como alguém que possui um “serviço duplo”, em vez de “bivocacionado” — um chamado, duas formas de serviço. O mesmo se aplica a qualquer cristão que sirva em mais de uma frente de trabalho.

O evangelho e os limites da vocação e do engajamento (At 19.17-20)

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A passagem de Atos 19.13-16 apresenta uma história estranha que leva ao arrependimento de um “grande número dos que tinham praticado ocultismo” (At 19.19). Eles reuniram seus livros de magia e os queimaram publicamente, e Lucas nos diz que o valor dos pergaminhos queimados por esses convertidos foi de 50.000 dracmas. Isso foi estimado como o equivalente a 137 anos de salário contínuo de um diarista ou a pão suficiente para alimentar 100 famílias por 500 dias. [1] A incorporação à comunidade do reino de Deus tem um enorme impacto econômico e vocacional.

Embora não possamos ter certeza de que aqueles que se arrependeram de seu envolvimento com o ocultismo estavam se arrependendo de um meio de ganhar a vida, é improvável que uma coleção tão cara de livros tenha sido mero hobby. Vemos aqui que a mudança na vida promovida pela fé em Jesus se reflete imediatamente em uma decisão vocacional — um resultado conhecido do Evangelho de Lucas. Nesse caso, os crentes acharam necessário abandonar completamente sua antiga ocupação.

Em muitos outros casos, embora seja possível permanecer na vocação, é necessário praticá-la diferentemente. Imagine, por exemplo, que um vendedor criou um negócio vendendo seguros desnecessários para idosos. Essa pessoa teria de interromper essa prática, mas poderia continuar na profissão de vendedor de seguros, mudando para uma linha de produtos benéfica para quem a compra. As comissões podem ser menores (ou não), mas a profissão tem muito espaço para um sucesso legítimo e para muitos participantes éticos.

Uma situação muito mais difícil ocorre em profissões que poderiam ser exercidas legitimamente, mas nas quais as práticas ilícitas possuem ramificações tão profundas que é difícil competir sem violar os princípios bíblicos. Muitos funcionários públicos em países com alto índice de corrupção enfrentam esse dilema. É possível ser um inspetor de obras honesto, mas será muito difícil se seu salário oficial for equivalente a US$ 10 por semana e seu supervisor exigir uma taxa de US$ 100 por mês para permitir que você mantenha seu emprego. Um crente nessa situação enfrenta uma escolha difícil. Se todas as pessoas honestas deixarem a profissão, tanto pior para o público. Mas, se é difícil ou impossível ganhar a vida honestamente na profissão, como um cristão pode permanecer nela? Isso é algo que Lucas discute em Lucas 3.9, quando João Batista aconselha soldados e cobradores de impostos a permanecerem em seu emprego, mas a cessarem a extorsão e a fraude praticadas pela maioria dos que têm essa profissão. (Veja “Lucas 3.8-14” em Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esta passagem.)

Quatro atributos da liderança de Paulo como testemunha (At 20—28)

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Os últimos nove capítulos de Atos apresentam um relato repleto de ação sobre um atentado contra a vida de Paulo, seguido por sua prisão pelas mãos de dois governadores romanos e sua angustiante jornada a bordo de um navio até o julgamento em Roma. Em muitos aspectos, a experiência de Paulo recapitula o ponto culminante do ministério de Jesus, e Atos 20—28 pode ser pensado como uma espécie de Paixão de Paulo. Nesses capítulos, o aspecto mais relevante para o trabalho é a descrição da liderança de Paulo. Vamos nos concentrar no que vemos de sua coragem, seu sofrimento, seu respeito pelo outro e sua preocupação com o bem-estar das pessoas.

A coragem de Paulo (At 20—28)

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Após os conflitos em Filipos e em Éfeso, Paulo recebe ameaças de prisão (At 20.23, 21.11) e morte (At 20.3, 23.12-14). Essas ameaças não são vãs, pois, de fato, duas tentativas são feitas contra sua vida (At 21.3; 23.21). Paulo é levado sob custódia pelo governo romano (At 23.10) e um processo é movido contra ele (At 24.1-9), que, embora falso, em última análise, leva à sua execução. Dados os episódios de conflito que já exploramos, não é surpresa que seguir os caminhos do reino de Deus leve a um conflito com os caminhos opressivos do mundo.

No entanto, apesar de tudo, Paulo mantém uma coragem extraordinária. Ele dá continuidade ao seu trabalho (pregação) apesar das ameaças, e até se atreve a pregar a seus captores, tanto judeus (At 23.1-10) quanto romanos (At 24.21-26; 26.32; 28.30-31). No final, sua coragem se mostra decisiva não apenas para sua obra de pregação, mas para salvar a vida de centenas de pessoas no meio de um naufrágio (At 27.22-23). Suas próprias palavras resumem sua atitude de coragem, enquanto aqueles ao seu redor recuam com medo. “Por que vocês estão chorando e partindo o meu coração? Estou pronto não apenas para ser amarrado, mas também para morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus.” (At 21.13)

A questão, porém, não é que Paulo seja um homem de extraordinária coragem, mas que o Espírito Santo dá a cada um de nós a coragem de que precisamos para realizar nosso trabalho. Paulo reconhece que é o Espírito Santo que o mantém diante de tal adversidade (At 20.22; 21.4; 23.11). Isso é um encorajamento para nós hoje, porque também podemos depender do Espírito Santo para nos dar a coragem que talvez nos falte. O perigo não é tanto que a coragem possa nos faltar no momento de maior terror, mas que essa preocupação geral venha a nos impedir de dar o primeiro passo para seguir os caminhos do reino de Deus no trabalho. Com que frequência deixamos de defender um colega, atender a um cliente, desafiar um chefe ou falar sobre um problema, não porque estejamos realmente sob pressão, mas porque temos medo de ofender alguém em posição de autoridade? E se adotássemos a posição de que, antes de agirmos contrariamente aos caminhos de Deus no trabalho, pelo menos precisássemos receber uma ordem real para fazê-lo? Poderíamos começar contando com o Espírito Santo para nos sustentar pelo menos até esse ponto?

O sofrimento de Paulo (At 20—28)

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Paulo precisa de cada grama de coragem por causa dos pesados ​​sofrimentos que ele sabe que seu trabalho trará. “Em todas as cidades, o Espírito Santo me avisa que prisões e sofrimentos me esperam” (At 20.23), diz ele. Ele é sequestrado (At 21.27), espancado (At 21.30-31; 23.3), ameaçado (At 22.22; 27.42), preso muitas vezes (At 21.33; 22.24,31; 23.35; 28.16), acusado em processos (At 21.34; 22.30; 24.1-2; 25.2,7; 28.4), interrogado (At 25.24-27), ridicularizado (At 26.24), ignorado (At 27.11), sofre naufrágio (At 27.41) e é mordido por uma víbora (At 28.3). A tradição diz que Paulo acabou sendo condenado à morte por seu trabalho, embora isso não seja relatado em nenhum lugar da Bíblia.

A liderança em um mundo quebrado implica sofrimento. Qualquer um que não aceite o sofrimento como um elemento essencial da liderança não pode ser líder, pelo menos não como Deus deseja. Nisso vemos outra refutação radical do sistema de clientelismo romano. O sistema romano é estruturado para isolar o patrício do sofrimento. Somente os patrícios, por exemplo, tinham o direito de escapar de violações corporais, como vemos quando o status de Paulo como cidadão romano (um patrício, embora de uma casa de um só membro da família) é a única coisa que o protege de um açoitamento arbitrário (At 22.29). Paulo, no entanto, abraça o sofrimento corporal, junto com muitas outras formas, como a necessidade de um líder no caminho de Jesus. Hoje, podemos procurar nos tornar líderes pela mesma razão pela qual os homens da Roma antiga procuravam exercer o patronato — para evitar o sofrimento. Podemos ter sucesso em ganhar poder e talvez até em nos isolar das mazelas do mundo. Mas nossa liderança não será capaz de beneficiar os outros se não aceitarmos a dor em nós mesmos, em maior ou menor grau. E, se nossa liderança não beneficia os outros, não é o tipo de liderança de Deus.

O respeito de Paulo (At 20—28)

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Apesar da total convicção de Paulo sobre suas crenças e sua conduta, ele mostra respeito por todos que encontra. Isso deixa todos sem ação, especialmente seus inimigos e captores, o que lhe dá uma oportunidade incontestável como testemunha do reino de Deus. Quando chega a Jerusalém, ele respeita os líderes cristãos judeus de lá e atende ao estranho pedido deles de demonstrar sua fidelidade contínua à Lei judaica (At 21.17-26). Ele fala respeitosamente a uma multidão que acaba de espancá-lo (At 21.30—22.21), a um soldado que está prestes a açoitá-lo (At 22.25-29), ao conselho judaico que o acusa em um tribunal romano — até o ponto de se desculpar por inadvertidamente insultar o sumo sacerdote — (At 23.1-10), ao governador romano Félix e sua esposa Drusila (At 24.10-26), ao sucessor de Félix, Festo (At 25.8-11; 26.24-26) e ao rei Agripa e sua esposa, Berenice (At 26.2-29), que o aprisionam. Em sua jornada até lá, trata com respeito o centurião Júlio (At 27.3), o governador de Malta (At 28.7-10) e os líderes da comunidade judaica em Roma (At 28.17-28).

Não devemos confundir o respeito demonstrado por Paulo com timidez em relação à sua mensagem. Paulo nunca hesita em proclamar a verdade com ousadia, onde quer que haja condições favoráveis. Depois de ser espancado por uma multidão de judeus em Jerusalém, que falsamente suspeitam que ele tenha trazido um gentio ao templo, ele lhes prega um sermão cuja conclusão é o comissionamento do Senhor Jesus a que pregue a salvação aos gentios (At 22.17-21). Ele diz ao conselho judaico em Atos 23.1-8: “Estou sendo julgado por causa da minha esperança na ressurreição dos mortos!” (At 23.6). Ele proclama o evangelho a Félix (At 24.14-16) e também a Festo, Agripa e Berenice: “Estou sendo julgado por causa da minha esperança no que Deus prometeu aos nossos antepassados” (At 26.6). Adverte os soldados e marinheiros no barco para Roma de que a “viagem será desastrosa e acarretará grande prejuízo para o navio, para a carga e também para a nossa vida” (At 27.10). O livro de Atos termina com a informação de que Paulo “pregava o Reino de Deus e ensinava a respeito do Senhor Jesus Cristo, abertamente, sem impedimento algum” (At 28.30-31).

O respeito de Paulo pelos outros muitas vezes chama atenção para ele e até transforma inimigos em amigos, apesar da ousadia de suas palavras. O centurião prestes a açoitá-lo intervém junto ao comandante romano, que ordena que ele seja libertado (At 22.26-29). Os fariseus concluem: “Não encontramos nada de errado neste homem. Quem sabe se algum espírito ou anjo falou com ele?” (At 23.9). Félix determina que “não havia contra [Paulo] nenhuma acusação que merecesse morte ou prisão” (At 23.29) e se torna um ouvinte ávido que “mandava buscá-lo frequentemente e conversava com ele” (At 24.26). Agripa, Berenice e Festo chegam à conclusão de que Paulo é inocente, e Agripa começa a ser persuadido pela pregação de Paulo. “Você acha que em tão pouco tempo pode convencer-me a tornar-me cristão?”, pergunta (At 26.28). No final da viagem a Roma, Paulo se torna o líder de fato do navio, emitindo ordens que o capitão e o centurião ficariam felizes em obedecer (At 27.42-44). Em Malta, o governador recebe e hospeda Paulo e seus companheiros e, mais tarde, abastece seu navio e os despede com honras (At 28.10).

Nem todos retribuem o respeito de Paulo com respeito, é claro. Alguns o difamam, rejeitam, ameaçam e abusam dele. Mas, de modo geral, ele recebe muito mais respeito das pessoas do que os mestres do sistema de clientelismo romano entre os quais opera. O exercício do poder pode exigir a aparência de respeito, mas o exercício do verdadeiro respeito tem muito mais probabilidade de ganhar uma resposta de respeito verdadeiro.

A preocupação de Paulo com os outros (At 20—28)

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Acima de tudo, a liderança de Paulo é marcada por sua preocupação com os outros. Ele aceita o fardo da liderança não para melhorar sua vida, mas para melhorar a vida dos outros. Sua própria disposição de viajar a lugares hostis para pregar um modo de vida melhor é prova suficiente disso. No entanto, também vemos sua preocupação com os outros de maneira concreta e pessoal. Ele cura um jovem gravemente ferido por ter caído de uma janela do andar superior (At 20.9-12). Prepara as igrejas que plantou para que prossigam após sua morte e as encoraja quando são dominadas pelo choro (At 20.37). Procura pregar as boas-novas até mesmo para aqueles que tentam matá-lo (At 22.1-21). Cura todos os doentes na ilha de Malta (At 28.8-10).

Um exemplo notável de sua preocupação com os outros ocorre durante o naufrágio. Embora seu aviso para não fazer a viagem tenha sido ignorado, Paulo ajuda e encoraja a tripulação e os passageiros quando a tempestade chega.

Visto que os homens tinham passado muito tempo sem comer, Paulo levantou-se diante deles e disse: “Os senhores deviam ter aceitado o meu conselho de não partir de Creta, pois assim teriam evitado este dano e prejuízo. Mas agora recomendo que tenham coragem, pois nenhum de vocês perderá a vida; apenas o navio será destruído. Pois ontem à noite apareceu-me um anjo do Deus a quem pertenço e a quem adoro, dizendo-me: ‘Paulo, não tenha medo. É preciso que você compareça perante César; Deus, por sua graça, deu-lhe a vida de todos os que estão navegando com você’. Assim, tenham ânimo, senhores! Creio em Deus que acontecerá conforme me foi dito”. (At 27.21-25)

Sua preocupação não termina com palavras de encorajamento, mas prossegue com atos práticos. Ele garante que todos comam para manter as forças (At 27.34-36). Elabora um plano que salvará a vida de todos, incluindo aqueles que não sabem nadar (At 27.26,38,41,44). Dirige os preparativos para encalhar o navio (At 27.43b) e impede que os marinheiros abandonem os soldados e passageiros (At 27.30-32). Como resultado de suas preocupações e ações, nem uma única vida se perde no naufrágio (At 27.44).

A liderança de Paulo abrange muito mais que os quatro fatores de coragem, sofrimento, respeito e preocupação pelos outros, e é visível muito além de Atos 20—28. No entanto, esses fatores, conforme apresentados nesses capítulos, formam uma das mais comoventes demonstrações de liderança na Bíblia e continuam a ser um exemplo hoje tanto quanto foram nos dias de Lucas.

Conclusão de Atos

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Investigar o trabalho e questões relacionadas a ele em Atos apresenta um tratamento coerente da vocação no mundo de Deus. Em Atos, a visão cristã do trabalho não é relegada simplesmente ao âmbito da ética. Em vez disso, é uma forma ativa de testemunho da redenção do mundo por Deus. A lógica de Atos se move na seguinte direção:

1. A vinda do Espírito dá início ao reino de Cristo — o novo mundo de Deus –, que opera de uma maneira nova. O sistema de clientelismo romano, que buscava status para si mesmo, é substituído por um espírito de amor que busca o bem dos outros. Isso segue o exemplo de Jesus, que se entrega pelo bem dos outros — algo evidente, acima de tudo, na cruz.

2. A vocação cristã é conceituada como um testemunho do reino de Cristo, capacitado pelo Espírito, não apenas por proclamação, mas também por ações realizadas em concordância com o espírito de amor de Deus na vida cotidiana.

3. A vocação cristã é dada à comunidade de crentes como um todo, não apenas a indivíduos. A prática dos crentes não é perfeita — às vezes, fica muito longe disso — e, no entanto, é uma participação real no novo mundo.

4. A comunidade dá testemunho do reino de Cristo trabalhando e usando recursos relacionados ao trabalho — poder, riqueza e status — em prol dos outros e da comunidade como um todo. A participação na comunidade anda de mãos dadas com um modo de vida transformado, que leva ao amor e ao serviço. Um resultado exemplar é a prática da generosidade radical envolvendo todo tipo de recurso.

5. Quando o trabalho é realizado dessa maneira, qualquer profissão pode ser um ato de testemunho através da prática das estruturas de justiça, retidão e beleza trazidas pelo reino de Deus.

6. A comunidade cristã, portanto, produz uma maneira de trabalhar que desafia as estruturas do mundo caído e, às vezes, se coloca em conflito com os detentores do poder do mundo. No entanto, a intenção da comunidade não é colidir com o mundo, mas transformá-lo.

7. A liderança é uma arena proeminente na qual se efetiva o novo espírito de amor e serviço ao próximo. A autoridade é compartilhada e a liderança, encorajada em todos os níveis da comunidade. Os líderes aceitam o fardo de agir pelo bem dos outros e respeitam a sabedoria e a autoridade daqueles que lideram. Os atributos de liderança — incluindo coragem, sofrimento, respeito e preocupação com os outros — vêm à tona no exemplo do apóstolo Paulo.

Atos nos ajuda a ver que a vida humana como um todo — incluindo o trabalho e seus frutos — pode ser um meio de participar, através do poder do Espírito que já está emergindo, da vinda do reino de Deus à terra. Dessa forma, o trabalho não é apenas digno, mas também essencial para a vocação humana de testemunho. Como era desde o início, o trabalho é um ponto central do que significa ser plenamente humano. Os trabalhadores de hoje são chamados a ser cultivadores e transformadores da terra, da cultura, da família, dos negócios, da educação, da justiça e de todas as outras esferas — tudo por causa do reino de Deus.

Versículos-chave e temas em Atos

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Versículo

Tema

Atos 1.6 Então os que estavam reunidos lhe perguntaram: “Senhor, é neste tempo que vais restaurar o reino a Israel?”.

A vida cristã ocorre em uma comunidade que tem como base uma vocação para o reino de Deus

Atos 1.8 Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês, e serão minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra.

A comunidade cristã tem seu foco no testemunho do reino de Deus na vida cotidiana.

Atos 2.17-21 Nos últimos dias, diz Deus, derramarei do meu Espírito sobre todos os povos. Os seus filhos e as suas filhas profetizarão, os jovens terão visões, os velhos terão sonhos. Sobre os meus servos e as minhas servas derramarei do meu Espírito naqueles dias, e eles profetizarão [...] antes que venha o grande e glorioso dia do Senhor. E todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo!

A vida cristã é a participação no novo mundo de Deus

Atos 2.40 Com muitas outras palavras os advertia e insistia com eles: “Salvem-se desta geração corrompida!”.

A vida cristã é a participação no novo mundo de Deus

Atos 2.42-47 Eles se dedicavam ao ensino dos apóstolos e à comunhão, ao partir do pão e às orações. [...] Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. [...] E o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 3.6 Disse Pedro: “Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isto lhe dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, ande”.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 4.18-21 Então, chamando-os novamente, ordenaram-lhes que não falassem nem ensinassem em nome de Jesus. Mas Pedro e João responderam: “Julguem os senhores mesmos se é justo aos olhos de Deus obedecer aos senhores e não a Deus. Pois não podemos deixar de falar do que vimos e ouvimos”. [...] Todo o povo estava louvando a Deus pelo que acontecera.

Deus é soberano sobre os sistemas de poder

Atos 4.25-26 Tu falaste pelo Espírito Santo por boca do teu servo, nosso pai Davi: “Por que se enfurecem as nações, e os povos conspiram em vão? Os reis da terra se levantam, e os governantes se reúnem contra o Senhor e contra o seu Ungido”.

Deus é soberano sobre os sistemas de poder

Atos 4.32-37 Da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham. [...] José, um levita de Chipre [...], vendeu um campo que possuía, trouxe o dinheiro e o colocou aos pés dos apóstolos.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 5.1-11 Um homem chamado Ananias, com Safira, sua mulher, também vendeu uma propriedade. Ele reteve parte do dinheiro para si, sabendo disso também sua mulher; e o restante levou e colocou aos pés dos apóstolos. Então perguntou Pedro: “Ananias, como você permitiu que Satanás enchesse o seu coração, a ponto de você mentir ao Espírito Santo e guardar para você uma parte do dinheiro que recebeu pela propriedade?” [...] Ouvindo isso, Ananias caiu morto. [...] E grande temor apoderou-se de toda a igreja e de todos os que ouviram falar desses acontecimentos.

Poder, status e recursos devem ser usados ​​para o bem da comunidade

Atos 5.27-32 Tendo levado os apóstolos, apresentaram-nos ao Sinédrio para serem interrogados pelo sumo sacerdote, que lhes disse: “Demos ordens expressas a vocês para que não ensinassem neste nome. Todavia, vocês encheram Jerusalém com sua doutrina e nos querem tornar culpados do sangue desse homem”. Pedro e os outros apóstolos responderam: “É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens! [...] Nós somos testemunhas destas coisas, bem como o Espírito Santo, que Deus concedeu aos que lhe obedecem”.

Deus é soberano sobre os sistemas de poder

Atos 6.1-7 Naqueles dias, crescendo o número de discípulos, os judeus de fala grega entre eles queixaram-se dos judeus de fala hebraica, porque suas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária de alimento. Por isso os Doze reuniram todos os discípulos e disseram: “Não é certo negligenciarmos o ministério da palavra de Deus, a fim de servir às mesas. Irmãos, escolham entre vocês sete homens de bom testemunho, cheios do Espírito e de sabedoria. Passaremos a eles essa tarefa e nos dedicaremos à oração e ao ministério da palavra”. [...] Crescia rapidamente o número de discípulos em Jerusalém; também um grande número de sacerdotes obedecia à fé.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 8.18-24 Vendo Simão que o Espírito era dado com a imposição das mãos dos apóstolos, ofereceu-lhes dinheiro e disse: “Deem-me também este poder, para que a pessoa sobre quem eu puser as mãos receba o Espírito Santo”. Pedro respondeu: “Pereça com você o seu dinheiro! Você pensa que pode comprar o dom de Deus com dinheiro?” [...]. Simão, porém, respondeu: “Orem vocês ao Senhor por mim, para que não me aconteça nada do que vocês disseram”.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 8.26-40 Um anjo do Senhor disse a Filipe: “Vá para o sul, para a estrada deserta que desce de Jerusalém a Gaza”. [...] No caminho encontrou um eunuco etíope [... que] viera a Jerusalém para adorar a Jesus e, de volta para casa, sentado em sua carruagem, lia o livro do profeta Isaías. E o Espírito disse a Filipe: “Aproxime-se dessa carruagem e acompanhe-a”. [...] Então Filipe, começando com aquela passagem da Escritura, anunciou-lhe as boas-novas de Jesus. Prosseguindo pela estrada, chegaram a um lugar onde havia água. O eunuco disse: “Olhe, aqui há água. Que me impede de ser batizado?”[...]. Assim, deu ordem para parar a carruagem. Então Filipe e o eunuco desceram à água, e Filipe o batizou...

Poder, status e recursos não são substitutos de um relacionamento com Deus

Atos 9.36-42 Em Jope havia uma discípula chamada Tabita, que em grego é Dorcas, que se dedicava a praticar boas obras e dar esmolas. Naqueles dias ela ficou doente e morreu, e seu corpo foi lavado e colocado num quarto do andar superior. [...] Pedro mandou que todos saíssem do quarto; depois, ajoelhou-se e orou. Voltando-se para a mulher morta, disse: “Tabita, levante-se”. Ela abriu os olhos e, vendo Pedro, sentou-se. Tomando-a pela mão, ajudou-a a pôr-se em pé. Então, chamando os santos e as viúvas, apresentou-a viva. Este fato se tornou conhecido em toda a cidade de Jope, e muitos creram no Senhor.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 9.43 Pedro ficou em Jope durante algum tempo, com um curtidor de couro chamado Simão.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 10.24 No outro dia chegaram a Cesareia. Cornélio os esperava com seus parentes e amigos mais íntimos que tinha convidado.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 11.27-30 Naqueles dias alguns profetas desceram de Jerusalém para Antioquia. Um deles, Ágabo, levantou-se e pelo Espírito predisse que uma grande fome sobreviria a todo o mundo romano, o que aconteceu durante o reinado de Cláudio. Os discípulos, cada um segundo as suas possibilidades, decidiram providenciar ajuda para os irmãos que viviam na Judeia. E o fizeram, enviando suas ofertas aos presbíteros pelas mãos de Barnabé e Saulo.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 12.20-23 [Herodes] estava cheio de ira contra o povo de Tiro e Sidom; contudo, eles haviam se reunido e procuravam ter uma audiência com ele. Tendo conseguido o apoio de Blasto, homem de confiança do rei, pediram paz, porque dependiam das terras do rei para obter alimento. No dia marcado, Herodes, vestindo seus trajes reais, sentou-se em seu trono e fez um discurso ao povo. Eles começaram a gritar: “É voz de deus, e não de homem”. Visto que Herodes não glorificou a Deus, imediatamente um anjo do Senhor o feriu; e ele morreu comido por vermes.

Toda autoridade vem de Deus

Deus é soberano sobre os sistemas de poder

Atos 13.1-3 Na igreja de Antioquia havia profetas e mestres: Barnabé, Simeão, chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, que fora criado com Herodes, o tetrarca, e Saulo. Enquanto adoravam o Senhor e jejuavam, disse o Espírito Santo: “Separem-me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho chamado”. Assim, depois de jejuar e orar, impuseram-lhes as mãos e os enviaram.

O discernimento de uma vocação em particular é feito dentro da comunidade cristã

Atos 13.50 Mas os judeus incitaram as mulheres religiosas de elevada posição e os principais da cidade. E, provocando perseguição contra Paulo e Barnabé, os expulsaram do seu território.

A vida cristã produz confronto com os poderosos

Atos 16.11-15 Partindo de Trôade, navegamos diretamente para Samotrácia e, no dia seguinte, para Neápolis. Dali partimos para Filipos, na Macedônia, que é colônia romana [...]. O Senhor abriu [o coração de Lídia] para atender à mensagem de Paulo. Tendo sido batizada, bem como os de sua casa, ela nos convidou, dizendo: “Se os senhores me consideram uma crente no Senhor, venham ficar em minha casa”. E nos convenceu.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 16.16-24 Certo dia, indo nós para o lugar de oração, encontramos uma escrava que tinha um espírito pelo qual predizia o futuro. Ela ganhava muito dinheiro para os seus senhores com adivinhações. Essa moça seguia Paulo e a nós, gritando: “Estes homens são servos do Deus Altíssimo e anunciam o caminho da salvação”. Ela continuou fazendo isso por muitos dias. Finalmente, Paulo ficou indignado, voltou-se e disse ao espírito: “Em nome de Jesus Cristo eu ordeno que saia dela!” No mesmo instante o espírito a deixou. Percebendo que a sua esperança de lucro tinha se acabado, os donos da escrava agarraram Paulo e Silas e os arrastaram para a praça principal, diante das autoridades. [...]

O evangelho liberta do mal manifestado por meio de práticas econômicas opressivas

Atos 17.12 E creram muitos dentre os judeus e também um bom número de mulheres gregas de elevada posição e não poucos homens gregos.

A igreja tem diversidade econômica

Atos 18.3-4 Uma vez que tinham a mesma profissão, ficou morando e trabalhando com eles, pois eram fabricantes de tendas. Todos os sábados ele debatia na sinagoga e convencia judeus e gregos.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 19.19 Grande número dos que tinham praticado ocultismo reuniram seus livros e os queimaram publicamente. Calculado o valor total, este chegou a cinquenta mil dracmas.

Algumas vocações em particular são inimigas do Evangelho

Atos 19.23-41 Naquele tempo houve um grande tumulto por causa do Caminho. Um ourives chamado Demétrio, que fazia miniaturas de prata do templo de Ártemis e que dava muito lucro aos artífices, reuniu-os com os trabalhadores dessa profissão e disse: “[... Paulo] está convencendo e desviando grande número de pessoas aqui em Éfeso e em quase toda a província da Ásia. Diz ele que deuses feitos por mãos humanas não são deuses. [...]” Ao ouvirem isso, eles ficaram furiosos e começaram a gritar: “Grande é a Ártemis dos efésios!” Em pouco tempo a cidade toda estava em tumulto. O povo foi às pressas para o teatro, arrastando os companheiros de viagem de Paulo, os macedônios Gaio e Aristarco. [...] O escrivão da cidade acalmou a multidão e disse: “[...] Da maneira como está, corremos o perigo de sermos acusados de perturbar a ordem pública por causa dos acontecimentos de hoje [...]”. E, tendo dito isso, encerrou a assembleia.

A vida cristã produz confronto com os poderosos

Atos 20.33-35 Não cobicei a prata, nem o ouro, nem as roupas de ninguém. Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos supriram minhas necessidades e as de meus companheiros. Em tudo o que fiz, mostrei a vocês que mediante trabalho árduo devemos ajudar os fracos, lembrando as palavras do próprio Senhor Jesus, que disse: “Há maior felicidade em dar do que em receber”.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 21.8 Partindo no dia seguinte, chegamos a Cesareia e ficamos na casa de Filipe, o evangelista, um dos sete.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Atos 27.11 Mas o centurião, em vez de ouvir o que Paulo falava, seguiu o conselho do piloto e do dono do navio.

Poder, status e recursos devem ser usados para o bem da comunidade

Introdução a Romanos

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A carta de Paulo aos Romanos é mais conhecida por sua visão das ações graciosas de Deus para com a humanidade por meio da cruz e da ressurreição de Cristo. “É o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê.” (Rm 1.16) Há alguma coisa profundamente errada conosco individualmente — e com o mundo como um todo — da qual precisamos ser salvos, e Romanos nos diz como Deus nos salva.

Romanos é profundamente teológico, mas não abstrato. A salvação de Deus não é um conceito para um discurso analítico sobre Romanos, mas um chamado à ação (Rm 6.22). Paulo conta como a salvação de Deus afeta nossa sabedoria, nossa honestidade, nossos relacionamentos, nosso julgamento, nossa capacidade de suportar reveses, nosso caráter e nosso raciocínio ético, todos itens essenciais ao trabalho. É aqui, no âmago da questão dos relacionamentos humanos e no desejo de fazer um bom trabalho, onde a salvação de Deus se estabelece em nosso mundo.

Escrita em algum momento durante o reinado do imperador romano Nero (54-68 d.C.), a carta aos Romanos dá uma ideia das trevas e do perigo que cercavam as igrejas romanas nos lares, compostas por judeus e gentios convertidos a Cristo. Alguns dos membros judeus das congregações haviam sido exilados por um édito do imperador Cláudio, do ano 49, e retornado apenas recentemente. Nesse meio tempo, é provável que tivessem perdido suas propriedades e estabilidade financeira (At 18.2). O sentimento antijudaico na cultura romana mais ampla certamente exerceu pressão sobre as igrejas cristãs. A extensa reflexão de Paulo nesta carta sobre a fidelidade de Deus com relação aos judeus e gentios nada tem de abstrata sobre os caminhos de Deus, mas trata-se sim de uma hábil reflexão teológica sobre esses eventos históricos e suas consequências. O resultado é um conjunto de ferramentas práticas para a tomada de decisões morais que levem a uma nova qualidade de vida em todos os lugares onde as pessoas vivem e trabalham.

A carta aos Romanos foi excepcionalmente importante no desenvolvimento da teologia cristã. Para dar apenas dois exemplos, Martinho Lutero rompeu com o papa Leão X em grande parte por causa de seu desacordo sobre o que ele percebia ser o entendimento católico romano da carta aos Romanos. O título de Karl Barth intitulado Carta aos Romanos foi, sem dúvida, a obra teológica mais influente do século 20. [1] Nos últimos vinte e cinco ou trinta anos, surgiu um grande debate teológico sobre a relação entre salvação e boas obras em Romanos e no restante das cartas de Paulo, frequentemente chamado de Nova Perspectiva sobre Paulo. Os comentários gerais sobre Romanos exploram essas questões em profundidade. Vamos nos concentrar especificamente no que a carta contribui para a teologia do trabalho. É claro que precisamos ter um entendimento básico dos pontos gerais de Paulo antes de aplicá-los ao trabalho; portanto, quando necessário, faremos uma certa exploração teológica geral.

O evangelho da salvação — a vocação de Paulo (Rm 1.1-17)

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O versículo de abertura de Romanos anuncia a própria vocação de Paulo, a obra que Deus o chamou para fazer: proclamar o evangelho de Deus em palavras e ações. Então, o que é o evangelho de Deus? Paulo diz que é “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu, depois do grego. Porque no evangelho é revelada a justiça de Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’” (Rm 1.16-17). Para Paulo, o evangelho é mais do que palavras — é o poder de Deus para a salvação. Ele enfatiza que essa salvação não é apenas para um grupo de pessoas, mas se destina a ajudar qualquer indivíduo na terra a, pela fé, se colocar entre o povo de Deus. Sendo assim, Romanos trata acima de tudo da salvação de Deus.

O que é salvação? A salvação é a obra de Deus que coloca os seres humanos em um relacionamento correto com Deus e uns com os outros. Como veremos em breve, estamos sendo salvos de relacionamentos rompidos — com Deus e com as pessoas — que liberam no mundo as forças malignas do pecado e da morte. Portanto, a salvação é, antes de tudo, a cura de relacionamentos rompidos, começando com a cura que reconcilia o Criador e a criatura, Deus e nós. Nossa reconciliação com Deus leva à libertação do pecado e a uma novidade de vida que não é limitada pela morte.

Em alguns momentos da história, os cristãos reduziram o evangelho de salvação de Paulo a algo como “creia em Jesus para que você possa ir pessoalmente para o céu quando morrer”. Até certo ponto, isso é verdade, mas totalmente inadequado. Para começar, uma declaração como essa não diz nada sobre relacionamentos, exceto entre o indivíduo e Deus, mas Paulo nunca deixa de falar sobre relacionamentos interpessoais e das pessoas com o restante da criação de Deus. E Paulo tem muito mais a dizer sobre fé, sobre a vida em Jesus, sobre o reino de Deus e sobre a qualidade de vida antes e depois da morte do que poderia ser encapsulado em um único slogan.

Da mesma forma, a salvação não pode ser reduzida a um único momento no tempo. Paulo diz que “fomos salvos” (Rm 8.24) e que “seremos salvos” (por exemplo, Rm 5.9). A salvação é um processo contínuo, e não um evento único. Deus interage com cada pessoa em uma dança de graça divina e fidelidade humana ao longo do tempo. Existem momentos decisivos no processo de ser salvo, é claro. Os momentos centrais são a morte de Cristo na cruz e sua ressurreição dentre os mortos. Paulo nos diz que “fomos reconciliados com ele mediante a morte de seu Filho” (Rm 5.10) e “aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos também dará vida a seus corpos mortais” (Rm 8.11).

Cada um de nós também pode considerar o instante em que dissemos acreditar em Cristo como o momento decisivo de nossa salvação. Romanos, no entanto, nunca fala de um momento de salvação pessoal, como se a salvação tivesse acontecido conosco no passado e, agora, estivesse armazenada até que Cristo volte. Paulo usa o pretérito apenas para se referir à morte e à ressurreição de Cristo, ao momento em que Cristo trouxe a salvação ao mundo. Quando se trata de cada crente, ele fala de um processo contínuo de salvação, sempre no presente ou no futuro. “Com o coração se crê para justiça, e com a boca se confessa para salvação” (Rm 10.10). Não “creu” e “confessou”, no passado, mas “crê” e “confessa”, no presente. Isso leva diretamente a “todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”, ou seja, tempo futuro (Rm 10.13). A salvação não é algo que nos foi dado. Ela está sempre sendo dada a nós.

Fizemos questão de enfatizar a ação contínua da salvação porque o trabalho é um dos lugares de maior destaque de nossas ações. Se a salvação fosse algo que só aconteceu conosco no passado, então o que fazemos no trabalho (ou em qualquer lugar da vida) seria irrelevante. Mas, se a salvação é algo que está acontecendo em nossa vida, então ela produz frutos no trabalho. Para ser mais preciso, visto que a salvação é a reconciliação de relacionamentos rompidos, nosso relacionamento com Deus, com as pessoas e com o mundo criado em ação (como em todos os lugares da vida) melhorarão à medida que o processo de salvação se estabelecer. Apenas para dar alguns exemplos, a salvação é evidente quando criamos coragem para falar uma verdade impopular, para ouvir com compaixão o ponto de vista dos outros, para ajudar os colegas a atingirem seus objetivos e produzirem frutos de trabalho que ajudem as pessoas a prosperarem.

Isso significa que devemos trabalhar — e continuar trabalhando — para ser salvos? Absolutamente não! A salvação vem unicamente por meio da “graça de Deus, isto é, a dádiva pela graça de um só, Jesus Cristo” (Rm 5.15). Isso “vem pela fé” (Rm 4.16) e nada mais. Como N. T. Wright coloca, “seja qual for a linguagem ou terminologia que usemos para falar sobre o grande dom que o único e verdadeiro Deus deu ao seu povo em e por meio de Jesus Cristo, ele continua sendo precisamente um dom. Nunca é algo que possamos ganhar. Nunca podemos colocar Deus em dívida conosco; nós é que sempre estamos em débito para com ele”. [1] Não trabalhamos para ser salvos. Mas, porque estamos sendo salvos, fazemos uma obra que dá frutos para Deus (Rm 7.4). Voltaremos à questão de como a salvação nos é dada em “Juízo, justiça e fé” abaixo, em Romanos 3.

Em suma, a salvação é a obra final de Cristo no mundo, o objetivo em direção ao qual os crentes sempre “prosseguem”, como Paulo coloca (Fp 3.12). A salvação está por trás de tudo que tanto Paulo quanto os crentes fazem no trabalho e na vida.

Nossa necessidade de salvação na vida e no trabalho (Rm 1.18-32)

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Vimos em Romanos 1.1-17 que a salvação começa com a reconciliação com Deus. As pessoas se afastaram de Deus por causa de sua “impiedade e injustiça” (Rm 1.18). “Tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças.” (Rm 1.21) Dentre as criaturas do Jardim do Éden (Gn 1—2), fomos criados para andar em intimidade com Deus, mas nosso relacionamento com Deus tornou-se tão distante que não o reconhecemos mais. Paulo chama esse estado de “disposição mental reprovável” (Rm 1.28).

Na falta da presença de espírito para permanecer na presença do Deus real, tentamos criar os próprios deuses. Trocamos “a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis” (Rm 1.23). Nosso relacionamento com Deus está tão completamente danificado que não conseguimos enxergar a diferença entre andar com Deus e esculpir um ídolo. Quando nosso relacionamento real com o Deus verdadeiro é rompido, criamos relacionamentos falsos com deuses falsos. A idolatria, então, não é apenas um pecado entre outros, mas a essência de um relacionamento rompido com Deus. (Para mais informações sobre idolatria, consulte “Não farás para ti nenhum ídolo” (Êx 20.4), em www.teologiadotrabalho.org.)

Quando nosso relacionamento com Deus é rompido, nosso relacionamento com as pessoas também é prejudicado. Paulo lista alguns dos aspectos do consequente rompimento dos relacionamentos humanos.

Tornaram-se cheios de toda sorte de injustiça, maldade, ganância e depravação. Estão cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e malícia. São bisbilhoteiros, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, arrogantes e presunçosos; inventam maneiras de praticar o mal; desobedecem a seus pais; são insensatos, desleais, sem amor pela família, implacáveis. (Rm 1.29-31)

Vivenciamos no trabalho quase todas essas formas de relacionamento rompido. Ganância, rivalidade e inveja da posição ou do contracheque de outros, malícia e desobediência às autoridades, fofocas e calúnias contra colegas de trabalho e concorrentes, engano e infidelidade nas comunicações e nos compromissos, insolência, arrogância e presunção daqueles que experimentam sucesso, insensatez nas decisões, desamor e inclemência por parte daqueles que estão no poder. Não o tempo todo, é claro. Alguns locais de trabalho são melhores que outros. Mas todo local de trabalho conhece as consequências de relacionamentos rompidos. Todos nós sofremos com eles. Todos nós contribuímos para causá-los.

Podemos até agravar o problema fazendo do trabalho um ídolo, dedicando-nos a ele na vã esperança de que ele, por si só, nos traga significado, propósito, segurança ou felicidade. Talvez isso pareça funcionar por um tempo, até que sejamos preteridos em uma promoção, demitidos, afastados ou nos aposentemos. Então descobrimos que o trabalho chega ao fim e, então, nos tornamos estranhos para nossa família e amigos. Assim como “homem mortal, [...] pássaros, quadrúpedes e répteis”, o trabalho foi criado por Deus (Gn 2.15) e é inerentemente bom, mas se torna mau quando elevado ao lugar de Deus.

Todos pecaram (Rm 2—3)

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Infelizmente, essa ruptura se estende até mesmo ao local de trabalho de Paulo, à igreja cristã e, em particular, aos cristãos em Roma. Apesar de serem o povo de Deus (Rm 9.25), “chamados para serem santos” (Rm 1.7), os cristãos em Roma estão passando por um colapso interrelacional. Especificamente, os cristãos judeus estão julgando os cristãos gentios por não se conformarem a suas expectativas peculiares, e vice-versa. “Sabemos que o juízo de Deus contra os que praticam tais coisas é conforme a verdade”, observa Paulo (Rm 2.2). Cada lado afirma que conhece os juízos de Deus e que fala por Deus. O ato de afirmar que falam em nome de Deus transforma as próprias palavras em ídolos, ilustrando em uma escala menor como a idolatria (romper a relação com Deus) leva ao julgamento (romper o relacionamento com as pessoas).

Ambos os lados estão errados. A verdade é que gentios e judeus se afastaram de Deus. Os gentios, que deveriam ter reconhecido a soberania de Deus na própria criação, se entregaram à adoração a ídolos e a todo comportamento destrutivo oriundo desse erro básico (Rm 1.18-32). Os judeus, em contrapartida, tornaram-se críticos, hipócritas e arrogantes por serem o povo da Torá. Paulo resume ambas as situações, dizendo: “Todo aquele que pecar sem a Lei, sem a Lei também perecerá, e todo aquele que pecar sob a Lei, pela Lei será julgado” (Rm 2.12).

Mas o cerne do problema não está na incompreensão de ambas as partes das expectativas de Deus, mas no fato de cada lado julgar o outro, destruindo os relacionamentos que Deus havia criado. É crucial reconhecer o papel do juízo no argumento de Paulo. O julgamento rompe relacionamentos. Os pecados específicos mencionados em Romanos 1.29-31 não são os responsáveis pelo rompimento dos relacionamentos, mas o resultado final. As causas de nossos relacionamentos rompidos são a idolatria (em relação a Deus) e o juízo (em relação às pessoas). Na verdade, a idolatria pode ser entendida como uma forma de julgamento, o julgamento de que Deus não é adequado e de que podemos criar, por conta própria, deuses melhores. Assim, a preocupação primordial de Paulo nos capítulos 2 e 3 é o julgamento que fazemos dos outros.

Portanto, você, que julga os outros é indesculpável; pois está condenando você mesmo naquilo em que julga, visto que você, que julga, pratica as mesmas coisas. Sabemos que o juízo de Deus contra os que praticam tais coisas é conforme a verdade. Assim, quando você, um simples homem, os julga, mas pratica as mesmas coisas, pensa que escapará do juízo de Deus? (Rm 2.1-3)

Se nos perguntarmos o que fizemos para que tenhamos necessidade de salvação, a resposta acima de tudo é, de acordo com Paulo, julgamento e idolatria. Julgamos os outros, embora não tenhamos o direito de fazê-lo, e assim trazemos o julgamento de Deus sobre nós mesmos, enquanto ele trabalha para restaurar a verdadeira justiça. Para usar uma metáfora moderna, é como a Suprema Corte derrubando um juiz corrupto em um tribunal inferior que nem sequer tinha jurisdição.

Isso significa que os cristãos nunca devem avaliar as ações alheias ou se opor às pessoas no trabalho? Não. Como trabalhamos como agentes de Deus, temos o dever de avaliar se o que acontece no trabalho serve aos propósitos de Deus ou os atrapalha, e agir de acordo (ver alguns exemplos de Paulo em Rm 12.9—13.7). Um supervisor pode precisar disciplinar ou demitir um funcionário que não esteja fazendo seu trabalho satisfatoriamente. Um trabalhador pode precisar passar por cima de um supervisor para relatar uma violação ética ou política. Um professor pode precisar dar uma nota baixa. Um eleitor ou político pode ter de se opor a um candidato. Um ativista pode precisar protestar contra uma injustiça corporativa ou governamental. Um aluno pode precisar denunciar a trapaça de outro aluno. Uma vítima de abuso ou discriminação pode precisar cortar o contato com o agressor.

Como somos responsáveis ​​perante Deus pelos resultados de nosso trabalho e pela integridade de nosso local de trabalho, precisamos avaliar as ações e intenções das pessoas e agir para evitar injustiças, e assim fazer um bom trabalho. Mas isso não significa que julgamos o valor dos outros como seres humanos ou nos consideramos moralmente superiores. Mesmo quando nos opomos às ações dos outros, não os julgamos.

Às vezes, pode ser difícil perceber a diferença, mas Paulo nos dá uma orientação surpreendentemente prática: respeite a consciência do outro. Deus criou os seres humanos de tal maneira que “as exigências da Lei estão gravadas em seu coração. Disso dão testemunho também a sua consciência e os pensamentos deles” (Rm 2.15). Se os outros estão de fato seguindo a própria consciência, não é seu trabalho julgá-los. Mas, se você estiver se apresentando como moralmente superior, condenando os outros por seguirem a própria bússola moral, provavelmente está julgando de maneira “indesculpável” (Rm 2.1).

Julgamento, a fonte de relacionamentos rompidos (Rm 3.1-20)

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O que pode ser feito com um mundo cujas pessoas estão separadas de Deus pela idolatria e umas das outras pelo julgamento? A verdadeira justiça de Deus é a resposta. Em Romanos 3, Paulo descreve o que acontece na salvação em termos da justiça de Deus. “Nossa injustiça ressalta de maneira ainda mais clara a justiça de Deus” (Rm 3.5).

Antes de prosseguir, precisamos falar um pouco sobre a terminologia de justiça e retidão. Paulo usa a palavra grega para justiça, dikaiosynē e suas várias formas, trinta e seis vezes em Romanos. É traduzida como “retidão” com mais frequência e como “justiça” (ou “justificação”) com menos frequência. Mas os dois são o mesmo na linguagem de Paulo. O uso primário de dikaiosynē está nos tribunais, onde as pessoas buscam justiça para restaurar uma situação incorreta. Portanto, salvação significa ser tornado reto com Deus (retidão) e com as pessoas, e toda a criação (justiça). Uma exploração completa da relação entre as palavras salvação, justificação, justiça, e salvação está além do escopo deste capítulo, mas é abordada em qualquer comentário geral sobre Romanos. [1]

Se isso parece abstrato, pergunte-se se você consegue ver implicações concretas no trabalho. O julgamento (falso) das pessoas em relação às demais é a raiz de relacionamentos rompidos e da injustiça no seu local de trabalho? Por exemplo, se um gerente e um funcionário discordam sobre a avaliação de desempenho deste, qual deles causa maior dano: a própria falta de desempenho ou a hostilidade decorrente de seu julgamento? Ou se alguém fofoca sobre outro no trabalho, o que causa maior dano: a vergonha do que provocou a fofoca ou ressentimento pelo julgamento revelado pelo tom do fofoqueiro e pelas risadinhas dos ouvintes?

Se o falso julgamento é a raiz dos relacionamentos rompidos com Deus, com as pessoas e com a criação, como podemos encontrar a salvação? Aquilo de que precisamos — justiça e retidão — é exatamente aquilo de que somos mais incapazes. Mesmo que queiramos voltar a ter relacionamentos corretos, nossa incapacidade de julgar corretamente significa que, quanto mais nos esforçamos, mais pioramos o problema. “Quem me libertará [...]?”, Paulo lamenta (Rm 7.24).

Não podemos esperar ser resgatados por ninguém, pois eles estão no mesmo barco em que estamos. “Todo homem [é] mentiroso”, Paulo nos diz (Rm 3.4). “Não há nenhum justo, nem um sequer; não há ninguém que entenda, ninguém que busque a Deus. Todos se desviaram, tornaram-se juntamente inúteis; não há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.10-12). “Todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus.” (Rm 3.23)

No entanto, há esperança — não na humanidade, mas na fidelidade de Deus. “Que importa se alguns deles foram infiéis? A sua infidelidade anulará a fidelidade de Deus? De maneira nenhuma!”, ele responde (Rm 3.3-4). Pelo contrário, “a nossa injustiça ressalta de maneira ainda mais clara a justiça de Deus”. Isso significa que o local de trabalho é um ambiente para a graça, tanto quanto a igreja ou a família. Se sentirmos que o local de trabalho é muito secular, muito antiético, muito hostil à fé, muito cheio de pessoas gananciosas e sem alma, então é exatamente o lugar onde a cruz de Cristo é eficaz! A graça de Deus pode trazer reconciliação e justiça em uma fábrica, prédio de escritórios ou posto de gasolina tão plenamente quanto em uma catedral, abadia ou igreja. O evangelho de Paulo não é apenas para a igreja, mas para o mundo inteiro.

A justiça de Deus por meio de Jesus, a solução para nossos falsos julgamentos (Rm 3.21-26)

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Dado que nosso julgamento é falso e hipócrita, como podemos encontrar justiça e retidão? Essa é a pergunta que leva ao dramático ponto crucial de Romanos 3. A resposta de Deus é a cruz de Cristo. Deus nos dá sua justiça / retidão porque somos incapazes de produzir justiça / retidão por nós mesmos. Deus realiza isso por meio da cruz de Jesus, na qual ele demonstra que é “justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).

Deus realiza isso por meio da morte e ressurreição de Jesus. “Deus demonstra seu amor por nós: Cristo morreu em nosso favor quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8). Deus escolheu livremente aceitar a cruz de Cristo como se fosse um santo sacrifício de propiciação no templo judeu (Rm 3.25). Como no Dia da Expiação, Deus escolheu deixar de lado as transgressões das pessoas a fim de estabelecer uma espécie de novo começo para todos os que creem. E, embora Jesus fosse judeu, Deus considera a cruz uma oferta de salvação a todas as pessoas. Por meio da cruz, todos podem ser restaurados e alcançar um relacionamento correto com Deus.

Embora nos falte retidão / justiça, Deus tem ambos em infinita provisão. Por meio da cruz de Jesus, Deus nos dá a justiça que restaura nossos relacionamentos rompidos com Deus, com as pessoas e com toda a criação. Quando Deus nos dá salvação, ele nos dá retidão / justiça.

Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da Lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas, justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem. Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a fé, pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça. Em sua tolerância, havia deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; mas, no presente, demonstrou a sua justiça, a fim de ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus. (Rm 3.21-26; grifo nosso)

A cruz é a surpreendente justiça de Deus — surpreendente porque, embora Deus não seja o pecador, é Deus quem faz o sacrifício. Isso tem algum significado no local de trabalho secular de hoje? Poderia ser uma nota muito esperançosa. Em situações em que os problemas no trabalho são fruto de nossos próprios erros ou injustiças, podemos contar com a justiça de Deus para superar nossas falhas. Mesmo que não possamos nos corrigir, Deus pode operar sua justiça em nós e por meio de nós. Em situações em que os erros e a injustiça dos outros são os responsáveis pelos problemas, podemos consertar as coisas sacrificando algo de nós mesmos — em imitação de nosso Salvador –, mesmo que não tenhamos causado o problema.

Por exemplo, considere um grupo de trabalho que opera em uma cultura de culpa. Em vez de trabalharem juntas para resolver problemas, as pessoas passam o tempo tentando culpar os outros assim que os problemas surgem. Se o seu local de trabalho tem uma cultura de culpa, pode não ser sua responsabilidade. Talvez seu chefe seja o culpado. Mesmo assim, um sacrifício seu poderia trazer reconciliação e justiça? Da próxima vez que o chefe começar a culpar alguém, imagine se você se levantasse e dissesse: “Lembro que apoiei essa ideia da última vez que conversamos sobre isso, então é melhor você me culpar também”. E se, depois disso, duas ou três outras pessoas fizessem a mesma coisa com você? Isso começaria a fazer desmoronar o jogo da culpa? Você pode acabar sacrificando sua reputação, sua amizade com o chefe e até mesmo suas perspectivas de emprego no futuro. Mas não existiria também a possibilidade de isso quebrar o domínio da culpa e do julgamento em seu grupo de trabalho? Você poderia esperar que a graça de Deus assumisse um papel ativo por meio de seu sacrifício?

Fé/fidelidade, a entrada para a justiça de Deus (Rm 3.27-31)

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Na seção anterior, vimos Romanos 3.22-26 e destacamos a justiça que Deus nos dá na salvação. Agora, vamos olhar novamente para a passagem para destacar o papel da fé.

Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da Lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas, justiça de Deus mediante a em Jesus Cristo para todos os que creem. Não há distinção, pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus. Deus o ofereceu como sacrifício para propiciação mediante a , pelo seu sangue, demonstrando a sua justiça. Em sua tolerância, havia deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; mas, no presente, demonstrou a sua justiça, a fim de ser justo e justificador daquele que tem em Jesus. (Rm 3.21-26; grifo nosso)

Claramente, o dom de retidão/justiça de Deus está intimamente ligado à fé e à crença, o que nos leva a um dos temas mais famosos de Romanos: o papel da fé na salvação. De muitas maneiras, a Reforma Protestante foi fundada ao prestar atenção a essa e a passagens semelhantes em Romanos, e sua importância continua sendo central para praticamente todos os cristãos de hoje. Embora existam muitas maneiras de descrevê-lo, a ideia central é que as pessoas têm restaurado, pela fé, seu correto relacionamento com Deus.

A palavra grega pistis é traduzida como “fé” (ou, às vezes, “crer”, como em um dos exemplos acima), mas também como “fidelidade”, como em Romanos 3.3. Nossa língua faz distinção entre fé (consentimento mental, confiança ou compromisso) e fidelidade (ações consistentes com a fé). Mas, em grego, há apenas a palavra pistis, seja para fé seja para fidelidade. Não há como separar o que uma pessoa acredita da evidência dessa crença em suas ações. Se você tiver fé, agirá com fidelidade. Dado que, na maioria dos locais de trabalho, nossa fidelidade (o que fazemos) será mais evidente do que nossa fé (o que acreditamos), a relação entre esses dois aspectos pistis assume um significado particular para o trabalho.

Paulo fala da “pistis de Jesus” duas vezes aqui, em Romanos 3.22 e 3.26. Se traduzido literalmente, o grego diz “pistis de Jesus”, não “pistis em Jesus”. Assim, a redação literal de Romanos 3.22 diz que somos salvos pela fidelidade de Jesus a Deus (a pistis de Jesus). Em outras passagens, pistis claramente se refere a nossa fé em Jesus, como em Romanos 10.9: “Se você confessar com a sua boca que Jesus é Senhor e crer em seu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será salvo”. Na verdade, nossa fé em Jesus não pode ser separada da fidelidade de Jesus a Deus. Nossa fé em Jesus ocorre por causa da fidelidade de Jesus a Deus na cruz, e respondemos vivendo fielmente a ele e colocando nossa confiança nele. Lembrar que nossa salvação flui da fidelidade de Jesus, não apenas de nosso estado de fé, nos impede de transformar a posse da fé em uma nova forma de justiça pelas obras, como se nosso ato de dizer “creio em Jesus” fosse o que nos traz salvação.

O pleno significado de fé/fidelidade nos escritos de Paulo tem duas implicações importantes para o trabalho. Em primeiro lugar, elimina qualquer medo de que, ao levar o trabalho a sério, possamos vacilar em reconhecer que a salvação vem exclusivamente pelo dom da fé concedido por Deus. Quando nos lembramos de que a fidelidade de Cristo na cruz já realizou a obra da salvação e que nossa fé em Cristo vem exclusivamente pela graça de Deus, reconhecemos que nossa fidelidade a Deus no trabalho é simplesmente uma resposta à graça de Deus. Somos fiéis no trabalho porque Deus nos deu a fé como um dom gratuito.

Em segundo lugar, a fidelidade de Cristo nos impele a nos tornarmos cada vez mais fiéis. Novamente, isso não ocorre porque pensamos que nossas ações fiéis nos garantem a salvação, mas porque, tendo recebido fé em Cristo, desejamos sinceramente nos tornar mais semelhantes a ele. Paulo fala disso como a “obediência que vem pela fé” (Rm 1.5, 2:6). Sem fé, é impossível ser obediente a Deus. Mas, se Deus nos dá fé, podemos responder em obediência. De fato, grande parte da segunda metade de Romanos é dedicada a nos mostrar como ser mais obedientes a Deus como resultado da graça que ele nos concedeu por meio da fé.

Uma fé exemplar: Abraão creu em Deus (Rm 4)

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Como vimos em Romanos 1—3, a cruz de Cristo traz salvação a todas as pessoas — judeus e gentios. Em Cristo, Deus traz todos de volta ao relacionamento correto com ele e entre as pessoas, sem levar em conta as disposições da lei judaica. Por esse motivo, o foco principal de Paulo em Romanos é ajudar os cristãos divididos e briguentos em Roma a reconciliar os relacionamentos rompidos, a fim de viver fielmente naquilo que Deus realizou em Cristo.

No entanto, essa interpretação da morte de Cristo levanta um problema para Paulo, uma vez que ele está escrevendo não apenas para gentios incircuncisos, mas também para judeus circuncidados, para quem a Lei ainda é importante. Além disso, a interpretação de Paulo parece ignorar a história de Abraão, considerado o “pai” dos judeus, que de fato foi circuncidado como sinal de sua aliança com Deus (Gn 17.11). A história de Abraão não estaria sugerindo que entrar na aliança de Deus requer a circuncisão masculina para todos os povos, sejam judeus ou gentios?

“Não”, argumenta Paulo em Romanos 4. Interpretando a história de Abraão de Gênesis 12.1-3, 15.6, e 17.1-14, Paulo conclui que Abraão tinha fé de que Deus honraria sua palavra e tornaria Abraão, sem filhos, pai de muitas nações, por meio de sua esposa estéril, Sara. Consequentemente, Deus considerou a fé demonstrada por Abraão como justiça (Rm 4.3, 9, 22). Paulo lembra seus leitores de que o reconhecimento da justiça de Abraão por Deus ocorreu muito tempo antes de Abraão ser circuncidado, o que mais tarde veio como um sinal de sua fé já existente em Deus (Rm 4.10-11).

Em outras palavras, na época em que Deus considerou que a fé de Abraão o colocava em um relacionamento correto com Deus, Abraão compartilhava o mesmo status de um gentio incircunciso no mundo de Paulo. Assim, conclui Paulo, Abraão se tornou pai de judeus e gentios por meio da justiça da fé, e não da justiça sob a Lei judaica (Rm 4.11-15).

O exemplo de Abraão em Romanos 4 fornece aos cristãos uma grande esperança para o trabalho e o local de trabalho. O exemplo de Abraão de confiar nas promessas de Deus — apesar das circunstâncias adversas e das probabilidades aparentemente impossíveis — nos encoraja a não vacilar na confiança quando enfrentamos desafios no trabalho ou quando Deus parece não estar presente (ver Rm 4.19). Deus não cumpriu imediatamente a promessa feita a Abraão, o que nos encoraja ainda mais a sermos pacientes ao esperar que Deus renove ou redima nossas circunstâncias de vida.

A graça reina para a vida eterna por meio de Jesus Cristo (Rm 5)

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Em Romanos 5, Paulo vincula esse dom divino da justiça à obediência de Cristo e à graça que agora flui para o mundo por meio dele. Várias características importantes deste capítulo iluminam nossas experiências de trabalho.

A graça transforma o sofrimento em meio à vida em Cristo (Rm 5.1-11)

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Em Romanos 5.1-11, Paulo oferece mais encorajamento, lembrando aos romanos que, por meio de Cristo, já “obtivemos acesso” à graça de Deus, “na qual agora estamos firmes” (Rm 5.2). Graça significa o poder vivificante de Deus que ressuscitou Jesus dentre os mortos. A graça continua a trazer vida nova e mais abundante ao mundo, para e por meio dos seguidores de Cristo. Ao viver a vida obediente de fé e fidelidade de Cristo em nossas próprias circunstâncias, experimentamos a graça vivificante de Deus, que pode nos trazer alegria e paz no trabalho, em casa e em todos os contextos da vida.

No entanto, confiar na graça de Deus muitas vezes exige paciência inabalável diante de muitos desafios. Assim como Cristo sofreu em obediência a Deus, nós também podemos experimentar sofrimento quando incorporamos a vida de fé e fidelidade de Cristo. Paulo até diz que “se gloria” nas tribulações (Rm 5.3), sabendo que seu sofrimento é uma participação no sofrimento que Jesus experimentou em sua missão de reconciliar o mundo com Deus (Rm 8.17-18). Além disso, o sofrimento muitas vezes traz crescimento.

Não só isso, mas também nos gloriamos nas tribulações, porque sabemos que a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter aprovado, esperança. E a esperança não nos decepciona, porque Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu. (Rm 5.3-5)

Portanto, Deus não promete que a vida e o trabalho serão somente alegria para os crentes o tempo todo. Muitas pessoas sofrem no trabalho. O trabalho pode ser aborrecido, degradante, humilhante, exaustivo e inóspito. Podemos ser mal remunerados, ameaçados e discriminados. Podemos ser pressionados a violar nossa consciência e os princípios de Deus. Podemos ser demitidos, afastados, considerados desnecessários, rebaixados, além de ficar desempregados ou subempregados por longos períodos. Podemos trazer sofrimento a nós mesmos por nossa própria arrogância, descuido, incompetência, ganância ou malícia contra os outros. Podemos sofrer mesmo em bons empregos. Nunca devemos nos contentar com abusos ou maus-tratos no trabalho, mas, quando tivermos de suportar sofrimento, nem tudo estará perdido. A graça de Deus é derramada sobre nós quando sofremos, e nos torna mais fortes se permanecermos fiéis.

Para dar um exemplo, preparar o solo e cuidar das plantações não podem garantir que o grão cresça alto ou que os vegetais amadureçam. O mau tempo, a seca, os insetos e as pragas podem arruinar a colheita. No entanto, por meio da graça, os agricultores podem aceitar todos esses aspectos da natureza, enquanto confiam no cuidado de Deus. Isso, por sua vez, molda o caráter paciente e fiel dos agricultores que se importam profundamente com toda a criação de Deus. Uma profunda apreciação da natureza, por sua vez, pode ser um grande trunfo para o trabalho agrícola.

Da mesma forma, a graça nos capacita a permanecer fiéis e esperançosos, mesmo quando nosso empregador fecha as portas em tempos de crise econômica. Da mesma forma, o poder vivificante de Deus sustenta muitos jovens adultos altamente instruídos que ainda têm dificuldade em encontrar um emprego interessante. A graça também inspira uma equipe a perseverar no desenvolvimento de um novo produto, mesmo após repetidos fracassos, sabendo que o que eles aprendem com as falhas é o que torna o produto melhor.

O amor de Deus nos sustenta através de todo tipo de sofrimento na vida e no trabalho. “A esperança não nos decepciona, porque Deus derramou seu amor em nossos corações.” Mesmo quando o sofrimento ameaça endurecer nossos corações, o amor de Deus nos torna agentes de sua reconciliação, que recebemos em Cristo (Rm 10—11).

Graça e justiça conduzem à vida eterna por meio de Cristo (Rm 5.12-21)

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A passagem de Romanos 5.12-21 reflete um argumento teológico denso e complexo, que envolve vários contrastes diferentes entre o desobediente Adão e o obediente Cristo, por meio de quem nos tornamos justos e recebemos a promessa da vida eterna. A passagem nos dá a certeza de que o ato obediente de Cristo em se doar pelos outros coloca todos os que o vêm em um relacionamento correto com Deus e uns com os outros. Como participantes da fé e da fidelidade de Cristo, recebemos uma parte dos dons divinos de justiça e vida eterna prometidos por Deus por meio de Cristo. Portanto, não participamos mais da desobediência de Adão, mas encontramos a vida eterna ao participar da obediência de Cristo a Deus.

Paulo fala da graça de Deus operando tanto no tempo presente quanto na eternidade. A reconciliação já foi dada por meio de Cristo (Rm 5.11), de modo que já somos capazes de viver uma vida que honre a Deus. No entanto, a reconciliação de Deus ainda não está completa e ainda está no processo de “conceder vida eterna” (Rm 5.21). Se recebemos a reconciliação de Cristo, nosso trabalho agora é uma oportunidade de contribuir para um futuro melhor sob a liderança de Cristo. Os inovadores ganham novas possibilidades para criar, projetar e construir produtos que melhorem o bem comum. Os trabalhadores que prestam serviços têm novas oportunidades de melhorar a vida das pessoas. Artistas ou músicos podem criar beleza estética que aprimora a vida humana para a glória de Deus. Nenhum deles é um meio para a vida eterna. Mas, toda vez que trabalhamos para tornar o mundo mais parecido com o que Deus deseja que seja, recebemos uma amostra da vida eterna. Quando permanecemos obedientes ao padrão de fé e fidelidade de Cristo no ambiente de trabalho, não importam as circunstâncias, podemos confiar que nossa vida está eternamente segura nas mãos de nosso Deus fiel.

Andando em novidade de vida (Rm 6)

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Embora a graça de Deus tenha vindo ao mundo para trazer reconciliação e justiça, ainda existem poderes espirituais malignos em ação, que se opõem ao poder vivificante da graça de Deus (Rm 6.14). Paulo muitas vezes personifica essas forças espirituais do mal, chamando-as de nomes como “pecado” (Rm 6.2), “carne” (Rm 7.5), “morte” (Rm 6.9) ou “mundo” (Rm 12.2). Os seres humanos devem escolher se, por meio de suas ações na vida cotidiana, farão parceria com Deus por meio de Cristo ou com essas forças do mal. Paulo chama a escolha de ser parceiro de Deus de viver “uma vida nova” (Rm 6.4). Ele compara o viver uma vida nova com a nova vida de Cristo depois de ser ressuscitado dentre os mortos. “A fim de que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos mediante a glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova” (Rm 6.4). Em nossa vida, aqui e agora, podemos começar a viver — ou “andar em novidade de vida”, conforme algumas versões — em reconciliação e justiça, assim como Cristo vive agora.

Andar em novidade de vida requer que abandonemos o julgamento e façamos a justiça de Deus, em vez de manter os hábitos egoístas (Rm 6.12-13). Como instrumentos da justiça de Deus, por meio da ação dos crentes o poder vivificante da graça de Deus edifica pessoas e comunidades em Cristo. Isso é muito mais ativo do que simplesmente evitar o mau comportamento. Nosso chamado é para nos tornarmos instrumentos de justiça e reconciliação, trabalhando para erradicar os efeitos do pecado em um mundo conturbado.

Por exemplo, os trabalhadores podem ter adquirido o hábito de julgar a administração como má ou injusta, e vice-versa. Isso pode ter se tornado um pretexto conveniente para que os trabalhadores enganem a empresa, usem tempo remunerado para atividades pessoais ou deixem de fazer um trabalho excelente. Em contrapartida, pode ser uma desculpa conveniente para que os gerentes discriminem trabalhadores de que não gostam pessoalmente, ou burlem regulamentos de segurança ou justiça no local de trabalho, ou ocultem informações dos trabalhadores. Apenas seguir os regulamentos ou abster-se de trapacear não seria andar em novidade de vida. Em vez disso, andar em novidade de vida exigiria que, em primeiro lugar, abandonássemos o julgamento que fazemos dos outros. Uma vez que não os consideremos mais indignos de nosso respeito, podemos começar a discernir maneiras específicas de restaurar bons relacionamentos, restabelecer relações mútuas justas e corretas e edificar uns aos outros e nossa organização.

Fazer esse tipo de mudança na vida e no trabalho é extremamente difícil. Paulo diz que o pecado procura continuamente dominar “o corpo mortal de vocês, fazendo que obedeçam aos seus desejos” (Rm 6.12). Por melhores que sejam nossas intenções, logo voltamos aos descaminhos. Somente a graça de Deus, tornada real na morte de Cristo, tem o poder de nos libertar dos hábitos de julgamento (Rm 6.6).

Portanto, a graça de Deus não nos torna “livres” para vagar sem rumo de volta aos velhos males. Em vez disso, o Senhor se oferece para nos conectar a uma nova vida em Cristo. As amarras se desgastarão sempre que começarmos a nos desviar do curso, e Paulo admite que, a princípio, andar em novidade de vida parecerá muito com a escravidão. Nossa escolha, então, é que tipo de escravidão aceitar — escravidão à novidade de vida ou escravidão aos antigos pecados. “Não sabem que, quando vocês se oferecem a alguém para lhe obedecer como escravos, tornam-se escravos daquele a quem obedecem: escravos do pecado que leva à morte, ou da obediência que leva à justiça?” (Rm 6.16). “Mas agora que vocês foram libertados do pecado e se tornaram escravos de Deus o fruto que colhem leva à santidade [novidade de vida], e o seu fim é a vida eterna.” (Rm 6.22) A vantagem de andar em novidade de vida não é que ela parece mais livre do que a escravidão ao pecado, mas que resulta em justiça e vida, em vez de vergonha e morte.

Andar em novidade de vida no local de trabalho (Rm 6)

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O que significa ser “escravo” da graça de Deus no local de trabalho? Significa que não tomamos decisões no trabalho com base no que nos afeta, mas em como isso afeta nosso mestre, Deus. Tomamos decisões como mordomos ou agentes de Deus. Na verdade, esse é um conceito familiar tanto na fé cristã quanto no local de trabalho secular. Na fé cristã, o próprio Cristo é o mordomo modelo, que deu a própria vida para cumprir os propósitos de Deus. Da mesma forma, muitas pessoas no local de trabalho têm o dever de servir aos interesses dos outros, e não aos seus. Entre eles estão advogados, executivos, agentes, curadores e conselhos de administração, juízes e muitos outros. Poucos administradores ou agentes no local de trabalho são tão comprometidos quanto Jesus — dispostos a dar a vida para cumprir seus deveres —, mas o conceito de representação é uma realidade cotidiana no local de trabalho.

A diferença para os cristãos é que nosso dever é, em última análise, para com Deus, não com o Estado, os acionistas ou qualquer outra pessoa. Nossa missão primordial deve ser a justiça de Deus e a reconciliação com ele, não apenas obedecer à lei, obter lucro ou satisfazer as expectativas humanas. Ao contrário da afirmação de Albert Carr de que os negócios são apenas um jogo em que as regras normais de ética não se aplicam, [1] andar em novidade de vida significa integrar justiça e reconciliação em nossa vida no trabalho.

Por exemplo, andar em novidade de vida para um professor do ensino médio pode significar perdoar repetidamente um aluno rebelde e problemático, ao mesmo tempo em que busca novas maneiras de alcançar esse aluno na sala de aula. Para um político, andar em novidade de vida pode significar elaborar uma nova legislação que inclua contribuições de várias perspectivas ideológicas diferentes. Para um gerente, pode significar pedir perdão a um funcionário perante todos que estão cientes da questão envolvida.

Andar em novidade de vida exige que olhemos profundamente para nossos padrões de trabalho. Padeiros ou chefs podem ver facilmente como seu trabalho ajuda a alimentar pessoas famintas, o que, por si só, é uma forma de justiça. Os mesmos padeiros e chefs também podem precisar examinar mais profundamente suas interações pessoais na cozinha. Eles tratam as pessoas com dignidade, ajudam-nas a obter sucesso, trazem glória a Deus? Andar em novidade de vida afeta tanto os fins que tentamos alcançar quanto os meios para fazê-lo.

O poder invasivo do “pecado” (Rm 7)

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No capítulo 7, Paulo continua a enfatizar que a novidade de vida em Cristo nos liberta daquilo “que antes nos prendia”, ou seja, “a velha forma da Lei escrita” (Rm 7.6). No entanto, a Lei em si não é o problema da existência humana, pois “a Lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7.12). Em vez disso, conclui Paulo, o problema é o poder que se opõe a Deus, que ele chama de “pecado”, habitando os seres humanos (Rm 7.13). O pecado aproveitou-se dos mandamentos da Lei, usando-os como ferramentas para enganar as pessoas (Rm 7.11), impedindo assim que cada um seja capaz de obedecer à Lei como Deus planejou (Rm 7.14,17,23).

O poder do pecado não está apenas em fazer más escolhas ou em fazer conscientemente o que não devemos. É como se um poder maligno tivesse invadido o território do espírito de cada um e assumido o controle, “vendido como escravo ao pecado”, como Paulo coloca (Rm 7.14). Sob essa escravidão ao pecado, somos incapazes de fazer o bem exigido nos mandamentos e conhecido em nosso coração (Rm 7.15-20). Isso ocorre apesar de nossas boas intenções de fazer o que Deus deseja (Rm 7.15-16, 22).

Em outras palavras, o conhecimento do que é bom não é suficiente para vencer o poder do pecado que nos invadiu! “Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer esse eu continuo fazendo” (Rm 7.19). A única maneira de sermos resgatados dessa situação é pela intervenção de outra força espiritual mais poderosa — o Espírito Santo, que se torna o foco em Romanos 8.

Temos plena consciência de que saber o que Deus quer não é suficiente para nos manter no caminho certo em situações de trabalho. Por exemplo, mesmo quando sabemos que Deus deseja que tratemos a todos com respeito, às vezes somos vítimas da falsa percepção de que poderíamos progredir falando mal de um colega de trabalho. Da mesma forma, no trabalho de criar filhos, mães e pais sabem que gritar de forma raivosa com uma criança pequena não é bom. Mas, às vezes, o poder do pecado os vence e eles o fazem mesmo assim. Um advogado que cobra dos clientes por serviços por hora sabe que deve manter registros de tempo detalhados, mas pode, no entanto, ser dominado pelo pecado para aumentar suas horas e assim aumentar sua renda.

Sozinhos, somos especialmente vulneráveis ao poder do pecado dentro de nós. Onde quer que trabalhemos, faríamos bem em procurar outros (Rm 12.5) e ajudar-nos mutuamente a resistir a esse poder que tenta superar nossa vontade de fazer o que é certo e bom. Por exemplo, um número pequeno, mas crescente, de cristãos está se juntando a pequenos grupos de pessoas que trabalham em situações semelhantes. Os grupos de pares se reúnem, geralmente no local de trabalho, uma hora por semana, uma manhã ou tarde, ou uma vez por mês. Os membros se comprometem a contar uns aos outros os detalhes das situações que enfrentam no trabalho e a discuti-las a partir de uma perspectiva de fé, desenvolvendo opções e se comprometendo com planos de ação. Um membro pode descrever um conflito com um colega de trabalho, um lapso ético, um sentimento de falta de propósito, uma política da empresa que pareça injusta. Depois de obter as percepções dos outros, o membro se comprometeria com um curso de ação em resposta e relataria ao grupo sobre os resultados, em reuniões futuras. (Para saber mais sobre isso, consulte “Igrejas que conectam o trabalho diário à adoração” em www.teologiadotrabalho.org.)

Viver de acordo com o Espírito leva a uma nova qualidade de vida (Rm 8.1-14)

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Os crentes estão livres da Lei, mas andar em novidade de vida se baseia em uma estrutura moral firme (portanto, “a lei do Espírito”, Rm 8.2). Paulo chama essa estrutura moral de viver “de acordo com o Espírito” ou ter “a mente voltada para o que o Espírito deseja” (Rm 8.5). Ambos os termos se referem ao processo de raciocínio moral que nos guia à medida que caminhamos em novidade de vida.

Esse tipo de bússola moral não funciona pela enumeração de atos específicos, certos ou errados. Em vez disso, consiste em seguir a “a lei do Espírito de vida”, que libertou os crentes “da lei do pecado e da morte” (Rm 8.1-2). As palavras vida e morte são a chave. Como discutido anteriormente em Romanos 6, Paulo entende “pecado”, “morte” e “carne” como forças espirituais no mundo que levam as pessoas a agirem contrariamente à vontade de Deus, produzindo caos, desespero, conflito e destruição em sua vida e em sua comunidade. Em contrapartida, viver de acordo com o Espírito significa fazer o que quer que traga vida, em vez de morte. “A mentalidade da carne [nossos antigos padrões de julgamento] é morte, mas a mentalidade do Espírito é vida e paz” (Rm 8.6). Colocar a mente no Espírito significa procurar o que trará mais vida a cada situação.

Por exemplo, a Lei judaica ensinava “não matarás” (Êx 20.13). Mas viver de acordo com o Espírito vai muito além de não matar alguém literalmente. Viver de acordo com o Espírito é buscar ativamente oportunidades para melhorar a vida das pessoas. Pode significar limpar um quarto de hotel para que os hóspedes permaneçam saudáveis. Pode significar limpar o gelo da calçada de um vizinho para que os pedestres possam caminhar com segurança. Pode significar estudar por anos para obter um doutorado a fim de desenvolver novos tratamentos para o câncer.

Outra maneira de colocar isso é que viver de acordo com o Espírito significa viver um nova qualidade de vida em Cristo. Isso vem de deixar de lado nosso julgamento sobre o que a pessoa merece e buscar o que lhe traria melhor qualidade de vida, merecida ou não. Ao distribuir os projetos, um gerente pode atribuir uma tarefa que expanda as habilidades dos subordinados, em vez de limitá-los ao que eles já são capazes, e convidá-los a procurar orientação todos os dias. Quando solicitado a emprestar uma ferramenta em substituição a outra, um profissional qualificado poderia mostrar a um trabalhador júnior uma nova técnica que impediria que a ferramenta quebrasse da próxima vez. Quando questionado “por que nosso cachorro morreu?”, um pai poderia perguntar a um filho “você tem medo de que alguém que você ama morra?” em vez de apenas explicar a causa imediata da morte do animal. Em cada uma dessas situações, o objetivo moral é trazer melhor qualidade de vida para o outro, em vez de atender a uma exigência da lei.

Trazer vida, em vez de cumprir a lei, é a bússola moral daqueles que estão sendo salvos pela graça de Deus. Somos livres para viver de acordo com o Espírito, em vez de nos escravizarmos à Lei, porque “agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1).

Ao incluir a “paz” como um elemento que fixa nossa mente no Espírito (Rm 8.6, como acima), Paulo aponta os aspectos sociais de viver de acordo com o Espírito, porque a paz é um fenômeno social. [1] Quando seguimos a Cristo, tentamos trazer uma nova qualidade de vida à nossa sociedade, não apenas a nós mesmos. Isso significa prestar atenção às condições sociais que diminuem a vida no trabalho e em outros lugares. Fazemos o que podemos para melhorar a vida das pessoas com quem trabalhamos. Ao mesmo tempo, trabalhamos para trazer justiça/retidão aos sistemas sociais que moldam as condições de trabalho e os trabalhadores.

Os cristãos podem ser uma força positiva para a melhoria — e até para a sobrevivência — se pudermos ajudar nossa organização a concentrar-se na necessidade de uma nova qualidade de vida. Sozinhos, provavelmente não conseguiremos mudar muito nossa organização. Mas, se pudermos construir relacionamentos, ganhar a confiança das pessoas, ouvir aquelas que ninguém mais ouve, poderemos ajudar a organização a romper sua rotina. Além disso, temos o ingrediente secreto — nossa fé, certos de que a graça de Deus pode nos usar para trazer vida até mesmo à situação mais mortal.

Em contrapartida, se não colocarmos a mente no Espírito em ação, podemos ser arrogantes e destrutivos, seja nos relacionamentos com colegas de trabalho, concorrentes, clientes seja com os demais. Colocar a mente no Espírito requer avaliar constantemente as consequências ou o fruto do trabalho, sempre nos questionando se o trabalho melhora a qualidade de vida das pessoas. Se formos honestos em nossas avaliações, sem dúvida também será necessário arrependimento diário e a graça de mudar.

Sofrer com Cristo para ser glorificado com Cristo (Rm 8.15-17)

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Paulo contrasta a vida no Espírito com a vida sob a lei judaica. Ele diz que os crentes receberam “o Espírito que os torna filhos [de Deus] por adoção”, em vez de “um espírito que os escravize para novamente temerem” (Rm 8.15). Todo aquele que “pertence a Cristo” (Rm 8.9-10 ) é agora um filho adotivo de Deus. Em contraste, aqueles que estão sob a lei vivem em escravidão ao poder do pecado e com medo — presumivelmente, medo das ameaças de punição da lei pela desobediência. Os crentes estão livres desse medo, pois agora “não há condenação para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). Quando vivemos fielmente em Cristo, não enfrentamos as ameaças de punição da lei, mesmo quando erramos na vida e no trabalho diários. Dificuldades e fracassos ainda podem prejudicar nosso trabalho, no entanto a resposta de Deus não é condenação, mas redenção. Deus trará algo de valor a partir de nosso trabalho fiel, não importa quão ruim pareça no momento.

Pelo menos dois aspectos desses versículos explicam nossa abordagem ao trabalho ou à vida no local de trabalho. Primeiro, como filhos adotivos de Deus, nunca estamos sozinhos no trabalho. Não importa qual seja nossa insatisfação ou frustração com as pessoas com quem trabalhamos, ou com o trabalho, ou mesmo com a falta de apoio de nossa família para o trabalho, o Espírito de Deus em Cristo permanece conosco. Deus está sempre procurando uma oportunidade para redimir o sofrimento e transformá-lo em algo bom e satisfatório em nossa vida. Como observamos anteriormente em relação a Romanos 5, suportar fielmente as dificuldades e o sofrimento no trabalho pode levar à formação de nosso caráter e fundamentar nossa esperança para o futuro. (Veja “A graça transforma o sofrimento em meio à nossa vida em Cristo”, acima, em Romanos 5.1-11.)

Em segundo lugar, em um momento ou outro, a maioria das pessoas encontra fracassos, frustrações e dificuldades no trabalho. Ele nos impõe obrigações que, de outra forma, não teríamos, até mesmo obrigações tão simples como chegar na hora todos os dias. Envolver-se fielmente nesses desafios pode tornar de fato o trabalho mais gratificante e satisfatório. Com o tempo, essas experiências nos aumentam a confiança na presença redentora de Deus e a experiência com seu Espírito motivador e energizador.

Em algumas situações, você pode ser acolhido e promovido por levar reconciliação e justiça ao seu local de trabalho. Em outras situações, você pode encontrar resistência, ser ameaçado, punido ou demitido. Por exemplo, relacionamentos ruins são uma característica infeliz de muitos locais de trabalho. Um departamento pode sabotar habitualmente as realizações de outro. Os conflitos entre gerentes e colaboradores podem ter se institucionalizado. As pessoas podem ser aterrorizadas por um valentão do escritório, um grupo acadêmico, uma gangue de fábrica, uma linha divisória racial ou um chefe abusivo. Se você trouxer reconciliação em situações como essas, a produtividade pode aumentar, a rotatividade pode ser reduzida, o moral pode subir, o atendimento ao cliente pode se recuperar e você pode ser elogiado ou promovido. Em contrapartida, os agressores, as panelinhas, as gangues, as divisões raciais e os chefes abusivos quase certamente se oporão a você.

Aguardando ansiosamente a redenção corporal para nós mesmos e para a criação de Deus (Rm 8.18-30)

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“Participar da glória” de Cristo (Rm 8.17) é nossa esperança para o futuro. Mas, de acordo com Paulo, essa esperança faz parte de um processo já em andamento. Devemos nos envolver pacientemente nele, com a expectativa de que, em algum momento, seja concluído (Rm 8.18-25). O dom do Espírito Santo, já recebido como “primeiros frutos” deste processo (Rm 8.23) significa nossa adoção como filhos de Deus (Rm 8.14-17, 23). Isso constitui uma prova de que o processo está em andamento.

Esse processo culmina na “redenção do nosso corpo” (Rm 8.23). Isso não é resgatar a alma do corpo físico, mas a transformação do corpo junto com a natureza (Rm 8.21). Esse processo já começou e experimentamos seus “primeiros frutos” (Rm 8.23) em nossa vida e no trabalho, hoje. Mas muito mais e melhor ainda está por vir, e, no momento, “a natureza criada geme até agora, como em dores de parto”, enquanto aguarda ansiosamente ser libertada de sua própria “escravidão da decadência em que se encontra” (Rm 8.19-23). Paulo está claramente se baseando nas imagens de Gênesis 2–3, em que tanto Adão como a própria criação foram submetidos à decadência e à morte, incapazes de viver como Deus os criara para ser. Isso nos lembra de que devemos considerar o impacto de nosso trabalho em toda a criação de Deus, não apenas nas pessoas. (Para saber mais sobre este tópico, consulte “Domínio” em Gênesis 1.26 e 2.5 em www.teologiadotrabalho.org.)

O processo é lento e, às vezes, doloroso. Nós “gememos” enquanto esperamos que isso se cumpra, diz Paulo, e não apenas nós individualmente, mas “toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto” (Rm 8.22-23). Isso ecoa o gemido de Israel enquanto escravizado no Egito (Êx 6.5) e nos lembra que quase 30 milhões de pessoas ainda estão escravizadas no mundo, hoje. [1] Nunca devemos nos contentar apenas com nossa própria libertação das forças do mal no mundo, mas devemos servir a Deus fielmente até que ele complete sua salvação em todas as partes do mundo.

No entanto, a salvação do mundo é certa, pois “Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28). Deus está trabalhando em nós agora, e está chegando o tempo em que sua salvação estará completa no mundo. O veredicto original de Deus — “muito bom” (Gn 1.31) — é justificado pela transformação que opera em nós agora, a ser cumprida no tempo de Deus.

Como a transformação ainda não está completa, temos de estar preparados para as dificuldades ao longo do caminho. Às vezes, fazemos um bom trabalho e terminamos por vê-lo desperdiçado ou destruído pelo mal que está atualmente no mundo. Mesmo que façamos um bom trabalho, ele pode ser vandalizado. Nossas recomendações podem ser diluídas. Podemos ficar sem capital, perder a eleição para uma pessoa desprezível, nos afogar na burocracia, deixar de atrair o interesse de um estudante. Ou podemos ter sucesso por um tempo e depois descobrir que nossos resultados foram desfeitos por eventos posteriores. Os profissionais de saúde, por exemplo, estiveram à beira de erradicar a pólio em várias ocasiões, mas terminaram enfrentando novos surtos devido à oposição política, ignorância, transmissão relacionada à vacina e ao ritmo acelerado das viagens modernas. [2]

Nada pode ficar entre nós e o amor de Deus (Rm 8.31-39)

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“Deus é por nós”, diz Paulo, tendo dado seu próprio Filho “por todos nós” (Rm 8.31-32). Nada pode ficar entre nós e o amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 8.35-39). “Nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Rm 8.38-39) Muitas dessas coisas parecem nos ameaçar na esfera do trabalho. Enfrentamos chefes (autoridades) ameaçadores ou incompetentes. Ficamos presos em empregos sem futuro (o presente). Agora, fazemos sacrifícios — trabalhando longas horas, estudando depois do trabalho, servindo em estágios mal remunerados, mudando para outro país em busca de trabalho — que esperamos que compensem mais tarde, mas que talvez nunca deem certo (o futuro). Perdemos nosso emprego por causa de ciclos econômicos, regulamentações ou ações sem escrúpulos de pessoas poderosas que nunca vemos (poderes). Somos forçados pelas circunstâncias, pela loucura ou pelos crimes de outros a um trabalho degradante ou perigoso. Todas essas coisas podem nos machucar muito. Mas não podem triunfar sobre nós.

A fidelidade de Cristo — e a nossa, pela graça de Deus — supera o pior que a vida e o trabalho podem fazer-nos. Se o progresso na carreira, a renda ou o prestígio for nosso maior objetivo no trabalho, podemos acabar decepcionados. Contudo, se a salvação — isto é, reconciliação com Deus e com as pessoas, fidelidade e justiça — for nossa principal esperança, então a encontraremos em meio às coisas boas e ruins do trabalho. As afirmações de Paulo significam que, sejam quais forem as dificuldades que encontremos no trabalho, ou as complexidades e os desafios que enfrentamos com colegas de trabalho ou superiores no local de trabalho, o amor de Deus em Cristo sempre permanece conosco. O amor de Deus em Cristo é a força estabilizadora em meio à adversidade agora, bem como nossa esperança de redenção física no futuro.

O caráter de Deus é ter misericórdia de todos (Rm 9—11)

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Em Romanos 9—11, Paulo volta ao problema imediato que a carta tem o propósito de abordar: o conflito entre cristãos judeus e gentios. Como essa não é nossa principal preocupação na teologia do trabalho, vamos resumir rapidamente.

Paulo discute o relacionamento de Deus com Israel, com atenção especial à misericórdia divina (Rm 9.14-18 ). Ele explica como a salvação de Deus se dá também para os gentios. Os judeus experimentaram a salvação de Deus primeiro, começando com Abraão (Rm 9.4-7). Mas muitos se desviaram e, no momento, parece que os gentios são mais fiéis (Rm 9.30-33 ). Estes, porém, não devem se tornar críticos, pois sua salvação está entrelaçada com a dos judeus (Rm 11.11-16). Deus preservou um “remanescente” de seu povo (Rm 9.27; 11.5) cuja fidelidade — pela graça de Deus — leva à reconciliação do mundo.

Para judeus e gentios, então, a salvação é um ato da misericórdia de Deus, não uma recompensa pela obediência humana (Rm 9.6-13). Com isso em mente, Paulo assume uma série de argumentos de ambos os lados, sempre concluindo que “Deus tem misericórdia de quem ele quer” (Rm 9.18). Nem judeus nem gentios são salvos por suas próprias ações, mas pela misericórdia de Deus.

A salvação dada por Deus, diz Paulo, vem por confessar Jesus como Senhor e por crer que Deus o ressuscitou dentre os mortos (Rm 10.9-10). Em outras palavras, a salvação vem para todo aquele que confia no poder vivificante de Deus, que enriquece a vida de judeus e gentios que seguem Jesus como Senhor (ver Rm 10.12-13). A desobediência — seja de gentios seja de judeus — fornece a Deus a oportunidade de mostrar ao mundo a sua misericórdia para com todos (Rm 11.33). A preocupação de Paulo nesta carta é reconciliar relacionamentos rompidos entre judeus e gentios seguidores de Jesus.

Romanos 9—11 oferece esperança a todos nós no trabalho e no local de trabalho. Primeiro, Paulo enfatiza o desejo de Deus de ter misericórdia dos desobedientes. Todos nós, em um ponto ou outro de nossa vida profissional, falhamos em incorporar a fé e a fidelidade de Cristo em algum aspecto do trabalho. Se Deus tem misericórdia de nós (Rm 11.30), somos chamados a ter misericórdia dos outros no trabalho. Isso não significa ignorar o mau desempenho ou ficar calado diante de assédio ou discriminação. Misericórdia não é permissão para oprimir. Em vez disso, significa não permitir que as falhas de uma pessoa nos levem a condená-la totalmente. Quando alguém com quem trabalhamos comete um erro, não devemos julgá-lo como incompetente, mas ajudá-lo a se recuperar do erro e aprender a não repeti-lo. Quando alguém viola nossa confiança, devemos responsabilizá-lo e, ao mesmo tempo, oferecer-lhe perdão, que, se recebido com arrependimento, cria um caminho para restabelecer a confiança.

Em segundo lugar, esta seção da carta nos lembra de nossa responsabilidade de perseverar como cristãos fiéis, para que possamos ser os “remanescentes” fiéis (Rm 11.5) em nome daqueles que tropeçaram temporariamente na obediência da fé. Quando vemos as pessoas ao redor falharem, nossa tarefa não é julgá-las, mas nos colocarmos no lugar delas. Talvez nossa fidelidade possa mitigar o dano causado a outros e até livrar aqueles que o causaram de um castigo severo. Se virmos um colega maltratando um cliente ou um subordinado, por exemplo, talvez possamos intervir para corrigir a situação antes que ela se torne uma causa de demissão. Quando nos lembramos de quão perto chegamos de tropeçar ou de quantas vezes falhamos, nossa resposta às falhas dos outros é misericórdia, assim como a de Cristo. Isso não significa que permitimos que as pessoas abusem das outras. Significa que nos colocamos em risco, assim como Cristo, pela redenção de pessoas que erraram sob o poder do pecado.

Terceiro, esses capítulos nos lembram de demonstrar aos demais colegas como é a obediência da fé na vida e no trabalho diários. Se realmente andarmos em novidade de vida (ver “Andando em novidade de vida” em Romanos 6) e decidirmos que nossas ações podem trazer nova qualidade de vida para aqueles ao redor (ver “Viver de acordo com o Espírito leva a uma nova qualidade de vida” em Romanos 8), os outros não serão atraídos a fazer o mesmo? Nossas ações no trabalho podem ser o louvor mais alto que podemos oferecer a Deus e o testemunho mais atraente que nossos colegas de trabalho já viram. O desejo de Deus é que todos no mundo se reconciliem com ele e uns com os outros. Assim, cada aspecto de nosso trabalho e vida se torna uma oportunidade de testemunhar de Cristo — de ser um dos agentes reconciliadores de Deus no mundo.

Quarto, precisamos permanecer humildes. Quando nós, assim como as facções para quem Paulo estava escrevendo, julgamos nossa posição superior à daqueles ao redor, imaginamos que temos uma ligação direta com Deus. Paulo fala diretamente contra essa arrogância. Não sabemos tudo sobre como Deus está trabalhando nos outros. Como diz o general Peter Pace, presidente aposentado do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA: “Você deve sempre dizer a verdade como a conhece e deve entender que há muita coisa que você não sabe”. [1]

As maneiras específicas pelas quais incorporamos esse ministério da reconciliação no mundo são tão diversas quanto o próprio trabalho e o local de trabalho. Assim, nos voltamos para Romanos 12 para obter mais orientação de Paulo sobre como discernir maneiras de praticar o amor reconciliador de Deus no trabalho.

A comunidade de graça em ação (Rm 12)

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Romanos 12 destaca os aspectos sociais e comunitários da salvação. Paulo não estava escrevendo para um indivíduo, mas para a comunidade de cristãos em Roma, e sua preocupação constante é a vida deles juntos — com ênfase especial no trabalho. Como vimos em Romanos 1—3, a salvação em Cristo compreende reconciliação, retidão e justiça, e fé e fidelidade. Cada um desses pontos tem um aspecto comunitário — reconciliação com os outros, justiça entre as pessoas, fidelidade aos outros.

Seja transformado pela renovação da sua mente (Rm 12.1-3)

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Dar vida ao aspecto comunitário da salvação significa reorientar a mente e a vontade de servir a nós mesmos para o desejo de servir à comunidade.

Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. Por isso, pela graça que me foi dada digo a todos vocês: Ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter; mas, ao contrário, tenha um conceito equilibrado, de acordo com a medida da fé que Deus lhe concedeu. (Rm 12.2-3)

Vamos começar com a segunda metade dessa passagem, em que Paulo explicita o aspecto comunitário: “Digo a todos vocês: Ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter”. Em outras palavras, pense menos em si mesmo e mais nos outros, mais na comunidade. Um pouco adiante, no capítulo 12, Paulo amplia isso, acrescentando: “Dediquem-se uns aos outros com amor fraternal” (Rm 12.10); “Compartilhem o que vocês têm com os santos em suas necessidades”; “Pratiquem a hospitalidade” (Rm 12.13); “Procurem fazer o que é correto aos olhos de todos” (Rm 12.17) e “Façam todo o possível para viver em paz com todos” (Rm 12.18).

A primeira parte dessa passagem nos lembra que, sem a graça salvadora de Deus, somos incapazes de colocar os outros em primeiro lugar. Como Paulo aponta em Romanos 1, as pessoas são escravizadas por uma “disposição mental reprovável” (Rm 1.28), “seus pensamentos tornaram-se fúteis”, “o coração insensato [delas] obscureceu-se” (Rm 1.21), o que resulta em fazer uns aos outros todo tipo de mal (Rm 1.22-32). A salvação é a libertação dessa escravidão da mente, “para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”. Apenas quando a mente for transformada do egocentrismo para o altruísmo — imitando Cristo, que se sacrificou pelos outros —, poderemos colocar a reconciliação, a justiça e a fidelidade à frente dos objetivos egoístas.

Com mente transformada, nosso propósito muda de justificar nossas ações egocêntricas para trazer nova vida aos outros. Por exemplo, imagine que você é um supervisor de turno em um restaurante e se torna um candidato à promoção a gerente. Se sua mente não for transformada, seu principal objetivo será vencer os outros candidatos. Não parecerá difícil justificar (para si mesmo) ações como ocultar informações dos outros candidatos sobre problemas com fornecedores, ignorar questões de saneamento que se tornarão visíveis apenas nos turnos dos outros, espalhar divergências entre seus funcionários ou evitar a colaboração na melhoria do serviço de atendimento ao cliente. Isso prejudicará não apenas os outros candidatos, mas também seus trabalhadores em turnos, o restaurante como um todo e seus clientes. Em contrapartida, se sua mente for transformada para se preocupar primeiro com os outros, você ajudará os demais candidatos a terem um bom desempenho, não apenas pelo bem deles, mas também pelo benefício do restaurante, de seus funcionários e dos clientes.

Sacrifícios vivos pelo bem da comunidade (Rm 12.1-3)

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Desnecessário dizer que colocar os outros à frente de nós mesmos requer sacrifício. “Se ofereçam em sacrifício vivo”, Paulo exorta (Rm 12.1). Os termos ofereçam e sacrifício enfatizam que Paulo se refere a ações práticas na vida cotidiana e no trabalho. Todos os crentes se tornam sacrifícios vivos, oferecendo seu tempo, talento e energia em um trabalho que beneficie pessoas e/ou toda a criação de Deus.

Podemos oferecer um sacrifício vivo a Deus a cada momento de nossa vida. Assim fazemos quando perdoamos alguém que comete um erro contra nós no trabalho ou quando corremos risco para ajudar a resolver uma disputa entre outras pessoas. Oferecemos um sacrifício vivo quando renunciamos ao uso insustentável dos recursos da terra em busca de conforto próprio. Oferecemos um sacrifício vivo quando aceitamos um trabalho menos que satisfatório, porque apoiar a família é mais importante para nós do que encontrar o emprego perfeito. Tornamo-nos um sacrifício vivo quando deixamos uma posição gratificante para que o cônjuge possa aceitar o emprego dos sonhos em outra cidade. Tornamo-nos um sacrifício vivo quando, numa posição de chefia, assumimos a culpa por um erro cometido por um subordinado.

Envolvendo a comunidade em suas decisões (Rm 12.1-3)

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A transformação da mente “para que sejam capazes de experimentar e comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.2 ) vem de mãos dadas com o envolvimento da comunidade da fé em nossas decisões. Como pessoas em processo de salvação, trazemos outras para nossos processos de tomada de decisão. A palavra que Paulo usa para “experimentar” ou “comprovar” é literalmente “testar” ou “aprovar” em grego (dokimazein). Nossas decisões devem ser testadas e aprovadas por outros crentes antes que possamos ter confiança de que discernimos a vontade de Deus. A advertência de Paulo a que “ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter” (Rm 12.3) se aplica a nossa capacidade de tomar decisões. Não pense que você tem a sabedoria, a estatura moral, a amplitude de conhecimento ou qualquer outra coisa necessária para discernir a vontade de Deus por conta própria. “Não sejam sábios aos seus próprios olhos” (Rm 12.16). Somente envolvendo outros membros da comunidade fiel, com sua diversidade de dons e sabedoria (Rm 12.4-8), vivendo em harmonia uns com os outros (Rm 12.16) é que poderemos desenvolver, testar e aprovar decisões confiáveis.

Isso é mais desafiador do que gostaríamos de admitir. Podemos nos reunir para receber ensinamentos morais como comunidade, mas com que frequência realmente conversamos uns com os outros ao tomar decisões morais? Muitas vezes, as decisões são tomadas pelo responsável, que delibera individualmente, talvez depois de ouvir a opinião de alguns conselheiros. Tendemos a agir dessa maneira porque as discussões morais são desconfortáveis ou “quentes”, como diz Ronald Heifetz. As pessoas não gostam de ter conversas acaloradas porque “a maioria das pessoas quer manter o status quo, evitando as questões difíceis”. [1] Além disso, muitas vezes sentimos que a tomada de decisões da comunidade é uma ameaça a qualquer poder que possuamos. Mas tomar decisões por conta própria geralmente significa apenas seguir preconceitos preconcebidos ou, em outras palavras, se amoldar “ao padrão deste mundo” (Rm 12.2). Isso levanta uma dificuldade na esfera do trabalho. E se não trabalharmos em uma comunidade de fé, mas em uma empresa secular, governo, instituição acadêmica ou outro ambiente? Poderíamos avaliar comunitariamente nossas ações com os colegas de trabalho, mas eles talvez não estejam em sintonia com a vontade de Deus. Poderíamos fazê-lo com nosso pequeno grupo ou com outros membros da igreja, mas eles provavelmente não entenderiam muito bem nosso trabalho. Qualquer uma dessas práticas — ou ambas — é melhor do que nada. Mas,melhor ainda seria reunir um grupo de crentes de nosso próprio local de trabalho — ou pelo menos crentes que trabalham em situações semelhantes — e refletir sobre nossas ações com eles. Se quisermos avaliar até que ponto nossas ações como programadores, bombeiros, funcionários públicos ou professores (por exemplo) implementam reconciliação, justiça e fidelidade, quem melhor para refletir do que outros programadores cristãos, bombeiros, funcionários públicos ou professores da escola? (Veja “Igrejas que capacitam encorajam todos a assumir responsabilidade” em A Igreja que Capacita, em www.teologiadotrabalho.orgpara saber mais sobre esse tópico.)

Trabalhando como membros uns dos outros (Rm 12.4–8)

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Uma aplicação prática essencial de andar em novidade de vida é reconhecer quanto todos dependemos do trabalho uns dos outros. “Assim como cada um de nós tem um corpo com muitos membros e esses membros não exercem todos a mesma função, assim também em Cristo nós, que somos muitos, formamos um corpo, e cada membro está ligado a todos os outros” (Rm 12.4-5). Essa interdependência não é uma fraqueza, mas um dom de Deus. À medida que somos salvos por Deus, tornamo-nos mais integrados uns com os outros.

Paulo aplica isso ao trabalho que cada um de nós realiza em seu papel específico. “Temos diferentes dons” (Rm 12.6a), ele observa, e ao citar alguns deles vemos que são formas de trabalho: profetizar, servir, ensinar, dar ânimo, contribuir com generosidade, exercer liderança e mostrar misericórdia. Cada um deles é uma “graça que nos foi dada” (Rm 12.6b) que nos permite trabalhar pelo bem da comunidade.

Paulo desenvolve esse processo no contexto de uma comunidade específica — a igreja, o que é apropriado porque toda a carta gira em torno de um problema na igreja, ou seja, o conflito entre crentes judeus e gentios. Mas a lista não é exclusivamente “eclesiástica”. Todos esses dons são igualmente aplicáveis ao trabalho fora da igreja. Profetizar — “proclamar uma mensagem divinamente transmitida” ou “trazer luz a algo que está oculto” [1] — é a capacidade de aplicar a palavra de Deus a situações sombrias, algo desesperadamente necessário em todos os locais de trabalho. Servir — com seu cognato “administrar” — é a capacidade de organizar o trabalho de modo que ele de fato sirva àqueles a quem deve servir, por exemplo, clientes, cidadãos ou estudantes. Outro termo para isso é “gestão”. Ensinar (ou “exortar” ou “encorajar”) e dar ânimo são obviamente tão aplicáveis a ambientes seculares quanto à igreja. O mesmo acontece com contribuir generosamente, quando lembramos que doar nosso tempo, nossas habilidades, nossa paciência ou nossa experiência para ajudar os outros no trabalho são formas de generosidade.

Mostrar misericórdia é um elemento do trabalho amplamente subestimado. Embora possamos ser tentados a ver a misericórdia como um obstáculo no mundo competitivo do trabalho, ela é, na verdade, essencial para fazer bem nosso trabalho. O valor de nosso trabalho vem não apenas da dedicação de horas, mas da preocupação com a maneira como nossos bens ou serviços servem aos outros — em outras palavras, pela misericórdia. Os trabalhadores automotivos que não se importam se suas peças são colocadas corretamente não têm utilidade para a empresa, para os clientes ou para os colegas de trabalho e, mais cedo ou mais tarde, serão candidatos à demissão. Ou, se a montadora não se importa se seus funcionários se importam com seus clientes, os clientes logo mudarão para outra marca. As exceções a isso são produtos e serviços que lucram intencionalmente com as fraquezas dos clientes — substâncias viciantes, pornografia, produtos que jogam com o medo relativo à imagem corporal e a coisas do gênero. Para ganhar dinheiro em casos como esses, pode ser necessário não ter misericórdia dos clientes. O próprio fato de que é possível ganhar dinheiro prejudicando clientes nesses campos sugere que os cristãos devem tentar evitar aqueles locais de trabalho em que a misericórdia não é essencial para o sucesso. Ocupações legítimas ganham dinheiro atendendo às verdadeiras necessidades das pessoas, não explorando suas fraquezas.

Pelo uso de todos esses dons, o poder vivificante de Deus é experimentado em atos e maneiras particulares de fazer as coisas. Em outras palavras, o poder de Deus que enriquece a vida das pessoas vem por meio de ações concretas tomadas pelos seguidores de Jesus. A graça de Deus produz ação no povo de Deus para o bem dos outros.

Princípios comportamentais específicos para guiar o discernimento moral (Rm 12.9-21)

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Paulo identifica princípios orientadores específicos para nos ajudar a servir como veículos cuja principal preocupação é permitir que o amor seja “sem hipocrisia” (ARA), “não fingido” ou simplesmente “sincero” (NVI, Rm 12.9). O trecho de Romanos 12.9-13 desenvolve o pensamento sobre o amor sincero, incluindo honra, paciência no sofrimento, perseverança na oração, generosidade para com os necessitados e hospitalidade para com todos.

De particular interesse é Romanos 12.16-18, onde Paulo encoraja os romanos a “viver em paz com todos”. Especificamente, ele diz, isso significa se associar com os menos poderosos da comunidade, resistir ao desejo de pagar mal por mal e, sempre que possível, viver em harmonia com todos.

Se tivermos amor sincero, então nos importaremos com as pessoas para quem trabalhamos e entre as quais trabalhamos. Por definição, quando trabalhamos, o fazemos, pelo menos em parte, como um meio para atingir um fim. Mas nunca podemos tratar as pessoas com quem trabalhamos como um meio para atingir um fim. Cada um é inerentemente valioso por si só, tanto que Cristo morreu por cada um. Isso é amor sincero — tratar cada pessoa como alguém por quem Cristo morreu e ressuscitou para trazer uma nova vida.

Demonstramos amor sincero quando honramos as pessoas com quem trabalhamos, chamando a todos pelo nome, independentemente de seu status, e respeitando sua família, cultura, idioma, aspirações e o trabalho que fazem. Mostramos amor sincero quando somos pacientes com um subordinado que comete um erro, um aluno que aprende lentamente, um colega de trabalho cuja deficiência nos deixa desconfortáveis. Demonstramos amor sincero por meio da hospitalidade ao novo funcionário, ao que chega tarde da noite, ao paciente desorientado, ao passageiro retido, ao chefe recém-promovido. Todos os dias enfrentamos a possibilidade de alguém nos fazer algum mal, pequeno ou grande. Mas nossa proteção não é fazer o mal aos outros em defesa própria, nem cair em desespero, mas vencer “o mal com o bem” (Rm 12.21). Não podemos fazer isso por nosso próprio poder, mas apenas vivendo no Espírito de Cristo.

Vivendo sob o poder de Deus (Rm 13)

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“Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais”, diz Paulo. “As autoridades que existem foram por [Deus] estabelecidas.” (Rm 13.1) Sabendo que o sistema de governo de Roma não estava de acordo com a justiça de Deus, alguns membros das igrejas romanas devem ter tido dificuldades ao ouvir esse conselho. Como a obediência ao imperador romano idólatra e implacável poderia ser uma maneira de viver no Espírito? A resposta de Paulo é que Deus é soberano sobre todas as autoridades terrenas e que Deus lidará com as autoridades no momento certo. Mesmo Roma, por mais poderosa que fosse, estava, em última análise, sujeita ao poder de Deus.

No local de trabalho, muitas vezes é verdade que “os governantes não devem ser temidos, a não ser por aqueles que praticam o mal” (Rm 13.3). Os chefes geralmente organizam o trabalho de forma eficaz e criam um ambiente justo para resolver disputas. Os tribunais regularmente resolvem de forma equitativa casos envolvendo patentes, títulos de propriedade, relações trabalhistas e contratos. Os reguladores muitas vezes servem para proteger o meio ambiente, evitar fraudes, reforçar a segurança no local de trabalho e garantir a igualdade de acesso a oportunidades de moradia. A polícia geralmente apreende criminosos e ajuda os inocentes. O fato de que mesmo autoridades descrentes com tanta frequência acertam as coisas é uma marca da graça de Deus no mundo.

Mas as autoridades nos negócios, no governo e em todos os locais de trabalho podem entender as coisas de forma devastadoramente errada e, às vezes, abusar do poder para fins egoístas. Quando isso acontece, é útil distinguir entre os poderes gerados pelo homem (mesmo que sejam significativos) e o poder de Deus que está sobre, por trás e em meio a toda a criação. Muitas vezes, os poderes humanos estão tão mais próximos de nós que tendem a bloquear nossa percepção do movimento de Deus em nossa vida. Essa passagem serve de encorajamento para discernir onde Deus está ativo e para unir nossa vida às atividades de Deus que promoverão a verdadeira plenitude de vida para nós e para todos.

As pessoas que trabalharam na Tyco International quando Dennis Kozlowski era CEO devem ter se perguntado por que ele foi autorizado a assaltar os cofres da empresa para pagar por seu estilo de vida pessoal ultrajante. Podemos imaginar que aqueles que tentaram trabalhar com integridade podem ter sentido medo de perder o emprego. Algumas pessoas éticas podem ter sucumbido à pressão para participar dos esquemas de Kozlowski. Mas, por fim, Kozlowski foi descoberto, acusado e condenado por furto, conspiração e fraude. [1] Aqueles que confiaram que a justiça terminaria sendo restaurada acabaram do lado certo da história.

Paulo oferece conselhos práticos aos cristãos romanos, que viviam no centro das autoridades humanas mais poderosas que o mundo ocidental já conhecera. Obedeça à lei, pague seus impostos e taxas comerciais, dê respeito e honra àqueles que ocupam posições de autoridade (Rm 12.7). Talvez alguns tivessem pensado que, como cristãos, deveriam se rebelar contra a injustiça romana. Mas Paulo parece ver egocentrismo nessa atitude, em vez de centralização em Deus. A rebeldia egoísta não os preparará para o “dia” de Deus (Rm 13.12), que está chegando.

Por exemplo, em alguns países, a evasão fiscal é tão comum que os serviços necessários não podem ser fornecidos, o suborno (para permitir a evasão) corrompe funcionários em todos os níveis e a carga tributária é distribuída de forma injusta. O governo perde legitimidade aos olhos tanto dos contribuintes quanto dos sonegadores de impostos. A instabilidade civil retarda o crescimento econômico e o desenvolvimento humano. Sem dúvida, grande parte do dinheiro arrecadado é usado para fins inconsistentes com os valores cristãos, e muitos cristãos podem responder sonegando impostos, tal como todos os outros. Mas o que aconteceria se os cristãos se comprometessem, de forma organizada, a pagar seus impostos e monitorar o uso de fundos pelo governo? Pode levar décadas para reformar o governo dessa maneira, mas será que funcionaria? O argumento de Paulo em Romanos 12 sugere que sim.

Muitos cristãos vivem em democracias, hoje, o que lhes confere a responsabilidade adicional de votar em leis sábias que expressem a justiça de Deus da melhor maneira possível. Uma vez que os votos são contados, temos a responsabilidade de obedecer às leis e às autoridades, mesmo que discordemos delas. As palavras de Paulo implicam que devemos obedecer às autoridades legítimas, mesmo quando estivermos trabalhando para mudar as injustiças por meios democráticos.

Em todas as esferas da vida, temos a responsabilidade contínua de resistir e transformar todos os sistemas injustos, sempre colocando o bem comum acima do interesse próprio. Mesmo assim, devemos mostrar respeito às autoridades, seja no trabalho, na escola, na igreja, no governo seja na vida cívica. Acreditamos que a mudança ocorrerá não porque expressamos indignação, mas porque Deus é soberano sobre todas as coisas.

Paulo conclui o capítulo 13 observando que, ao amar outras pessoas, cumprimos os mandamentos. Viver no Espírito cumpre inerentemente a lei judaica, mesmo para aqueles que não a conhecem. Ele reitera que isso não vem pelo esforço humano, mas pelo poder de Cristo em nós. “Revistam-se do Senhor Jesus Cristo”, conclui ele (Rm 13.14).

Acolhedor — vivendo em paz com diferentes valores e opiniões (Rm 14—15)

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Quando chega a este ponto da carta, Paulo já terminou de desenvolver seu método de raciocínio moral. Agora, ele faz uma pausa para fornecer algumas implicações dele no contexto único das igrejas romanas, a saber, nas disputas entre os crentes.

A principal implicação para as igrejas romanas é bem-vinda. Os cristãos romanos devem acolher uns aos outros. Não é difícil ver como Paulo extrai essa implicação. O objetivo do raciocínio moral, de acordo com Romanos 6, é que “vivamos uma vida nova”, o que significa trazer uma nova qualidade de vida àqueles que nos cercam. Se você está em um relacionamento rompido com alguém, as boas-vindas são inerentemente uma nova qualidade de vida. Boas-vindas é reconciliação na prática. As brigas procuram excluir os outros, mas a acolhida procura incluí-los, mesmo quando isso significa respeitar áreas de desacordo.

O acolhimento supera brigas por opiniões divergentes (Rm 14.1-23)

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“Aceitem o que é fraco na fé sem discutir assuntos controvertidos”, começa Paulo (Rm 14.1 ). Os “fracos na fé” podem ser aqueles que não têm confiança em suas próprias convicções sobre questões controversas (ver Rm 14.23) e confiam em regras estritas para governar suas ações. Especificamente, alguns dos cristãos judeus mantiveram as restrições das leis alimentares judaicas e foram ofendidos por outros cristãos que consumiam carne e bebida não kosher. Aparentemente, eles se recusavam até mesmo a comer com aqueles que não eram kosher. [1] Embora considerassem sua rigidez como uma força, Paulo diz que ela se torna uma fraqueza quando os leva a julgar aqueles que não compartilham de sua convicção. Paulo diz que aqueles que se mantêm kosher “não [devem] condenar aquele que come [carne não-kosher]”.

No entanto, a resposta de Paulo à fraqueza deles não é discutir com eles, nem ignorar suas crenças, mas fazer o que for necessário para que se sintam bem-vindos. Ele diz àqueles que não praticam hábitos kosher que não ostentem sua liberdade de comer qualquer coisa, porque isso exigiria que os guardiões das regras kosher quebrassem a comunhão com eles ou violassem a própria consciência. Se não encontrassem carne kosher para consumir, então o não kosher deveria se juntar ao kosher e comer apenas vegetais, em vez de exigir que os guardiões kosher violassem sua consciência. “Não destrua a obra de Deus por causa da comida”, diz Paulo (Rm 14.20).

Ambos os grupos sentem fortemente que seus pontos de vista são moralmente importantes. Os fortes acreditam que, para os gentios, manter-se kosher é uma recusa da graça de Deus em Cristo Jesus. Os fracos acreditam que não manter a kosher — e simplesmente comer com pessoas que não a praticam — é uma afronta a Deus e uma violação da lei judaica. O argumento é acalorado porque a liberdade em Cristo e a obediência às alianças de Deus são questões morais e religiosas verdadeiramente importantes. Mas os relacionamentos na comunidade são ainda mais importantes. Viver em Cristo não tem a ver com estar certo ou errado em qualquer questão em particular. Tem a ver com um relacionamento correto com Deus e uns com os outros, com a “paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17).

As divergências morais podem ser ainda mais difíceis no trabalho, onde há menos pontos em comum. Um aspecto interessante a esse respeito é a preocupação especial de Paulo pelos fracos. Embora diga a ambos os grupos que não julguem, ele coloca um fardo prático maior sobre os fortes. “Nós, que somos fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos, e não agradar a nós mesmos” (Rm 15.1). Nosso modelo para isso é Jesus, que “não agradou a si próprio” (Rm 15.3). Isso significa que aqueles que estão certos, ou que são a maioria, ou aqueles que têm mais poder são chamados a abster-se voluntariamente de violar a consciência dos outros. Na maioria dos locais de trabalho, ocorre o oposto. Os fracos devem se acomodar aos ditames dos fortes, mesmo que isso viole sua consciência.

Imagine, por exemplo, que alguém em seu local de trabalho tenha convicções religiosas ou morais que exijam uma certa modéstia no vestuário como, por exemplo, cobrir o cabelo, os ombros ou as pernas. Essas convicções podem ser uma forma de fraqueza, para usar a terminologia de Paulo, se deixarem essa pessoa desconfortável perto de outras que não se conformam com sua ideia de se vestir com recato. Provavelmente, você não se oporia a que a pessoa usasse roupas tão modestas. Mas o argumento de Paulo implica que você e todos os seus colegas de trabalho também devem se vestir com recato, de acordo com os padrões da outra pessoa, pelo menos se o desejo for fazer de seu local de trabalho um lugar de acolhimento e reconciliação. Os fortes (aqueles que não são prejudicados pelo legalismo sobre os códigos de vestimenta) devem acolher os fracos (aqueles que se sentem ofendidos pelas roupas dos outros), acomodando-se a sua fraqueza.

Lembre-se de que Paulo não quer que exijamos que os outros se adaptem a nossos remorsos. Isso nos tornaria fracos, e Paulo quer que nos tornemos fortes na fé. Não devemos ser aqueles que balançam a cabeça em reprovação diante de vestimenta, linguagem ou gosto musical dos outros no trabalho. Imagine, em vez disso, que os cristãos tenham a reputação de fazer todos se sentirem bem-vindos, em vez de julgar os gostos e hábitos dos outros. Isso ajudaria ou atrapalharia a missão de Cristo no mundo do trabalho?

O acolhimento edifica a comunidade (Rm 14.19—15.33)

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Outro aspecto do acolhimento é que ele fortalece a comunidade. “Cada um de nós deve agradar ao seu próximo para o bem dele, a fim de edificá-lo” (Rm 15.2), da mesma forma que um anfitrião acolhedor garante que uma visita fortaleça o hóspede. O “próximo” aqui é outro membro da comunidade. “Esforcemo-nos em promover tudo quanto conduz à paz e à edificação mútua”, diz Paulo (Rm 14.19). Edificação mútua significa trabalhar juntos em comunidade.

Nos capítulos 14 e 15, vemos que dar boas-vindas é uma prática poderosa. Paulo não está falando sobre simplesmente dizer olá com um sorriso no rosto. Ele está falando sobre engajar-se em um profundo discernimento moral como comunidade, mas permanecer em um relacionamento caloroso com aqueles que chegam a conclusões morais diferentes, mesmo em assuntos importantes. No que diz respeito a Paulo, os relacionamentos contínuos na comunidade são mais importantes do que as conclusões morais particulares. Os relacionamentos trazem uma qualidade de vida à comunidade que excede muito qualquer satisfação possível de estar certo sobre um problema ou julgar que outra pessoa esteja errada. Também é um testemunho mais atraente para o mundo ao redor. “Portanto, aceitem-se uns aos outros, da mesma forma com que Cristo os aceitou, a fim de que vocês glorifiquem a Deus” (Rm 15.7). Quando nos acolhemos uns aos outros, o resultado final pela misericórdia de Deus (Rm 15.9) é que “cantem louvores a ele todos os povos” (Rm 15.11).

Uma comunidade de líderes (Rm 16)

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O capítulo 16 de Romanos desmente as suposições comuns de muitas pessoas sobre a natureza da obra de Paulo — a saber, que ele era uma figura solitária e heroica, que enfrentou dificuldades para cumprir seu chamado solitário e exaltado de espalhar o evangelho entre os gentios. Em Romanos 16, no entanto, Paulo deixa claro que seu trabalho era um esforço comunitário. Paulo menciona vinte e nove cooperadores pelo nome, e muitos outros por termos como “a igreja que se reúne na casa deles” e “os irmãos que estão com eles”. A lista de Paulo dá igual valor ao trabalho de mulheres e homens, sem papéis distintos para nenhum dos dois, e parece incluir pessoas de várias posições sociais. Vários são claramente ricos, e alguns podem ser homens e mulheres agora libertos. Outros podem muito bem ser escravos. Paulo elogia o trabalho particular de muitos, como aqueles que “arriscaram a vida” (Rm 16.4), quem “trabalhou arduamente” (Rm 16.6), os que “estiveram na prisão comigo” (Rm 16.7), que “trabalham arduamente no Senhor” (Rm 16.12) ou uma que “tem sido mãe também para mim” (Rm 16.13). Ele menciona o trabalho de Tércio, “que [redigiu] esta carta” (Rm 16.22) e de Erasto, “administrador da cidade” (Rm 16.23).

Observar Paulo dentro de um círculo tão amplo de cooperadores mina a ênfase ocidental moderna na individualidade, especialmente no local de trabalho. Como todo mundo que ele nomeia, Paulo trabalhou em comunidade para o bem da comunidade. Esta seção final da carta nos permite saber que o evangelho é um trabalho de todos. Nem todos são apóstolos. Nem todos somos chamados a deixar o emprego e viajar pregando. A lista que Paulo apresenta dos variados dons de serviço em Romanos 12.6-8 deixa isso claro. Seja qual for o tipo de trabalho que ocupe nosso tempo, somos chamados a agir como servos das boas-novas da salvação de Deus para todas as pessoas. (Veja “Trabalhando como membros uns dos outros”, em Romanos 12.4-8.)

Essas saudações também nos lembram que os líderes da igreja são obreiros. Às vezes, é tentador ver o trabalho de Paulo como algo distinto de outros tipos de trabalho. Mas a repetida referência de Paulo ao trabalho das pessoas que ele cita nos lembra que o que é verdade sobre o ministério de Paulo é verdade para todos os locais de trabalho. Aqui, onde passamos grande parte do nosso tempo a cada semana, é onde aprenderemos a andar em novidade de vida (Rm 6.4) — ou permaneceremos atolados no poder da morte. Em nossos relacionamentos no local de trabalho, somos convidados a buscar o bem do outro, de acordo com o modelo de Cristo. É no trabalho muitas vezes ordinário de nossa mente, coração e mãos que temos a chance de nos tornar canais da graça de Deus para os outros.

Nos versículos finais de Romanos, fica evidente que a obra de ninguém está isolada; ela está entrelaçada com o trabalho de outros. Paulo reconhece aqueles que o precederam, transmitindo sua fé a ele, aqueles que trabalharam ao lado dele e aqueles que arriscaram a vida por ele e por seu trabalho comum. Esse ponto de vista chama cada um de nós a olhar para todo o tecido comunitário que constitui nosso local de trabalho, a considerar todas as vidas entrelaçadas com a nossa, apoiando e aprimorando o que somos capazes de fazer, todos os que desistem de algo que possam desejar para si mesmos a fim de nos beneficiar e beneficiar o trabalho que vai além de nós neste mundo de Deus.

Resumo e conclusão de Romanos

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A preocupação dominante de Paulo em Romanos é a salvação — a reconciliação do mundo por Deus por meio da cruz de Jesus Cristo. Em Cristo, Deus está trabalhando para reconciliar todas as pessoas consigo mesmo, umas com as outras, e redimir a ordem criada das forças do mal do pecado, da morte e da decadência. A preocupação de Paulo não é abstrata, mas prática. Seu objetivo é curar as divisões entre os cristãos em Roma e capacitá-los a trabalharem juntos para cumprirem a vontade de Deus para sua vida e seu trabalho.

Nesse cenário, Paulo mostra que a salvação vem a nós como um dom gratuito comprado pela fidelidade de Deus na cruz de Cristo e pela graça de Deus em nos levar à fé em Cristo. De forma alguma esse dom gratuito implica que Deus não se importa com o que e como trabalhamos. Em vez disso, Paulo mostra como o recebimento da graça de Deus transforma não só o trabalho que fazemos mas também como o fazemos. Embora não trabalhemos para ganhar a salvação, Deus está nos salvando, mas ele nos dá a incrível diversidade de dons necessários para servir uns aos outros e edificar nossas comunidades. Como resultado, caminhamos em um novo modo de vida, levando vida em Cristo aos que nos rodeiam e, no tempo de Deus, à plenitude da criação.

Bibliografia Selecionada (Romanos)

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Fowl, Stephen E. Philippians. Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans. The Two Horizons New Testament Commentary, 2005.

Grieb, A. Katherine. The Story of Romans: A Narrative Defense of God’s Righteousness. Louisville: Westminster John Knox, 2002.

Jewett, Robert. Romans: A Commentary. Minneapolis: Fortress Press. Hermeneia, 2007.

Johnson, Luke Timothy. Reading Romans: A Literary and Theological Commentary. Macon, GA: Smyth & Helwys, 2001.

Keck, Leander. Romans. Nashville: Abingdon Press. Abingdon New Testament Commentary, 2005.

Moo, Douglas. The Epistle to the Romans in the New International Commentary on the New Testament. Grand Rapids: MI, Eerdmans, 1996.

Stowers, Stanley K. A Rereading of Romans: Justice, Jews & Gentiles. New Haven: Yale University Press, 1994.

Wright, N. T. The Climax of the Covenant. Edinburgh: T&T Clark, 1991.

N.T. Wright. The Letter to the Romans, in The New Interpreter’s Bible. Vol. 10. Nashville: Abingdon Press, 1994.

Introdução a 1Coríntios

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Nenhuma outra carta no Novo Testamento nos dá uma imagem mais prática da aplicação da fé cristã às questões cotidianas da vida e do trabalho do que 1Coríntios. Tópicos como carreira e chamado, o valor duradouro do trabalho, superação de limitações individuais, liderança e serviço, o desenvolvimento de habilidades (ou “dons”), salários justos, gestão ambiental e o uso do dinheiro e das posses são proeminentes nessa carta. A perspectiva unificadora em todos esses tópicos é o amor. O amor é o propósito, o meio, a motivação, o dom e a glória por trás de todo o trabalho feito em Cristo.

A cidade de Corinto (1Coríntios)

A primeira carta do apóstolo Paulo à igreja em Corinto, que ele fundou em sua segunda viagem missionária (48–51 d.C.), é um tesouro de teologia prática para os cristãos que enfrentam os desafios diários. Ela fornece as instruções de Paulo aos cristãos que lidam com questões da vida real, incluindo conflitos de lealdade, diferenças de classe, conflitos entre liberdade pessoal e o bem comum, e a dificuldade de liderar um grupo diversificado de pessoas para cumprir uma missão compartilhada.

Na época de Paulo, Corinto era a cidade mais importante da Grécia. Sentada no istmo que une a Península do Peloponeso à Grécia continental, Corinto controlava tanto o Golfo Sarônico, a leste, quanto o Golfo de Corinto, ao norte. Os mercadores queriam evitar a difícil e perigosa jornada marítima ao redor dos dedos do Peloponeso, por isso grande parte das mercadorias que fluíam entre Roma e o império ocidental e os ricos portos do Mediterrâneo oriental era transportada por esse istmo. Quase toda mercadoria passava por Corinto, tornando-a um dos grandes centros comerciais do império. Estrabão, um contemporâneo mais velho de Paulo, observou que “Corinto é chamada de ‘rica’ por causa de seu comércio, pois está situada no istmo e possui dois portos, um dos quais leva diretamente à Ásia e o outro à Itália; e facilita a troca de mercadorias de dois países tão distantes um do outro.” [1]

Durante meados do primeiro século, quando escravos libertos, veteranos, mercadores e comerciantes afluíram para a cidade, ela guardava uma atmosfera de prosperidade. Embora o que hoje poderíamos chamar de “mobilidade ascendente” fosse algo indescritível no mundo antigo, Corinto era um lugar onde poderia ser possível, com algumas boas pausas e muito trabalho árduo, estabelecer-se e desfrutar de uma vida razoavelmente boa. [2] Isso contribuiu para o ethos único de Corinto, que se via como próspera e autossuficiente, uma cidade cujo valor central era o “pragmatismo empreendedor na busca do sucesso”. [3] Muitas cidades no mundo de hoje aspiram a esse mesmo ethos.

A igreja em Corinto e as cartas de Paulo (1Co)

Paulo chegou a Corinto no inverno de 49/50 dC [4] e ali viveu um ano e meio. Nesse período, ele se sustentou fabricando tendas — ou talvez trabalhando com couro [5] ( At 18.2-3 ), o ofício que ele aprendeu quando menino — na oficina de Áquila e Priscila (ver 1Co. 4.12 ). Embora pudesse ter aproveitado desde o início o apoio de tempo integral como missionário, como de fato faz mais tarde (At 18.4 e 2Co 11.9), em 1Coríntios 9 ele expõe suas razões para seguir esse curso (veja abaixo).

De qualquer forma, sua pregação na sinagoga logo no sábado deu frutos, e a igreja em Corinto nasceu. A igreja parece ter não mais de cem pessoas quando Paulo escreveu 1Coríntios. Alguns eram judeus, enquanto a maioria era gentia. Eles se reuniam nas casas de dois ou três membros mais ricos, mas a maior parte pertencia à grande classe baixa que povoava todos os centros urbanos. [6]

Paulo se manteve profundamente interessado no desenvolvimento da igreja, mesmo depois de deixar Corinto. Ele havia escrito à congregação pelo menos uma carta antes de 1Coríntios (1Co 5.9), a fim de resolver um problema surgido após sua partida. Membros da casa de Cloe, que podem ter tido interesses comerciais para atender em Éfeso, visitaram Paulo ali e relataram que a igreja em Corinto corria o risco de desmoronar por causa de várias divisões de opinião (1Co 1.11). No estilo empresarial coríntio, grupos concorrentes estavam criando grupos em torno de seus apóstolos favoritos, a fim de ganhar status para si mesmos (capítulos 1-4). Muitos se rebelaram devido a sérias diferenças sobre comportamento sexual e ética nos negócios por parte de alguns de seus membros (capítulos 5-6). Então, outro grupo de representantes da igreja chegou com uma carta na mão (1Co 7.1;16.17), questionando Paulo sobre uma série de temas importantes, como sexo e casamento (capítulo 7), a propriedade de comer carne oferecida anteriormente a ídolos (capítulos 8-10) e adoração (capítulos 11-14). Finalmente, Paulo também tinha aprendido de uma dessas fontes, ou talvez de Apolo (veja 1Co 16.12), que alguns na igreja de Corinto negavam a futura ressurreição dos crentes (capítulo 15).

Essas questões dificilmente surgiram de discussões acadêmicas. Os coríntios queriam saber, como seguidores de Cristo, como agir em questões da vida cotidiana e do trabalho. Paulo fornece respostas ao longo de 1Coríntios, tornando-o um dos livros mais práticos do Novo Testamento.

Todos são chamados (1Co 1.1-3)

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No parágrafo inicial de 1Coríntios, Paulo expõe temas que abordará com mais detalhes no corpo de sua carta. Não por coincidência o conceito de chamado está antes e no centro da introdução. Paulo afirma no primeiro versículo que ele foi “chamado para ser apóstolo de Cristo Jesus, pela vontade de Deus” (1Co 1.1). Uma forte convicção de que ele foi chamado diretamente por Deus permeia as cartas de Paulo (veja, por exemplo, Gl 1.1) e é fundamental para sua missão (ver At 9.14-15). Isso lhe deu uma força notável diante de enormes desafios. Da mesma forma, os crentes coríntios são “chamados” junto “com todos os que, em toda parte, invocam o nome do nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso: Graça e paz a vocês da parte de Deus, o nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.2). Logo, veremos que a base de nosso chamado não é a satisfação individual, mas o desenvolvimento comunitário. Embora Paulo não desenvolva esse ponto até mais tarde, na carta (veja 1Co 7.17-24), mesmo nesse momento, fica claro seu pensamento de que todos os crentes devem buscar o chamado que Deus lhes designou.

Recursos espirituais disponíveis (1Co 1.4–9)

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De acordo com as convenções da escrita de cartas antigas, uma saudação era seguida por uma seção em que o autor elogiava o destinatário. [1] Na maioria de suas cartas, Paulo altera essa forma literária oferecendo ações de graças, em vez de louvar, e usando uma frase padrão, como a que temos aqui: “Sempre dou graças ao meu Deus por vocês . . .” (veja 1Co 1.4, bem como Rm 1.8 ; Fp 1.3; Cl. 1.3; 1Ts 1.2; e 2Ts 1.3). Nesse caso, Paulo expressa sua gratidão pelo fato de os crentes coríntios terem experimentado a graça de Deus em Cristo. Isso é mais do que uma vaga piedade. Em vez disso, Paulo tem algo bem específico em mente. Os crentes em Corinto foram enriquecidos por meio de Cristo (1Co 1.5), de modo que “não falta a vocês nenhum dom espiritual enquanto esperam que o nosso Senhor Jesus Cristo seja revelado” (1Co 1.7). Paulo cita especificamente dois dons, a fala e o conhecimento, dos quais a igreja de Corinto desfrutava em abundância.

Para nossos propósitos, é especialmente importante observar que Paulo está convencido de que os crentes em Corinto receberam os recursos espirituais necessários para cumprir seu chamado. Deus os chamou e lhes concedeu dons que lhes permitirão ser “irrepreensíveis no dia do nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.8). Embora o dia da perfeição ainda não tenha chegado, seja no trabalho seja em qualquer outro lugar, os cristãos já têm acesso aos dons que serão plenamente realizados naquele dia.

É difícil imaginar que todos os cristãos coríntios se sentissem como se seu trabalho fosse uma ocupação especial, projetada individualmente por Deus para eles. A maioria eram escravos ou trabalhadores comuns, como veremos. O que Paulo deve dizer é que, pareça ou não especial a ocupação de cada um, Deus concede os dons necessários para que o trabalho de todos contribua para o plano de Deus para o mundo. Não importa quão insignificante nosso trabalho pareça, não importa quanto desejemos ter um emprego diferente, o trabalho que fazemos agora é importante para Deus.

A necessidade de uma visão comum (1Co 1.10-17)

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Paulo afirma, em forma de tese, o que ele está tentando realizar ao escrever 1Coríntios. [1] “Irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo, suplico a todos que concordem uns com os outros no que falam e que não haja divisões entre vocês; antes, que todos estejam unidos em um só pensamento e em um só parecer” (1Co 1.10). O verbo usado nessa frase final consiste em uma metáfora que conota a reparação dos relacionamentos humanos. Assim, Paulo está exortando os coríntios a superarem o facciosismo que prejudicou a unidade da igreja.

A cultura ocidental moderna valoriza muito a diversidade, de modo que corremos o risco de interpretar negativamente as injunções de Paulo. Ele não está defendendo a conformidade de pensamento (como outras passagens deixam claro), mas entende muito claramente que é essencial um senso de propósito e visão comuns. Se houver conflito e desacordo contínuos sobre valores e convicções básicos, e não houver coesão entre seus membros, qualquer organização estará fadada ao fracasso. Embora Paulo esteja escrevendo para uma igreja, sabemos que ele também achava que os cristãos deveriam contribuir para o funcionamento da sociedade em geral. “Lembre a todos que se sujeitem aos governantes e às autoridades, sejam obedientes, estejam sempre prontos a fazer tudo o que é bom” (Tt 3.1; grifo nosso). Portanto, devemos buscar um propósito comum não apenas na igreja, mas também nos locais em que trabalhamos. Nosso papel como cristãos é fazer um bom trabalho em unidade e harmonia com crentes e não crentes. Isso não significa que concordamos com a imoralidade ou a injustiça. Significa que desenvolvemos bons relacionamentos, apoiamos os colegas de trabalho e nos preocupamos em fazer o trabalho com excelência. Se não podemos, em sã consciência, fazer nosso trabalho de todo o coração, precisamos encontrar outro lugar para trabalhar, em vez de resmungar ou fugir.

Status na igreja e no trabalho: amigos em posições inferiores (1Co 1.18–31)

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Paulo lembra à congregação em Corinto que a maioria deles não se origina das classes privilegiadas. “Irmãos, pensem no que vocês eram quando foram chamados. Poucos eram sábios segundo os padrões humanos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento” (1Co 1.26). Mas a eficácia da igreja não dependia de ter pessoas com todas as conexões, educação ou fortuna. Deus cumpre seus propósitos com pessoas comuns. Já vimos que o valor de nosso trabalho se baseia nos dons de Deus, não em nossas credenciais. Mas Paulo chama atenção para outro ponto. Por não sermos especiais por natureza, jamais devemos tratar os demais como insignificantes.

Mas Deus escolheu os que são loucos para o mundo a fim de envergonhar os sábios e os que são fracos para o mundo a fim de envergonhar os fortes. Deus escolheu as coisas insignificantes do mundo, os desprezados e as coisas que não são para invalidar as que são, a fim de que ninguém se vanglorie diante dele. (1Co 1.27-29; grifo nosso)

Desde os dias de Paulo, muitos cristãos alcançaram posições de poder, riqueza e status. Suas palavras nos lembram que insultamos Deus ao permitir que tais coisas nos tornem arrogantes, desrespeitosos ou abusivos em relação a pessoas em posições de status inferior. Muitos locais de trabalho ainda concedem privilégios especiais a trabalhadores de alto escalão, sem relevância para o trabalho real em questão. Além das diferenças salariais, os trabalhadores de alto status podem desfrutar de escritórios mais sofisticados, viagens de primeira classe, salas de jantar executivas, estacionamento reservado, pacotes de benefícios melhores, associação a clubes pagos pela empresa, residências, motoristas, serviços pessoais e outras regalias. Eles podem receber deferência especial, por exemplo, sendo chamados de “sr.” ou “sra.” ou “professor” — quando outras pessoas na organização são chamadas apenas pelo primeiro nome. Em alguns casos, um tratamento especial pode ser apropriado, com base na natureza do trabalho realizado e nas responsabilidades organizacionais. Mas, em outros casos, esses privilégios podem criar gradações injustificadas de valor e dignidade humana. O ponto de Paulo é que tais distinções não têm lugar entre o povo de Deus. Se gostamos — ou sofremos — de tais distinções no trabalho, podemos nos perguntar se elas contradizem o caráter de igualdade de dignidade das pessoas na presença de Deus e, em caso afirmativo, o que podemos fazer para remediá-las.

É preciso todo tipo (1Co 3.1-9)

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Observamos acima que o principal problema na igreja de Corinto era o facciosismo. Grupos estavam se formando sob a bandeira do nome de Paulo versus o nome de Apolo, outro missionário da igreja de Corinto. Paulo não aceitaria nada disso. Ele e Apolo são simplesmente servos. Embora tenham papéis diferentes, nenhum é mais valioso que o outro. O plantador (Paulo) e o irrigador (Apolo) — para usar uma metáfora agrícola — são igualmente vitais para o sucesso da colheita, e nenhum dos dois é responsável pelo crescimento da colheita. Isso é inteiramente obra de Deus. Os vários trabalhadores têm um objetivo comum em mente (uma colheita abundante), mas têm tarefas diferentes, de acordo com suas habilidades e seu chamado. Todos são necessários e ninguém pode fazer todas as tarefas necessárias.

Paulo, em outras palavras, está ciente da importância da diversificação e da especialização. Em seu famoso ensaio de 1958, “I, Pencil”, o economista Leonard Read seguiu o curso da fabricação de um lápis comum, ressaltando que ninguém sabe como fazer um. Na verdade, é o produto de vários processos sofisticados, que apenas um determinado indivíduo pode dominar. Pela graça de Deus, pessoas diferentes são capazes de desempenhar papéis diferentes em locais de trabalho do mundo. Mas a especialização às vezes leva ao facciosismo interpessoal ou interdepartamental, linhas de comunicação precárias e até difamação pessoal. Se os cristãos acreditarem no que Paulo diz sobre a natureza dada por Deus aos diferentes papéis, talvez possamos assumir a liderança na superação de divisões disfuncionais em nossas organizações. Se formos capazes de simplesmente tratar os outros com respeito e valorizar o trabalho de pessoas diferentes de nós, podemos estar contribuindo significativamente para nosso local de trabalho.

Uma aplicação importante disso é o valor de investir no desenvolvimento do trabalhador, seja ele nosso ou das pessoas em volta. Nas cartas de Paulo, incluindo 1Coríntios, às vezes parece que Paulo nunca faz nada sozinho (veja, por exemplo, 1Co 14-15), mas instrui outros como fazê-lo. Isso não é arrogância ou preguiça, mas orientação. Ele preferiria investir no treinamento de trabalhadores e líderes eficazes a tomar as decisões, sozinho. À medida que amadurecemos no serviço a Cristo no local de trabalho, talvez nos vejamos fazendo mais para equipar os outros e menos para parecer bons.

Realizar boas obras (1Co 3.10-17)

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Paulo introduz a metáfora de um prédio em construção para enfatizar um novo ponto de vista: fazer um bom trabalho. Esse ponto é tão importante para entender o valor do trabalho que vale a pena incluir, aqui, a passagem na íntegra.

Conforme a graça de Deus que me foi concedida, eu, como sábio construtor, lancei o alicerce, e outro está construindo sobre ele. Contudo, veja cada um como constrói. Porque ninguém pode colocar outro alicerce além do que já está posto, que é Jesus Cristo. Se alguém constrói sobre esse alicerce usando ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, sua obra será mostrada, porque o Dia a trará à luz; pois será revelada pelo fogo, que provará a qualidade da obra de cada um. Se o que alguém construiu permanecer, esse receberá recompensa. Se o que alguém construiu se queimar, esse sofrerá prejuízo; contudo, será salvo como alguém que escapa através do fogo (1Co 3.10-15).

Essa talvez seja a declaração mais direta do valor eterno do trabalho terreno em toda a Escritura. A obra que realizamos na terra — quando o fazemos segundo os caminhos de Cristo — sobrevive por toda a eternidade. Paulo está falando especificamente do trabalho realizado pela comunidade da igreja, que ele compara a um templo. Paulo se compara a um “excelente construtor” que lançou o fundamento, que é, naturalmente, o próprio Cristo. Outros constroem sobre esse alicerce, e cada um é responsável por seu trabalho. Paulo compara o bom trabalho ao ouro, à prata e às pedras preciosas, e o trabalho medíocre à madeira, ao feno e à palha. Embora alguns tenham tentado atribuir significados específicos a cada um desses materiais, é mais provável que a diferença seja simplesmente que alguns materiais têm a capacidade de resistir a testes de fogo, enquanto outros não.

Paulo não está fazendo nenhum julgamento sobre a salvação de qualquer indivíduo, pois, mesmo que a obra de alguém falhe no teste, “o construtor será salvo”. Essa passagem não é sobre a relação entre as “boas obras” de um crente e sua recompensa celestial, embora muitas vezes tenha sido lida dessa maneira. Em vez disso, Paulo está preocupado com a igreja como um todo e como seus líderes trabalham dentro dela. Se contribuírem para a unidade da igreja, serão elogiados. Se, no entanto, seu ministério resulta em contenda e facciosismo, eles estão, na verdade, provocando a ira de Deus, porque ele protege apaixonadamente seu templo vivo daqueles que o destruiriam (1Co 3.16-17).

Embora Paulo esteja escrevendo sobre o trabalho de construir uma comunidade cristã , suas palavras se aplicam a todos os tipos de trabalho. Como vimos, ele considera que o trabalho cristão inclui tanto o trabalho realizado pelos crentes sob a autoridade secular como o feito na igreja. Seja qual for o trabalho, ele será avaliado imparcialmente por Deus. A avaliação final será melhor do que qualquer avaliação de desempenho, já que Deus julga com perfeita justiça — ao contrário dos chefes humanos, por mais justos ou injustos que sejam — e é capaz de considerar nossas intenções, limitações, nossos motivos, nossa compaixão, e sua misericórdia. Deus chamou todos os crentes para trabalharem em quaisquer circunstâncias em que se encontrem, e nos deu dons específicos para cumprir esse chamado. Ele espera que as usemos com responsabilidade para seus propósitos e inspecionará nosso trabalho. À medida que nosso trabalho for realizado com excelência, por seus dons e por sua graça, ele se tornará parte do reino eterno de Deus. Isso deve nos motivar — mais do que a aprovação do empregador ou o nosso salário — a fazer um trabalho tão bom quanto possível.

Liderança cristã como serviço (1Co 4.1-4)

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Nesta passagem, Paulo oferece uma declaração definitiva do que significa ser um líder: “Portanto, que todos nos considerem servos de Cristo e encarregados dos mistérios de Deus” (1Co 4.1). “Nos” refere-se aos líderes apostólicos por meio dos quais os coríntios chegaram à fé e a quem as várias facções da igreja reivindicaram lealdade (1Co 4.6). Paulo usa duas palavras nesse versículo para elaborar o que ele quer dizer. O primeiro, hypēretēs (“servos”), denota um atendente, um servo que serve ou ajuda alguém. Nesse sentido, os líderes atendem pessoalmente às necessidades das pessoas que eles lideram. Os líderes não são exaltados, mas humilhados, por aceitarem a liderança. O trabalho requer paciência, engajamento pessoal e atenção individual às necessidades dos seguidores. A segunda é oikonomos (“mordomos”), que descreve um servo ou escravo que administra os assuntos de uma casa ou propriedade. A principal distinção nessa posição é a confiança. O mordomo é responsável por administrar os assuntos da casa em benefício do proprietário. Da mesma forma, confia-se que o líder gerencie o grupo para o benefício de todos os seus membros, e não para benefício pessoal. Essa qualidade é explicitamente atribuída a Timóteo (2Co 4.17), Tíquico (Ef 6.21; Cl 4.7), Paulo (1Tm 1.12), Antipas (Ap 2.13) e, acima de tudo, Cristo (2Tm 2.13; Hb 2.17). Esses são os tipos de pessoas em quem Deus confia para realizar seu plano para o reino.

Os locais de trabalho modernos costumam criar sistemas para recompensar os líderes por usarem suas equipes para atingir os objetivos da organização. Essa é provavelmente uma prática sábia, a menos que incentive os líderes a alcançarem essas recompensas a custa das pessoas que lideram. Os líderes são, de fato, responsáveis ​​por realizar — ou, melhor ainda, exceder — o trabalho para o qual suas equipes são designadas. Mas não é legítimo o líder sacrificar as necessidades do grupo para obter recompensas pessoais. Em vez disso, os líderes são chamados a cumprirem as metas do grupo atendendo às necessidades do grupo.

Trabalhando com descrentes (1Co 5.9-10)

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No capítulo 5, Paulo introduz a questão do trabalho com descrentes, que ele explorará mais detalhadamente no capítulo 10 e, por fim, em 2Coríntios, capítulo 6 (veja “Trabalhando com descrentes” em 2Co). Nesse ponto, ele diz simplesmente que os cristãos não são chamados a se afastarem do mundo por causa de temores sobre ética. “Já escrevi a vocês em carta para não se associarem a pessoas sexualmente imorais. Não me refiro, com isso, aos imorais deste mundo, nem aos avarentos, nem aos ladrões, nem aos idólatras. Se assim fosse, vocês teriam que sair deste mundo” (1Co 5.9-10). Ao mencionar avarentos, ladrões e idólatras, ele indica explicitamente que está incluindo o mundo do trabalho em suas instruções. Embora devamos nós mesmos evitar a imoralidade, e não nos associar com pessoas imorais cristãs, Paulo espera que trabalhemos com descrentes, mesmo com aqueles que não observam os princípios éticos de Deus. Desnecessário dizer que se trata de uma proposta difícil, embora não entre em detalhes até o capítulo 10. O ponto que ele enfatiza aqui é simplesmente que os cristãos são proibidos de tentar criar algum tipo de economia exclusivamente cristã e deixar o mundo à própria sorte. Em vez disso, somos chamados a ocupar nosso lugar na obra do mundo ao lado das pessoas do mundo.

Floresça onde você está plantado (1Co 7.20-24)

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No meio de um capítulo que trata principalmente de questões relacionadas ao casamento e ao estado de solteiro, Paulo faz uma declaração importante sobre chamado e trabalho. Tudo o mais constante, os crentes devem permanecer na situação de vida em que se encontravam quando se converteram (1Co 7.20). A questão específica com a qual Paulo está lidando não afeta diretamente a maioria das pessoas no mundo ocidental, embora seja crítica em muitas partes do mundo, hoje. O que os crentes que são escravos devem fazer se tiverem a chance de ganhar a liberdade?

A escravidão no mundo antigo era um fenômeno complexo que de forma alguma se identifica com as manifestações modernas, seja no sul dos Estados Unidos pré-Guerra Civil, seja na servidão por dívida no sul da Ásia contemporânea, seja no tráfico sexual existente em praticamente todos os países do mundo. De certo, foi igualmente hediondo em muitos casos, mas alguns escravos, em particular os domésticos que Paulo provavelmente tem em mente aqui, estavam em melhor situação, pelo menos econômica, do que muitas pessoas livres. Muitas pessoas instruídas, incluindo médicos e contadores, na verdade escolheram a escravidão exatamente por esse motivo. Portanto, para Paulo, estava realmente em aberto a questão sobre qual seria a melhor situação, se a escravidão ou a liberdade. As formas modernas de escravidão, em contrapartida, sempre diminuem severamente a vida dos escravizados.

O ponto, então, não é se a escravidão deve ser abolida, mas se os escravos devem procurar ser livres. É difícil determinar a natureza precisa da instrução de Paulo aqui, porque o grego de 1Coríntios 7.21 é ambíguo, tanto que abre espaço para duas interpretações divergentes. Como algumas traduções em língua inglesa e vários comentaristas a entendem, ela deve ser traduzida da seguinte forma: “Você era escravo quando foi chamado? Não se preocupe com isso. Mesmo que você possa ganhar sua liberdade, faça uso de sua condição atual agora mais do que nunca.” Igualmente possível (e mais provável, em nossa opinião), no entanto, é o sentido dado na NVI, que é: “Foi você chamado sendo escravo? Não se incomode com isso; embora, se você puder conseguir a liberdade, consiga-a.”

Seja qual for o conselho de Paulo, a crença subjacente é que — quando comparada à diferença entre estar em Cristo e não estar em Cristo — a diferença entre ser escravo e uma pessoa livre é relativamente pequena. “Pois aquele que foi chamado pelo Senhor, sendo escravo, é pessoa livre e pertence ao Senhor; semelhantemente, aquele que era livre, uma vez chamado, é escravo de Cristo.” (1Co 7.22). Portanto, se não houver motivos convincentes para mudar de status, provavelmente é melhor permanecer na situação em que você foi chamado.

O ensino de Paulo aqui tem uma aplicação importante para o local de trabalho. Embora possamos sentir que conseguir o emprego certo é o fator mais importante para servir a Deus ou experimentar a vida que ele deseja para nós, Deus está muito mais preocupado com que aproveitemos ao máximo cada trabalho que tivermos ao longo de nossa vida. Em determinado momento, pode haver boas razões para mudar de emprego ou mesmo de profissão. Tudo bem, vá em frente e faça. No entanto, qualquer trabalho moralmente legítimo pode cumprir o chamado de Deus, logo, não torne a tarefa de encontrar o trabalho da sua vida o trabalho de sua vida. Não há uma hierarquia de profissões mais e menos piedosas. Certamente, isso nos adverte contra a crença de que Deus chama os cristãos mais sérios para os trabalhos da igreja.

Para uma discussão aprofundada sobre esse tópico, consulte o artigo Visão geral da vocação em www.teologiadotrabalho.org.

Mantenha a perspectiva correta (1Co 7.29–31)

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Paulo menciona a seguinte questão: se o prometido retorno do Senhor implica que os cristãos devam abandonar a vida cotidiana comum, incluindo o trabalho.

O que quero dizer, irmãos, é que nos resta pouco tempo. De agora em diante, aqueles que têm esposa vivam como se não tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; os que estão felizes, como se não estivessem; os que compram algo, como se nada possuíssem; 31os que usam as coisas do mundo, como se não as usassem. Porque a forma presente deste mundo passará. (1Co 7.29-31)

Aparentemente, alguns crentes negligenciaram os deveres familiares e pararam de trabalhar, da mesma forma que você poderia deixar de varrer o chão antes de se mudar para uma nova casa. Paulo já havia lidado com essa situação na igreja em Tessalônica e dado instruções inequívocas.

Quando ainda estávamos com vocês, nós ordenamos isto: Se alguém não quiser trabalhar, também não coma. Pois ouvimos que alguns de vocês estão ociosos; não trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia. A tais pessoas ordenamos e exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e comam o seu próprio pão. (2Ts 3.10-12)

A lógica de Paulo será mais fácil de entender se reconhecermos que 1Coríntios 7.29 não indica apenas que “o tempo é pouco”, no sentido de que a segunda vinda de Jesus está quase chegando. Aqui Paulo usa um verbo que descreve como um objeto é unido (synestalmenos), de modo que ele se torna mais curto ou menor como um todo. “O tempo foi comprimido” pode ser uma tradução melhor ou “o tempo foi encurtado”. O que Paulo aparentemente quer dizer é que, desde a vinda de Cristo, o fim da vasta extensão de tempo finalmente se tornou visível. “O resultado futuro deste mundo tornou-se claro como cristal”, escreve o estudioso David E. Garland. [1] 1Coríntios 7.31 explica que “a forma presente deste mundo está passando”. A “forma presente” tem o sentido de “como as coisas são” em nosso mundo caído de relacionamentos sociais e econômicos prejudicados. Paulo quer que seus leitores entendam que a vinda de Cristo já efetuou uma mudança no próprio tecido da vida. Os valores e as aspirações simplesmente tidos como garantidos no modo atual de fazer as coisas não são mais funcionais para os crentes.

A resposta adequada à compressão do tempo não é parar de trabalhar, mas trabalhar de forma diferente. As velhas atitudes em relação à vida cotidiana e seus assuntos devem ser substituídas. Isso nos traz de volta às afirmações paradoxais em 1Coríntios 7.29–31. Devemos comprar, mas agir como se não tivéssemos bens. Devemos lidar com o mundo como se não estivéssemos lidando com o mundo tal qual o conhecemos. Ou seja, podemos fazer uso das coisas que este mundo tem a oferecer, mas não devemos aceitar seus valores e princípios quando eles atrapalham o reino de Deus. Devemos empregar as coisas que compramos para o bem dos outros, em vez de nos apegar a elas. Quando negociamos no mercado, devemos buscar o bem da pessoa de quem compramos, não apenas nossos próprios interesses. Em outras palavras, Paulo está chamando os crentes a “uma compreensão radicalmente nova de seu relacionamento com o mundo”. [2]

Nossa velha atitude é a de que trabalhamos para tornar a vida mais confortável e satisfatória para nós mesmos e para as pessoas próximas a nós. Procuramos reunir coisas que pensamos nos trazer status, segurança e vantagem sobre os demais. Primeiro, compartimentalizamos a adoração a nossos deuses, depois focamos a atenção no casamento, depois no trabalho, depois no engajamento cívico, se tivermos algum tempo e energia sobrando. A nova atitude é que trabalhamos para beneficiar a nós mesmos, às pessoas próximas a nós e a todos aqueles por quem Jesus trabalhou e morreu. Procuramos liberar o que possuímos a fim de que seja usado de modo a tornar o mundo mais semelhante ao que Deus deseja. Integramos nossa vida de adoração, família, trabalho e sociedade, e procuramos investir — em vez de ficar de um lado para o outro — em capital físico, intelectual, cultural, moral e espiritual. Nisso, imitamos o antepassado do povo de Deus, Abraão, a quem Deus disse: “Farei de você um grande povo e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção” (Gn 12.2).

Todos recebem seu quinhão (1Co 9.7-10)

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No capítulo 9, Paulo explica por que inicialmente optou por não aceitar apoio financeiro direto da igreja de Corinto, embora tivesse direito a isso. Ele começa afirmando o direito dos obreiros, incluindo os apóstolos, de receberem salário por seu trabalho. Servimos ao Senhor em nosso trabalho, e o Senhor deseja que, em troca, obtenhamos sustento dele. Paulo dá três exemplos da vida cotidiana para ilustrar esse ponto. Soldados, vinicultores e pastores obtêm benefícios econômicos por seu trabalho. Paulo, no entanto, raramente apela apenas à convenção para defender seu caso, então ele cita Deuteronômio 25.4 (“Não amordace o boi enquanto ele estiver debulhando o grão”) em apoio ao seu argumento. Se até os animais merecem uma parte dos frutos de seu trabalho, então certamente qualquer pessoa que participe da obtenção de algum benefício deve compartilhar dele.

Esse texto tem implicações claras para o local de trabalho, especialmente para os empregadores. Os trabalhadores merecem um salário justo. Na verdade, a Bíblia ameaça os empregadores com consequências terríveis se eles negarem a seus funcionários uma compensação justa (Lv 19.13 ; Dt 24.14; Tg 5.7). Paulo sabe que uma variedade de fatores afeta a determinação de um salário justo, e ele não tenta prescrever um número ou fórmula. Da mesma forma, as complexidades de oferta e demanda, a regulação e sindicalização, salários e benefícios, e poder e flexibilidade nos mercados de trabalho atuais estão além do escopo deste capítulo. Mas o princípio não. Aqueles que empregam trabalho humano não podem negligenciar as necessidades daqueles cujo trabalho empregam.

No entanto, Paulo escolhe não fazer uso de seu direito de receber salário por seu trabalho como apóstolo. Por quê? Porque, no caso dele, dadas as sensibilidades da igreja em Corinto, fazê-lo poderia “colocar um obstáculo no caminho do evangelho de Cristo” (1Co 9.12). Por acaso, Deus tornou possível que ele ganhasse a vida lá, apresentando-o a outros fabricantes de tendas (ou coureiros), Priscila e Áquila, que moram em Corinto (At 18.1-3; Rom. 16.3). Paulo não espera que Deus arranje as coisas de modo que todos os obreiros da igreja possam trabalhar de graça. Mas, nesse caso, Deus o fez, e Paulo aceita a provisão de Deus com gratidão. A questão é que apenas o trabalhador tem o direito de se oferecer para trabalhar sem remuneração justa. O empregador não tem o direito de exigir isso.

A glória de Deus é o objetivo final (1Co 10)

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No decorrer de uma discussão extensa, iniciada no capítulo 8, sobre uma questão de importância crítica para os crentes em Corinto — a propriedade de comer carne que antes havia sido oferecida a ídolos —, Paulo articula um princípio amplo a respeito do uso dos recursos da terra. Ele diz, citando Salmos 24.1: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem” (1Co 10.26). Ou seja, como tudo vem de Deus, qualquer alimento pode ser consumido, independentemente do uso anterior para fins de culto pagão. (Em uma cidade romana, grande parte da carne vendida no mercado teria sido oferecida a ídolos no decorrer de sua preparação.)[1] Há dois aspectos desse princípio que se aplicam ao trabalho.

Primeiro, podemos estender a lógica de Paulo para concluir que os crentes podem usar tudo o que a terra produz, incluindo alimentos, roupas, bens manufaturados e energia. No entanto, ele estabelece um limite nítido para esse uso. Se prejudicar alguém, devemos nos abster. Se o contexto de um jantar em que carne é oferecida a ídolos é o problema, então a consciência de outra pessoa pode ser a razão pela qual precisamos nos abster de comê-la. Se o contexto é a segurança do trabalhador, a escassez de recursos ou a degradação ambiental , então o bem-estar dos trabalhadores de hoje, o acesso a recursos pelos pobres de hoje e as condições de vida da população de amanhã podem ser as razões pelas quais nos abstemos de consumir certos itens. Visto que Deus é o dono da terra e de sua plenitude, o uso que fazemos dela deve estar em consonância com seus propósitos.

Em segundo lugar, espera-se que nos envolvamos no comércio com incrédulos, como já vimos em 1Coríntios 5.9-10. Se os cristãos estivessem comprando carne apenas de açougueiros cristãos, ou mesmo de judeus, é claro que não haveria razão para se preocupar se ela havia sido oferecida a ídolos. Mas Paulo afirma que os crentes devem se engajar no comércio com a sociedade em geral. (As preocupações no capítulo 8 também pressupõem que os cristãos se envolverão em relacionamentos sociais com descrentes, embora esse não seja o nosso tópico aqui.) Os cristãos não são chamados a se afastarem da sociedade, mas a se envolverem com ela, incluindo os locais de trabalho. Como observado anteriormente, Paulo discute os limites desse engajamento em 2Coríntios 6.14-18 (veja “Trabalhando com descrentes ” em 2Coríntios).

“Assim, quer vocês comam, quer bebam, quer façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus”, diz Paulo (1Co 10.31). Esse versículo de forma alguma legitima todas as atividades concebíveis. Não deve ser interpretado no sentido de que absolutamente qualquer coisa pode ser feita para trazer glória a Deus. O ponto de Paulo é que temos de discernir se nossas ações — incluindo o trabalho — são consistentes com os propósitos de Deus no mundo. O critério não é se nos associamos a descrentes, se usamos materiais que poderiam ser utlizados ​​para o mal de outros, se lidamos com pessoas que não são amigas de Deus, mas se o trabalho que fazemos contribui para os propósitos de Deus. Nesse caso, tudo o que fizermos será realmente feito para a glória de Deus.

O resultado é que todas as vocações que agregam valor genuíno ao mundo criado por Deus de uma maneira que beneficie a humanidade são verdadeiros chamados que trazem glória a Deus. O agricultor e o balconista de supermercado, o fabricante e o regulador de emissões, o pai e o professor, o eleitor e o governador podem desfrutar da satisfação de servir no plano de Deus para sua criação.

Dons espirituais em comunidade (1Co 12.1—14.40)

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O uso do que veio a ser chamado de “dons espirituais” (12.1) parece ter causado muita controvérsia na igreja de Corinto. Aparentemente o dom de línguas (ou seja, declarações extáticas lideradas pelo Espírito), em particular, estava sendo usado para acentuar as diferenças de status na igreja, com aqueles que praticavam esse dom alegando ser mais espirituais do que aqueles que não o praticavam (veja 12.1-3, 13.1, 14.1-25). [1] Ao contra-atacar, Paulo articula uma compreensão ampla dos dons do Espírito de Deus, que apresenta grandes aplicações para o trabalho.

A primeira coisa a observar é que o termo “dons espirituais” é muito limitado para descrever o que Paulo está falando. Eles são “espirituais” no sentido amplo de serem originários do Espírito de Deus, não no sentido estrito de serem desencarnados ou paranormais. E “dom” é apenas um dos vários termos que Paulo usa para o fenômeno que tem em mente. Apenas no capítulo 12, ele chama os vários dons de “ministérios” (12.5), “atuação” (12.6), “manifestação” (12.7), “obras”, “formas” e “espécies” (12.28). O uso exclusivo do termo “dom espiritual” para se referir ao que Paulo também chama de “manifestação do espírito de Deus para o bem comum” ou “espécie de serviço” tende a distorcer nosso pensamento. [2] Isso sugere que o Espírito de Deus substitui ou ignora as capacidades e habilidades “naturais” que Deus nos deu, o que implica que o destinatário do “presente” é o beneficiário pretendido. Isso nos faz pensar que a adoração, e não o serviço, é o propósito principal da operação do Espírito. Todas essas são suposições falsas, de acordo com 1Coríntios. O Espírito Santo não dispensa nossas habilidades físicas, mas as honra e as emprega (12.14-26). A comunidade ou organização, não apenas o indivíduo, se beneficia (12.7). O propósito é edificar a comunidade (14.3-5) e servir aos de fora (14.23-25), não apenas para melhorar a qualidade da adoração. “Presentes” talvez seja um termo melhor, já que carrega de modo mais apropriado essas importantes conotações.

Em segundo lugar, Paulo parece estar fornecendo vários exemplos, em vez de uma lista exaustiva. Ele também lista os dons de Deus em Romanos 12.6–8 , Efésios 4.11 e 1Pedro 4.10–11 , e as diferenças entre as listas sugerem que elas são ilustrativas, e não exaustivas. Entre elas, não há uma lista padrão ou mesmo um modo padrão de se referir às várias formas de oferecer os dons. Ao contrário de muita literatura popular sobre o assunto, é impossível compilar uma lista definitiva dos dons espirituais. Eles exibem uma variedade impressionante. Alguns são o que chamaríamos de sobrenaturais (falar em línguas desconhecidas), enquanto outros parecem ser habilidades naturais (liderança) ou mesmo traços de personalidade (misericórdia). Como vimos, Paulo nos diz que “[façamos] tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31), e aqui ele lista algumas das coisas incríveis que Deus nos capacitará a fazer.

Aqui Paulo tem a igreja em mente (14.4,12), e alguns cristãos supõem que essa passagem significa que o Espírito concede dons apenas para uso dentro da igreja. No entanto, Paulo não dá razão para supor que esses dons estejam restritos aos limites da igreja. O reino de Deus abrange o mundo inteiro, não apenas as instituições da igreja. Os crentes podem e devem exercer seus dons em todos os ambientes, incluindo o local de trabalho. Muitos dos dons mencionados aqui — como liderança, serviço e discernimento — serão de benefício imediato no local de trabalho. Outros, sem dúvida, serão dados a nós, conforme necessário, para servir aos propósitos de Deus em qualquer trabalho que façamos. Devemos, por todos os meios, desenvolver os dons que recebemos e usá-los para o bem comum em todas as esferas da vida.

Na verdade, a questão mais importante não é quem, onde, o quê ou como exercitamos os dons do Espírito de Deus. A questão mais importante é por que empregamos os dons. E a resposta é: “Por amor”. Dons, talentos e habilidades — que vêm de Deus — são fontes de excelência no trabalho. Entretanto, ao começar a discutir a importância do amor, Paulo diz: “Passo agora a mostrar a vocês um caminho ainda mais excelente” (12.31), “Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior deles, porém, é o amor” (13.13). Se eu exercesse todos os dons maravilhosos do Espírito de Deus “mas não tivesse amor”, diz Paulo, “eu nada seria” (13.2). Embora o capítulo 13 seja frequentemente lido em casamentos, é, na verdade, um manifesto perfeito para o local de trabalho.

O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. (13.4-7)

Se os cristãos demonstrassem esse tipo de amor no local de trabalho, o trabalho seria muito mais produtivo e enriquecedor para todos? Quanta glória isso traria ao nosso Senhor? Quão mais perto estaríamos do cumprimento de nossa oração a Deus: “Venha à terra o teu reino”?

Nosso trabalho não é inútil (1Co 15.58)

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No capítulo 15, Paulo conduz uma longa discussão sobre a ressurreição e aplica suas conclusões diretamente ao trabalho. “Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil” (1Co 15.58). Como o entendimento correto da ressurreição — que os crentes serão ressuscitados corporalmente — fundamenta a conclusão de que o trabalho para o Senhor tem um significado perene (“não será inútil”)?

Antes de tudo, devemos reconhecer que, se a vida em nosso mundo caído fosse tudo o que havia para a vida, o trabalho seria inútil (1Co 15.14-19). O uso que Paulo faz da palavra inútil traz à mente a extensa meditação de Eclesiastes sobre a vaidade do trabalho sob as condições da Queda. (Ver Ecclesiastes and Work, em www.teologiadotrabalho.org.) Mesmo que haja vida além do estado decaído do mundo atual, nosso trabalho seria inútil se o novo mundo fosse completamente desconectado daquele. No máximo, isso nos lançaria (e talvez a outros) no novo mundo. Mas já vimos que o trabalho feito de acordo com os caminhos de Deus sobrevive na eternidade (1Co 3.10-15). Na segunda metade do capítulo 15, Paulo desenvolve esse assunto ainda mais, enfatizando a continuidade fundamental entre a existência corporal pré e pós-ressurreição, apesar das vastas diferenças nas respectivas substâncias. “Pois é necessário que aquilo que é corruptível se revista de incorruptibilidade, e aquilo que é mortal se revista de imortalidade.” (1Co 15.53). A alma não muda do corpo antigo para um novo corpo — como se estivesse vestindo uma roupa nova — mas o corpo atual reveste-se da imortalidade. O velho continua no novo, embora radicalmente transformado. É precisamente essa continuidade que dá sentido a nossa existência atual e garante que nosso trabalho para Deus tenha valor perene. [1]

Os cristãos compartilham recursos com aqueles que estão em dificuldades (1Co 16.1–3)

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Um projeto contínuo que Paulo buscou ao longo de suas viagens missionárias foi o de arrecadar recursos para as congregações na Judeia que passavam por dificuldades financeiras. [1] Ele menciona essa arrecadação não apenas aqui, mas também em Gálatas 2.10, e explica mais completamente a razão teológica para tal em Romanos 15.25-31 e em 2Coríntios 8—9. Para nossos propósitos, é importante observar que, de acordo com Paulo, parte do que um crente ganha deve ser revertido em benefício daqueles que não podem prover adequadamente para si mesmos. Para Paulo, uma das funções essenciais da igreja é cuidar das necessidades de seus membros em todo o mundo. O Antigo Testamento prescrevia dízimos fixos e ofertas voluntárias, [2] que, juntos, apoiavam as operações do templo, a manutenção do estado e o socorro aos pobres. Mas esse sistema havia cessado com o fim dos reinos judeus. A arrecadação de Paulo para os pobres da Judeia concede alívio à igreja, antes providenciado pelos dízimos e pelas ofertas do Antigo Testamento.

O Novo Testamento em nenhum lugar menciona porcentagens fixas, mas Paulo encoraja a generosidade (ver 2Co 8—9), o que dificilmente significaria menos do que os níveis do Antigo Testamento. Ao longo dos séculos seguintes, à medida que a igreja crescia, seu papel como prestadora de serviços sociais tornou-se um elemento essencial da sociedade, superando até mesmo o Império Romano. [3] Seja qual for o valor dado, espera-se que os crentes o determinem com antecedência, como parte de seu orçamento, e tragam suas ofertas regularmente para as reuniões semanais da congregação. Em outras palavras, é preciso uma mudança sustentada no estilo de vida para alcançar esse nível de generosidade. Não estamos falando de trocados.

Esses princípios exigem reflexão renovada em nosso tempo. Ainda que o Estado tenha substituído a igreja como principal provedora de bem-estar social, existem algumas formas de serviço para cuja realização Deus capacita os cristãos excepcionalmente bem? O trabalho, o investimento e outras atividades econômicas dos cristãos poderiam ser um meio de servir aqueles que enfrentam dificuldades financeiras? Na época de Paulo, havia limitações para que os cristãos iniciassem negócios, se envolvessem no comércio ou fornecessem treinamento e educação, mas hoje esses podem ser meios de criar empregos ou sustentar pessoas economicamente desfavorecidas. O propósito de doar é apenas para unir mais a igreja em todo o mundo (certamente um dos objetivos de Paulo) ou também para cuidar do próximo? Será que hoje Deus chama os crentes para doar recursos e conduzir negócios, governos, educação e todas as outras formas de trabalho, como um meio de cuidar de pessoas em dificuldades?

Resumo e conclusão de 1Coríntios

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Primeira Coríntios tem muito a contribuir para a compreensão bíblica do trabalho. Acima de tudo, estabelece um senso saudável de chamado a todo tipo de trabalho legítimo. Em suas palavras iniciais, Paulo enfatiza que Deus chamou tanto a ele quanto os crentes de Corinto para seguirem a Cristo. Deus fornece a cada crente recursos espirituais e dons concretos para servir os outros. Nossa eficácia não depende de méritos próprios, mas do poder de Deus. Quando dependemos de seu poder, podemos e devemos procurar fazer um bom trabalho. Deus nos conduz a uma visão e a um propósito comuns no trabalho, o que requer um conjunto diversificado de pessoas trabalhando em uma ampla variedade de empregos. Os líderes são necessários para focarem eficazmente essa diversidade e variedade.

Os líderes no reino de Deus são servos dos liderados, responsáveis ​​por realizar as tarefas do grupo, e ao mesmo tempo atender a suas necessidades. Seja qual for nossa posição, é mais importante trabalhar todos os dias de acordo com os propósitos de Deus do que gastar todo o tempo e energia procurando o emprego perfeito. Por sabermos que Cristo voltará para completar a restauração do mundo por Deus ao propósito original, temos a confiança necessária para trabalhar diligentemente em prol do reino vindouro de Cristo. Quando trabalhamos de acordo com nossas habilidades, Deus recompensa nosso trabalho com uma parte justa de seus frutos. Os cristãos são chamados a padrões de salário e trabalho justo.

Nosso objetivo final é o reino de Deus e sua glória. Isso nos dá liberdade para usar os recursos do mundo, mas devemos administrá-los para o benefício de todos, incluindo as gerações futuras. Na verdade, nem devemos pensar em termos de equilibrar as necessidades de um indivíduo com as de outro, mas em construir comunidades de apoio e serviço mútuos. O amor é a mola mestra do reino de Deus e, quando trabalhamos por amor às pessoas por quem Cristo trabalhou e morreu, nosso trabalho não é inútil. Ele tem um significado eterno e sobrevive conosco no novo mundo do reino de Deus cumprido. Enquanto isso, usamos com mais diligência os recursos disponíveis para cuidar dos necessitados.

Versículos e temas-chave em 1Coríntios

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Versículos

Temas

1Co 1.1-2 Paulo, chamado para ser apóstolo de Cristo Jesus, pela vontade de Deus, e o irmão Sóstenes, À igreja de Deus que está em Corinto, aos que têm sido santificados em Cristo Jesus e chamados para ser santos, com todos os que, em toda parte, invocam o nome do nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso.

Cada crente tem um chamado.

1Co 1.4-7 Sempre dou graças ao meu Deus por vocês, por causa da graça que dele receberam em Cristo Jesus. Pois por meio dele vocês foram enriquecidos em tudo, isto é, em toda a palavra e em todo o conhecimento, segundo o testemunho de Cristo que foi confirmado entre vocês. Desse modo, não falta a vocês nenhum dom espiritual enquanto esperam que o nosso Senhor Jesus Cristo seja revelado.

Deus dá aos crentes os recursos espirituais de precisam para cumprir seu chamado.

1Co 1.10 Irmãos, em nome do nosso Senhor Jesus Cristo, suplico a todos que concordem uns com os outros no que falam e que não haja divisões entre vocês; antes, que todos estejam unidos em um só pensamento e em um só parecer.

Unidade de visão é essencial para alcançar o objetivo.

1Co 1.17 Pois Cristo não me enviou para batizar, mas para pregar o evangelho, não com palavras de sabedoria humana, para que o poder da cruz não seja diminuído.

Devemos ter foco naquilo que fomos chamados a fazer.

1Co 1.26 Irmãos, pensem no que vocês eram quando foram chamados. Poucos eram sábios segundo os padrões humanos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento.

Pessoas chamadas e talentosas apresentam todo tipo de background.

1Co 2.1-5 Eu mesmo, irmãos, quando estive entre vocês, não fui com discurso eloquente nem com muita sabedoria para lhes proclamar o mistério de Deus. Pois decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este crucificado. E foi com fraqueza, temor e com muito tremor que estive entre vocês. Minha mensagem e minha pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria, mas em demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus.

Imagem não é absolutamente tudo; o conteúdo importa.

1Co 3.4-9 Pois, quando alguém diz: “Eu sou de Paulo” e outro: “Eu sou de Apolo”, não estão sendo mundanos? Afinal de contas, quem é Apolo? Quem é Paulo? Apenas servos por meio dos quais vocês vieram a crer, conforme o ministério que o Senhor atribuiu a cada um. Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer; de modo que nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que efetua o crescimento. O que planta e o que rega têm um só propósito, e cada um será recompensado de acordo com o seu próprio trabalho. Pois nós somos cooperadores de Deus; vocês são lavoura de Deus e edifício de Deus.

Todos têm um papel importante a desempenhar na consecução da meta, e ninguém pode levar todo o crédito.

1Co 3.10-15 Conforme a graça de Deus que me foi concedida, eu, como sábio construtor, lancei o alicerce, e outro está construindo sobre ele. Contudo, veja cada um como constrói. Porque ninguém pode colocar outro alicerce além do que já está posto, que é Jesus Cristo. Se alguém constrói sobre esse alicerce usando ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, sua obra será mostrada, porque o Dia a trará à luz; pois será revelada pelo fogo, que provará a qualidade da obra de cada um. Se o que alguém construiu permanecer, esse receberá recompensa. Se o que alguém construiu se queimar, esse sofrerá prejuízo; contudo, será salvo como alguém que escapa através do fogo.

Cada um é responsável diante de Deus por sua própria maneira de trabalhar.

1Co 4.1-2 Portanto, que todos nos considerem servos de Cristo e encarregados dos mistérios de Deus. O que se requer desses encarregados é que sejam fiéis.

Fidelidade é uma qualidade de suprema importância.

1Co 7.20-24 Cada um deve permanecer na condição em que foi chamado por Deus. Foi você chamado sendo escravo? Não se incomode com isso; embora, se você puder conseguir a liberdade, consiga-a. Pois aquele que foi chamado pelo Senhor, sendo escravo, é pessoa livre e pertence ao Senhor; semelhantemente, aquele que era livre, uma vez chamado, é escravo de Cristo. Vocês foram comprados por um preço; não se tornem escravos de homens. Irmãos, cada um deve permanecer diante de Deus na condição em que foi chamado.

De modo geral, os crentes não precisam mudar de emprego para agradar a Deus.

1Co 7.29-31 O que quero dizer, irmãos, é que nos resta pouco tempo. De agora em diante, aqueles que têm esposa vivam como se não tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; os que estão felizes, como se não estivessem; os que compram algo, como se nada possuíssem; os que usam as coisas do mundo, como se não as usassem. Porque a forma presente deste mundo passará.

Os crentes podem usar as coisas que o mundo tem a oferecer, mas não devem depender delas.

1Co 9.7-10 Quem serve como soldado custeando as próprias despesas? Quem planta uma vinha e não come do seu fruto? Quem apascenta um rebanho e não bebe do seu leite? Não digo isso do ponto de vista meramente humano; a lei não diz a mesma coisa? Pois está escrito na lei de Moisés: “Não amordace o boi enquanto estiver debulhando o grão”. Por acaso, é com bois que Deus está preocupado? Não é certamente por nossa causa que ele o diz? Sim, isso foi escrito em nosso favor. Porque o lavrador quando ara e o debulhador quando debulha devem fazê-lo na esperança de participar da colheita.

Todos os que participam da criação de riqueza merecem uma parte justa dela.

1Co 10.26,31 Pois “do Senhor é a terra e tudo o que nela existe [...] Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus”.

Todo trabalho legítimo deve ter A glória de Deus como objetivo.

1Co 12.4-11 Há diferentes tipos de dons, mas um mesmo Espírito. Há diferentes tipos de serviço, mas o Senhor é o mesmo. Há diferentes tipos de atuação, mas é o mesmo Deus quem efetua tudo em todos. A cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito, visando ao bem comum. A um, pelo Espírito, é dada a palavra de sabedoria; a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra de conhecimento; a outro, fé, pelo mesmo Espírito; a outro, dons de curar, pelo mesmo Espírito; a outro, poderes para realizar milagres; a outro, profecia; a outro, discernimento de espíritos; a outro, variedade de línguas; a outro, ainda, interpretação de línguas. Todas essas coisas, porém, são realizadas pelo mesmo e único Espírito, e ele as distribui a cada um como quer.

Todo crente é presenteado por Deus concretamente ao estar a serviço dos outros.

1Co 15.58 Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil.

Por causa da esperança da ressurreição, nosso trabalho nesta vida tem valor perene.

1Co 16.1-3 Quanto à coleta para os santos, façam como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vocês separe uma quantia em dinheiro, de acordo com a sua renda, reservando-a para que não seja preciso fazer coletas quando eu chegar. Então, quando eu chegar, entregarei cartas de recomendação aos homens que vocês aprovarem e os enviarei a Jerusalém com a oferta de vocês.

Os crentes devem usar seus recursos para cuidar de irmãos e irmãs em dificuldade financeira.

Introdução a 2Coríntios

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Se 1Coríntios nos dá uma visão incomparável da vida cotidiana de uma igreja do Novo Testamento, 2Coríntios nos oferece um vislumbre único do coração e da alma do apóstolo cujo trabalho fundou e edificou aquela igreja. Vemos Paulo em ação, ensinando e dando exemplos de transparência, alegria, bons relacionamentos, sinceridade, reputação, serviço, humildade, liderança, desempenho e responsabilidade, reconciliação, trabalho com descrentes, encorajamento, generosidade, cumprimento oportuno das obrigações e uso adequado da riqueza.

Esses tópicos relacionados ao local de trabalho surgiram por causa das lutas e oportunidades diárias que Paulo encontrou em seu próprio trabalho como apóstolo. Durante o período que antecedeu a redação de 2Coríntios, Paulo enfrentou uma série de “conflitos externos [e] temores internos”, como ele próprio descreve a situação (2Co 7.5). Isso claramente deixou sua marca nele, e o resultado é uma carta como nenhuma outra do Novo Testamento — intensamente pessoal, exibindo uma gama completa de emoções, desde angústia e agitação até exuberância e confiança. Como resultado dessa adversidade, Paulo se tornou um líder e um trabalhador mais eficaz. Todos aqueles que desejam aprender a ser mais eficazes no trabalho — e que estão dispostos a confiar em Deus quanto à capacidade de realizá-lo — encontrarão um modelo prático em Paulo e em seus ensinamentos presentes em 2Coríntios.

As interações de Paulo com a igreja em Corinto (2Co)

Na introdução de 1Coríntios, observamos que Paulo estabeleceu a igreja de Corinto durante sua primeira estada lá (inverno de 49/50 até o verão de 51). Mais tarde, ele escreveu uma carta à igreja de Corinto, um documento que não existe mais (é mencionada em 1Co 5.9) e uma carta que foi preservada — nossa 1Coríntios. Ele também visitou a igreja três vezes (2Co 12.14; 13.1). Sabemos a partir de Romanos 16.1 que Paulo escreveu sua epístola aos romanos durante uma de suas estadas em Corinto.

No entanto, o relacionamento de Paulo com a igreja em Corinto era tenso. A certa altura, ele lhes escreveu aquela que veio a ser conhecida como a “carta severa” [1] — que aparentemente era bastante dura (ver 2Co 2.4). Ele a enviou aos coríntios por meio de Tito, na esperança de que isso trouxesse uma mudança de opinião entre seus antagonistas em Corinto. O conflito não resolvido com a igreja deixou Paulo inquieto enquanto esperava por uma resposta deles (2Co 1.12-13). Quando Tito finalmente chegou, no outono de 55, trouxe boas notícias de Corinto. A carta severa de Paulo havia, de fato, provado ser notavelmente benéfica. Os crentes, que haviam sido a causa de tanta tristeza, ficaram verdadeiramente tristes com a ruptura de seu relacionamento com Paulo, e sua tristeza os levou ao arrependimento (2Co 7.8-16).

Em resposta a essa notícia, Paulo escreveu 2Coríntios, ou mais precisamente os sete primeiros capítulos da carta, para expressar sua alegria e gratidão a Deus e aos coríntios pelo relacionamento restaurado entre eles. Nesses capítulos, ele exemplifica o tipo de transparência, alegria, atenção aos relacionamentos, integridade, reputação, serviço, dependência de Deus, conduta ética, caráter e encorajamento que Deus chama todos os cristãos a incorporarem. Em seguida, nos capítulos 8 e 9, ele se volta para os tópicos de generosidade e cumprimento de obrigações, ao exortar os coríntios a contribuírem para o alívio dos cristãos em Jerusalém, o que eles prometeram fazer. Nesta seção, Paulo destaca como nossas necessidades são atendidas pela generosidade de Deus, não apenas para que não nos falte nada do que precisamos, mas também para que tenhamos muito o que compartilhar com os outros. Nos capítulos 10 a 13, ele descreve as marcas da liderança piedosa, aparentemente em resposta às notícias perturbadoras que recebeu sobre os chamados “superapóstolos” que estavam desencaminhando alguns membros da igreja de Corinto. Embora não estejamos preocupados aqui com a liderança da igreja em si, as palavras de Paulo nesta seção são diretamente aplicáveis ​​a todos os locais de trabalho.

Agradeça a Deus pelos relacionamentos (2Co 1.1-11)

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A segunda carta aos Coríntios começa com os sinceros agradecimentos de Paulo pelo profundo relacionamento que ele tem com os coríntios. Eles estão tão intimamente ligados que, aconteça o que acontecer com um, é como se acontecesse com ambos. Ele escreve: “Se somos atribulados, é para consolação e salvação de vocês” (2Co 1.6). “Da mesma forma que vocês participam dos nossos sofrimentos, participam também da nossa consolação.” (2Co 1.7) A descrição que Paulo faz do relacionamento soa quase como um casamento. Dado o relacionamento tenso entre ele e a igreja que se revela no conteúdo da carta, essa intimidade pode ser surpreendente. Como pessoas com grandes desentendimentos, decepções e até raiva umas das outras poderiam dizer coisas como “a nossa esperança em relação a vocês está firme” (2Co 1.7)?

A resposta é que bons relacionamentos não surgem do acordo mútuo, mas do respeito mútuo na busca de um objetivo comum. Esse é um ponto crucial para nossa vida no trabalho. De maneira geral, não escolhemos os colegas de trabalho, assim como os coríntios não escolheram Paulo como seu apóstolo, e Paulo não escolheu aqueles que Deus levaria à fé. Nossos relacionamentos no trabalho não se baseiam na atração mútua, mas na necessidade de trabalharmos juntos para realizar as tarefas comuns. Isso é verdade, quer o trabalho seja plantar igrejas, fabricar peças de automóveis, processar seguros ou formulários governamentais, ensinar em uma universidade quer qualquer outra vocação. Quanto mais difíceis são as coisas, mais importantes se tornam os bons relacionamentos.

Como construímos bons relacionamentos no trabalho? De certa forma, o restante de 2Coríntios é uma análise de vários meios de construir bons relacionamentos de trabalho — transparência, integridade, responsabilidade, generosidade e assim por diante. Discutiremos todos eles nesse contexto. Mas Paulo deixa claro que não podemos alcançar bons relacionamentos apenas por meio de habilidades e métodos. O que precisamos, acima de tudo, é da ajuda de Deus. Por esse motivo, orar uns pelos outros é a pedra angular de bons relacionamentos. “Junte-se a nós, ajudando-nos com as orações”, Paulo pede e, em seguida, fala do “favor a nós concedido em resposta às orações de muitos” (2Co 1.11).

Com que profundidade investimos nos relacionamentos com as pessoas com quem trabalhamos? A resposta pode ser mensurada pelo tanto que oramos por eles. Será que nos importamos com eles o suficiente para orar por aquelas pessoas? Oramos por suas necessidades e preocupações específicas? Nós nos preocupamos em aprender o suficiente sobre a vida delas para que possamos orar por elas de maneira concreta? Abrimos a própria vida o suficiente para que outros possam orar por nós? Alguma vez perguntamos às pessoas no trabalho se podemos orar por elas ou se elas podem orar por nós? Elas talvez não compartilhem de nossa fé, mas as pessoas quase sempre apreciam uma oferta autêntica de oração por elas ou um pedido para orar por nós.

Transparência (2Co 1.12-23)

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À medida que vai penetrando no conteúdo de sua segunda carta aos coríntios, Paulo aborda a queixa de que não havia sido aberto e honesto com eles. Embora tenha prometido visitar Corinto novamente, Paulo desistiu duas vezes. Ele estava sendo insincero ou fingido? Estaria ele manobrando nos bastidores para abrir caminho pelas costas dos outros? Paulo aborda essas questões em 2Coríntios 1.12-14. Ele se orgulha de que seu comportamento entre os coríntios tenha sido sempre transparente. Suas ações não foram maquinações do que ele chama de “sabedoria do mundo” (2Co 1.12). Ele cancelou suas visitas não para ganhar vantagem ou se poupar, mas porque não queria envergonhar ou repreender os coríntios novamente. Portanto, ele atrasou o retorno a Corinto, na esperança de que, quando voltasse, pudesse trazer alegria, em vez de recriminação e repreensão (2Co 1.23-24).

Embora a integridade de Paulo tivesse sido questionada, ele sabia que, por causa de seu histórico de transparência com a igreja, ela continuaria a confiar nele. “[Nós nos] temos conduzido no mundo, especialmente em nosso relacionamento com vocês, com santidade e sinceridade provenientes de Deus”, ele os lembra (2Co 1.12). Uma vez que o viram em ação, sabem que ele diz o que quer dizer sem vacilar (2Co 1.17-20). Isso dá segurança a Paulo de que eles vão “entender plenamente” (2Co 1.1-13), assim que souberem de todos os fatores que ele teve de considerar. Sua prova de sua confiança é que, mesmo sem saberem tudo, Paulo lhes diz: “Vocês nos entenderam em parte” (2Co 1.14).

Em nosso trabalho hoje, somos suficientemente transparentes para que as pessoas tenham um motivo para confiar em nós? Diariamente, todas as pessoas, empresas e organizações enfrentam tentações de esconder a verdade. Estamos obscurecendo nossas motivações para ganhar falsamente a confiança de um cliente ou de um rival? Estamos tomando decisões em segredo como forma de evitar responsabilidade ou ocultar fatores aos quais outros se oporiam? Estamos fingindo apoiar os colegas de trabalho na presença deles, mas falando ironicamente pelas suas costas? O exemplo de Paulo nos mostra que essas ações são erradas. Além disso, qualquer que seja a breve vantagem que possamos ganhar com eles é mais do que perdida a longo prazo, porque os colegas de trabalho aprendem a não confiar em nós. E, se nossos colaboradores não podem confiar em nós, Deus pode confiar?

Isso não significa, é claro, que sempre revelamos todas as informações que temos. Existem confidências, pessoais e organizacionais, que não podem ser violadas. Nem todo mundo precisa estar a par de todas as informações. Às vezes, a resposta honesta pode ser: “Não posso responder a essa pergunta porque tenho o dever de privacidade para com outra pessoa”. Mas não devemos usar a confidencialidade como desculpa para prevaricar, ganhar vantagem sobre os outros ou nos mostrarmos sob uma luz falsamente positiva. Se e quando surgirem dúvidas sobre nossos motivos, um sólido histórico de abertura e confiabilidade será o melhor antídoto para dúvidas infundadas.

A transparência é tão importante para o trabalho de Paulo com os coríntios que ele volta ao tema ao longo da carta. “Antes, renunciamos aos procedimentos secretos e vergonhosos; não usamos de engano nem torcemos a palavra de Deus. Ao contrário, mediante a clara exposição da verdade, recomendamo-nos à consciência de todos, diante de Deus.” (2Co 4.2) “Falamos abertamente a vocês, coríntios, e abrimos todo o nosso coração!” (2Co 6.11)

Trabalhar para a alegria dos outros (2Co 1.24)

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A alegria é o próximo meio de construir relacionamentos que Paulo discute. “Não que tenhamos domínio sobre a sua fé, mas cooperamos com vocês para que tenham alegria, pois é pela fé que vocês permanecem firmes.” (2Co 1.24) Embora fosse um apóstolo com autoridade dada por Deus, Paulo trazia alegria aos outros por seu modo de liderança — não os dominando, mas trabalhando ao lado deles. Isso explica por que ele era um líder tão eficaz e por que as pessoas associadas a ele se tornaram colegas de trabalho fortes e confiáveis. As palavras de Paulo ecoam o que Jesus disse a seus discípulos quando eles estavam discutindo sobre quem entre eles era o maior:

Os reis das nações dominam sobre elas; e os que exercem autoridade sobre elas são chamados benfeitores. Mas vocês não serão assim. Ao contrário, o maior entre vocês deverá ser como o mais jovem, e aquele que governa, como o que serve. (Lucas 22.25-26)

A essência do trabalho cristão, sustenta Paulo, é nada menos do que trabalhar ao lado de outros para ajudá-los a alcançar maior alegria.

Como seria nosso local de trabalho se tentássemos trazer alegria aos outros pela maneira como os tratamos? [1] Isso não significa tentar fazer todos felizes o tempo todo, mas tratar os colegas de trabalho como pessoas de valor e dignidade, como Paulo fez. Quando prestamos atenção às necessidades dos outros no trabalho, incluindo a necessidade de sermos respeitados e a de sermos encarregados de um trabalho com significado, seguimos o exemplo do próprio Paulo.

A prioridade dos relacionamentos (2Co 2.12-16)

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Outro meio para promover interações saudáveis ​​no trabalho é simplesmente dedicar tempo e esforço para desenvolver e investir em relacionamentos. Tendo deixado Éfeso, Paulo foi para Trôade, uma cidade portuária na região noroeste da Ásia Menor, onde esperava que Tito chegasse de sua visita a Corinto (ver detalhes em Introdução a 2Coríntios, acima). Enquanto esteve lá, Paulo realizou o trabalho missionário com seu vigor habitual, e Deus abençoou seus esforços. Mas, apesar de um começo promissor em uma cidade de grande importância estratégica, [1] Paulo interrompeu seu trabalho em Trôade porque, como ele próprio diz, “não tive sossego em meu espírito, porque não encontrei ali meu irmão Tito” (2Co 2.13). Ele simplesmente não conseguia dar conta de seu trabalho, sua grande paixão, por causa da angústia que sentia por seu relacionamento tenso com os crentes de Corinto. Diante disso, partiu para a Macedônia, na esperança de encontrar Tito lá.

Duas coisas são impressionantes nessa passagem. Primeiro, Paulo atribui um valor significativo a seus relacionamentos com outros crentes. Ele não é capaz de permanecer indiferente e tranquilo quando esses relacionamentos estão em ruínas. Não podemos dizer com certeza absoluta que ele estava familiarizado com o ensino de Jesus sobre deixar o presente no altar e se reconciliar com o irmão (Mt 5.23-24), mas ele entendia claramente o princípio. Paulo está ansioso para ver as coisas consertadas e investe muita energia e oração para alcançar esse objetivo. Em segundo lugar, Paulo dá alta prioridade à reconciliação, mesmo que isso cause um atraso significativo em sua agenda de trabalho. Ele não tenta se convencer de que tem uma grande oportunidade para o ministério que não voltará a surgir e que, portanto, não pode se incomodar com os coríntios e suas necessidades momentâneas. Reparar a ruptura em seu relacionamento com eles tem prioridade.

A lição para nós é óbvia. Os relacionamentos são importantes. É claro que nem sempre podemos abandonar o que estamos fazendo a qualquer momento e atender a relacionamentos tensos. Mas não importa qual seja nossa tarefa, os relacionamentos são algo fundamental em nossa vida. As tarefas são importantes. Os relacionamentos são importantes. Então, no espírito de Mateus 5.23-24, quando ficamos sabendo — ou até suspeitamos — que um relacionamento foi perturbado ou rompido no decorrer do trabalho, fazemos bem em nos perguntar o que é mais urgente no momento, se a conclusão da tarefa ou a restauração de um relacionamento. A resposta pode variar, dependendo das circunstâncias. Se a tarefa é grande o suficiente, ou a tensão no relacionamento é séria o suficiente, fazemos bem não apenas em perguntar o que é mais urgente, mas também em buscar o conselho de um irmão ou irmã por quem temos respeito.

Sinceridade (2Co 2.17)

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Como em 2Coríntios 1.12, Paulo novamente aborda questões persistentes sobre sua demora em visitar Corinto. Os coríntios parecem ofendidos porque ele inicialmente não aceitou o apoio financeiro daquela igreja. Sua resposta é que se sustentar era uma questão de sinceridade. As pessoas poderiam confiar que ele realmente acreditava no que estava pregando, ou ele estava fazendo isso apenas para ganhar dinheiro, como os que negociavam “a palavra de Deus visando a algum lucro” (2Co 2.17), que podiam ser encontrados em qualquer cidade romana? Parece que ele não queria ser confundido com os filósofos e retóricos de sua época, que cobravam altas taxas por seus discursos. [1] Em vez disso, ele e seus colaboradores eram “pessoas sinceras”. Estava bastante claro que não estavam indo de um lugar para outro pregando o evangelho a fim de enriquecer, mas se viam como indivíduos enviados por Deus e que respondiam a Deus.

Isso nos lembra que a motivação não é apenas uma questão privada, especialmente quando se trata de dinheiro. A maneira como lidamos com o dinheiro brilha como um ponteiro laser sobre a questão de nossa sinceridade como cristãos. As pessoas querem ver se lidamos com o dinheiro de acordo com nossos princípios elevados ou se os abandonamos quando há dinheiro a ser ganho. Somos negligentes com os relatórios de despesas? Escondemos renda debaixo da mesa? Envolvemo-nos em abrigos fiscais duvidosos? Pressionamos por aumentos, comissões e bônus às custas dos outros? Tiramos vantagem financeira de pessoas em circunstâncias difíceis? Torcemos contratos para obter um ganho financeiro desproporcional? A questão não é apenas se podemos nos justificar, mas também se aqueles ao redor podem reconhecer que nossas ações são consistentes com as crenças cristãs. Caso contrário, desonraremos a nós mesmos e o nome de Cristo.


Uma reputação genuína (2Co 3)

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Paulo começa esta seção de 2Coríntios com duas perguntas retóricas, ambas esperando uma resposta negativa. [1] “Será que com isso estamos começando a nos recomendar a nós mesmos novamente? Será que precisamos, como alguns, de cartas de recomendação para vocês ou da parte de vocês?” (2Co 3.1) Paulo — o velho amigo dos coríntios — pergunta ironicamente se precisa das cartas de apresentação ou de recomendação que outros que se apresentaram à igreja aparentemente possuíam. Essas cartas eram comuns no mundo antigo e, em geral, não costumavam ser levadas muito a sério. O estadista romano Cícero escreveu dezenas deles, por exemplo, fazendo uso abundante da linguagem estereotipada de elogio que o gênero exigia. Os destinatários ficavam tão cansados disso, no entanto, que às vezes ele achava necessário escrever uma segunda carta, de modo que os destinatários tivessem certeza de que deveriam levar a primeira carta a sério. [2] Cartas de recomendação, em outras palavras, muitas vezes não valiam o papiro em que haviam sido escritas.

Paulo não tinha necessidade delas em nenhum aspecto. Os crentes de Corinto o conheciam intimamente. A única carta de recomendação que ele exigia já estava escrita no coração deles (2Co 3.3). Sua própria existência como igreja, bem como suas conversões individuais em resposta à pregação de Paulo, era tudo o que Paulo precisava ou queria em relação ao seu apostolado. Eles podiam ver o fruto do trabalho de Paulo, que não deixou dúvidas de que ele era um apóstolo enviado por Deus. Além disso, Paulo insiste que ele não está reivindicando competência com base em sua própria força. “Nossa capacidade vem de Deus” (2Co 3.5), ele escreve. A questão não é se Paulo acumulou credenciais e recomendações, mas se seu trabalho é uma contribuição para o reino de Deus.

Como construímos nossa reputação hoje? Nos Estados Unidos, muitos jovens escolhem suas atividades com base não em como podem contribuir da melhor forma para sua comunidade, ou mesmo com o que realmente gostam, mas pensando no peso que as atividades terão em uma inscrição para uma universidade ou escola de pós-graduação. Isso pode prosseguir durante nossa vida profissional, onde cada designação de trabalho, afiliação profissional, jantar e evento social são calculados para nos associarmos a pessoas e instituições de prestígio. Paulo escolheu suas atividades com base em como ele poderia servir melhor às pessoas que amava. Seguindo sua liderança, devemos trabalhar de modo a deixar evidências sólidas de trabalho bem-feito, de resultados duradouros e de pessoas cujas vidas foram impactadas para melhor.

Liderar e servir (2Co 4)

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O capítulo 4 de 2Coríntios reúne temas que estão intimamente relacionados na obra de Paulo — transparência, humildade, fraqueza, liderança e serviço. Como o estamos vendo trabalhar em uma situação da vida real, os temas se entrelaçam à medida que ele conta a história. Mas tentaremos discutir os temas, um de cada vez, a fim de explorar cada um deles da forma mais clara possível.

Transparência e humildade (2Co 4)

No capítulo 4, Paulo volta ao tema da transparência, como observamos em nossa discussão sobre 2Coríntios 1.12-23. Desta vez, ele enfatiza a importância da humildade para a manutenção da transparência. Se quisermos permitir que todos vejam a realidade de nossa vida e trabalho, é melhor estarmos preparados para sermos humildes.

Naturalmente, seria muito mais fácil ser transparente com as pessoas se não tivéssemos nada a esconder. O próprio Paulo diz: “Renunciamos aos procedimentos secretos e vergonhosos” (2Co 4.2). Mas a transparência exige que permaneçamos abertos, mesmo que tenhamos nos engajado em condutas não louváveis. Pois a verdade é que todos somos suscetíveis a erros de intenção e execução. “Temos esse tesouro em vasos de barro”, Paulo nos lembra (2Co 4.7), aludindo aos vasos domésticos típicos de sua época, feitos de barro comum e facilmente quebráveis. Qualquer pessoa que visite as ruínas do Antigo Oriente Próximo pode testemunhar os fragmentos desses vasos espalhados por toda parte. Paulo reforça essa ideia mais tarde, contando que Deus lhe deu um “espinho na carne” com o propósito de restringir seu orgulho (2Co 12.7).

Manter a transparência quando conhecemos as próprias fraquezas requer humildade e, especialmente, a disposição de oferecer um pedido de desculpas genuíno. Muitos pedidos de desculpas de figuras públicas soam mais como justificativas veladas do que como desculpas reais. Isso pode ocorrer porque, se dependermos de nós mesmos como fonte de confiança, pedir desculpas seria arriscar nossa capacidade de seguir em frente. No entanto, a confiança de Paulo não está em sua própria retidão ou capacidade, mas em sua dependência do poder de Deus. “Temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que o poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós” (2Co 4.7). Se nós também reconhecêssemos que as coisas boas que realizamos não são um reflexo de nós mesmos, mas de nosso Senhor, talvez pudéssemos ter a coragem de admitir nossos erros e esperar que Deus nos coloque de volta no caminho certo. No mínimo, poderíamos parar de sentir que temos de manter nossa imagem a todo custo, incluindo o custo de enganar os outros.

A fraqueza como fonte de força (2Co 4)

Nossa fraqueza, no entanto, não é apenas um desafio à transparência. Na verdade, é a fonte de nossas verdadeiras habilidades. Suportar o sofrimento não é um efeito colateral infeliz experimentado em algumas circunstâncias; é o meio real de gerar realizações genuínas. Assim como o poder da ressurreição de Jesus aconteceu por causa de sua crucificação, [1] a fortaleza dos apóstolos em meio à adversidade atesta o fato de que o mesmo poder está operando neles.

Em nossa cultura, assim como em Corinto, demonstramos força e invencibilidade porque sentimos que são necessárias para subir a escada do sucesso. Tentamos convencer as pessoas de que somos mais fortes, mais inteligentes e mais competentes do que realmente somos. Portanto, a mensagem de vulnerabilidade de Paulo pode parecer desafiadora para nós. Por acaso é aparente, na realização de seu trabalho, que a força e a vitalidade que você projeta não são suas, mas sim a força de Deus em sua fraqueza? Quando você recebe um elogio, você permite que ele aumente sua aura de brilhantismo? Ou você relata como Deus — talvez trabalhando por meio de outras pessoas — tornou possível que você excedesse seu potencial nativo? Geralmente, queremos que as pessoas nos percebam como ultracompetentes. Mas não são as pessoas que mais admiramos as que ajudam outras a exibirem seus dons?

Se resistirmos a circunstâncias difíceis sem tentar escondê-las, ficará evidente que temos uma fonte de poder fora de nós mesmos, o próprio poder que efetuou a ressurreição de Jesus dentre os mortos.

Servindo aos outros por meio da liderança (2Co 4)

A humildade e a fraqueza seriam insuportáveis ​​se nosso propósito na vida fosse nos tornar grandiosos. Mas o serviço, não a grandeza, é o propósito do cristão. “Não pregamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo, o Senhor, e a nós como escravos de vocês, por causa de Jesus.” (2Co 4.5) Este versículo é uma das declarações bíblicas clássicas do conceito que veio a ser conhecido como “liderança servidora”. Paulo, o principal líder do movimento cristão além dos limites da Palestina, chama a si mesmo de “escravos de vocês, por causa de Jesus” (2Co 4.5).

Mais uma vez, Paulo parece estar refletindo sobre os ensinamentos de Jesus aqui (ver 2Co 1.24 acima). Como líderes, Jesus e seus seguidores serviam aos outros. Essa percepção fundamentalmente cristã deve guiar nossa atitude em qualquer posição de liderança. Isso não significa que nos abstenhamos de exercer autoridade legítima ou que lideremos com timidez. Em vez disso, implica que usemos nossa posição e poder para promover o bem-estar dos outros, e não apenas o nosso. Na verdade, as palavras de Paulo “escravos de vocês, por causa de Jesus” são mais estritas do que podem parecer à primeira vista. Os líderes são chamados a buscar o bem-estar das pessoas antes do seu, como os escravos são obrigados a fazer. Um escravo, como Jesus apontou, trabalha o dia todo nos campos, depois entra e serve o jantar para a família, e só depois pode comer e beber (Lc 17.7-10).

Liderar os outros por meio do serviço inevitavelmente levará ao sofrimento. O mundo está quebrado demais para que possamos imaginar que há uma chance de escapar do sofrimento enquanto servimos. Paulo sofreu aflição, perplexidade e perseguição quase até a morte (2Co 4.8-12). Como cristãos, não devemos aceitar posições de liderança, a menos que pretendamos sacrificar o privilégio de cuidar de nós mesmos antes de cuidar dos outros.

Desempenho e responsabilidade (2Co 5.1-15)

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No capítulo 5 de 2Coríntios, Paulo, que constantemente enfrentava situações capazes de resultar em sua morte, lembra aos coríntios que, no juízo final, cada pessoa receberá “de acordo com as obras praticadas por meio do corpo, quer sejam boas quer sejam más” (2Co 5.10). Essas são palavras incomuns para Paulo (embora não tão incomuns quanto se poderia esperar; ver Rm 2.6-10), a quem normalmente associamos à doutrina da graça, o que afirma que nossa salvação é totalmente imerecida e não resulta de nossas próprias obras (Ef 2.8-9). É, no entanto, importante permitir que nossa imagem de Paulo seja formada pelo que ele realmente diz, e não por alguma caricatura. Quando analisamos o todo do ensino de Paulo, descobrimos que ele está em harmonia com o de Jesus, de Tiago e até com o do Antigo Testamento. Para todos eles, a fé que não se expressa em boas obras não é fé alguma. De fato, fé e obediência estão tão intimamente entrelaçadas que até mesmo Paulo pode, como faz aqui, referir-se à última, e não à primeira, quando na verdade tem as duas em mente. O que fazemos no corpo não pode deixar de refletir o que a graça de Deus fez por nós. O que agrada ao Senhor pode ser descrito como fé ou, como aqui, como obras de justiça possibilitadas pela graça de Deus.

De qualquer forma, a mensagem de Paulo é bastante clara: o modo como vivemos é importante para Deus. Em termos de local de trabalho, nosso desempenho é importante. Além disso, teremos de prestar contas ao Senhor Jesus por tudo que fizemos e deixamos de fazer. Em termos de local de trabalho, isso é responsabilidade. Desempenho e responsabilidade são profundamente importantes para a vida cristã, e não podemos descartá-las como preocupações seculares sem importância para Deus. Deus se importa se estamos relaxando, negligenciando nossos deveres, não comparecendo ao trabalho ou agindo sem atenção genuína.

Isso não significa que Deus sempre concorda com o que o trabalho espera de nós. A ideia de Deus sobre o bom desempenho pode ser diferente da de nosso gerente ou supervisor. Em particular, se atender às expectativas de desempenho de nosso empregador exigir atividades antiéticas ou prejudicar pessoas, a avaliação de desempenho feita por Deus será diferente da de nosso empregador. Se seu chefe espera que você engane os clientes ou deprecie seus colegas de trabalho, por amor a Deus tenha como meta uma avaliação de desempenho ruim de seu chefe e uma boa avaliação de Deus.

Deus nos mantém em um alto padrão de conduta. Um dia, responderemos pelo tratamento que damos aos colegas de trabalho, chefes, funcionários e clientes, sem mencionar nossa família e amigos. Isso não nega a doutrina da graça, mas, em vez disso, nos mostra como Deus pretende que sua graça transforme nossa vida.

Reconciliando o mundo inteiro (2Co 5.16-21)

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Se parece que Paulo está nos chamando para cerrar os dentes e nos esforçar mais para ser bons, então estamos perdendo o ponto de 2Coríntios. Paulo pretende que vejamos o mundo de uma maneira completamente nova, para que nossas ações resultem desse novo entendimento, não de nosso esforço exacerbado.

Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas! Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, ou seja, que Deus em Cristo estava reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos homens, e nos confiou a mensagem da reconciliação. (2Co 5.17-19)

Paulo deseja que nos tornemos tão completamente transformados a ponto de nos tornarmos membros de uma “nova criação”. A menção de “criação” imediatamente nos leva de volta a Gênesis 1—2, o relato da criação do mundo por Deus. Desde o início, Deus pretendia que homens e mulheres trabalhassem juntos (Gn 1.27; 2.18), em harmonia com Deus (Gn 2.19), para “cultivar" a terra (Gn 2.15), dar “nomes” às criaturas da terra e exercer “domínio” (Gn 2.20; 1.26) sobre a terra como mordomos dele. A intenção de Deus para a criação, em outras palavras, inclui o trabalho como uma realidade central da existência. Quando os seres humanos desobedeceram a Deus e macularam a criação, o trabalho tornou-se amaldiçoado (Gn 3.17-18), e os seres humanos não trabalharam mais ao lado de Deus. Assim, quando Paulo diz “eis que surgiram coisas novas”, as “coisas novas” incluem o mundo do trabalho como elemento central.

Deus traz a nova criação à existência, enviando seu Filho à velha criação para transformá-la ou “reconciliá-la”. “Deus em Cristo estava reconciliando consigo o mundo.” Não apenas um aspecto do mundo, mas o mundo inteiro. E aqueles que seguem a Cristo, que são reconciliados com Deus por Cristo, são designados para continuar a obra de reconciliação de Cristo (2Co 5.18). Somos agentes para levar a reconciliação a todas as esferas do mundo. Todos os dias, ao sair para o trabalho, devemos ser ministros dessa reconciliação. Isso inclui a reconciliação entre pessoas e Deus (evangelismo e discipulado), entre pessoas e pessoas (resolução de conflitos) e entre pessoas e seu trabalho (bens e serviços que atendem a necessidades genuínas e melhoram a qualidade de vida e cuidam da criação de Deus).

Existem três elementos essenciais do trabalho de reconciliação. Primeiro, devemos entender com precisão o que deu errado entre as pessoas, Deus e a criação. Se não entendermos verdadeiramente os males do mundo, não poderemos trazer reconciliação genuína, assim como um embaixador não pode representar efetivamente um país para outro sem saber o que está acontecendo em ambos. Em segundo lugar, devemos amar as pessoas e trabalhar para beneficiá-las, em vez de julgá-las. “De agora em diante, a ninguém mais consideramos do ponto de vista humano”, Paulo nos diz (2Co 5.16) — isto é, como um objeto a ser explorado, eliminado ou adulado, mas como uma pessoa por quem Cristo “morreu e ressuscitou” (2Co 5.15). Se condenamos as pessoas no trabalho ou nos afastamos dos ambientes cotidianos de vida e trabalho, estamos considerando as pessoas e o trabalho de um ponto de vista humano. Se amarmos as pessoas com quem trabalhamos e tentarmos melhorar o local de trabalho, os produtos e os serviços, nos tornaremos agentes da reconciliação de Cristo. Por fim, ser sementes da criação de Deus, é claro, requer que permaneçamos em constante comunhão com Cristo. Se fizermos essas coisas, estaremos em condições de trazer o poder de Cristo para reconciliar as pessoas, as organizações, os lugares e as coisas do mundo, para que eles também possam se tornar membros da nova criação de Deus.

A transparência revisitada (2Co 6.11)

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Como observamos anteriormente (em 2Co 1.12-23), a transparência é um tema recorrente nesta carta, e ressurge aqui, quando Paulo escreve: “Falamos abertamente a vocês, coríntios, e abrimos todo o nosso coração!” (2Co 6.11). Podemos dizer que sua vida era um livro aberto diante deles. Embora não acrescente nada de novo ao que disse anteriormente, fica cada vez mais aparente a importância para ele do tema da transparência. Quando surgem dúvidas sobre seu ministério, ele pode apelar para suas relações anteriores com os coríntios com absoluta certeza de que sempre foi honesto com eles sobre si mesmo. Podemos dizer o mesmo de nós?

Trabalhando com descrentes (2Co 6.14-18)

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Em 2Coríntios 6.14-18 Paulo aborda a questão de ser incompatível (literalmente estar “em jugo desigual”) com não-cristãos. Isso tem implicações tanto para o casamento (que está fora do nosso escopo aqui) quanto para as relações de trabalho. Até este ponto, Paulo retratou vividamente a importância de bons relacionamentos com as pessoas com quem vivemos e trabalhamos. Paulo diz em 1Co 5.9-10 que devemos trabalhar com não-cristãos, e ele discute como fazê-lo em 1Co 10.25-33. (Veja “A glória de Deus é o objetivo final” (1Co 10) para saber mais).

Aqui, Paulo nos adverte sobre acordos de trabalho com não crentes, invocando uma referência a Deuteronômio 22.10, que adverte contra arar a terra usando um boi e um jumento no mesmo jugo. Talvez isso ocorresse porque o jumento lutaria para puxar a carga do boi e o boi não conseguiria andar no ritmo mais rápido do jumento. Em 2Coríntios, Paulo parece estar falando sobre uma realidade espiritual mais profunda, aconselhando o povo de Deus a ter cuidado com pessoas que servem à maldade, às trevas, à adoração de ídolos e ao próprio Satanás (2Co 6.14-15).

Embora sejamos claramente chamados a amar, servir e trabalhar com os não crentes, Paulo diz que não fiquemos em “jugo desigual” com eles. O que significa estar em jugo desigual? A resposta está no contraste de estar no mesmo jugo com Jesus, que diz: “Tomem sobre vocês o meu jugo” (Mt 11.29). Uma parte do jugo está ao nosso redor e a outra está sobre os ombros de Jesus. Jesus, como o principal boi em uma equipe, determina nossa orientação, ritmo e caminho, e nos submetemos a sua liderança. Por meio de seu jugo, sentimos seu puxão, sua orientação e sua direção. Por seu jugo, ele nos treina para trabalhar em sua equipe de forma eficaz. Seu jugo é o que nos guia, nos sensibiliza e nos liga a ele. Estar sob o jugo de Jesus nos torna parceiros dele na restauração da criação de Deus em todas as esferas da vida, como exploramos em 2Co 5.16-21. Nenhum outro jugo que nos afaste do de Jesus poderia ser igual a esse! “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve”, Jesus nos diz (Mt 11.30). No entanto, o trabalho que estamos fazendo com ele nada mais é do que a transformação de todo o cosmos.

Quando Paulo nos diz que não estejamos em jugo desigual nas relações de trabalho, está nos alertando para não nos envolvermos em compromissos de trabalho que nos impeçam de fazer o trabalho que Jesus tem para nós ou de trabalhar sob o jugo dele. Isso tem um forte elemento ético. “O que têm em comum a justiça e a maldade?”, Paulo pergunta (2Co 6.14). Se os ditames de um compromisso de trabalho nos levarem a prejudicar clientes, enganar eleitores, desviar funcionários, abusar de colegas de trabalho, poluir o meio ambiente ou algo assim, então fomos submetidos a um jugo que viola nossos deveres como mordomos do reino de Deus. Além disso, estar sob o jugo de Jesus nos leva a trabalhar para reconciliar e renovar o mundo, à luz das promessas de Deus sobre a vinda do “reino”.

Estar em jugo desigual com incrédulos, então, é estar em uma situação ou relacionamento que o vincula às decisões e ações de pessoas que têm valores e propósitos incompatíveis com os valores e propósitos de Jesus. Provavelmente faríamos — e deveríamos — fazer todo o possível para evitar trabalhar com pessoas que nos forçariam a agir contra nossas crenças. Mas, fora isso, muitas das motivações, valores e métodos de trabalho de nossos supervisores e colegas na maioria dos locais de trabalho podem não ser compatíveis com nossas crenças como cristãos. E o ambiente e as crenças daqueles com quem você trabalha podem ter uma influência negativa em sua fé e experiência de vida cristã. No entanto, a maioria de nós trabalha entre incrédulos, o que, como observamos, Paulo assume ser a situação normal para os cristãos. Então como devemos aplicar sua proibição contra o jugo desigual?

Vamos começar analisando o emprego. Emprego é um acordo em que você faz o trabalho acertado em troca da remuneração acordada. Tendo em vista que você pode rescindi-lo de forma voluntária e justa, caso ele se torne prejudicial a você ou a terceiros, você é livre para desvincular-se dele. Como saber se é preciso desvincular-se de um acordo de emprego ou encerrá-lo? Veremos duas situações muito diferentes.

Primeiro, imagine que você é funcionário de uma organização de modo geral ética, mas está cercado por pessoas que não compartilham de suas crenças e cuja influência está prejudicando sua vida de fé. Esse discernimento pode ser diferente para crentes diferentes. Alguns são capazes de manter a fé em meio às tentações e à descrença ao seu redor, enquanto outros não. Tentações como dinheiro, poder, imoralidade sexual e reconhecimento podem ser avassaladoras em muitos ambientes de trabalho, e a proibição de Paulo sugere que é melhor se afastar desse “jugo” de emprego do que ser contaminado em corpo e espírito ou comprometer seu relacionamento com o Senhor. Em contrapartida, existem aqueles que são capazes de trabalhar em meio a essas tentações como testemunhas da verdade, do amor e da esperança do evangelho. Geralmente, eles precisam de alguém que esteja fora das tentações do seu trabalho para ajudá-los a manter a fé.

Ester é um exemplo interessante desse tipo de situação. Deus a chamou para o harém do rei Assuero, para que ela pudesse servir como protetora de seu povo judeu (Et 4.12-16). As tentações desse “trabalho” eram proteger seu status e privilégio como rainha escolhida pelo rei (Et 4.11-12). Ela poderia ter sucumbido às tentações dessa vida luxuosa se seu tio, Mardoqueu, não tivesse entrado em contato com ela diariamente (Et 2.11) para guiá-la e, por fim, convocá-la a arriscar a vida para salvar seu povo (Et 4.8). (Veja “Trabalhando dentro de um sistema caído (Ester)” para mais informações.)

Ester tinha considerável influência junto ao rei, mas também era extremamente vulnerável ao descontentamento dele. Esse parece ser um caso claro de estar “em jugo desigual”. No entanto, no final, seu jugo com Deus se mostrou mais forte do que seu jugo com o rei, porque ela estava disposta a arriscar a vida para fazer a vontade de Deus. Isso sugere que, quanto mais disposto você estiver a sofrer as consequências de dizer “não” quando solicitado a violar suas crenças, mais estreito será o relacionamento que poderá ter com os incrédulos, e ainda permanecer sob o jugo de Jesus. Uma implicação importante disso é evitar se tornar tão dependente de um emprego que não possa se dar o luxo de sair. Se você assumir despesas e dívidas até, ou mesmo acima, do seu nível de renda, qualquer trabalho pode rapidamente se tornar uma espécie de jugo desigual. Adotar um padrão de vida mais modesto e acumular amplas economias — se possível — pode tornar muito mais fácil permanecer no jugo de Cristo, se as coisas derem errado no trabalho.

Um segundo exemplo de “jugo desigual” pode ser uma parceria comercial com um descrente. Seria uma parceria muito mais igualitária em termos de poder, mas igualmente arriscada em termos de ética. Quando um parceiro assina um contrato, gasta dinheiro, compra ou vende propriedades — ou viola a lei —, o outro parceiro está vinculado a essa ação ou decisão. Esse tipo de parceria poderia ser mais parecido com o boi e o jumento — dois parceiros puxando em direções opostas. Além disso, sabemos por experiência que mesmo parcerias entre dois crentes incluem algum risco, já que os cristãos continuam a ser pecadores. Todas as parcerias de negócios, portanto, exigem sabedoria e discernimento, bem como a capacidade e a disposição de rescindir essa parceria, se necessário, mesmo que isso seja muito caro. A proibição de Paulo em 2Coríntios 6 deve, no mínimo, servir como motivo de oração e discernimento antes de entrar em uma parceria, e talvez para incluir limitações contratuais ao acordo.

Existem muitos outros tipos de relações de trabalho, é claro, incluindo compra e venda, investimento, contratação e subcontratação, e associações comerciais. A advertência de Paulo contra o jugo desigual pode nos ajudar a discernir como e quando entrar em tais relacionamentos e, talvez mais importante, como e quando sair deles. Em todos esses relacionamentos, o perigo aumenta quando nos tornamos mais dependentes deles do que de Cristo.

Por fim, devemos ter cuidado para não transformar as palavras de Paulo em uma mentalidade nós contra eles, descrentes. Não podemos julgar ou condenar os descrentes como inerentemente antiéticos porque o próprio Paulo se recusou a fazê-lo. “Pois como haveria eu de julgar os de fora da igreja? Não devem vocês julgar os que estão dentro? Deus julgará os de fora.” (1Co 5.12-13) A verdade é que nós mesmos precisamos da graça de Cristo todos os dias para nos impedir de desviar os outros devido a nosso pecado. Não somos chamados para julgar, mas para discernir se nosso trabalho está cumprindo os propósitos e seguindo os caminhos de Cristo.

O encorajamento do elogio (2Co 7)

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Imediatamente depois de admoestar os coríntios, Paulo os elogia. “Tenho grande confiança em vocês, e de vocês tenho muito orgulho.” (2Co 7.4) Pode ser uma surpresa para alguns encontrar Paulo se gabando de forma tão assumida sobre a igreja em Corinto. Muitos de nós fomos criados para acreditar que o orgulho é um pecado (o que, obviamente, é bem verdade) e que até mesmo esse orgulho pelas realizações de outra pessoa é questionável. Além disso, podemos nos perguntar se o orgulho de Paulo pelos coríntios é equivocado. Essa congregação era assolada por muitas dificuldades, e há algumas repreensões pungentes em suas cartas a ela. Paulo não usa óculos cor de rosa quando se trata dos coríntios, mas não se deixa abalar por essas preocupações. Não se esquiva de elogiar onde o elogio é devido, e parece estar genuinamente orgulhoso do progresso dos crentes em Corinto, apesar das relações tensas com eles. Paulo observa que seu orgulho por eles é bem-merecido, não um truque barato de bajulação (2Co 7.11-13). Em 2Coríntios 7.14, ele reafirma o caráter genuíno do elogio ao dizer: “Da mesma forma que era verdade tudo o que dissemos, o orgulho que temos de vocês diante de Tito também mostrou-se verdadeiro”.

Isso nos lembra da importância de elogios específicos, precisos e oportunos para colegas de trabalho, funcionários e outras pessoas com quem interagimos no trabalho. Elogios inflados ou generalizados são vazios e podem parecer falsos ou manipuladores. Já a crítica implacável destrói em vez de edificar. Entretanto, palavras de genuíno apreço e gratidão pelo trabalho bem-feito são sempre apropriadas. Evidenciam respeito mútuo, a base da verdadeira comunidade, e motivam todos a dar continuidade ao bom trabalho. Todos estamos ansiosos para ouvir o Senhor nos dizer “muito bem, servo bom e fiel!” (Mt 25.21), e agimos bem em elogiar de forma semelhante sempre que necessário.

A generosidade não é opcional (2Co 8.1-9)

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Como observamos na introdução, 2Coríntios 8 e 9 formam uma seção separada da carta de Paulo, na qual ele aborda o tópico da coleta para as igrejas da Judeia. Esse projeto era uma paixão do apóstolo, e ele o promoveu vigorosamente em suas igrejas (1Co 16.1-3). Paulo começa esta seção apontando para a generosidade exemplar das igrejas na Macedônia e insinuando não esperar nada menos dos coríntios. Assim como os crentes em Corinto demonstraram abundância de fé e capacidade de proclamar a verdade, [1] conhecimento, dedicação completa e amor, também deveriam se esforçar para abundar no “privilégio de contribuir” (gr. Charis, “graça” na ARA e ARC). O termo “dom” tem um duplo significado aqui: “dom espiritual” — referindo-se à dádiva de Deus quanto à virtude da generosidade — e “doação”, referindo-se a suas doações em dinheiro para a coleta. Isso deixa duplamente claro que a generosidade não é uma opção para os cristãos, mas parte da obra do Espírito em nossa vida.

No local de trabalho, um espírito generoso é o óleo que faz as coisas correrem bem em vários níveis. Os funcionários que sentem que seus empregadores são generosos estarão mais dispostos a fazer sacrifícios por sua organização quando for necessário. Os trabalhadores generosos com os colegas de trabalho criarão uma fonte de ajuda para si mesmos e uma experiência mais alegre e satisfatória para todos.

A generosidade nem sempre é uma questão de dinheiro. Para citar apenas alguns exemplos, os empregadores podem ser generosos dedicando tempo para orientar os trabalhadores, proporcionando um local de trabalho agradável, oferecendo oportunidades de treinamento e desenvolvimento, ouvindo genuinamente o problema ou a reclamação de alguém ou visitando um membro da família de um funcionário no hospital. Colegas de trabalho podem oferecer generosidade ajudando-se a realizar melhor o trabalho, certificando-se de que ninguém seja deixado de fora socialmente, defendendo aqueles que sofrem abuso, oferecendo amizade verdadeira, compartilhando elogios, pedindo desculpas por ofensas e simplesmente aprendendo o nome dos trabalhadores que poderiam, de outra forma, ser invisíveis para nós. Steve Harrison conta a história de dois residentes de cirurgia da Universidade de Washington que competiram para ver quem conseguiria aprender o nome de mais auxiliares de enfermagem, zeladores, pessoal de transporte e nutricionistas e, então, cumprimentá-los pelo nome sempre que os viam. [2]

Cumprimento oportuno das obrigações (2Co 8.10-12)

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Paulo lembra aos crentes em Corinto que, no ano anterior, eles já haviam sinalizado a intenção de participar da coleta para as igrejas da Judeia, e que aparentemente haviam se desviado do caminho. Talvez dúvidas persistentes sobre o ministério de Paulo e as tensões que surgiram durante sua visita anterior desempenhassem um papel aqui. De qualquer forma, seu esforço estava diminuindo e, no momento em que Paulo escreve, eles ainda não haviam reunido todas as contribuições dos membros, como ele os havia instruído (1Co 16.1-3).

O conselho de Paulo é direto: “Agora, completem a obra, para que a forte disposição de realizá-la seja igualada pelo zelo em concluí-la, de acordo com os bens que vocês possuem” (2Co 8.11). Essa palavra de Paulo é tão relevante agora quanto era então, especialmente no trabalho. O que começamos devemos terminar. Obviamente, há muitas situações em que as circunstâncias mudam ou outras prioridades se apresentam, obrigando-nos a ajustar os compromissos. É por isso que Paulo acrescenta: “De acordo com os bens que vocês possuem”. Mas, muitas vezes, como na situação dos coríntios, o problema é simplesmente arrastar os pés. Paulo nos lembra da necessidade de cumprir nossos compromissos. Pessoas contam conosco.

Esse conselho pode parecer simples demais para precisar ser mencionado na palavra de Deus. No entanto, os cristãos subestimam sua importância como uma questão de testemunho, além de produtividade. Se não cumprirmos os compromissos comuns no trabalho, como nossas palavras ou ações poderão convencer as pessoas de que nosso Senhor cumprirá sua promessa de vida eterna? É melhor entregar um relatório, uma peça ou um aumento pontualmente do que apresentar um argumento na hora do almoço em defesa da divindade de Cristo.

Compartilhar a riqueza (2Co 8.13-15)

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Paulo lembra aos coríntios o princípio por trás da coleta. “No presente momento, a fartura de vocês suprirá a necessidade deles.” (2Co 8.14) Não se trata de que as igrejas da Judeia deviam experimentar alívio em detrimento das igrejas dos gentios, mas sim que deveria haver um equilíbrio apropriado entre elas. Os crentes estavam em necessidade, e a igreja de Corinto experimentava certa medida de prosperidade. Talvez chegasse o tempo em que a situação se invertesse, e então a ajuda fluiria em outra direção, “para que, por sua vez, a fartura deles supra a necessidade de vocês” (2Co 8.14).

Paulo invoca duas imagens para explicar o que ele quer dizer. A primeira, o equilíbrio, é abstrata, mas, no mundo antigo, como agora, apela a nossa percepção de que, no mundo natural e na sociedade, o equilíbrio leva à estabilidade e à saúde. [1] O destinatário se beneficia porque o presente alivia uma falta anormal. O doador se beneficia porque a dádiva impede a aclimatação a uma abundância insustentável. A segunda imagem é concreta e histórica. Paulo lembra aos coríntios dos dias antigos, quando Deus deu o maná ao povo de Israel como sustento (Êx 16.11-18). Embora alguns coletassem muito e outros comparativamente pouco, quando a ração diária era distribuída, ninguém tinha pouco ou muito.

O princípio de que os mais ricos devem dar sua riqueza aos mais pobres na medida em que os recursos de todos estejam em “igualdade” é um desafio à noção moderna de autossuficiência. Aparentemente, quando Paulo chama os cristãos de “escravos de vocês, por causa de Jesus” (2Co 4.5), ele quer dizer que 100% de nosso salário e riqueza pertencem diretamente a Deus, e que Deus pode querer que os distribuamos a outros a tal ponto que a renda que guardamos para uso pessoal esteja em equilíbrio com a deles.

Devemos ter cuidado, entretanto, para não fazer aplicações simplistas às estruturas do mundo de hoje. Uma discussão completa desse princípio entre os cristãos tornou-se difícil por prender-se a debates políticos sobre socialismo e capitalismo. A questão nesses debates é se o Estado tem o direito — ou o dever — de impor o equilíbrio da riqueza, tirando dos mais ricos e distribuindo aos mais pobres. Essa é uma questão diferente da situação de Paulo, na qual um grupo de igrejas pediu a seus membros que voluntariamente doassem dinheiro para distribui-lo a outra igreja, em benefício de seus membros pobres. Na verdade, Paulo não menciona o Estado. Quanto a si mesmo, diz que não tem planos de obrigar ninguém. “Não estou dando uma ordem” (2Co 8.8), ele nos diz, e que a coleta não deve ser feita “com pesar ou por obrigação” (2Co 9.7).

O propósito de Paulo não é criar um sistema social específico, mas perguntar àqueles que têm dinheiro se estão realmente dispostos a colocá-lo a serviço de Deus em favor dos pobres. “Demonstrem a esses irmãos a prova do amor que vocês têm e a razão do orgulho que temos de vocês”, ele implora (2Co 8.24). Os cristãos devem se envolver em ampla discussão sobre as melhores maneiras de aliviar a pobreza. É por meio de doações, de investimentos, de outra coisa ou de algum tipo de mistura de opções? Que papel desempenham as estruturas da igreja, as empresas, o governo e as organizações sem fins lucrativos? Que aspectos de sistemas jurídicos, infraestrutura, educação, cultura, responsabilidade pessoal, administração, trabalho árduo e outros fatores devem ser reformados ou desenvolvidos? Os cristãos precisam estar na vanguarda do desenvolvimento não apenas de meios generosos, mas eficazes de acabar com a pobreza. [2]

Mas não pode haver dúvidas sobre a urgência premente da pobreza e nenhuma relutância em equilibrar o uso do dinheiro com as necessidades das pessoas ao redor do mundo. As palavras enérgicas de Paulo mostram que aqueles que desfrutam da superabundância não podem ser complacentes quando tantas pessoas no mundo sofrem de pobreza extrema.

Você não pode dar mais do que Deus (2Co 9)

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Ao exortar os crentes coríntios a doarem generosamente, Paulo está ciente de que deve abordar uma preocupação muito humana em um mundo de recursos limitados. Alguns de seus ouvintes devem ter pensado: “Se eu der tão altruisticamente quanto Paulo está me exortando a dar, pode não haver o suficiente para atender a minhas próprias necessidades”. Fazendo uso de uma metáfora agrícola mais ampla, Paulo lhes assegura que, na economia de Deus, as coisas funcionam de maneira diferente. Ele já fez alusão a um princípio do livro de Provérbios, observando que “aquele que semeia pouco também colherá pouco, e aquele que semeia com fartura também colherá fartamente” (compare 2Co 9.6 com Pv 11.24-25). Em seguida, citou um aforismo da versão grega de Provérbios 22.8, que diz que “Deus ama quem dá com alegria’” (2Co 9.7). A partir disso, ele infere uma promessa de que, para aquele que dá generosamente, Deus pode e liberará abundantemente todo tipo de bênçãos [1] .

Paulo, portanto, assegura aos coríntios que sua generosidade não vem com o risco de pobreza futura. Pelo contrário, a generosidade é o caminho para prevenir privação futura. “Deus é poderoso para fazer que toda a graça lhes seja acrescentada, para que em todas as coisas, em todo o tempo, tendo tudo o que é necessário, vocês transbordem em toda boa obra” (2Co 9.8). Nos dois versículos seguintes, assegura àqueles que semeiam (ou “distribuem”) generosamente para os pobres que Deus lhes fornecerá semente suficiente para essa semeadura e para o pão de sua subsistência. Ele ressalta isso quando diz: “Vocês serão enriquecidos de todas as formas, para que possam ser generosos em qualquer ocasião e, por nosso intermédio, a sua generosidade resulte em ação de graças a Deus” (2Co 9.11), uma promessa que não só abrange as bênçãos materiais, mas vai além.

Embora Paulo esteja falando claramente de generosidade material e bênçãos, devemos ter cuidado para não transformar a certeza da provisão de Deus em uma expectativa de ficar rico. Deus não é um esquema de pirâmide! A frase “enriquecidos de todas as formas” usada por Paulo significa “ter o suficiente de tudo”, não ficar rico. O chamado “evangelho da prosperidade” tem uma interpretação profundamente errada de passagens como essa. Seguir a Deus não é um esquema para ganhar dinheiro, como Paulo se esforçou em dizer ao longo da carta.

Embora haja aplicações óbvias na distribuição dos frutos de nosso trabalho, ou seja, na doação de dinheiro e outros recursos, isso se aplica igualmente bem ao dar de nós mesmos durante nosso trabalho. Não precisamos temer que, ao ajudar os outros a serem bem-sucedidos no trabalho, comprometeremos nosso próprio bem-estar. Deus prometeu nos dar tudo o que precisamos. Podemos ajudar os outros a ter uma boa performance no trabalho, sem temer que isso ofusque nosso brilho. Podemos competir de forma justa no mercado sem nos preocupar com a possibilidade de lançar mão de alguns truques sujos para ganhar a vida em um negócio competitivo. Podemos orar, encorajar, apoiar e até ajudar nossos rivais, porque sabemos que Deus, e não nossa vantagem competitiva, é a fonte de nossa provisão. Devemos ter cuidado para não distorcer essa promessa com o falso evangelho de saúde e riqueza, como muitos fizeram. Deus não promete aos verdadeiros crentes uma casa grande e um carro caro. Mas ele nos garante que, se olharmos para as necessidades dos outros, ele garantirá que nossas necessidades sejam atendidas no processo.

Avaliação de desempenho (2Co 10—13)

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Como observamos na introdução, os capítulos de 10 a 13 de 2Coríntios constituem a terceira seção da carta. As partes mais relevantes para o trabalho vêm nos capítulos 10 e 11, que expandem a discussão sobre desempenho no trabalho, que começou no capítulo 5. Aqui, Paulo está se defendendo dos ataques de algumas pessoas que ele chama jocosamente de “superapóstolos” (2Co 11.5). Ao fazê-lo, ele oferece insights específicos diretamente aplicáveis ​​à avaliação de desempenho.

Os falsos superapóstolos vinham criticando Paulo por não estar à altura deles em termos de eloquência, carisma pessoal e evidência de sinais e maravilhas. Naturalmente, os “padrões” que eles escolheram nada mais eram do que descrição de si mesmos e de seus ministérios. Paulo aponta o absurdo do jogo que eles praticavam. As pessoas cujo julgamento se dá por autocomparação sempre estarão satisfeitas consigo. Paulo se recusa a concordar com esse esquema egoísta. No que lhe diz respeito, como já havia explicado em 1Coríntios 4.1-5, o único julgamento — e, portanto, a única recomendação — que vale a pena é o julgamento do Senhor Jesus.

A perspectiva de Paulo tem relevância direta no trabalho. Nosso desempenho no trabalho provavelmente será avaliado em revisões trimestrais ou anuais, e certamente não há nada de errado nisso. O problema se configura quando os padrões de automedição e de medição alheia são tendenciosos e egoístas. Em algumas organizações — em geral, aquelas que prestam contas apenas a seus proprietários e clientes —, um pequeno círculo de pessoas íntimas pode adquirir a capacidade de julgar o desempenho de outras, principalmente com base no fato de atender aos interesses próprios desse círculo interno. Aqueles que estão fora dele são, então, avaliados principalmente em termos de “estar conosco” ou “contra nós”. É difícil nos encontrarmos nessa situação, mas como os cristãos avaliam o sucesso pela avaliação de Deus e não pela promoção, pelo salário ou até mesmo pela permanência no emprego, talvez sejamos exatamente as pessoas que podem trazer redenção a essas organizações corruptas. Se devemos nos ver como beneficiários de sistemas corruptos e egoístas, que melhor testemunho de Cristo poderíamos encontrar do que defender outros que foram prejudicados ou marginalizados, mesmo às custas de nosso próprio conforto e segurança?

Resumo e conclusão de 2Coríntios

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As circunstâncias únicas que levaram Paulo a escrever 2Coríntios resultaram em uma carta com muitas lições importantes para o trabalho, os trabalhadores e os locais de trabalho. Paulo enfatiza repetidamente a importância da transparência e da integridade. Exorta seus leitores a investirem em relacionamentos bons e alegres no trabalho e a buscarem a reconciliação quando os relacionamentos são rompidos. Avalia o trabalho piedoso em termos de serviço, liderança, humildade, generosidade e a reputação que conquistamos por meio de nossas ações. Argumenta que o desempenho, a responsabilidade e o cumprimento oportuno das obrigações são deveres essenciais dos cristãos no trabalho. Fornece padrões para uma avaliação de desempenho imparcial. Explora as oportunidades e os desafios de trabalhar com descrentes. Implora que usemos a riqueza obtida com o trabalho para o bem da comunidade, a ponto de usá-la igualmente para beneficiar os outros e a nós. Assegura-nos que, ao fazer isso, aumentamos nossa segurança financeira, em vez de diminuí-la, porque passamos a depender do poder de Deus, e não de nossa própria fraqueza.

As palavras de Paulo são extremamente desafiadoras ao afirmar que servir aos outros, mesmo ao ponto do sofrimento, é o caminho para ser eficaz na economia de Deus, assim como o próprio Jesus nos deu a salvação por meio de seu sofrimento na cruz. Paulo, embora esteja muito aquém da perfeição divina de Jesus, está disposto a viver sua vida como um livro aberto, um exemplo de como a força de Deus supera a fragilidade humana. Por causa de sua franqueza, Paulo tem credibilidade quando afirma que trabalhar segundo a orientação, os propósitos e os valores de Deus é realmente o caminho para uma vida mais plena. Ele nos transmite as palavras do próprio Senhor Jesus: “Minha graça é suficiente a você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12.9). Essa admoestação é tão importante para nosso trabalho hoje quanto foi para os coríntios, quando Paulo escreveu esta carta fascinante.

Versículos e temas-chave em 2Coríntios

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Versículo

Tema

2Co 1.3-4 Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola em todas as nossas tribulações, para que, com a consolação que recebemos de Deus, possamos consolar os que estão passando por tribulações.

Nossa experiência de adversidade e sofrimento pode ser um recurso para os outros.

2Co 1.12 Este é o nosso orgulho: A nossa consciência dá testemunho de que nos temos conduzido no mundo, especialmente em nosso relacionamento com vocês, com santidade e sinceridade provenientes de Deus, não de acordo com a sabedoria do mundo, mas de acordo com a graça de Deus.

A transparência convencerá os outros de que nossos motivos são puros.

2Co 1.24 Não que tenhamos domínio sobre a sua fé, mas cooperamos com vocês para que tenham alegria, pois é pela fé que vocês permanecem firmes.

Liderança envolve serviço que aumenta a alegria dos outros.

2Co 2.12-13 Quando cheguei a Trôade para pregar o evangelho de Cristo e vi que o Senhor me havia aberto uma porta, ainda assim, não tive sossego em meu espírito, porque não encontrei ali meu irmão Tito. Por isso, despedi-me deles e fui para a Macedônia.

Relacionamentos saudáveis ​​devem estar no topo de nossa lista de prioridades.

2Co 2.17 Ao contrário de muitos, não negociamos a palavra de Deus visando a algum lucro; antes, em Cristo falamos diante de Deus com sinceridade, como homens enviados por Deus.

A integridade exige a máxima sinceridade.

2Co 3.1-2, 5-6 Será que com isso estamos começando a nos recomendar a nós mesmos novamente? Será que precisamos, como alguns, de cartas de recomendação para vocês ou da parte de vocês? Vocês mesmos são a nossa carta, escrita em nosso coração, conhecida e lida por todos. [...] Não que possamos reivindicar qualquer coisa com base em nossos próprios méritos, mas a nossa capacidade vem de Deus. Ele nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; pois a letra mata, mas o Espírito vivifica.

As armadilhas externas do sucesso não garantem competência e integridade.

2Co 4.1-2 Portanto, visto que temos este ministério pela misericórdia que nos foi dada, não desanimamos. Antes, renunciamos aos procedimentos secretos e vergonhosos; não usamos de engano nem torcemos a palavra de Deus. Ao contrário, mediante a clara exposição da verdade, recomendamo-nos à consciência de todos, diante de Deus.

Nossa conduta deve ser tão irrepreensível a ponto de que nunca temamos o escrutínio.

2Co 4.5 Mas não pregamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo, o Senhor, e a nós como escravos de vocês, por causa de Jesus.

Liderança significa exercer autoridade para o bem dos outros.

2Co 4.7-11 Mas temos esse tesouro em vasos de barro, para mostrar que o poder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós. De todos os lados somos pressionados, mas não desanimados; ficamos perplexos, mas não desesperados; somos perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos. Trazemos sempre em nosso corpo o morrer de Jesus, para que a vida de Jesus também seja revelada em nosso corpo. Pois nós, que estamos vivos, somos sempre entregues à morte por amor a Jesus, para que a sua vida também se manifeste em nosso corpo mortal.

Se nos mostrarmos como mais fortes do que realmente somos, perderemos a oportunidade de apontar para a verdadeira fonte de nossa força.

2Co 5.10 Pois todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba de acordo com as obras praticadas por meio do corpo, quer sejam boas quer sejam más.

A maneira como nos conduzimos é importante para Deus.

2Co 6.11, 7.2 Falamos abertamente a vocês, coríntios, e abrimos todo o nosso coração! [...] Concedam-nos lugar no coração de vocês. A ninguém prejudicamos, a ninguém causamos dano, a ninguém exploramos.

A transparência oferecerá prova de integridade.

2Co 7.4, 14 Tenho grande confiança em vocês, e de vocês tenho muito orgulho. [...] Eu lhe tinha dito que estava orgulhoso de vocês, e vocês não me decepcionaram. Da mesma forma que era verdade tudo o que dissemos, o orgulho que temos de vocês diante de Tito também mostrou-se verdadeiro.

Não devemos ser parcimoniosos em elogios ao trabalho dos outros.

2Co 8.7 Todavia, assim como vocês se destacam em tudo: na fé, na palavra, no conhecimento, na dedicação completa e no amor que vocês têm por nós, destaquem-se também neste privilégio de contribuir.

A generosidade crescente é um sinal de fé crescente.

2Co 8.10-11 Este é meu conselho: convém que vocês contribuam, já que desde o ano passado vocês foram os primeiros, não somente a contribuir, mas também a propor esse plano. Agora, completem a obra, para que a forte disposição de realizá-la seja igualada pelo zelo em concluí-la, de acordo com os bens que vocês possuem.

Devemos cumprir nossos compromissos em tempo hábil.

2Co 8.13-15 Nosso desejo não é que outros sejam aliviados enquanto vocês são sobrecarregados, mas que haja igualdade. No presente momento, a fartura de vocês suprirá a necessidade deles, para que, por sua vez, a fartura deles supra a necessidade de vocês. Então haverá igualdade, como está escrito: “Quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco”.

Os crentes que estão bem de vida têm a responsabilidade de ajudar os necessitados.

2Co 9.8-11 E Deus é poderoso para fazer que toda a graça lhes seja acrescentada, para que em todas as coisas, em todo o tempo, tendo tudo o que é necessário, vocês transbordem em toda boa obra. Como está escrito: “Distribuiu, deu os seus bens aos necessitados; a sua justiça dura para sempre”. Aquele que supre a semente ao que semeia e o pão ao que come também lhes suprirá e multiplicará a semente e fará crescer os frutos da sua justiça. Vocês serão enriquecidos de todas as formas, para que possam ser generosos em qualquer ocasião e, por nosso intermédio, a sua generosidade resulte em ação de graças a Deus.

Se usarmos nossos recursos para atender às necessidades dos outros, Deus promete cuidar de nós.

2Co 10.12, 18 Não temos a pretensão de nos igualar ou de nos comparar com alguns que se recomendam a si mesmos. Quando eles se medem e se comparam consigo mesmos, agem sem entendimento. [...] Pois não é aprovado quem a si mesmo se recomenda, mas aquele a quem o Senhor recomenda.

Devemos nos medir pelos padrões do Senhor e buscar elogio apenas dele.

2Co 12.9-10 Mas ele me disse: “Minha graça é suficiente a você, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza”. Portanto, eu me gloriarei ainda mais alegremente em minhas fraquezas, para que o poder de Cristo repouse em mim. Por isso, por amor de Cristo, regozijo-me nas fraquezas, nos insultos, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias. Pois, quando sou fraco, é que sou forte.

Deus é glorificado quando suportamos a adversidade.

2Co 12.14 Agora, estou pronto para visitá-los pela terceira vez e não serei um peso, porque o que desejo não são os seus bens, mas vocês mesmos. Além disso, os filhos não devem ajuntar riquezas para os pais, mas os pais para os filhos.

Devemos trabalhar pela independência financeira, a fim de estar em condições de ajudar os outros.

2Co 13.11 Sem mais, irmãos, despeço-me de vocês! Procurem aperfeiçoar-se, exortem-se mutuamente, tenham um só pensamento, vivam em paz. E o Deus de amor e paz estará com vocês.

Algumas diretrizes simples garantirão a paz.


Visão geral de Gálatas, Efésios, Filipenses e o trabalho

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Gálatas, Efésios e Filipenses são três livros curtos, porém ricos, entre as cartas de Paulo no Novo Testamento. Por sua brevidade, foi combinada em um único capítulo sua contribuição para a teologia do trabalho. No entanto, as três cartas apresentam temas distintos entre si, e cada carta será explorada individualmente.

Gálatas e o trabalho

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Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor. (Gl 5.13)

Introdução a Gálatas

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De que forma vivemos como crentes em Jesus Cristo? Se a vida cristã começa quando depositamos nossa fé em Cristo como Salvador e Senhor, como expressamos essa fé na vida diária, incluindo no trabalho?

Para muitos de nós, a resposta a essas perguntas reside na ordenação de nosso comportamento de acordo com certas regras básicas. Assim, por exemplo, quando se trata do local de trabalho, podemos adotar a seguinte lista de tarefas: (1) Mostre respeito aos colegas. (2) Não use linguagem imprópria. (3) Não fofoque. (4) Guie-se por valores bíblicos ao tomar decisões. e (5) Fale da fé em Cristo, se possível. Ainda que essa lista pudesse ser muito mais longa, já contém orientações valiosas que refletem as prioridades bíblicas.

Mas há nela um perigo para os cristãos, seja no trabalho seja em qualquer outro lugar. É o perigo do legalismo, de transformar a vida cristã em um conjunto de regras, em vez de em nossa livre resposta à graça de Deus em Cristo e em uma rede de relacionamentos centrados em Cristo. Além disso, aqueles que abordam a vida cristã de forma legalista geralmente tendem a colocar em sua lista de tarefas itens não essenciais ou talvez até incorretos.

Paulo e os Gálatas

Foi exatamente o que aconteceu com os crentes na Galácia, em meados do primeiro século. Em resposta à pregação do apóstolo Paulo, eles depositaram sua fé em Cristo e começaram a viver como cristãos. Mas, em pouco tempo, começaram a moldar sua vida de acordo com uma lista do que se devia e não se devia fazer. Nesse esforço, os gálatas foram influenciados por pessoas de fora que afirmavam ser cristãs e que insistiam que a vida cristã exigia guardar a Lei de Moisés, conforme entendida por certas escolas contemporâneas de pensamento. Em particular, esses “judaizantes” estavam persuadindo os gálatas a viverem como judeus em questões de circuncisão (Gl 5.2-12 ) e da lei cerimonial (Gl 4.10).

Paulo escreveu a carta que chamamos de “Gálatas” para redirecionar os cristãos da Galácia no caminho certo. Embora ele não tenha abordado diretamente as questões do trabalho, suas instruções básicas sobre a natureza da vida cristã falam incisivamente sobre nossos interesses na fé e no trabalho. Além disso, Gálatas contém imagens relacionadas ao trabalho, especialmente extraídas da prática da escravidão no primeiro século. Os cristãos, de acordo com Paulo, devem viver em liberdade, não em escravidão à lei de Moisés e a outros poderes terrenos (Gl 4.1-11). No entanto, ironicamente, aqueles que exercem sua liberdade em Cristo devem escolher servir “uns aos outros mediante o amor” (Gl 5.13).

Estudiosos da Bíblia concordam quase unanimemente que Gálatas foi escrito pelo apóstolo Paulo em algum momento entre 49 e 58 d.C. para um grupo de igrejas na província romana da Galácia, no que hoje é o centro da Turquia. [1]

Paulo estava escrevendo para igrejas que havia fundado quando da pregação das boas-novas de Jesus Cristo. Essas igrejas existiam em um ambiente cultural e religiosamente diverso e vinham sofrendo influência dos judaizantes (cristãos judeus que argumentavam que todos os cristãos deveriam guardar completamente a Lei se quisessem experimentar a vida cristã plena).

Em sua resposta aos gálatas e aos judaizantes, que os vinham corrompendo, Paulo ressalta a liberdade tida em Cristo. Aplicada ao trabalho, a carta aos Gálatas nos ajuda a entender o trabalho e a nos envolver nele com a liberdade essencial para o evangelho de Jesus Cristo.

Depois de se apresentar, Paulo saúda os gálatas, referindo-se a Cristo como aquele “que se entregou a si mesmo por nossos pecados a fim de nos resgatar desta presente era perversa” (Gl 1.4), e assim introduzindo o tema da liberdade, central para a carta aos Gálatas e para a vida como crentes em Jesus.

Compreendendo a vida em Cristo (Gl 1.6—4.31)

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Paulo começa identificando o problema entre os gálatas. Eles estão seguindo “outro evangelho” (Gl 1.6), que requer que os gentios vivam “como judeus” (Gl 2.14). A fim de mostrar que esse “evangelho” não é realmente o evangelho — isto é, as boas-novas —, Paulo apresenta uma variedade de argumentos, incluindo sua autobiografia (Gl 1.10—2.21), o recebimento do Espírito por meio da fé (Gl 3.1-5), a descendência de Abraão por meio da fé (Gl 3.6-29), a analogia de escravos e filhos (Gl 4.1-11), um apelo pessoal e emocional (Gl 4.12-20) e a alegoria da escrava e da mulher livre (Gl 4.21-31).

Em vários pontos dos capítulos 1—4, em sua explicação da vida cristã, Paulo usa a linguagem e as imagens da escravidão para fortalecer a compreensão da vida em Cristo. A escravidão, que em Gálatas significa principalmente a ausência de liberdade, é aquela da qual os gálatas foram libertados por sua fé em Cristo. “Você já não é mais escravo, mas filho” (Gl 4.7). O desejo de seguir a Lei de Moisés, em vez de confiar na fé, é, com efeito, um retorno sem sentido ao fardo da escravidão (Gl 4.8-10). Mesmo a Lei de Moisés, quando entendida corretamente, recomenda a liberdade em vez da escravidão à própria Lei (Gl 4.21-31).

Portanto, vemos que Paulo usa imagens relativas ao trabalho (escravidão) para ilustrar um ponto espiritual sobre o legalismo religioso. No entanto, o ponto se aplica diretamente ao próprio local de trabalho. Um local de trabalho legalista — onde os chefes tentam controlar cada movimento, cada palavra, cada pensamento dos funcionários — contraria a liberdade em Cristo. Todo trabalhador deve obediência a seu superior legítimo. E toda organização deve oferecer liberdade a seus trabalhadores compatível com as verdadeiras necessidades do trabalho.

Viver em Cristo (Gl 5—6)

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Em Gálatas 5.1 encontramos o ápice do crescendo dos primeiros quatro capítulos com um chamado retumbante à liberdade. “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão.” No entanto, isso não significa que os cristãos devam fazer o que quiserem, satisfazendo os próprios desejos pecaminosos e negligenciando as pessoas ao redor. Pelo contrário, Paulo explica: “Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor” (Gl 5.13). Em Cristo, os cristãos são livres da escravidão a este mundo e a seu poder, incluindo a Lei de Moisés. No entanto, nessa liberdade, eles devem escolher, por amor, servir uns aos outros com humildade. Essa “escravidão” não é escravidão, mas um exercício paradoxal da verdadeira liberdade em Cristo.

Vida no Espírito (Gl 5.13-23)

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O Espírito de Deus, concedido aos cristãos ao crerem nas boas-novas de Cristo (Gl 3.2-5), nos ajuda a viver a fé todos os dias (Gl 5.16). Aqueles que “são guiados pelo Espírito” rejeitarão e estarão a salvo das “obras da carne”, que incluem “imoralidade sexual, impureza e libertinagem; idolatria e feitiçaria; ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja; embriaguez, orgias e coisas semelhantes” (Gl 5.19-21). Partes dessa lista soam muito familiares em muitos locais de trabalho — ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja. Mesmo práticas aparentemente religiosas, como idolatria e feitiçaria, têm manifestações reais no trabalho. Se somos chamados a viver no Espírito, então somos chamados a viver no Espírito também no trabalho.

Paulo nos adverte especificamente contra dar “ocasião à vontade da carne” em nome da liberdade (Gl 5.13). Em vez disso, devemos escolher servir “uns aos outros mediante o amor”. No trabalho, significa que devemos ajudar os colegas, mesmo quando estamos competindo ou em desacordo com eles. Devemos confrontar com justiça e resolver ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja (ver Mt 18.15-17 ), em vez de nutrir ressentimento. Devemos criar produtos e serviços que superem as expectativas legítimas dos clientes, porque um verdadeiro servidor busca o que é melhor para a pessoa atendida, não apenas o que é adequado.

O Espírito de Deus não é, no entanto, apenas um opositor divino que nos mantém longe de problemas. Em vez disso, o Espírito em ação nos crentes produz novas atitudes e ações. Na agricultura, o fruto é um delicioso resultado de crescimento e cultivo de longo prazo. A metáfora “fruto do Espírito” sinaliza que Deus se importa com o tipo de pessoa que estamos nos tornando, e não apenas com o que estamos fazendo hoje. Devemos cultivar “amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (Gl 5.22-23) ao longo da vida. Não temos motivos para acreditar que esse fruto se destina apenas aos relacionamentos entre os cristãos nas igrejas e famílias. Pelo contrário, assim como devemos ser guiados pelo Espírito em todas as facetas da vida, devemos demonstrar o fruto do Espírito onde quer que estejamos, incluindo onde trabalhamos. Paciência no local de trabalho, por exemplo, não quer dizer indecisão ou falha em agir com urgência em questões comerciais. Em vez disso, significa estar livre da ansiedade que nos tentaria a agir antes do momento oportuno, como demitir um subordinado em um acesso de raiva, repreender um colega antes de ouvir uma explicação, exigir uma resposta antes que o aluno tenha tempo para pensar, ou cortar o cabelo de um cliente antes de ter certeza absoluta do estilo que ele deseja. Se o fruto do Espírito parece ter pouco a ver com o trabalho, talvez tenhamos reduzido nossa percepção do que o fruto espiritual é de fato.

Trabalhar para o bem dos outros (Gl 6.1-10)

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A primeira parte de Gálatas 6 emprega uma variedade de palavras relacionadas ao trabalho para instruir os cristãos sobre como cuidar dos outros de maneira tangível. Os cristãos devem ser generosos, enquanto levam “os fardos pesados uns dos outros” (Gl 6.2). No entanto, para que não sejamos surpreendidos pelo orgulho e imaginemos que o trabalho em nome de outros justifica o trabalho ruim, os crentes devem examinar “os próprios atos” e cada um deverá levar “a própria carga” (Gl 6.4-5).

A analogia de semear e colher permite que Paulo encoraje os gálatas a se concentrarem na vida do Espírito em vez de na carne (Gl 6.7-8). Semear no Espírito envolve um esforço intencional: “Façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gl 6.10). Os cristãos devem trabalhar pelo bem comum, além de cuidar de seus irmãos na fé. Certamente, se devemos trabalhar para o bem dos outros, um lugar onde devemos fazer isso é o local de trabalho.

O centro do evangelho (Gl 6.11-18)

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Em suas observações finais, Paulo lembra aos gálatas o centro do evangelho, que é a cruz de Cristo: “Quanto a mim, que eu jamais me glorie, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por meio da qual o mundo foi crucificado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6.14).

Resumo e conclusão de Gálatas

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Em seu uso final da linguagem da crucificação (Gl 6.14), Paulo ecoa o que disse anteriormente na carta: “Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20). Fé em Cristo não é apenas acreditar em certos fatos sobre sua vida, morte e ressurreição, mas também morrer com Cristo para que ele possa viver em nós. Essa realidade de “Cristo em nós” não desaparece quando entramos no escritório, depósito, loja e sala de reuniões. Em vez disso, ela nos exorta e nos capacita a viver para Cristo, no poder do Espírito, a cada momento, em todos os lugares.

A vida cristã se baseia na fé. Mas a fé não é um assentimento passivo à verdade do evangelho. Em vez disso, na experiência diária do cristão, a fé se torna viva e ativa. De acordo com Paulo, pode-se até dizer que a fé “atua pelo amor” (Gl 5.6). Assim, a fé em ação em nossa vida energiza ações amorosas, assim como o Espírito de Deus nos ajuda a ser mais amorosos, tanto no coração quanto nas ações (Gl 5.22). Rejeitamos a escravidão de tentar nos justificar por meio do trabalho. No entanto, quando abraçamos a liberdade em Cristo por meio da fé, o trabalho leva ao amor, à alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e ao domínio próprio. Vemos o trabalho como um contexto primário no qual podemos exercer a liberdade em Cristo, de modo a amar os outros e fazer “o bem a todos” (Gl 6.10). Se não vemos o fruto da fé no trabalho, então estamos excluindo do domínio de Cristo uma parte importante de nossa vida.

Efésios e o trabalho

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Como prisioneiro no Senhor, rogo-lhes que vivam de maneira digna da vocação que receberam. (Ef 4.1)

Introdução a Efésios

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Qual é o lugar do trabalho no esquema macro das coisas? O trabalho é apenas uma atividade da qual precisamos para nos dar bem na vida? Ou também é um lugar onde encontramos significado, cura e integração pessoal? [1] O trabalho tem um lugar no cosmos da criação de Deus? Significa algo ao lado da obra redentora de Cristo?

A carta aos Efésios conta a história da obra cósmica de Deus, começando antes da criação do mundo, continuando na obra de redenção de Cristo e levando até o momento presente e além. Ela nos atrai para esse trabalho, tanto como observadores maravilhados dos fatos narrados quanto como participantes ativos da obra de Deus.

Assim, Efésios dá uma nova perspectiva, não apenas sobre Deus, mas também sobre nós mesmos. Nossa vida, ações e, de fato, o trabalho adquirem novo significado. Vivemos de maneira diferente, adoramos de maneira diferente e trabalhamos de maneira diferente por causa do que Deus fez e está fazendo em Cristo. Fazemos o que fazemos com nossa vida, incluindo a profissional, como resposta à atividade salvífica de Deus e como cumprimento da tarefa que ele nos deu de cooperar com ele. Cada um de nós foi chamado por Deus para participar da obra de Deus no mundo (Ef 4.1).

A carta que conhecemos como “Efésios” é ao mesmo tempo semelhante a e diferente de outras cartas do Novo Testamento atribuídas ao apóstolo Paulo. É semelhante, acima de tudo, a Colossenses, com a qual compartilha temas, estruturas e até frases comuns (Ef 6.21-22; Cl 4.7-8). [2] Efésios é diferente das outras cartas paulinas em seu estilo exaltado, vocabulário distinto e em algumas de suas perspectivas teológicas. Além disso, relativamente a outras cartas de Paulo, é muito menos orientada a uma situação específica na vida de uma igreja em particular. [3] Este comentário assume a autoria de Paulo.

Em vez de concentrar-se nas necessidades de uma congregação em particular, a carta aos Efésios apresenta uma perspectiva teológica expansiva sobre a obra de Deus seja no universo seja quanto ao papel central da igreja de Jesus Cristo nela. Cada crente individualmente contribui para esse esforço eclesial como alguém que é “criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras” (Ef 2.10) e essencial para o crescimento e o ministério da igreja (Ef 4.15-16).

O grande plano de Deus: Uma visão teológica (Ef 1.1—3.21)

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A primeira metade de Efésios revela a grande narrativa da salvação de Deus para todo o cosmos. Mesmo antes “da criação do mundo”, Deus graciosamente nos escolheu em Cristo para um relacionamento com ele e para vivermos seu propósito no mundo (Ef 1.4-6). No centro desse propósito, Deus fez “convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas” (Ef 1.10). Em outras palavras, Deus restaurará todo o cosmos, uma vez quebrado pelo pecado, sob a autoridade de Cristo. O fato de Deus renovar sua criação nos lembra que este mundo — incluindo fazendas, escolas e corporações — é importante para Deus e não foi abandonado por ele.

A obra restauradora de Deus, centrada em Cristo, envolve seres humanos, seja como destinatários da graça de Deus seja como participantes de sua obra contínua de restauração repleta de graça. Somos salvos pela graça, por causa da fé, não por causa de nossas obras (Ef 2.8-9). Mas nossas obras são vitais para Deus, “porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos” (Ef 2.10). Assim, não somos salvos por obras, mas para obras, e elas, que incluem tudo o que fazemos, são parte da renovação da criação de Deus. Portanto, nossa atividade no trabalho é um elemento crucial daquilo que Deus preparou para realizarmos, em cumprimento de seu propósito para nós.

A igreja ocupa um lugar de destaque no plano de Deus para reunir novamente o mundo em Cristo. Sua morte na cruz não apenas tornou possível nossa salvação pessoal (Ef 2.4-7), mas também eliminou a distância entre judeus e gentios (Ef 2.13-18). Essa unidade entre antigos inimigos resume a obra unificadora de Deus. Assim, a igreja serve como uma demonstração para todo o universo da natureza e do sucesso final do plano cósmico de Deus (Ef 3.9-10 ). Mas a igreja não é apenas uma unidade de pessoas que se reúnem uma vez por semana para realizar atividades religiosas juntas. Em vez disso, a igreja é a comunidade de todos os crentes, fazendo tudo em todos os lugares, trabalhando juntos ou separadamente. Em todas as esferas da vida, podemos contar com aquele “que é capaz de fazer infinitamente mais do que tudo o que pedimos ou pensamos, de acordo com o seu poder que atua em nós” (Ef 3.20). Observe que Paulo usa o termo cívico “concidadãos ” (Ef 2.19) para descrever os cristãos, em vez do termo religioso “adoradores”. Na verdade, Efésios praticamente não dá instruções sobre o que a igreja deve fazer quando se reúne, mas sobre como seus membros devem trabalhar, como veremos em breve.

O grande plano de Deus: Um guia prático (Ef 4.1—6.24)

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A segunda metade de Efésios começa com uma exortação para viver a visão da primeira metade da carta. “Como prisioneiro no Senhor, rogo-lhes que vivam de maneira digna da vocação que receberam.” (Ef 4.1) Todo cristão compartilha desse chamado. Assim, nossa verdadeira e mais profunda vocação (da palavra latina para “chamado”) é fazer nossa parte para promover a missão multifacetada de Deus no mundo. Esse chamado molda tudo o que fazemos na vida, incluindo o trabalho — ou o que às vezes chamamos de nossa “vocação”. É claro que Deus pode nos guiar para tarefas específicas a fim de expressar nosso chamado fundamental de viver para o louvor da sua glória (Ef 1.12). Assim, como médicos e advogados, escriturários e garçons, atores e músicos, pais e avós, levamos uma vida digna de nosso chamado para Cristo e sua atividade no mundo.

Fazendo algo útil e para repartir (Ef 4.28)

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Entre as exortações práticas presentes em Efésios 4—6, duas passagens lidam especificamente com preocupações relacionadas ao trabalho. A primeira tem a ver com o propósito do trabalho: “O que furtava não furte mais; antes trabalhe, fazendo algo de útil com as mãos, para que tenha o que repartir com quem estiver em necessidade” (Ef 4.28). Embora focado imediatamente naqueles que roubam, o conselho de Paulo é relevante para todos os cristãos. O termo grego traduzido como “algo útil” (to agathon) significa literalmente “para o bem”. Deus está sempre levando os cristãos para o bem. O local de trabalho é um cenário crucial para fazermos muitas das boas obras que Deus preparou para nós (Ef 2.10).

Por meio do trabalho, também ganhamos recursos suficientes para compartilhar com os necessitados, seja diretamente por meio da igreja seja por outros meios. Embora uma teologia do trabalho não seja exatamente o mesmo que uma teologia da caridade, esse versículo explicitamente liga as duas. A mensagem geral é que o propósito do trabalho é fazer o bem, tanto pelo que esse trabalho realiza diretamente quanto por aquilo que ele nos permite dar aos outros fora de seu ambiente.

Mutualidade no trabalho para o Senhor (Ef 5.21—6.9)

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A segunda consideração prática são os relacionamentos. Nosso chamado como cristãos afeta os relacionamentos básicos, especialmente aqueles na família e no trabalho. (Antes da era industrial, os lares eram igualmente local de vida familiar e local de trabalho.) Efésios 5.21—6.9 ressalta esse ponto ao incluir instruções específicas para relacionamentos dentro da família (mulheres/maridos, filhos/pais, escravos/senhores). Listas desse tipo eram comuns no discurso moral do mundo greco-romano e estão representadas no Novo Testamento (veja, por exemplo, Cl 3.18—4.1 e 1Pe 2.13—3.12). [1]

Estamos particularmente interessados ​​em Efésios 6.5-9, uma passagem que aborda o relacionamento entre escravos e senhores. Paulo se dirige aos cristãos que são senhores, aos cristãos que são escravos de senhores cristãos e aos cristãos que são escravos de senhores incrédulos. Este texto é semelhante a uma passagem paralela de Colossenses (Cl 3.22—4.1). (Veja “Colossenses” em “Colossenses, Filemom e o trabalho” para obter o pano de fundo histórico sobre a escravidão no Império Romano do primeiro século, o que é útil para entender esta seção de Efésios.) Para resumir brevemente, a escravidão romana guarda semelhanças e diferenças com o trabalho remunerado no século 21. A principal semelhança é que tanto os escravos antigos quanto os trabalhadores contemporâneos servem sob a autoridade de senhores ou supervisores. No que diz respeito ao trabalho em si, ambos os grupos têm o dever de atender às expectativas daqueles que têm autoridade sobre seu trabalho. A principal diferença é que os escravos antigos (e os dos tempos modernos também) devem não apenas seu trabalho, mas também sua vida a seus senhores. Os escravos não podem pedir demissão, têm direitos legais e recursos limitados para casos de maus-tratos, não recebem salário ou compensação por seu trabalho e não negociam condições de trabalho. Em suma, a margem para o abuso de poder dos senhores sobre os escravos é muito maior do que a dos supervisores sobre os trabalhadores.

Começaremos explorando esta seção de Efésios no que se refere a escravos reais. Em seguida, consideraremos as aplicações à forma de trabalho remunerado que hoje domina as economias desenvolvidas.

Escravos de Cristo (Ef 6.6-8)
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A carta aos Efésios encoraja os escravos a se verem como “escravos de Cristo” que “de boa vontade” servem ao Senhor, em vez de a seus senhores humanos (Ef 6.6-7). O fato de que seu trabalho é para Cristo os encorajará a trabalhar bem e com afinco. As palavras de Paulo são, portanto, um consolo quando os senhores ordenam que os escravos façam boas obras. Nesse caso, Deus recompensará o escravo (Ef 6.8), mesmo que o mestre não o faça, como tipicamente era o caso (Lc 17.8).

Mas por que ser escravo de um senhor terreno necessariamente seria fazer “de coração a vontade de Deus” (Ef 6.6)? Um senhor poderia certamente ordenar a um escravo que fizesse um trabalho que está longe da vontade de Deus, como abusar de outro escravo, enganar um cliente ou invadir os campos de outra pessoa. Paulo esclarece: “Escravos, obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade de coração, como a Cristo” (Ef 6.5). Os escravos só podem fazer por seus senhores o que poderia ser feito para Cristo. Se um senhor ordena que os escravos façam obras más, então as palavras de Paulo são terrivelmente desafiadoras, pois o escravo teria de recusar as ordens do senhor. Isso pode levar a consequências desagradáveis, para dizer o mínimo. No entanto, a ordem de Paulo é inevitável: “Sirvam aos seus senhores de boa vontade, como servindo ao Senhor, e não aos homens” (Ef 6.7). Os mandamentos do Senhor substituem os mandamentos de qualquer mestre. De fato, o que mais poderia significar “sinceridade de coração” senão deixar de lado toda ordem que entre em conflito com o dever para com Cristo? “Ninguém pode servir a dois senhores”, disse Jesus (Mt 6.24). A punição por desobedecer a um mestre terreno pode ser assustadora, mas pode ser necessário sofrê-la para trabalhar “como servindo ao Senhor”.

Mestres cristãos (Ef 6.5-11)
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É cruel para um senhor forçar um escravo a escolher entre a obediência ao senhor e a obediência a Cristo. Portanto, Paulo diz aos senhores que “não [...] ameacem” seus escravos (Ef 6.9). Se os senhores ordenam que os escravos façam um bom trabalho, então as ameaças não devem ser necessárias. Se os senhores ordenam que os escravos façam obras más, então suas ameaças são como ameaças contra Cristo. Como na carta aos Colossenses, Efésios concorda que os mestres devem se lembrar de que têm um Mestre no céu. Mas Efésios ressalta o fato de que tanto escravos quanto senhores “sabem que o Senhor deles e de vocês está nos céus” (Ef 6.9). Por essa razão, Efésios diz que os senhores devem tratar “seus escravos da mesma forma” (Ef 6.9) isto é, dar ordens aos escravos como se estivessem dando ordens a (ou por) Cristo. Com isso em mente, nenhum mestre cristão poderia ordenar a um escravo que fizesse obras más, ou mesmo excessivas. Embora a distinção terrena de senhor e escravo permaneça intacta, seu relacionamento foi alterado com um chamado sem precedentes à reciprocidade. Ambas as partes estão sujeitas somente a Cristo “com sinceridade de coração” (Ef 6.5). Nenhum pode dominar o outro, pois somente Cristo é Senhor (Ef 6.7). Nenhum dos dois pode se esquivar do dever de amor para com o outro. Essa passagem aceita a realidade econômica e cultural da escravidão, mas contém sementes férteis do abolicionismo. No reino de Cristo, “não há [...] escravo nem livre” (Gl 3.28).

A escravidão continua a florescer em nosso mundo hoje, para nossa vergonha, embora seja frequentemente chamada de tráfico humano ou trabalho forçado. A lógica interna de Efésios 6.5-9, bem como a história mais ampla da mesma carta, nos motiva a trabalhar pelo fim da escravidão. A maioria de nós, no entanto, não experimentará a escravidão pessoalmente, seja como escravo seja como senhor. No entanto, de fato nos vemos em relacionamentos no trabalho em que alguém tem autoridade sobre outra pessoa. Por analogia, Efésios 6.5-9 ensina empregadores e funcionários a ordenar, realizar e recompensar apenas o trabalho que poderia ser feito por ou para Cristo. Quando recebemos ordens para fazer um bom trabalho, a questão é simples, embora nem sempre fácil. Fazemos isso da melhor maneira possível, independentemente da remuneração ou da apreciação que recebemos de nossos chefes, clientes, órgãos reguladores ou de qualquer outra pessoa que tenha autoridade sobre nós.

Quando recebemos ordens para realizar más obras, a situação é mais complicada. Por um lado, Paulo diz “obedeçam a seus senhores terrenos [...] como a Cristo”. Não podemos desobedecer levianamente àqueles que têm autoridade terrena sobre nós, assim como não podemos desobedecer a Cristo levianamente. Isso até levou alguns a questionarem se denúncias, paralisações no trabalho e reclamações às autoridades reguladoras são legítimas para funcionários cristãos. No mínimo, uma diferença de opinião ou julgamento não é, por si só, causa boa o suficiente para desobedecer a uma ordem válida em ação. É importante não confundir “não quero fazer esse trabalho e não acho justo que meu chefe me mande fazê-lo” com “é contra a vontade de Deus que eu faça esse trabalho”. A instrução de Paulo a que “obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor” sugere que obedeçamos às ordens daqueles que têm autoridade sobre nós, a menos que tenhamos fortes razões para acreditar que seja errado.

No entanto, Paulo acrescenta que obedecemos aos senhores terrenos como uma maneira de fazer “de coração a vontade de Deus”. Certamente, se recebemos ordens para fazer algo claramente contrário à vontade de Deus — por exemplo, uma violação de mandamentos ou valores bíblicos —, nosso dever para com o Mestre superior (Cristo) é resistir à ordem ímpia de um chefe humano. A distinção crucial geralmente requer descobrir quais interesses seriam atendidos pela desobediência à ordem. Se a desobediência protegeria os interesses de outra pessoa ou da comunidade em geral, haveria fortes razões para desobedecer à ordem. Se desobedecer à ordem protegeria apenas nossos interesses pessoais, o argumento é mais fraco. Em alguns casos, proteger os outros pode até colocar em risco nossa carreira ou custar nosso meio de subsistência. Não é de admirar que Paulo diga “fortaleçam-se no Senhor” e “vistam toda a armadura de Deus” (Ef 6.10,11).

No entanto, certamente expressamos compaixão por aqueles — incluindo talvez por nós mesmos, às vezes — que se veem diante da escolha entre obedecer a uma ordem genuinamente ímpia ou sofrer perdas pessoais, como ser demitido. Isso é especialmente verdadeiro no caso de trabalhadores próximos da base da escala econômica, que podem ter poucas alternativas e nenhum colchão financeiro. Os trabalhadores recebem rotineiramente ordens para praticarem uma variedade de pequenos males, como mentir (“diga a ela que não estou no escritório”), trapacear (“coloque uma garrafa extra de vinho na conta da mesa 16 — eles estão bêbados demais para perceberem”) e idolatria (“espero que você aja como se este trabalho fosse a coisa mais importante do mundo para você”). Temos de renunciar a cada um deles? Em outras ocasiões, os trabalhadores podem ser obrigados a cometer males graves. “Ameace arrastar o nome dela na lama se não concordar com nossos termos.” “Encontre uma desculpa para demiti-lo antes que ele descubra mais registros falsificados de controle de qualidade.” “Jogue no rio esta noite, quando não houver ninguém por perto.” No entanto, a alternativa de perder o emprego e ver nossa família cair na pobreza pode ser — ou parecer — ainda pior do que seguir a ordem ímpia. Muitas vezes, não fica claro quais alternativas estão mais ou menos de acordo com os valores bíblicos. Devemos reconhecer que as decisões podem ser complexas. Quando somos pressionados a fazer algo errado, precisamos depender do poder de Deus para permanecer mais firmes contra o mal do que jamais acreditamos que poderíamos. No entanto, também precisaremos levar a palavra de compaixão e perdão de Cristo quando descobrirmos que os cristãos não podem superar todos os males do trabalho do mundo.

Quando somos nós que detemos autoridade, devemos ordenar apenas o trabalho que Cristo ordenaria. Não ordenamos que os subordinados causem danos a si mesmos ou a outros, a fim de beneficiar-nos. Não ordenamos que outros façam o que, em sã consciência, não faríamos. Não ameaçamos aqueles que recusam nossas ordens por consciência ou justiça. Embora sejamos chefes, temos nossos chefes, e os cristãos em posição de autoridade ainda têm o dever maior de servir a Deus pela maneira como damos ordens aos outros. Somos escravos de Deus e não temos autoridade para ordenar ou obedecer a alguém que se oponha a Cristo. Para cada um de nós, não importa nossa posição no local de trabalho, o trabalho é uma maneira de servir ou deixar de servir a Deus.

Resumo e conclusão de Efésios

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Apenas alguns versículos de Efésios lidam precisamente com o local de trabalho, e mesmo esses são direcionados a ladrões, escravos e senhores. Mas, quando vislumbramos como Deus está restaurando toda a criação por meio de Cristo, e quando descobrimos que o trabalho desempenha um papel essencial nesse plano, ele se torna o contexto principal para realizarmos as boas obras que Deus preparou para nós. Efésios não nos diz especificamente quais boas obras Deus preparou para cada um de nós no trabalho. Devemos procurar outras fontes para discernir isso. Mas nos diz que Deus nos chama para trabalharmos para o bem. Relacionamentos e atitudes no local de trabalho são transformados quando vemos a nós mesmos e a nossos colegas principalmente em termos de nosso relacionamento com Jesus Cristo, o único e verdadeiro Senhor.

Efésios nos encoraja a ter uma nova perspectiva na vida, na qual o trabalho é uma consequência da própria obra de Deus de criar o mundo e redimi-lo do pecado. Trabalhamos em resposta ao chamado de Deus para seguir a Jesus em todos os aspectos de nossa vida (Ef 4.1). No trabalho, descobrimos a oportunidade de fazer muitas das boas obras que Deus deseja que façamos. Assim, no escritório, na fábrica, escola, lar, loja e em todos os outros locais de trabalho, temos a oportunidade de servir “aos [nossos] senhores de boa vontade, como servindo ao Senhor” (Ef 6.7).

Filipenses e o trabalho

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Ponham em ação a salvação de vocês com temor e tremor, pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele. (Fp 2.12b-13)

Introdução a Filipenses

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O trabalho requer esforço. Seja fazendo negócios, dirigindo caminhões, criando filhos, escrevendo artigos, vendendo sapatos seja cuidando de deficientes e idosos, o trabalho exige esforço pessoal. Se não nos levantarmos de manhã e começarmos a trabalhar, o trabalho não será concluído. O que nos motiva a sair da cama todas as manhãs? O que nos mantém em movimento ao longo do dia? O que nos dá energia para realizar o trabalho com fidelidade e até com excelência?

Há uma grande variedade de respostas para essas perguntas. Alguns podem apontar para a necessidade econômica. “Eu me levanto e vou trabalhar porque preciso do dinheiro.” Outras respostas podem apontar para nosso interesse no trabalho. “Eu trabalho porque amo o que faço.” Ainda outras respostas podem ser menos inspiradoras. “O que me faz acordar e me faz continuar o dia todo? Cafeína!”

A carta de Paulo aos cristãos em Filipos fornece um tipo diferente de resposta à pergunta sobre onde encontramos forças para o trabalho. Paulo diz que ele não é o resultado de nosso próprio esforço, mas que a obra de Deus em nós é o que nos dá energia. O que fazemos na vida, inclusive no trabalho, é uma expressão da obra salvífica de Deus em Cristo. Além disso, encontramos a força para esse esforço pelo poder de Deus dentro de nós. A obra de Cristo é servir às pessoas (Mc 10.35), e Deus nos capacita a servir ao lado dele.

Quase todos os estudiosos concordam que o apóstolo Paulo escreveu a carta que conhecemos como Filipenses em algum momento entre 54 e 62 d.C. [1] Não há unanimidade sobre o lugar de onde Paulo a escreveu, embora saibamos que foi escrita durante uma de suas várias prisões (Fp 1.7). [2] Está claro que Paulo escreveu esta carta pessoal à igreja em Filipos, uma comunidade que ele plantou durante uma visita anterior (Fp 1.5; At 16.11-40). Ele escreveu para fortalecer seu relacionamento com a igreja de Filipos, atualizá-los sobre sua situação pessoal, agradecer-lhes por seu apoio ao seu ministério, equipá-los para enfrentar ameaças à sua fé, ajudá-los a se dar melhor e, em geral, para ajudá-los a viver sua fé.

Filipenses usa a palavra trabalhar (ergon e cognatos) várias vezes (Fp 1.6; 2.12-13, 30; 4.3). Paulo a usa para descrever a obra de salvação de Deus e as tarefas humanas que fluem da obra salvífica de Deus. Ele não aborda diretamente questões do ambiente de trabalho secular, mas o que ele diz sobre o trabalho tem aplicações importantes.

Aquele que começou boa obra em vocês vai completá-la (Fp 1.1-26)

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No contexto de sua oração de abertura pelos filipenses (Fp 1.3-11), Paulo compartilha sua convicção da obra de Deus nos crentes filipenses e entre eles. “Estou convencido de que aquele que começou boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus.” (Fp 1.6 ). A “obra” a que Paulo se refere é a do novo nascimento em Cristo, que leva à salvação. O próprio Paulo participou dela, pregando-lhes o evangelho. Ele continua esse trabalho como mestre e apóstolo, e diz: “Terei fruto do meu trabalho” (Fp 1.22 ). No entanto, o trabalhador subjacente não é Paulo, mas Deus, pois Deus é “aquele que começou boa obra em vocês” (Fp 1.6). “Isso [vem] da parte de Deus.” (Fp 1.28)

As versões em português usam o termo “em vocês” ou “em vós”. Contudo, uma tradução possível é “entre vocês”. Ambos são apropriados, e a expressão grega en humin pode ser traduzida de ambas as formas. A boa obra de Deus começa em vidas individuais. No entanto, é para ser vivida entre crentes em comunhão. O ponto principal do versículo 6 não é restringir a obra de Deus a indivíduos ou à comunidade como um todo, mas enfatizar o fato de que toda sua obra é obra de Deus. Além disso, esse trabalho não é concluído quando indivíduos “são salvos” ou quando igrejas são plantadas. Deus continua trabalhando em nós e entre nós até que sua obra esteja completa, o que acontece “até o dia de Cristo Jesus”. A obra de Deus só estará terminada quando Cristo voltar.

O trabalho de Paulo é o de evangelista e apóstolo, e há marcas de sucesso e ambição em sua profissão, como em qualquer outra. Quantos convertidos você conquista, quantos recursos você arrecada, quantas pessoas o elogiam como seu mentor espiritual, como seus números se comparam aos de outros evangelistas — todos podem ser pontos de orgulho e ambição. Paulo admite que essas motivações existem em sua profissão, mas insiste que a única motivação adequada é o amor (Fp 1.15-16). A implicação é que isso também é verdade em todas as outras profissões. Todos somos tentados a trabalhar pelas marcas do sucesso — incluindo reconhecimento, segurança e dinheiro —, o que pode levar à “ambição egoísta ” (eritieias, talvez traduzida mais precisamente como “autopromoção injusta”). [1] Elas não são totalmente ruins, pois geralmente ocorrem quando realizamos os propósitos legítimos do trabalho (Fp 1.18). Concluir o trabalho é importante, mesmo que nossa motivação não seja perfeita. No entanto, a longo prazo (Fp 3.7-14), a motivação é ainda mais importante, e a única motivação semelhante à de Cristo é o amor.

Faça seu trabalho de maneira digna (Fp 1.27—2.11)

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Visto que o trabalho é, na verdade, a obra de Deus em nós, ele deve ser digno, assim como a obra de Deus é. Mas, aparentemente, temos a capacidade de impedir a obra de Deus em nós, pois Paulo exorta: “Exerçam a sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo” (Fp 1.27). Seu tópico é a vida em geral, e não há razão para acreditar que ele pretenda excluir o trabalho dessa exortação. Ele dá três ordens específicas:

  1. “[Tenham] o mesmo modo de pensar.” (Fp 2.2)
  2. “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a vocês mesmos.” (Fp 2.3)
  3. “Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros.” (Fp 2.4)

Novamente, podemos trabalhar de acordo com esses mandamentos apenas porque o trabalho é realmente a obra de Deus em nós, mas desta vez ele diz isso em uma bela passagem, muitas vezes chamada de “Hino de Cristo” (Fp 2.6-11). Jesus, diz ele, “embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fp 2.6-8). Portanto, a obra de Deus em nós, especificamente a obra de Cristo em nós, é sempre feita humildemente com os outros, para o benefício dos outros, mesmo que exija sacrifícios.

“[Tenham] o mesmo modo de pensar” (Fp 2.2)

O primeiro dos três mandamentos, “[tenham] o mesmo modo de pensar”, é dado aos cristãos como corpo. Não devemos esperar que isso se aplique ao trabalho secular. Na verdade, nem sempre queremos ter a mesma mente que os demais no trabalho (Rm 12.2). Mas, em muitos locais de trabalho, há mais de um cristão. Devemos nos esforçar para ter a mesma mente dos outros cristãos onde trabalhamos. Infelizmente, isso pode ser muito difícil. Na igreja, nos segregamos em comunidades em que geralmente concordamos sobre questões bíblicas, teológicas, morais, espirituais e até culturais. No trabalho, não temos esse luxo. Podemos compartilhar o local de trabalho com outros cristãos dos quais discordamos sobre esses assuntos. Pode até ser difícil reconhecer como cristãos — conforme julgamento — outros que afirmam ser cristãos.

Esse é um impedimento escandaloso tanto para nosso testemunho como cristãos quanto para nossa eficácia como colaboradores. O que os colegas não-cristãos pensarão de nosso Senhor — e de nós — se mantivermos relacionamentos piores entre nós do que com os descrentes? No mínimo, devemos tentar identificar outros cristãos no trabalho e aprender sobre suas crenças e práticas. Podemos não concordar, mesmo sobre assuntos de grande importância, mas é um testemunho muito melhor mostrar respeito mútuo do que tratar outros que se dizem cristãos com desprezo ou contendas. Ao menos devemos deixar de lado nossas diferenças o suficiente para fazer um excelente trabalho juntos, se realmente acreditarmos que nosso trabalho importa de fato para Deus.

Ter o mesmo modo de pensar significa ter “o mesmo amor” que Cristo (Fp 2.2). Cristo nos amou até a morte (Fp 2.8), e devemos ter o mesmo amor (Fp 2.5). Isso nos dá algo em comum não apenas com outros crentes, mas também com os descrentes no trabalho: nós os amamos! Todos no trabalho podem concordar conosco que devemos fazer um trabalho que os beneficie. Se um cristão disser “meu trabalho é servi-lo”, quem discordaria disso?

“Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade” (Fp 2.3)

Considerar os outros melhores do que nós mesmos é a mentalidade daqueles que têm o mesmo modo de pensar de Cristo (Fp 2.3). Nossa humildade deve ser oferecida a todas as pessoas ao redor, e não apenas aos cristãos. Pois a morte de Jesus na cruz — o derradeiro ato de humildade — foi pelos pecadores e não pelos justos (Lc 5.32; Rm 5.8; 1Tm 1.15).

Os locais de trabalho oferecem oportunidades ilimitadas para um serviço humilde. Você pode ser generoso ao dar crédito aos outros pelo sucesso e mesquinho ao distribuir a culpa pelo fracasso. Você pode ouvir o que outra pessoa está dizendo, em vez de pensar na resposta. Você pode experimentar a ideia de outra pessoa, em vez de insistir no seu modo de agir. Você pode desistir de sua inveja pelo sucesso, pela promoção ou pelo salário mais alto de outra pessoa ou, na falta disso, pode levar sua inveja a Deus em oração, em vez de a seus amigos no almoço.

Em contrapartida, o local de trabalho oferece oportunidades ilimitadas para ambição egoísta. Como vimos, a ambição e até mesmo a competição não são necessariamente ruins (Rm 15.20; 1Co 9.24; 1Tm 2.5), mas promover injustamente as próprias motivações é. Ela o força a adotar uma avaliação imprecisa e inflada de si mesmo (“vaidade”), o que o coloca em uma terra de fantasia cada vez mais remota, na qual você não pode ser eficaz nem no trabalho nem na fé. Existem dois antídotos. Primeiro, certifique-se de que seu sucesso dependa do sucesso dos outros e contribua para ele. Isso geralmente significa trabalhar genuinamente em equipe. Em segundo lugar, busque continuamente feedback preciso sobre você e seu desempenho. Você pode achar que seu desempenho é realmente excelente, mas, se aprender isso com fontes precisas, não é vaidade. O simples ato de aceitar o feedback dos outros é uma forma de humildade, já que você subordina sua autoimagem à imagem que eles têm de você. É desnecessário dizer que isso só é útil se você encontrar fontes precisas de feedback. Submeter sua autoimagem a pessoas que abusariam de você ou o enganariam não é a verdadeira humildade. Mesmo quando submeteu seu corpo a abusos na cruz, Jesus manteve uma avaliação precisa de si mesmo (Lc 23.43).

“Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros” (Fp 2.4)

Dos três imperativos, esse pode ser o mais difícil de conciliar com nossos papéis no local de trabalho. Vamos trabalhar pelo menos em parte para atender a nossas necessidades. Como, então, pode fazer sentido evitar olhar para nossos próprios interesses? Paulo não diz. Mas devemos lembrar que ele está falando a uma comunidade de pessoas, a quem diz: “Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros” (Fp 2.4). Talvez ele espere que, se todos olharem não para suas necessidades individuais, mas para as de toda a comunidade, as necessidades de todos serão atendidas. Isso é consistente com a analogia do corpo que Paulo usa em 1Coríntios 12 e em outros lugares. O olho não supre sua necessidade de transporte, mas depende do pé para isso. Assim, cada órgão age para o bem do corpo, mas encontra as próprias necessidades atendidas.

Em circunstâncias ideais, isso pode funcionar para um grupo muito unido, talvez uma igreja com membros de igual e elevado compromisso. Mas isso deve ser aplicado ao local de trabalho fora da igreja? Será que Paulo quer nos dizer que devemos olhar para os interesses dos colegas de trabalho, clientes, chefes, subordinados, fornecedores e uma infinidade de outras pessoas ao redor, em vez de para nossos próprios interesses? Mais uma vez, devemos nos voltar para Filipenses 2.8, em que Paulo descreve Jesus na cruz como nosso modelo, olhando para os interesses dos pecadores, e não para os dele. Ele viveu esse princípio no mundo em geral, não na igreja, e nós também devemos viver. E Paulo deixa claro que as consequências para nós incluem sofrimento e perda, talvez até a morte. “Mas o que para mim era lucro passei a considerar como perda, por causa de Cristo.” (Fp 3.7) Não há uma leitura natural de Filipenses 2 que nos liberte de olhar para os interesses dos outros no trabalho em vez dos nossos.

Uma maneira de olhar para os interesses dos outros no trabalho é prestar atenção em como o preconceito racial e étnico afeta as pessoas. A rev. dra. Gina Casey, capelã da equipe da St Joseph Health, em Santa Rosa, Califórnia, diz: “É hora de os crentes buscarem intencionalmente instruir-se sobre a existência do racismo no local de trabalho e reconhecê-la. Os cristãos também devem se esforçar para entender e observar o peso que essas questões trazem para o bem-estar financeiro, social e emocional de seus colegas de trabalho e funcionários negros. É uma obrigação moral para as pessoas de fé buscarem aprender mais sobre preconceitos raciais implícitos e microagressões no local de trabalho e, então, se envolverem continuamente na disciplina do autoexame para descobrir áreas que precisem de alteração e cura de comportamento pessoal”. [1]

Três exemplos de como seguir a Cristo como cristãos comuns (Fp 2.19—3.21)

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Na verdade, Filipenses nos dá três exemplos, Paulo, Epafrodito e Timóteo, para nos mostrar como todos os cristãos devem seguir o modelo de Cristo. “Irmãos, sigam unidos o meu exemplo e observem os que vivem de acordo com o padrão que apresentamos a vocês”, Paulo nos diz (Fp 3.17). Ele descreve cada um desses exemplos em uma estrutura baseada no “Hino de Jesus”, no capítulo 2.

Pessoa

Enviado para um lugar difícil

Em obediência / escravidão

Correndo sérios riscos

Em benefício dos outros

Jesus

Encontrado em forma humana (2.8)

Assumindo a forma de escravo (2.7)

Obediente até a morte (2.8)

Esvaziou-se (2.7)

Paulo

Vivendo no corpo (1.22)

Servo de Jesus Cristo (1.1)

Aprisionamento (1.7) Tornar-se semelhante a Cristo na morte (3.10)

Para o seu progresso e alegria (1.25)

Timóteo

Enviar Timóteo brevemente (2.19)

Como um filho ao lado de seu pai (2.22)

(Não especificado em Filipenses, mas veja Rm 6.21)

Interesse sincero pelo seu bem-estar (2.20)

Epafrodito

Enviar Epafrodito (2.25)

Seu mensageiro (2.25)

Quase morreu (2.30)

Para atender às minhas necessidades (2.25)

A mensagem é clara. Somos chamados a fazer como Jesus fez. Não podemos nos esconder atrás da desculpa de que Jesus é o único Filho de Deus, que serve aos outros para que não precisemos fazê-lo. Tampouco Paulo, Epafrodito e Timóteo são super-homens, cujas façanhas não podemos esperar duplicar. Em vez disso, ao trabalharmos, devemos nos colocar na mesma estrutura de envio, obediência, risco e serviço aos outros:

Pessoa

Enviado para um lugar difícil

Em obediência / escravidão

Correndo sérios riscos

Em benefício dos outros

Cristãos no local de trabalho

Vá a locais de trabalho não cristãos

Trabalhar sob a autoridade de outros

Arriscar a limitação da carreira por nossa motivação de amar como Cristo ama

São chamados por Deus para colocar os interesses dos outros à frente dos nossos

Temos permissão de temperar o mandamento de servir aos outros em vez de nós mesmos com um pouco de bom senso? Poderíamos, digamos, olhar primeiro para os interesses de outras pessoas em quem podemos confiar? Poderíamos olhar para os interesses dos outros além de aos nossos próprios interesses? Não há problema em trabalhar pelo bem comum em situações em que podemos esperar benefícios proporcionais, mas cuidar de nós mesmos quando o sistema estiver contra nós? Paulo não diz.

O que devemos fazer se nos descobrirmos incapazes ou desinteressados de viver com tanta ousadia? Paulo diz apenas isso: “Não andem ansiosos por coisa alguma, mas em tudo, pela oração e súplicas, e com ação de graças, apresentem seus pedidos a Deus” (Fp 4.6). Somente por meio de oração constante, súplica e ação de graças a Deus podemos superar as decisões difíceis e as ações exigentes necessárias para olhar para os interesses dos outros, e não para os nossos. Isso não é teologia abstrata, mas um conselho prático para a vida e o trabalho diários.

Aplicações diárias (Fp 4.1-23)

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Paulo descreve três situações cotidianas que têm relevância direta para o local de trabalho.

Resolver conflitos (Fp 4.2-9)

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Paulo pede aos filipenses que ajudem duas mulheres entre eles, Evódia e Síntique, a fazerem as pazes (Fp 4.2-9). Embora nosso reflexo instintivo seja suprimir e negar o conflito, Paulo amorosamente o traz à tona, onde pode ser resolvido. O conflito das mulheres não é especificado, mas ambas são crentes que Paulo diz que “lutaram ao meu lado na causa do evangelho” (Fp 4.3). O conflito ocorre mesmo entre os cristãos mais fiéis, como todos sabemos. Parem de nutrir ressentimento, ele lhes diz, e pensem no que é verdadeiro, nobre, correto, puro, amável e de boa fama na outra pessoa (Fp 4.8). “A paz de Deus, que excede todo o entendimento” (Fp 4.7) parece começar com a apreciação dos pontos positivos daqueles ao redor, mesmo (ou especialmente) quando estamos em conflito com eles. Afinal, são pessoas pelas quais Cristo morreu. Também devemos olhar cuidadosamente para nós mesmos e encontrar as reservas de Deus de bondade, oração, súplica, ação de graças e abandonarmos as preocupações (Fp 4.6).

A aplicação ao local de trabalho de hoje é clara, embora raramente seja fácil. Quando nosso desejo é ignorar e ocultar o conflito com os outros no trabalho, devemos reconhecer e falar (não fofocar) sobre isso. Quando preferimos guardar para nós mesmos, devemos pedir ajuda a pessoas sábias com humildade, e não na esperança de ganhar vantagem. Quando preferimos construir um caso contra nossos rivais, devemos, em vez disso, construir um caso para eles, pelo menos fazendo-lhes a justiça de reconhecer quaisquer que sejam seus pontos positivos. E, quando pensamos que não temos energia para nos envolver com o outro e preferimos simplesmente descartar o relacionamento, devemos deixar que o poder e a paciência de Deus substituam os nossos. Nisso, procuramos imitar nosso Senhor, que “esvaziou-se a si mesmo” (Fp 2.7) de agendas pessoais e, assim, recebeu o poder de Deus (Fp 2.9) para viver a vontade de Deus no mundo. Se fizermos essas coisas, nosso conflito poderá ser resolvido observando os verdadeiros problemas, em vez de nossas projeções, medos e ressentimentos. Geralmente, isso leva à restauração de um relacionamento de trabalho e a uma espécie de respeito mútuo, se não amizade. Mesmo nos casos incomuns em que nenhuma reconciliação é possível, podemos esperar uma surpreendente “paz de Deus, que excede todo o entendimento” (Fp 4.7). É um sinal de Deus que mesmo um relacionamento rompido não está além da esperança da bondade de Deus.

Apoiar uns aos outros no trabalho (Fp 4.10-11,15-16)

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Paulo agradece aos filipenses por seu apoio, tanto pessoal (Fp 1.30) quanto financeiro (Fp 4.10-11,15-16). Em todo o Novo Testamento, vemos Paulo sempre se esforçando para trabalhar em parceria com outros cristãos, incluindo Barnabé (At 13.2), Silas (At 15.40), Lídia (At 16.14-15) e Priscila e Áquila (Rm 16.3). Suas cartas geralmente terminam com saudações às pessoas com quem ele trabalhou de perto, e muitas vezes as cartas são de Paulo e de um colega de trabalho, como Filipenses é de Paulo e Timóteo (Fp 1.1). Nisso, ele está seguindo seu próprio conselho de imitar Jesus, que fez quase tudo em parceria com seus discípulos e outros.

Como observamos em Filipenses 2, os cristãos no trabalho secular nem sempre podem se dar o luxo de trabalhar ao lado de crentes. Mas isso não significa que não podemos apoiar uns aos outros. Poderíamos nos reunir com outras pessoas em nossa profissão ou em instituições para apoio mútuo em desafios e oportunidades específicos. O programa “Mom-to-Mom” [1] é um exemplo prático de apoio mútuo no local de trabalho. As mães se reúnem semanalmente para aprender, compartilhar ideias e apoiar umas às outras no trabalho de criar filhos pequenos. Idealmente, todos os cristãos teriam esse tipo de apoio para seu trabalho. Na ausência de um programa formal, poderíamos conversar sobre o trabalho em nossa comunidade cristã habitual, incluindo adoração e sermões, estudos bíblicos, pequenos grupos, retiros na igreja, aulas e outras atividades. Mas com que frequência o fazemos? Paulo fez um grande esforço para construir uma comunidade em seu chamado, até mesmo empregando mensageiros para fazer longas viagens marítimas (Fp 2.19, 25) para compartilhar ideias, notícias, companheirismo e recursos.

Lidar com a pobreza e a fartura (Fp 4.12-13,18)

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Por fim, Paulo discute como lidar com a pobreza e a abundância. Isso tem relevância direta no trabalho, porque ele faz a diferença entre pobreza e fartura para nós, ou pelo menos para aqueles de nós que são pagos por ele. Novamente, o conselho de Paulo é simples, mas difícil de seguir. Não idolatre seu trabalho na expectativa de que ele sempre lhe fornecerá o suficiente. Em vez disso, realize-o pelo benefício que ele traz para os outros e aprenda a se contentar com o que ele lhe oferece. Conselho difícil, de fato. Aqueles que exercem certas profissões — professores, profissionais de saúde, profissionais de atendimento ao cliente e pais, para citar alguns — podem estar acostumados a trabalhar mais sem remuneração extra para ajudar pessoas necessitadas. Outros esperam ser amplamente recompensados pelo serviço que prestam. Imagine um executivo sênior ou um banqueiro de investimentos trabalhando sem um contrato ou meta de bônus dizendo:

“Cuido dos clientes, funcionários e acionistas, e fico feliz em receber o que eles escolherem me dar no final do ano.” Não é comum, mas algumas pessoas fazem isso. Paulo diz simplesmente o seguinte:

Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece. [...] Recebi tudo, e o que tenho é mais que suficiente. Estou amplamente suprido [...]. (Fp 4.12-13,18)

A questão não é quanto ou quão pouco nos é pago — dentro do razoável —, mas se somos motivados pelo benefício que o trabalho traz para os outros ou apenas por interesse próprio. No entanto, essa motivação em si deve nos levar a resistir a instituições, práticas e sistemas que resultem em extremos de muita fartura ou muita pobreza.

Conclusão de Filipenses

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Embora Paulo não trate do local de trabalho distintamente em Filipenses, sua visão da obra de Deus em nós estabelece um fundamento para nossas considerações sobre fé e trabalho. Este fornece um contexto importante no qual devemos viver a boa obra que Deus começou em nós. Devemos buscar a mesma mente que outros cristãos onde vivemos e trabalhamos. Devemos agir como se os outros fossem melhores que nós mesmos. Devemos olhar para os interesses dos outros, em vez dos nossos. Sem abordar diretamente o trabalho, Paulo parece exigir o impossível de nós no trabalho! Mas o que fazemos lá não é apenas nosso esforço — é a obra de Deus em nós e por meio de nós. Como o poder de Deus é ilimitado, Paulo pode dizer com ousadia: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fp 4.13).

Versículos e temas-chave em Gálatas, Efésios e Filipenses

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Versículo

Tema

Gálatas 2.20 Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim.

Vivendo em Cristo pela fé.

Gálatas 5.1 Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão.

Liberdade em Cristo, não escravidão.

Gálatas 5.6 Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo amor.

A fé que atua pelo amor.

Gálatas 5.13 Irmãos, vocês foram chamados para a liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à vontade da carne; ao contrário, sirvam uns aos outros mediante o amor.

Liberdade para nos tornarmos “escravos” por meio do amor.

Gálatas 5.16 Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne.

Viva pelo Espírito, não pela carne.

Gálatas 5.22-23a Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio.

O fruto do Espírito.

Gálatas 6.10 Portanto, enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé.

Trabalhando para o bem de todos e da família da fé.

Efésios 1.9-10 [Deus] nos revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos.

Tudo — incluindo o trabalho na terra — faz parte do plano de Deus.

Efésios 2.8-10 Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes para nós as praticarmos.

Embora sua salvação venha apenas pela graça, por meio da fé, você foi criado em Cristo Jesus para fazer boas obras.

Efésios 4.28 O que furtava não furte mais; antes trabalhe, fazendo algo de útil com as mãos, para que tenha o que repartir com quem estiver em necessidade.

Trabalhe duro para poder compartilhar com os necessitados.

Efésios 6.5-8 Escravos, obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade de coração, como a Cristo. Obedeçam-lhes, não apenas para agradá-los quando eles os observam, mas como escravos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus. Sirvam aos seus senhores de boa vontade, como servindo ao Senhor, e não aos homens, porque vocês sabem que o Senhor recompensará cada um pelo bem que praticar, seja escravo, seja livre.

Se lhe for ordenado fazer um bom trabalho, trabalhe avidamente como se fosse para o Senhor. Se lhe for ordenado fazer obras más, recuse, pois obras más não podem ser feitas “ao Senhor”.

Efésios 6.9 Vocês, senhores, tratem seus escravos da mesma forma. Não os ameacem, uma vez que vocês sabem que o Senhor deles e de vocês está nos céus, e ele não faz diferença entre as pessoas.

Se você estiver em uma posição de autoridade, não dê ordens a seus subordinados que contrariem os mandamentos de Deus.

Filipenses 1.6 Estou convencido de que aquele que começou boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus.

Deus completará a obra que começou em nós.

Filipenses 2.2 Completem a minha alegria, tendo o mesmo modo de pensar, o mesmo amor, um só espírito e uma só atitude.

Os cristãos não devem permitir que as divisões os impeçam de testemunhar e trabalhar de forma eficaz no mundo.

Filipenses 2.3 Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a vocês mesmos.

Aproveite as oportunidades ilimitadas no trabalho para tratar os outros como mais sábios, mais inteligentes ou melhores do que você.

Filipenses 2.4 Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros.

Devemos atender às necessidades da comunidade ao redor, e não às nossas. Se os outros fizerem o mesmo, nossas necessidades serão atendidas, embora não haja garantia de que eles o farão.

Filipenses 4.12-13, 18 Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece. [...] Recebi tudo, e o que tenho é mais que suficiente. Estou amplamente suprido.

A maneira de se libertar da idolatria das recompensas que buscamos no trabalho (dinheiro, poder, status etc.).

Introdução a Colossenses e Filemom

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Tudo o que fizerem, seja em palavra, seja em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai. [...] Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens, sabendo que receberão do Senhor a recompensa da herança. É a Cristo, o Senhor, que vocês estão servindo. (Cl 3.17,23-24)

Por que o apóstolo Paulo [1] insistiria em que os cristãos de Colossos vivessem sob uma ordem tão abrangente de controlar cada palavra e ação? Nessas duas cartas breves, mas ricas, Paulo explora em detalhes tanto a lógica teológica por trás desses dois mandamentos sobrepostos quanto as implicações desse estilo de vida em todos os relacionamentos primários da vida — com o cônjuge e família, e com os colegas, funcionários ou amigos ou chefes no local de trabalho.

Contexto de Colossos e colossenses

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História da cidade de Colossos

As cidades crescem à medida que desenvolvem centros comerciais que oferecem empregos para os moradores. A antiga cidade de Colossos foi construída em uma importante rota comercial que atravessava o vale do rio Lico, na província romana da Ásia Menor (no canto sudoeste da atual Turquia). Lá, os colossenses fabricavam um belo tecido de lã vermelho-escuro (colossinum) pelo qual a cidade ficou famosa. Mas a importância de Colossos como centro de negócios diminuiu significativamente por volta de 100 a.C., quando a cidade vizinha de Laodicéia foi fundada como uma concorrente ativa e comercialmente agressiva. As duas cidades, junto com a vizinha Hierápolis, foram destruídas por terremotos em 17 d.C. (no reinado de Tibério) e novamente em 60 (no reinado de Nero). Reconstruída após cada terremoto, Colossos nunca recuperou sua proeminência inicial e, em 400, a cidade já não existia.

História da igreja colossense

O apóstolo Paulo passou dois anos plantando uma igreja em Éfeso e, em Atos 19.10, aprendemos que, irradiando desse centro, “todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor”. Quer o próprio Paulo tenha se espalhado na atividade missionária por toda a província quer alguns de seus convertidos o tenham feito, uma igreja foi plantada em Colossos. É provável que Epafras tenha fundado a igreja colossense (Cl 1.7), e a partir de 1.21 presumimos que a igreja era composta principalmente de gentios.

Filemom era cidadão de Colossos e um líder justo naquela igreja. Ele também era um proprietário de escravos. Onésimo, seu escravo, havia escapado e, mais tarde, encontrara o apóstolo Paulo e respondera à mensagem do evangelho sobre Jesus. Na carta aos colossenses, Paulo nos mostra como o relacionamento com Deus por meio de Jesus Cristo nos afeta no local de trabalho. Especificamente, ele escreve sobre como os escravos devem fazer o trabalho para seus senhores e como os senhores devem tratar seus escravos. A curta carta pessoal a Filemom amplia nossa compreensão da ordem de Paulo em Colossenses 4.1.

Qual era o propósito das cartas de Paulo aos colossenses e a Filemom?

Acredita-se que as cartas aos colossenses e a Filemom tenham sido escritas da prisão, por volta de 60 a 62. Naquela época, Nero era o imperador cruel e insano do Império Romano, que podia ignorar as reivindicações de cidadania romana de Paulo.

Da prisão, Paulo ouvira dizer que os cristãos colossenses, que antes haviam sido fortes na fé, agora estavam vulneráveis ​​às mentiras sobre a fé (2.4, 8, 16, 18, 21-23). Ele escreveu para refutar cada um dos erros teológicos que os colossenses foram tentados a abraçar. As cartas, no entanto, levam os leitores muito além dessas questões de engano. Paulo se importava profundamente com o fato de que todos os seus leitores (hoje, assim como os colossenses, há dois mil anos) entendessem o contexto de sua vida dentro da história de Deus e como isso guarda semelhança com seus relacionamentos no trabalho.

Deus trabalhou na criação, tornando os seres humanos trabalhadores à sua imagem (Cl 1.1-14)

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Em Colossenses 1.6, por alusão, Paulo nos leva de volta a Gênesis 1.26-28.

Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão”. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”.

Aqui está Deus, o Criador, em ação, e o ápice de sua atividade é a criação da humanidade à imagem e semelhança divinas. Ao homem e à mulher recém-formados, ele dá duas tarefas (as tarefas são dadas tanto para o homem quanto para a mulher): devem ser frutíferos e se multiplicar, enchendo a terra, que devem subjugar ou governar. Paulo pega a linguagem de Gênesis 1 em Colossenses 1.6, dando graças a Deus pelo fato de o evangelho estar progredindo no meio deles, “frutificando e crescendo”, à medida que se espalha pelo mundo inteiro. Ele então repete isso em 1.10 — os colossenses devem dar frutos e crescer na compreensão de Deus e no trabalho, em seu nome. Quer as tarefas sejam o trabalho de ser pais, o trabalho multifacetado de subjugar a terra e governá-la, quer o trabalho do ministério, eles e nós somos, no trabalho, portadores da imagem do Deus que trabalha. Fomos criados como obreiros no princípio, e Cristo nos redime como obreiros.

Deus em ação, Jesus em ação (Cl 1.15-20)

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A primeira metade da carta de Paulo aos colossenses pode ser resumida em oito palavras:

Jesus fez tudo isso.

Então Jesus pagou tudo.

Jesus fez tudo

A carta de Colossenses assume que o leitor está familiarizado com as primeiras linhas do primeiro livro da Bíblia: “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). O segundo capítulo de Gênesis, então, afirma que “no sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou” (Gn 2.2). A criação de tudo o que existe foi trabalho, mesmo para Deus. Paulo nos diz que Cristo estava presente na criação e que a obra de Deus na criação é a obra de Cristo:

Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criação, pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos sejam soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste. (Cl 1.15-17)

Em outras palavras, Paulo atribui toda a criação a Jesus, um tema também desenvolvido no Evangelho de João (1.1-4).

Jesus pagou tudo

Paulo, então, deixa claro para seus leitores que Jesus não foi apenas o agente criador de tudo o que existe, mas ele também é o agente de nossa salvação:

Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz. (Cl 1.19-20)

Paulo coloca a obra de Cristo na criação lado a lado com sua obra na redenção, com temas de criação dominando a primeira parte da passagem (Cl 1.15-17) e temas de redenção dominando a segunda metade (Cl 1.18-20). O paralelismo é especialmente impressionante entre 1.16, “pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra”, e 1.20, “e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz”. O padrão é fácil de ver: Deus criou todas as coisas por meio de Cristo, e ele está reconciliando essas mesmas coisas consigo mesmo por meio de Cristo. James Dunn escreve:

O que se alega é, de maneira bastante simples e profunda, que o propósito divino no ato de reconciliação e pacificação era restaurar a harmonia da criação original [...] resolvendo as desarmonias da natureza e as desumanidades da humanidade, [de modo] que o caráter da criação de Deus e a preocupação de Deus pelo universo em sua expressão mais plena pudessem ser capturados e encapsulados para eles na cruz de Cristo. [1]

Em suma, Jesus fez tudo e, em seguida, Jesus pagou tudo para que possamos ter um relacionamento com o Deus vivo.

Jesus, a imagem do Deus invisível (Cl 1.15-29)

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Que diferença faz sermos portadores da imagem divina no trabalho? Uma implicação disso é que refletiremos lá os padrões e os valores da obra de Deus. Mas como conhecer a Deus para saber que padrões e valores são esses? Em Colossenses 1.15, Paulo nos lembra que Jesus Cristo é “a imagem do Deus invisível”. Novamente: “Pois em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). É “na face de Jesus Cristo” que podemos conhecer a Deus (2Co 4.6). Durante o ministério terreno de Jesus, Filipe lhe perguntou: “Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”. Jesus respondeu: “Você não me conhece, Filipe, mesmo depois de eu ter estado com vocês durante tanto tempo? Quem me vê, vê o Pai. Como você pode dizer: ‘Mostra-nos o Pai’?” (Jo 14.8-9).

Jesus nos revela Deus. Ele nos mostra como nós, como portadores da imagem de Deus, devemos realizar o trabalho. Se precisamos de ajuda para entender isso, Paulo explica: primeiro, ele descreve o poder infinito de Jesus na criação (Cl 1.15-17), imediatamente após, vincula isso à disposição de Jesus de deixar esse poder de lado para encarnar Deus na terra em palavras e ações, e então morrer por nossos pecados. (Paulo diz isso diretamente em Filipenses 2.5-9.) Olhamos para Jesus. Ouvimos Jesus para entender como somos chamados a ser a imagem de Deus no trabalho.

Como, então, os padrões e valores de Deus podem ser aplicados no trabalho? Começamos olhando especificamente para a obra de Jesus como nosso exemplo.

Perdão

Primeiro, vemos que Deus “nos resgatou do domínio das trevas e nos transportou para o reino do seu Filho amado” (Cl 1.13). Porque Jesus o fez, Paulo pode apelar para que “suportem-se uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o Senhor lhes perdoou” (Cl 3.13). Foi com base nisso que Paulo pôde pedir a Filemom, o senhor de escravos, que perdoasse e recebesse Onésimo como irmão, não mais como escravo. Estamos fazendo nosso trabalho em nome do Senhor Jesus quando trazemos essa atitude para nossos relacionamentos no local de trabalho: fazemos concessões pelas faltas dos outros e perdoamos aqueles que nos ofendem.

Autossacrifício em benefício dos outros

Em segundo lugar, vemos Jesus com poder infinito criando “todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, poderes ou autoridades” (Cl 1.16). No entanto, também o vemos deixar de lado esse poder por nós, “e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz” (Cl 1.20), para que possamos ter um relacionamento com Deus. Há momentos em que podemos ser chamados a deixar de lado a autoridade ou o poder que temos no local de trabalho para beneficiar alguém que pode não ser merecedor. Se Filemom está disposto a deixar de lado sua autoridade de proprietário de escravos sobre Onésimo (que não merece sua misericórdia) e aceitá-lo de volta em um novo relacionamento, então Filemom imagina o Deus invisível em seu local de trabalho.

Liberdade de acomodação cultural

Terceiro, vemos Jesus viver a nova realidade que ele nos oferece: “Portanto, já que vocês ressuscitaram com Cristo, procurem as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus. Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus” (Cl 3.1-3). Não estamos mais presos a costumes culturais que contrastam com a vida de Deus dentro de nós. Estamos no mundo, mas não somos do mundo. Podemos marchar com um ritmo diferente. A cultura do local de trabalho pode trabalhar contra nossa vida em Cristo, mas Jesus nos chama a colocar o coração e a mente no que Deus deseja para nós e em nós. Isso exige uma grande reorientação de atitudes e valores.

Paulo chamou Filemom para essa reorientação. A cultura romana do primeiro século deu aos proprietários de escravos poder completo sobre o corpo e a vida de seus escravos. Tudo na cultura dava a Filemom total permissão para tratar Onésimo com severidade, até mesmo matá-lo. Mas Paulo foi claro: como seguidor de Jesus Cristo, Filemom havia morrido e sua nova vida estava agora em Cristo (Cl 3.3). Isso significava repensar sua responsabilidade não apenas com relação a Onésimo, mas também a Paulo, à igreja colossense e a Deus, seu juiz.

“Estou bem sozinho” (Cl 2.1-23)

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Paulo adverte os colossenses contra o retorno à antiga orientação de autoajuda. “Tenham cuidado para que ninguém os escravize por meio de filosofias inúteis e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, mas não em Cristo” (Cl 2.8). Em Um bom homem é difícil de encontrar, Flannery O'Connor ironicamente colocou estas palavras —“Estou bem sozinho” — na boca de um assassino em série que proclama não precisar de Jesus. [1] Trata-se de um resumo adequado do ethos dos falsos mestres que assolam os santos em Colossos. Em sua “pretensa religiosidade, falsa humildade e severidade com o corpo” (Cl 2.23), o progresso espiritual poderia ser alcançado por tratamento rude do corpo, visões místicas (Cl 2.18) e observância de dias especiais e leis alimentares (Cl 2.16, provavelmente derivado do Antigo Testamento). Esses mestres acreditavam que, ao reunir os recursos disponíveis, poderiam vencer o pecado por conta própria.

Esse ponto importante forma a base para as exortações de Paulo aos trabalhadores, mais adiante na carta. O progresso genuíno na fé — incluindo o progresso em como glorificamos a Deus no local de trabalho — só pode advir de nossa confiança na obra de Deus em nós por meio de Cristo.

Mantenham o pensamento nas coisas do alto: vivendo no céu para o bem terrestre (Cl 3.1-16)

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Esse chamado à reorientação significa que remodelamos nossa vida para pensar e agir de acordo com a ética de Jesus em situações que ele nunca encontrou. Não podemos reviver a vida de Jesus. Devemos viver nossa própria vida para Jesus. Temos de responder a perguntas para as quais Jesus não concede respostas específicas. Por exemplo, quando Paulo escreve “mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas” (Cl 3.2), significa que a oração é preferível a pintar uma casa? O progresso cristão consiste em pensar cada vez menos em nosso trabalho e mais em harpas, anjos e nuvens?

Paulo não nos abandona à especulação crua sobre essas coisas. Em Colossenses 3.1-17, ele deixa claro que “[manter] o pensamento nas coisas do alto” (Cl 3.2) significa expressar as prioridades do reino de Deus precisamente em meio às atividades terrenas cotidianas. Em contraste, fixar a mente nas coisas terrenas é viver de acordo com os valores do sistema mundial que se estabelece em oposição a Deus e seus caminhos.

O que significa na vida cotidiana concreta fazer morrer “tudo o que pertence à sua natureza terrena” (Cl 3.5)? Não significa usar uma roupa de pelo animal ou tomar banho gelado como disciplina espiritual. Paulo acabou de dizer que tratar “com austeridade o corpo” não ajuda a impedir o pecado (Cl 2.23).

Primeiro, significa fazer morrer “imoralidade sexual, impureza, paixão, desejos maus e a ganância, que é idolatria” (Cl 3.5). Somos chamados a nos afastar da imoralidade sexual (como se o sexo degradado pudesse lhe trazer uma vida melhor) e da ganância (como se mais coisas pudessem trazer mais vida). A suposição, claro, é que há, de fato, um lugar adequado para a satisfação do desejo sexual (casamento entre um homem e uma mulher) e um grau adequado para a satisfação do desejo material (aquele que resulta da confiança em Deus, do trabalho, da generosidade com o próximo e da gratidão pela provisão de Deus).

Em segundo lugar, Paulo declara: “Mas, agora, abandonem todas estas coisas: ira, indignação, maldade, maledicência e linguagem indecente no falar. Não mintam uns aos outros, visto que vocês já se despiram do velho homem com suas práticas e se revestiram do novo, o qual está sendo renovado em conhecimento, à imagem do seu Criador. Nessa nova vida já não há diferença entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro e cita, escravo e livre, mas Cristo é tudo e está em todos” (Cl 3.8-10). A expressão “uns aos outros” indica que Paulo está falando à igreja, isto é, àqueles que são crentes em Cristo. Isso significa que é permitido continuar a mentir para as pessoas fora da igreja? Não, pois Paulo não está falando apenas de uma mudança de comportamento, mas de uma mudança de coração e mente. É difícil imaginar que, tendo assumido um “novo eu”, você possa de alguma forma recuperar o antigo eu ao lidar com descrentes. Uma vez que você “abandona todas essas coisas”, elas não devem ser trazidas de volta.

Desses vícios, três são particularmente relevantes para o local de trabalho: ganância, ira e mentira. Esses três vícios podem aparecer no que, de outra forma, seriam atividades comerciais legítimas.

  • Ganância é a busca desenfreada da riqueza. É apropriado e necessário que uma empresa tenha lucro ou que uma organização sem fins lucrativos crie valor agregado. Mas, se o desejo de lucro se tornar desenfreado, compulsivo, excessivo e restrito à busca de ganho pessoal, então o pecado se estabeleceu.

  • A ira pode aparecer no conflito. É necessário que o conflito seja expresso, investigado e resolvido em qualquer local de trabalho. No entanto, se não for tratado de forma aberta e justa, degenerará em ira não resolvida, raiva e intenções maliciosas, e o pecado se estabelecerá.

  • A mentira pode resultar da promoção incorreta dos clientes em potencial da empresa ou dos benefícios do produto. É próprio de toda empresa ter uma visão mais além de seus produtos, serviços e organização. Um folheto de vendas deve descrever o produto mostrando seu maior potencial, mas também suas limitações. Um prospecto de ações deve descrever o que a empresa espera alcançar se for bem-sucedida, mas também os riscos que pode encontrar ao longo do caminho. Se o desejo de retratar um produto, serviço, empresa ou pessoa sob uma luz visionária cruzar a linha do engano (um retrato desequilibrado de riscos versus recompensas, má orientação ou pura invenção e mentiras), então o pecado mais uma vez reinará.

Paulo não tenta fornecer critérios universais para diagnosticar quando as virtudes apropriadas degeneraram em vícios, mas deixa claro que os cristãos devem aprender a fazê-lo em situações particulares.

Quando os cristãos “fazem morrer” (Cl 3.5) a pessoa que costumavam ser, devem se revestir da pessoa que Deus deseja que sejam, a pessoa que Deus está recriando à imagem de Cristo (Cl 3.3, 10). Não quer dizer que deva se retirar completamente para oração e adoração constantes (embora todos sejamos chamados a orar e adorar, e alguns possam ser chamados a fazê-lo como vocação de tempo integral). Em vez disso, significa refletir as próprias virtudes de Deus de “compaixão, bondade, humildade, mansidão e paciência” (Cl 3.12) em tudo o que fazemos.

Uma palavra encorajadora vem da exortação de Paulo “suportem uns aos outros” (Cl 3.13). A maioria das versões bíblicas traz essa tradução, mas ela não captura totalmente o ponto de Paulo. Ele parece estar dizendo que há todo tipo de pessoas na igreja (e também podemos aplicar isso prontamente ao local de trabalho) com quem naturalmente não nos daremos bem. Nossos interesses e personalidade são tão diferentes que não pode haver vínculo instintivo. Mas nós os aturamos de qualquer maneira. Buscamos o bem deles, perdoamos seus pecados e suportamos suas idiossincrasias irritantes. Muitos dos traços de caráter que Paulo exalta em suas cartas podem ser resumidos na frase “ele/ela trabalha bem com os outros”. O próprio Paulo menciona os cooperadores Tíquico, Onésimo, Aristarco, Marcos, Justo, Epafras, Lucas, Demas, Ninfa e Arquipo (Cl 4.7-17). Ser um “jogador de equipe” não é simplesmente um clichê para melhorar o currículo. É uma virtude cristã fundamental. Tanto fazer morrer o velho quanto revestir-se do novo são imensamente relevantes para o trabalho diário. Os cristãos devem mostrar a nova vida de Cristo em meio a um mundo agonizante, e o local de trabalho talvez seja o principal fórum em que esse tipo de exibição pode ocorrer.

  • Para se encaixar no trabalho, os cristãos podem ser tentados, por exemplo, a participar das fofocas e das reclamações que permeiam muitos locais de trabalho. É provável que todo local de trabalho tenha pessoas cujas ações dentro e fora do expediente produzam histórias interessantes. Repetir as histórias não é mentir, é?

  • É provável que todo local de trabalho tenha políticas injustas, chefes ruins, processos não funcionais e canais de comunicação ruins. Reclamar disso não é calúnia, é?

A exortação de Paulo é para que vivamos de maneira diferente, mesmo em locais de trabalho decadentes. Mortificar a natureza terrena e revestir-se de Cristo significa confrontar diretamente as pessoas que nos prejudicaram, em vez de falar delas pelas costas (Mt 18.15-17). Significa trabalhar para corrigir as desigualdades no local de trabalho e perdoá-las.

Alguém pode perguntar: “Os cristãos não correm o risco de ser rejeitados como pessoas desanimadas e ‘mais santas do que você’ se não falarem como os outros?”. Isso pode ocorrer se esses cristãos se desvincularem dos outros, em um esforço para mostrar que são melhores. Os colegas de trabalho se darão conta em um segundo. Mas, se, em vez disso, os cristãos estiverem genuinamente revestidos de Cristo, a vasta maioria das pessoas ficará feliz em tê-los por perto. Alguns podem até apreciar secreta ou abertamente o fato de que alguém que conhecem está, pelo menos, tentando viver uma vida de “compaixão, bondade, humildade e paciência” (Cl 3.12). Da mesma forma, os obreiros cristãos que se recusam a empregar a mentira (seja rejeitando textos publicitários enganosos ou recusando-se a participar de esquemas fraudulentos do tipo pirâmide) podem acabar fazendo alguns inimigos, pagando um preço por sua honestidade. Mas também é possível que alguns colegas de trabalho desenvolvam uma nova abertura para o caminho de Jesus quando a Comissão de Valores Mobiliários bater à porta do escritório.

Fazer nosso trabalho como para o Senhor (Cl 3.17, 23)

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Então, o que significa fazer nosso trabalho “em nome do Senhor Jesus” (Cl 3.17)? Como fazemos nosso trabalho de todo o coração, “como para o Senhor, não para os homens” (Cl 3.23)? Fazer nosso trabalho em nome do Senhor Jesus traz pelo menos duas ideias:

  • Reconhecemos que representamos Jesus no local de trabalho. Se somos seguidores de Cristo, o tratamento que dispensamos aos outros e a diligência e fidelidade com que fazemos nosso trabalho afetam a reputação de nosso Senhor. Quão bem nossas ações se encaixam com quem ele é?

  • Trabalhar “em nome de Senhor Jesus” também implica que vivamos reconhecendo que ele é nosso mestre, nosso chefe, aquele a quem devemos prestar contas. Isso leva ao lembrete de Paulo de que trabalhamos para o Senhor e não para senhores humanos. Sim, provavelmente temos responsabilidade horizontal no trabalho, mas a diligência que trazemos ao trabalho vem do reconhecimento de que, no final, Deus é nosso juiz.

Paulo escreve: “Tudo o que fizerem, seja em palavra seja em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai” (Cl 3.17). Podemos entender esse versículo de duas maneiras: um caminho raso e um caminho mais profundo. A maneira superficial é incorporar alguns sinais e gestos cristãos no ambiente de trabalho, como afixar um versículo bíblico em nossa sala ou estação de trabalho, ou um adesivo cristão em nosso veículo. Gestos como esse podem ser significativos, mas, por si mesmos, não constituem uma vida profissional centrada em Cristo. Uma maneira mais profunda de entender o desafio de Paulo é orar especificamente pelo trabalho que estamos fazendo: “Deus, por favor, mostre-me como respeitar tanto o queixoso quanto o réu na linguagem que uso neste documento”.

Uma maneira ainda mais profunda seria começar o dia imaginando nossas metas diárias se Deus fosse o dono da empresa. Com esse entendimento da ordenança de Paulo, faríamos todo o trabalho do dia em busca de objetivos que honrassem a Deus. O ponto do apóstolo é que, no reino de Deus, o trabalho e a oração são atividades integradas. Tendemos a vê-las como duas atividades separadas que precisam ser equilibradas. Mas são dois aspectos da mesma atividade, a saber, trabalhar para realizar o que Deus deseja que seja realizado em comunhão com as pessoas e com Deus.

Sobre escravos e senhores, antigos e contemporâneos (Cl 3.18—4.1)

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Nesse ponto, Colossenses passa para o que é chamado de “código doméstico”, um conjunto de instruções específicas para esposas e maridos, filhos e pais, escravos e senhores. Esses códigos eram comuns no mundo antigo. No Novo Testamento, essas instruções ocorrem, de uma forma ou de outra, seis vezes — em Gálatas 3.28 ; Efésios 5.15—6.9; Colossenses 3.15—4.1; 1Timóteo 5.1-22; 6.1-2 ; Tito 2.1-15; e 1Pedro 2.11—3.9. Para nossos propósitos aqui, exploraremos apenas a seção em Colossenses que tem a ver com o local de trabalho (escravos e senhores em 3.18—4.1).

Se quisermos compreender plenamente o valor das palavras de Paulo aqui para os trabalhadores contemporâneos, precisamos entender um pouco sobre a escravidão no mundo antigo. Os leitores ocidentais muitas vezes equiparam a escravidão no mundo antigo ao sistema de bens móveis do sul pré-guerra civil nos Estados Unidos, um sistema notório por sua brutalidade e degradação. Correndo o risco de simplificar demais, poderíamos dizer que o sistema escravista do mundo antigo era semelhante ao antigo sistema americano e ao mesmo tempo diferente. Por um lado, nos tempos antigos, os prisioneiros de guerra estrangeiros que trabalhavam em minas estavam em situação muito pior do que os escravos no sul dos Estados Unidos. No outro extremo, no entanto, alguns escravos eram membros bem-educados e valorizados da família, servindo como médicos, professores e administradores de propriedades. Mas todos eram considerados propriedade de seu senhor, de modo que mesmo um escravo doméstico podia estar sujeito a um tratamento horrível, sem recurso legal necessário. [1]

Qual a relevância de Colossenses 3.18—4.1 para os trabalhadores de hoje? Assim como trabalhar por um salário é a forma de trabalho dominante nos países desenvolvidos hoje, a escravidão era a forma dominante de trabalho no Império Romano. Muitos escravos tinham atividades que hoje reconheceríamos como ocupações, recebendo em troca comida, abrigo e, muitas vezes, um pouco de conforto. O poder dos senhores de escravos sobre estes era semelhante em alguns aspectos, mas muito mais extremo do que o poder que empregadores ou gerentes têm sobre os trabalhadores de hoje. Os princípios gerais que Paulo apresenta sobre escravos e senhores nesta carta podem ser aplicados a gerentes e empregadores, desde que nos ajustemos às diferenças significativas entre nossa situação hoje e a deles naquela época.

Quais são esses princípios gerais? Primeiro, e talvez o mais importante, Paulo lembra aos escravos que seu trabalho deve ser feito com integridade, na presença de Deus, que é seu verdadeiro mestre. Mais do que qualquer outra coisa, Paulo quer recalibrar a balança de escravos e senhores, para que eles pesem as coisas com o reconhecimento da presença de Deus em sua vida. Os escravos devem trabalhar temendo ao Senhor (Cl 3.22), porque “é a Cristo, o Senhor, a quem vocês servem” (Cl 3.24). Em suma: “Tudo o que fizerem, façam de todo o coração [literalmente: “trabalho da alma”], como para o Senhor, e não para os homens” (Cl 3.23). Da mesma forma, os mestres [literalmente, “senhores”] devem reconhecer que sua autoridade não é absoluta — eles “têm um Senhor nos céus” (Cl 4.1). A autoridade de Cristo não é limitada pelos muros da igreja. Ele é o Senhor do local de trabalho, tanto para trabalhadores quanto para patrões.

Isso tem várias consequências práticas. Como Deus está observando os obreiros, não faz sentido ser um mero “agradador de pessoas” que presta um “serviço para ser visto” (traduções literais dos termos gregos em Cl 3.22). No mundo de hoje, muitas pessoas tentam bajular seus chefes quando estão por perto, e relaxam assim que saem. Aparentemente, não foi diferente no mundo antigo. Paulo nos lembra que o chefe supremo está sempre observando e que a realidade nos leva a trabalhar com sinceridade de coração, e não representando um show para a gerência, mas trabalhando genuinamente nas tarefas que nos são designadas. (Alguns chefes acabam descobrindo quem está desempenhando um papel, embora, em um mundo caído, os preguiçosos às vezes possam se safar com sua atuação.)

O perigo de ser pego por desonestidade ou trabalho ruim é reforçado em Colossenses 3.25: “Quem cometer injustiça receberá de volta injustiça, e não haverá exceção para ninguém”. Como o versículo anterior se refere à recompensa de Deus pelo serviço fiel, podemos presumir que Deus também age como punidor dos ímpios. No entanto, vale a pena mencionar que o medo da punição não é a principal motivação. Não trabalhamos bem simplesmente para evitar uma avaliação de desempenho ruim. Paulo quer que um bom trabalho brote de um bom coração. Ele quer que as pessoas trabalhem bem, porque é a coisa certa a fazer. Implícita aqui está a asseveração do valor do trabalho aos olhos de Deus. Como ele nos criou para exercer domínio sobre sua criação, fica satisfeito quando o cumprimos buscando a excelência no trabalho. Nesse sentido, as palavras “tudo o que fizerem, façam de todo o coração” (Cl 3.23) são tanto uma promessa como uma ordem. Pela renovação espiritual que nos é oferecida em Cristo pela graça de Deus, podemos trabalhar com entusiasmo.

Colossenses 3.22—4.1 deixa claro que Deus leva todo trabalho a sério, mesmo que seja feito em condições imperfeitas ou degradantes. As cataratas removidas por um cirurgião ocular bem pago são importantes para Deus. O mesmo acontece com o algodão colhido por um meeiro ou mesmo por um escravo da plantação. Isso não significa que a exploração dos trabalhadores seja sempre aceitável diante de Deus. Significa que mesmo um sistema abusivo não pode roubar dos trabalhadores a dignidade de seu trabalho, porque essa dignidade é conferida pelo próprio Deus.

Uma das coisas dignas de nota sobre os códigos domésticos do Novo Testamento é a persistência do tema da mutualidade. Em vez de simplesmente dizer aos subordinados que obedeçam aos que estão acima deles, Paulo ensina que vivemos em uma teia de relacionamentos interdependentes. Esposas e maridos, filhos e pais, escravos e senhores, todos têm obrigações mútuas no corpo de Cristo. Assim, logo na sequência dos mandamentos para os escravos, vem uma diretiva aos senhores: “Senhores, deem aos seus escravos o que é justo e direito, sabendo que vocês também têm um Senhor nos céus” (Cl 4.1). Qualquer que seja a margem de manobra que o sistema legal romano pudesse ter dado aos proprietários de escravos, eles deveriam, em última análise, responder no tribunal de Deus, onde é realizada a justiça para todos. É claro que justiça e equidade devem ser reinterpretadas em cada nova situação. Considere o conceito de “salário justo”, por exemplo. Um salário justo em uma fazenda pode ter um valor monetário diferente de um salário justo em um banco de uma grande cidade. Mas há uma obrigação mútua sob Deus para que empregadores e empregados tratem uns aos outros com justiça e equidade.

Filemom e o trabalho

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Uma aplicação do tema da mutualidade no local de trabalho é mencionada em Colossenses e discutida na carta de Paulo a Filemom, o livro mais curto da Bíblia. Em Colossenses, Paulo menciona “o fiel e amado irmão” Onésimo (Cl 4.9). A carta a Filemom nos diz que Onésimo era escravo de um cristão chamado Filemom (Fm 16). Onésimo aparentemente escapara, tornara-se ele próprio cristão e, em seguida, tornara-se assistente de Paulo (Fm 10-11,15). Sob a lei romana, Filemom tinha o direito de punir Onésimo severamente. Em contrapartida, Paulo — como apóstolo do Senhor — tinha o direito de ordenar a Filemom que libertasse Onésimo (Fm 17-20). Mas, em vez de recorrer a uma hierarquia de direitos, Paulo aplica o princípio da reciprocidade. Ele pede a Filemom que perdoe Onésimo e renuncie a qualquer punição, e, ao mesmo tempo, pede a Onésimo que retorne voluntariamente a Filemom. Ele pede que ambos os homens se tratem como irmãos, e não como escravo e senhor (Fm 12-16). Vemos uma aplicação tripla do princípio da mutualidade entre Paulo, Filemom e Onésimo. Cada um deles deve algo aos outros. Cada um deles tem um direito sobre os outros. Paulo procura renunciar a todas as dívidas e reivindicações em favor do respeito e do serviço mútuos. Aqui vemos como Paulo aplica as virtudes da compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência e do suportar as faltas uns dos outros (Cl 3.12-13) em uma situação real de trabalho.

O uso de Paulo da persuasão, em vez do comando (Fm 14), é uma aplicação adicional do princípio da reciprocidade. Em vez de ditar uma solução a Filemom, Paulo se aproxima dele com respeito, apresenta um argumento persuasivo e deixa a decisão nas mãos de Filemom. Este não poderia deixar de notar o claro desejo de Paulo e sua declaração de que ele o acompanharia (Fm 21). Paulo gerencia a comunicação com astúcia, fornecendo um modelo para resolver problemas no trabalho.

Resumo e conclusão de Colossenses e Filemom

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Colossenses nos dá um panorama do padrão de Deus para o trabalho. Como funcionários, servimos aos patrões com integridade, trabalhando plenamente pelo salário que recebemos (Cl 3.23). Como supervisores, tratamos os subordinados como Deus nos trata — com compaixão, bondade, humildade, gentileza e paciência (Cl 3.12). Deus deseja que realizemos o trabalho relacionando-nos com reciprocidade, cada parte contribuindo para o trabalho geral e beneficiando-se dele. Mas, mesmo que as outras partes falhem em seu recíproco, os cristãos devem cumprir suas obrigações (Cl 3.22—4.1). Seguindo o exemplo de Jesus, oferecemos perdão em face do conflito (Cl 1.13) e deixamos de lado nosso poder sempre que necessário para o bem dos outros (Cl 1.20). Isso não significa que não tenhamos padrões rigorosos ou responsabilidade, ou que os cristãos não possam competir com vigor e sucesso nos negócios e no trabalho. Significa que oferecemos perdão, que nem sempre podemos concordar com o que a cultura organizacional considera aceitável (Cl 3.1-3), especialmente se conduzir a um tratamento injusto ou não equitativo de um colega de trabalho ou empregado (Cl 4.1). Vemos isso ilustrado no caso de Onésimo e Filemom. Seja qual for nosso trabalho, buscamos a excelência, pois o fazemos em nome do Senhor Jesus, não apenas para mestres humanos, sabendo que receberemos uma herança do Senhor como recompensa (Cl 3.23-24).

Versículos e temas-chave em Colossenses e Filemom

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Versículos

Temas

Cl 1.15-17 Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito sobre toda a criação, pois nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos sejam soberanias, poderes ou autoridades; todas as coisas foram criadas por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele tudo subsiste.

Jesus fez tudo no mundo.

Cl 1.19-20 Pois foi do agrado de Deus que nele habitasse toda a plenitude e por meio dele reconciliasse consigo todas as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz.

Jesus veio para redimir o mundo, incluindo o mundo do trabalho.

Cl 1.9-10 Por essa razão, desde o dia em que o ouvimos, não deixamos de orar por vocês e de pedir que sejam cheios do pleno conhecimento da vontade de Deus, com toda a sabedoria e entendimento espiritual. E isso para que vocês vivam de maneira digna do Senhor e em tudo possam agradá-lo, frutificando em toda boa obra, crescendo no conhecimento de Deus. [com alusão a dar fruto e multiplicar-se em Gênesis 1.26-28]

Trabalhamos como portadores da imagem de Deus em Cristo.

Cl 2.8 Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo.

Dependa do poder transformador de Cristo, não de autoajuda ou tradição humana.

Cl 3.2-5 Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a sua vida, for manifestado, então vocês também serão manifestados com ele em glória. Assim, façam morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês: imoralidade sexual, impureza, paixão, desejos maus e a ganância, que é idolatria.

Não se adapte à cultura que conflita com os desejos de Deus.

Cl 3.8-10 Mas, agora, abandonem todas estas coisas: ira, indignação, maldade, maledicência e linguagem indecente no falar. Não mintam uns aos outros, visto que vocês já se despiram do velho homem com suas práticas e se revestiram do novo, o qual está sendo renovado em conhecimento, à imagem do seu Criador.

Livre-se da ganância, da ira, da mentira e da maledicência no trabalho.

Cl 3.12 Portanto, como povo escolhido de Deus, santo e amado, revistam-se de profunda compaixão, bondade, humildade, mansidão e paciência.

Trabalhe para o benefício dos outros.

Cl 3.13 Suportem-se uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o Senhor lhes perdoou.

Suportem uns aos outros.

Cl 3.17, 23 Tudo o que fizerem, seja em palavra seja em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus, dando por meio dele graças a Deus Pai. [...] Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens.

Trabalhe como para o Senhor, e não apenas para as pessoas.

Cl 3.22 Escravos, obedeçam em tudo a seus senhores terrenos, não somente para agradá-los quando eles estão observando, mas com sinceridade de coração, pelo fato de vocês temerem o Senhor.

Os subordinados devem fazer seu trabalho com obediência e sinceridade.

Cl 4.1 Senhores, deem aos seus escravos o que é justo e direito, sabendo que vocês também têm um Senhor nos céus.

Os superiores devem fazer o que é certo e justo para os trabalhadores, não apenas o que é legal ou culturalmente aceitável.

Introdução a 1 e 2Tessalonicenses

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Qual era o ponto principal de Paulo em suas cartas aos tessalonicenses?

Em suas cartas aos tessalonicenses, Paulo deixou claro que os cristãos precisam continuar seu trabalho observando o perfil de serviço e excelência; que a obra de Jesus não substituía o trabalho dos próprios crentes.

“Trabalhamos duro para que você não precise fazer isso.” Essa é a linha de propaganda de um limpador de banheiro moderno, [1] mas — com um pequeno ajuste — poderia ter se encaixado bem como um slogan para alguns cristãos na antiga cidade de Tessalônica: “Jesus trabalhou duro para que eu não precisasse fazê-lo”. Muitos acreditavam que o novo estilo de vida oferecido por Jesus era motivo para abandonar o antigo estilo de vida que envolvia trabalho árduo, e assim eles se tornaram ociosos. Como veremos, é difícil saber exatamente por que alguns tessalonicenses não estavam trabalhando. Talvez eles tenham pensado erroneamente que a promessa de vida eterna significava que esta vida não importava mais. Mas esses ociosos estavam vivendo da generosidade dos membros mais responsáveis ​​da igreja. Estavam consumindo os recursos destinados a atender às necessidades daqueles genuinamente incapazes de se sustentar. E eles estavam se tornando problemáticos e briguentos.

Em suas cartas aos tessalonicenses, Paulo não permitiria nada disso. Ele deixou claro que o caminho de Cristo não é ociosidade, mas serviço e excelência no trabalho.

Qual foi a história de Tessalônica e sua igreja?

Capital da província romana da Macedônia e um importante porto marítimo do Mediterrâneo, Tessalônica tinha uma população de mais de 100 mil habitantes. [2] Além de contar com um porto natural, localizava-se nas principais rotas comerciais entre o norte e o sul e na movimentada Via Egnácia, a estrada que corria de leste a oeste e ligava a Itália às províncias orientais. As pessoas de aldeias vizinhas eram atraídas para essa grande cidade, um movimentado centro de comércio e filosofia. Os recursos naturais de Tessalônica incluíam madeira, grãos, frutas continentais e ouro e prata (embora se questione se as minas de ouro e prata estavam operacionais no século 1 d.C.). Tessalônica também era notavelmente pró-romana e autogovernada, e desfrutava do status de cidade livre. Como seus cidadãos eram cidadãos romanos, estava isenta de pagar tributo a Roma. [3]

A igreja em Tessalônica foi fundada por Paulo e seus cooperadores Timóteo e Silas, durante a chamada Segunda Viagem Missionária, em 50 d.C. Deus operou poderosamente por meio de missionários, e muitos se tornaram cristãos. Embora alguns judeus tenham acreditado (At 17.4), a maioria da igreja era formada por gentios (1Ts 1.9-10). Mesmo contando com alguns membros relativamente ricos — como Jasom, Aristarco e várias “mulheres de alta posição” (At 17.4, 6-7; 20.4) —, parece ter consistido em grande parte de trabalhadores braçais (1Ts 4.11) e, presumivelmente, de algumas pessoas escravizadas. Em 2Coríntios, Paulo afirma que as “igrejas da Macedônia” eram marcadas pela “extrema pobreza” (2Co 8.2), e a igreja de Tessalônica teria sido incluída em suas fileiras.

As circunstâncias precisas que levaram Paulo a escrever essas duas cartas [4] têm sido muito debatidas. Para nossos propósitos, é suficiente dizer que Paulo queria encorajar os crentes que tentavam viver vidas cristãs fiéis em um ambiente pagão hostil. Além das lutas típicas contra coisas como idolatria e imoralidade sexual, eles também estavam confusos sobre o fim dos tempos, o papel do trabalho diário e a vida de fé.

A fé que trabalha, concluir e guardar a fé (1Ts 1.1—4.8; 4.13—5.28; 2Ts 1.1—2.17)

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Como Paulo conecta fé e trabalho em 1Tessalonicenses?

À luz dos problemas com o trabalho que surgirão mais tarde nas epístolas, é interessante que Paulo comece lembrando o “trabalho que resulta da fé, o esforço motivado pelo amor e a perseverança proveniente da esperança em nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 1.3). Paulo escreve suas cartas com cuidado e, no mínimo, essa abertura serve para introduzir o vocabulário do trabalho na discussão. O versículo nos lembra que a fé não é simplesmente a aceitação mental das proposições do evangelho. Ele exige trabalho. É a resposta de vida total aos mandamentos e às promessas do Deus que nos renova e nos capacita por meio de seu Espírito. Os tessalonicenses aparentemente estão respondendo bem em sua vida diária de fé, embora precisem de encorajamento para continuar vivendo uma vida de pureza moral (1Ts 4.1-8).

A questão do trabalho surge de maneira direta novamente no capítulo 2, quando Paulo lembra aos tessalonicenses que ele e seus amigos trabalhavam noite e dia para que não fossem pesados para eles (1Ts 2.9). Paulo diz isso para que os tessalonicenses tenham certeza do quanto Paulo se importa com eles, apesar da distância física. Mas também pode servir de repreensão aos membros da congregação que talvez estivessem se aproveitando da generosidade de outros crentes. Se alguém tinha o direito de receber algo dos tessalonicenses, esse alguém era Paulo, cujo trabalho árduo havia mediado a nova vida de Cristo para eles, em primeiro lugar. Mas Paulo não recebeu dinheiro dos tessalonicenses como compensação. Em vez disso, trabalhou duro como comerciante, numa expressão de sua preocupação por eles.

O que 1Tessalonicenses diz sobre trabalho e vida eterna?

Paulo consola os tessalonicenses sobre os que morreram em sua comunidade, lembrando-os de que não estão mortos, mas apenas dormindo; Jesus os despertará no último dia (1Ts 4.13-18). Eles não precisam se preocupar com a chegada desse dia, porque estar nas mãos do Senhor. Sua única preocupação deve ser continuar andando na luz, permanecendo fiéis e esperançosos em meio a um mundo de trevas (1Ts 5.11). Entre outras coisas, significa que eles devem respeitar aqueles que trabalham (1Ts 5.12-13; a referência pode ser ao “trabalho” de instruir as pessoas na fé, mas poderia igualmente ser a trabalhadores em geral, em contraponto aos que não trabalhavam) e repreender os ociosos entre eles (1Ts 5.14). A promessa de vida eterna é mais uma razão — e não menos — para trabalhar arduamente nesta vida, pois o bem que fazemos dura para sempre, porque “somos do dia” da redenção de Cristo, e não da noite da perdição (1Ts 5.4-8). Cada dia nos dá a oportunidade de sermos “bondosos uns para com os outros e para com todos” (1Ts 5.15).

Qual é o ponto principal de 2Tessalonicenses?

Logo no início de 2Tessalonicenses somos informados de que Paulo ainda está feliz com o fato de os tessalonicenses estarem guardando a fé em um ambiente difícil, e ele os encoraja dizendo que Jesus voltará para consertar todas as coisas (2Ts 1.1-12). Mas alguns deles estão preocupados que o Dia do Senhor já tenha chegado e que eles o tenham perdido. Paulo lhes diz que o dia não chegou e, de fato, não chegará até que Satanás faça uma última grande tentativa de enganar o mundo por meio do “perverso” (presumivelmente a figura que comumente chamamos de “o Anticristo”; 2Ts 2.8). Eles devem ter coragem: Deus julgará Satanás e seus asseclas, mas trará bênçãos eternas a seus filhos amados (2Ts 2.9-17).

O problema da ociosidade em Tessalônica (1Ts 4.9-12 e 2Ts 3.6-16)

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O que Paulo diz sobre a ociosidade em Tessalônica?

O trabalho é abordado de maneira direta em 1Tessalonicenses 4.9-12 e 2Tessalonicenses 3.6-16. [1] Os estudiosos continuam a debater o que exatamente levou ao problema da ociosidade em Tessalônica. Embora estejamos mais preocupados em saber como Paulo deseja que o problema seja resolvido, será útil fazer algumas conjecturas sobre como o problema pode ter surgido.

  • Muitos acreditam que alguns dos tessalonicenses pararam de trabalhar porque o fim dos tempos estava próximo. [2] Eles podem ter sentido que já estavam vivendo no reino de Deus e que não havia necessidade de trabalhar; ou eles podem ter sentido que Jesus estava voltando a qualquer minuto e, portanto, não havia sentido em trabalhar. As cartas de Tessalonicenses falam bastante sobre mal-entendidos relacionados ao fim dos tempos, e é interessante que as passagens sobre ociosidade em 1Tessalonicenses 4.9-12 e 2Tessalonicenses 3.6-16 surjam no contexto do ensino sobre o fim dos tempos. Em contrapartida, Paulo não faz uma conexão explícita entre ociosidade e escatologia.

  • Outros já sugeriram uma razão “mais nobre” para a ociosidade: as pessoas haviam desistido de seu emprego diário para pregar o evangelho. (Pode-se ver como esse movimento seria facilitado se eles tivessem o tipo de fervor escatológico observado na primeira visão.) [3] Esses pretensos evangelistas contrastam fortemente com Paulo, o principal evangelista da lista, que, no entanto, trabalha com as próprias mãos para não se tornar um fardo para a igreja. As igrejas na Macedônia eram conhecidas por seu zelo evangelístico, mas ainda não está claro se os ociosos em Tessalônica estavam necessariamente usando seu tempo livre para trabalhos evangelísticos.

  • Uma terceira visão vê o problema como mais sociológico que teológico. [4] Alguns trabalhadores braçais estavam desempregados (seja por preguiça, perseguição seja por problema econômico geral) e se tornaram dependentes da caridade de outros na igreja. Eles descobriram que a vida como cliente de um patrono rico era significativamente mais fácil do que a vida de um trabalhador que se esforçava para cumprir um dia de trabalho. A injunção para que os cristãos cuidassem uns dos outros serviu de pretexto para que continuassem nesse estilo de vida parasitário.

É difícil escolher entre essas diferentes reconstruções. Todos elas têm algo nas cartas para apoiá-las, e não é difícil ver analogias modernas na igreja atual. Muitas pessoas hoje subestimam o trabalho diário porque “Jesus está voltando em breve, e tudo vai queimar de qualquer maneira”. Muitos obreiros cristãos justificam um desempenho abaixo do padrão porque seu propósito “real” no local de trabalho é evangelizar os colegas. E questões de dependência inútil da caridade de outros surgem tanto no contexto local (por exemplo, pastores aos quais se solicitam dinheiro para um homem cuja mãe morreu... pela terceira vez no ano) quanto no contexto global (por exemplo, a questão de saber se alguma ajuda externa faz mais mal do que bem).

Podemos, no entanto, avançar, mesmo sem a completa certeza sobre os acontecimentos que levaram ao problema da ociosidade em Tessalônica. Primeiro, podemos notar que as visões acima compartilham uma suposição comum, mas falsa (a saber, a vinda de Cristo ao mundo diminuiu radicalmente o valor do trabalho diário. As pessoas estavam usando algum aspecto do ensino de Cristo — fosse sua segunda vinda, ou sua comissão para evangelizar o mundo, ou sua ordem de participação radical na comunidade) para justificar sua ociosidade. Paulo não aceitaria nada disso. A vida cristã responsável abrange o trabalho, até mesmo o trabalho árduo e braçal do primeiro século. Está igualmente claro que Paulo fica perturbado quando as pessoas se aproveitam da generosidade de outros, na igreja. Se as pessoas podem trabalhar, devem trabalhar. Finalmente, a ociosidade dos cristãos parece ter dado má reputação à igreja dentro da comunidade pagã.

Espera-se que os cristãos trabalhem (1Tessalonicenses 4.9-12; 5.14)

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Deus espera que os cristãos trabalhem?

Paulo destaca que Deus espera que todo cristão que possa trabalhar o faça (1Ts 4.11-12). Ele exorta os tessalonicenses a trabalharem “com as próprias mãos” (1Ts 4.11) e que “não dependam de ninguém” (1Ts 4.12). Em vez de fugir do trabalho, os cristãos tessalonicenses devem ser diligentes, trabalhando para ganhar a vida e, assim, evitar colocar encargos indevidos em outros. Ser trabalhador braçal em uma cidade greco-romana era uma vida difícil para os padrões modernos e antigos, e a ideia de que isso poderia não ser necessário deve ter sido atraente. No entanto, abandonar o trabalho em favor de viver do esforço de outros é inaceitável. É impressionante que o tratamento que Paulo dá à questão em 1Tessalonicenses seja enquadrado em termos de “amor fraternal” (1Ts 4.9). A ideia é claramente que o amor e o respeito são essenciais nos relacionamentos cristãos, e que viver desnecessariamente da caridade dos outros é desamoroso e desrespeitoso para com o(s) irmão(s) caridoso(s) em questão.

É importante lembrar que trabalho nem sempre significa ser remunerado. Muitas formas de trabalho — cozinhar, limpar, consertar, embelezar, criar filhos, treinar jovens e milhares de outros — atendem às necessidades da família ou da comunidade, mas não recebem remuneração. Outras — as artes me vêm à mente — podem ser oferecidas gratuitamente ou a preços muito baixos para sustentar aqueles que as fazem. No entanto, todas são trabalho.

Não se espera necessariamente que os cristãos ganhem dinheiro, mas que trabalhem para sustentar a si, sua família, a igreja e a comunidade.

O mandato da criação ainda está em vigor?

O mandato da criação em Gênesis 2.15 (“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”) ainda está em vigor. A obra de Cristo não eliminou ou suplantou o trabalho original da humanidade, mas o tornou mais frutífero e, em última análise, valioso. Paulo pode ter o texto de Gênesis 2.15 em vista quando ele se refere aos ociosos com o adjetivo, advérbio e verbo gregos derivados da raiz atakt- (“desordem”) em 1Tessalonicenses 5.14, 2Tessalonicenses 3.6;11, e 1Tessalonicenses 5.7, respectivamente. Todas essas palavras retratam o comportamento dos ociosos como desordenado, deixando transparecer uma “atitude irresponsável em relação à obrigação de trabalhar”. [1] A ordem que está sendo violada pode muito bem ser o mandato de trabalho em Gênesis 2.

A insistência de Paulo na validade contínua do trabalho não é uma concessão à agenda burguesa, mas reflete uma perspectiva equilibrada sobre o já/ainda não do reino de Deus. O reino de Deus já veio à terra na pessoa de Jesus, mas ainda não foi concluído (1Ts 4.9-10). Quando os cristãos trabalham com diligência e excelência, demonstram que o reino de Deus não é uma fantasia escapista, mas o cumprimento da realidade mais profunda do mundo.

Como os cristãos devem trabalhar?

Dada a importância do trabalho, os cristãos devem ser os melhores trabalhadores que podem ser. Deixar de trabalhar com excelência pode trazer descrédito à igreja. Muitos cínicos no mundo greco-romano abandonaram o emprego, e esse comportamento foi amplamente considerado como vergonhoso. [2] Paulo está ciente de que, quando os cristãos se esquivam de sua responsabilidade de trabalhar, a posição da igreja como um todo é prejudicada. Em 1Tessalonicenses 4.11-12, Paulo está evidentemente preocupado com o fato de a sociedade estar tendo uma visão errada da igreja. No contexto do mundo greco-romano, sua preocupação faz muito sentido, pois o que estava acontecendo na igreja de Tessalônica não apenas estava abaixo dos padrões de decência da sociedade, mas também fazia os cristãos caridosos parecerem crédulos e tolos. Paulo não quer que os cristãos fiquem abaixo dos padrões da sociedade em relação ao trabalho, mas sim que os excedam. Além disso, ao deixar de cumprir seu papel adequado na sociedade, esses cristãos correm o risco de atiçar mais rumores e ressentimentos anticristãos. Paulo anseia profundamente que aqueles que perseguem a igreja não tenham motivos legítimos para sua hostilidade. No que diz respeito ao trabalho, os cristãos devem ser cidadãos exemplares. Ao colocar os ociosos sob disciplina, a igreja estaria efetivamente se distanciando de seu comportamento errôneo.

Os cristãos maduros devem dar exemplo para os jovens cristãos, servindo de modelo de um bom êthos de trabalho. Embora Paulo soubesse que era direito do ministro do evangelho ser sustentado financeiramente (1Tm 5.17-18), ele mesmo se recusou a tirar vantagem disso (1Ts 2.9; 2Ts 3.8). Viu a necessidade de dar aos novos convertidos um exemplo de como era a vida cristã, e isso significava juntar-se a eles no trabalho braçal. Os filósofos itinerantes do mundo greco-romano costumavam ser rápidos em sobrecarregar financeiramente seus convertidos, mas Paulo não se preocupava com ter uma vida fácil ou projetar uma imagem de superioridade sobre seus tutorados espirituais. Liderança cristã é liderança servidora, mesmo na arena do trabalho.

Deus valoriza o trabalho manual e o trabalho árduo?

A visão positiva do trabalho árduo que Paulo estava promovendo era contracultural. O mundo greco-romano tinha uma visão muito negativa do trabalho manual. [3] Até certo ponto, é compreensível, tendo em vista quanto os casebres urbanos eram desagradáveis. Se os ociosos de Tessalônica fossem de fato trabalhadores braçais desempregados, não é difícil avaliar como teria sido fácil racionalizar essa exploração da caridade de seus irmãos e irmãs em vez de retornar aos casebres. Afinal, todos os cristãos não eram iguais em Cristo? No entanto, Paulo não tem tempo para racionalizações. Ele aborda o assunto a partir de um entendimento fortemente enraizado no Antigo Testamento, em que Deus é retratado como criador de Adão para o trabalho, e o trabalho manual de Adão não está divorciado da adoração, mas, ao contrário, deve ser uma forma de adoração. Na avaliação de Paulo, o trabalho manual não é indigno para os cristãos, e o próprio Paulo fez o que ele exige que esses irmãos ociosos façam. O apóstolo claramente considera o trabalho uma maneira de os crentes poderem honrar a Deus, mostrar amor a seus companheiros cristãos e exibir o poder transformador do evangelho para as pessoas de fora. Ele quer que os irmãos ociosos adotem sua perspectiva e sejam um exemplo impressionante, não vergonhoso, para seus contemporâneos incrédulos.

Aqueles realmente incapazes de trabalhar devem receber assistência (1Ts 4.9-10)

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O que Paulo diz sobre aqueles que não podem trabalhar?

Paulo é um defensor do bem-estar social e da caridade, mas apenas para aqueles que estão genuinamente necessitados. Considera claramente as primeiras manifestações de provisão generosa para os cristãos tessalonicenses desempregados como expressões apropriadas do amor cristão (1Ts 4.9-10). Além disso, mesmo depois que a expressão de amor por parte de alguns foi explorada egoisticamente por outros, ele ainda pede que a igreja continue a fazer o bem, dando aos que realmente precisam (2Ts 3.13). Teria sido fácil para os benfeitores se desiludirem com as doações de caridade em geral e se afastarem delas no futuro.

O fator-chave para determinar se alguém desempregado era digno de caridade ou assistência social era a disposição de trabalhar (2Ts 3.10). Alguns, que são perfeitamente capazes de trabalhar, não o fazem, simplesmente porque não querem — eles não merecem assistência financeira ou material. Em contrapartida, alguns não podem trabalhar devido a alguma incapacidade ou circunstância atenuante — e claramente merecem assistência financeira e material. O versículo 13 assume que existem casos legítimos de caridade na igreja de Tessalônica.

Na prática, é claro, é difícil determinar quem está relaxando e quem está disposto, mas é genuinamente incapaz de trabalhar ou encontrar um emprego. Se os membros mais unidos da igreja de Tessalônica tinham dificuldade em discernir quem entre eles era digno de receber apoio financeiro, imagine como é muito mais difícil para uma cidade, província ou nação moderna. Essa realidade levou a profundas divisões entre os cristãos com relação à política social, praticada tanto pela igreja quanto pelo Estado. Alguns preferem errar do lado de misericórdia, proporcionando acesso relativamente fácil e benefícios generosos, às vezes de longo prazo, a pessoas em aparentes dificuldades financeiras. Outros preferem errar pelo lado da diligência, exigindo provas relativamente rigorosas de que as dificuldades se devem a fatores além do controle do destinatário e fornecendo benefícios limitados em quantidade e duração. Uma questão particularmente espinhosa tem sido o apoio a mães solteiras com filhos pequenos e a todas as pessoas desempregadas por longos períodos durante recessões econômicas. Esse apoio presta assistência aos membros mais vulneráveis ​​da sociedade, particularmente às crianças de famílias vulneráveis? Ou subsidia uma cultura de afastamento da sociedade trabalhadora, em detrimento tanto do indivíduo quanto da comunidade? Essas são questões difíceis e desafiadoras. Passagens bíblicas como as das cartas aos tessalonicenses devem figurar profundamente na compreensão social e política dos cristãos. Nossas conclusões podem nos colocar em oposição a outros cristãos, mas isso não é necessariamente uma causa para nos afastarmos da participação política e social. No entanto, devemos nos envolver na política e no discurso social com respeito, bondade, uma humildade saudável de que nosso ponto de vista não é infalível e uma consciência de que as mesmas passagens podem levar outros crentes a conclusões contrárias. As cartas tessalonicenses revelam os valores e as percepções de Deus aplicados ao antigo contexto de Tessalônica. Mas elas não constituem um programa social ou partidário indiscutível conforme aplicadas nos contextos muito diferentes de hoje.

É claro que Paulo tem em mente que todos os tessalonicenses cristãos devem trabalhar na medida em que forem capazes, e que a igreja deve cuidar daqueles que realmente precisam. Ele quer que os recursos financeiros dos benfeitores da igreja sejam usados estrategicamente, em vez de desperdiçados. De fato, se os ociosos voltarem ao trabalho, também estarão em condições de ser doadores em vez de receptores, e a capacidade da igreja de espalhar o evangelho e ministrar aos pobres e necessitados dentro e fora da igreja aumentará. A insistência bíblica de que os cristãos devem trabalhar de modo a serem autossustentáveis ​​sempre que possível tem em vista, em última análise, a extensão do reino de Deus sobre a terra.

Ociosidade (2Ts 3.6-15)

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A ociosidade é uma questão para a comunidade cristã, não apenas para o indivíduo

As palavras de 2Tessalonicenses 3.10 são críticas: “Se alguém não quiser trabalhar, também não coma”. Deus considera que se esquivar do trabalho é uma ofensa grave, tão grave que a igreja é chamada a corrigir seus membros ociosos. Paulo exorta a igreja a que “advirtam” aqueles que se esquivam de sua obrigação de trabalhar (1Ts 5.14) e emite uma ordem, “em nome do nosso Senhor Jesus”, em 2Ts 3.6-15, para que a igreja imponha medidas disciplinares sobre os irmãos infratores. A disciplina é relativamente dura, o que ressalta que a ociosidade não era um ponto fraco menor na avaliação de Paulo. Os crentes são chamados a que “se afastem” daqueles que se esquivam de sua responsabilidade de trabalhar, presumivelmente significando que eles devem evitar incluí-los quando se reúnem em comunhão cristã. A intenção era, é claro, induzir um choque curto e agudo nos irmãos infratores, alienando-os e, assim, trazê-los de volta à linha.

A ociosidade leva ao mal

As consequências negativas de evitar o trabalho vão além do fardo imposto aos outros. Aqueles que fogem do trabalho geralmente acabam gastando seu tempo em atividades prejudiciais. A exortação de Paulo aos trabalhadores manuais de Tessalônica a que “esforcem-se para ter uma vida tranquila” e cuidem “dos seus próprios negócios” (1Ts 4.11) sugere o que 2Tessalonicenses 3.11 declara explicitamente: “Ouvimos que alguns de vocês estão ociosos; não trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia”. A palavra grega periergazomai (“intrometidos”) refere-se a se intrometer nos assuntos de outras pessoas. [1] Um pensamento semelhante é expresso por Paulo em 1Timóteo 5.13, onde Paulo diz que as viúvas mais jovens são apoiadas pela igreja para que “não se [tornem] apenas ociosas, mas também fofoqueiras e indiscretas, falando coisas que não devem”. Parece que os ociosos tessalonicenses estavam interferindo nos negócios de outras pessoas e sendo argumentativos. A ociosidade gera problemas.

Resumo e conclusão de 1 e 2Tessalonicenses

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Como o discurso de Paulo funciona em suas cartas aos tessalonicenses?

Temas do local de trabalho são entremeados no tecido das cartas de Tessalônica. Eles são mais visíveis em várias passagens explícitas, e especialmente em 2Tessalonicenses. Subjacente a ambas as cartas está o princípio de que os cristãos são chamados a trabalhar na medida em que são capazes. O trabalho é necessário para colocar comida na mesa; portanto, quem come deve ser trabalhador. Além disso, o trabalho é honroso, refletindo a intenção de Deus para a humanidade na criação. Nem todos têm a mesma capacidade de trabalho; portanto, a medida do trabalho não é a quantidade de realizações, mas a atitude de serviço e o compromisso com a excelência. Portanto, aqueles que trabalham tão duro e tão bem quanto podem têm uma participação plena na generosidade da comunidade. Em contraste, aqueles que se esquivam de seu dever de trabalhar devem ser confrontados pela igreja. Se continuarem a ser ociosos, eles não devem ser sustentados por meios alheios. Como último recurso, eles devem até ser removidos da comunidade, pois a ociosidade leva não apenas a consumir o fruto do trabalho dos outros, mas também a uma ruptura ativa da comunidade por meio da intromissão, fofoca e obstrução.

Introdução às Epístolas Pastorais e o trabalho

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As Epístolas Pastorais foram escritas para os líderes da igreja primitiva. No entanto, muito do que elas dizem também se aplica a cristãos em outros locais de trabalho. Ao aplicá-las ao trabalho fora da igreja, a tarefa crítica será refletir sobre as semelhanças e diferenças entre igrejas e outros locais de trabalho, em organizações. Ambos os tipos são organizações voluntárias (em geral) com estruturas e objetivos. Ambos são, em última análise, governados pelo mesmo Senhor. Ambos são compostos de seres humanos feitos à imagem de Deus. Ambos enfrentam grandes desafios às vezes, mas são projetados para durar e se adaptar às gerações futuras. Essas semelhanças sugerem que muitos dos mesmos princípios bíblicos se aplicarão a cada um, como será discutido em profundidade.

Desde os tempos antigos, as cartas de 1Timóteo, 2Timóteo e Tito foram agrupadas como as “epístolas pastorais”. Essas cartas descrevem a qualificação, o desenvolvimento e a promoção de líderes; as estruturas organizacionais para o cuidado, remuneração e disciplina dos membros, e o estabelecimento e execução de metas individuais e organizacionais. Elas estão preocupadas com o bom governo, a eficácia e o crescimento de uma organização — em particular, a igreja. Em 1Timóteo 3.14-15, Paulo expressa o tema principal de todas as três cartas: “Escrevo estas coisas, embora espere ir vê-lo em breve; mas, se eu demorar, saiba como as pessoas devem comportar-se na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade”.

Mas também há diferenças. A igreja tem como missão chamar e preparar pessoas para entregarem sua vida a Cristo, servirem ao seu reino e adorarem a Deus. Ela foi instituída por Deus como o corpo de Cristo, e prometeu que ela permanecerá ativa até o retorno de Cristo. Outras organizações têm missões diferentes, como criar valor econômico (empresas), proteger membros (sindicatos), educar crianças e adultos (escolas e universidades) e administrar defesa, justiça e outras necessidades cívicas (governos). Eles são instituídos como corpos (corporações ou estados) por cartas e constituições, e podem surgir e desaparecer. Essas diferenças não significam que outras organizações sejam inferiores à igreja, mas sim que cada tipo deve ser respeitado por sua missão particular. No entanto, as epístolas pastorais fornecem material fértil para refletir sobre como os relacionamentos em locais de trabalho fora da igreja devem ser criados e mantidos, ao mesmo tempo em que destacam o papel especial da comunidade da igreja. Embora as epístolas pastorais se preocupem principalmente com as organizações, elas não excluem necessariamente aqueles que trabalham em famílias, empresas individuais e outros locais de trabalho semelhantes. Para resumir, daqui em diante, o termo “local de trabalho” será usado para significar apenas o local de trabalho fora da igreja.

1Timóteo: Trabalhando pela ordem na casa de Deus

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Cada uma das três epístolas pastorais assume a forma de uma carta do apóstolo Paulo dando conselhos a um de seus cooperadores. [1] Em 1Timóteo, Paulo dá instruções a seu colega mais jovem, Timóteo, sobre como ministrar na igreja e como lidar com falsos mestres. No entanto, as últimas palavras da carta — “A graça seja com vocês [plural]” (1Tm 6.21) — indicam que a carta deve ser ouvida por toda a igreja em Éfeso, para que todos possam se beneficiar do conselho de Paulo a Timóteo.

Como as cartas compartilham alguns temas comuns, combinaremos nossa discussão de passagens relacionadas entre as cartas. Os temas serão explorados de acordo com a ordem em que surgem pela primeira vez nas epístolas pastorais.

Conectando crença e comportamento no trabalho (1Tm 1.1-11, 18-20; 3.14-16)

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Um dos temas repetidos e enfatizados em 1Timóteo é a estreita conexão entre crença e comportamento, ou ensino e prática. O ensino sólido ou a “sã doutrina” leva à piedade, enquanto o falso ensino é, na melhor das hipóteses, improdutivo e, na pior, condenatório. Desde o início da carta, Paulo exorta Timóteo a “ordenar a certas pessoas que não mais ensinem doutrinas falsas” (1Tm 1.3), porque essa doutrina diferente, junto com “mitos e genealogias”, não promove “a obra de Deus, que é pela fé” (1Tm 1.4).

Paulo está falando da importância da sã doutrina na igreja, mas suas palavras se aplicam igualmente ao local de trabalho. W. Edwards Deming, um dos fundadores do conceito da melhoria contínua da qualidade, chamou seus métodos de “sistema de conhecimento profundo”. Ele disse: “Uma vez que o indivíduo entenda o sistema do conhecimento profundo, ele aplicará seus princípios em todos os tipos de relacionamento com outras pessoas. Ele terá uma base para julgamento de suas próprias decisões e para a transformação das organizações às quais pertence”. [1] O conhecimento da verdade mais profunda é essencial em qualquer organização.

Luke Timothy Johnson apresentou uma tradução mais transparente de 1Timóteo 1.4: “A maneira de Deus ordenar a realidade, conforme é apreendida pela fé”. [2] A igreja é — ou deveria ser — ordenada de acordo com o caminho de Deus. Poucos contestariam isso. Mas outras organizações também devem ser ordenadas de acordo com o caminho de Deus? O mundo greco-romano do primeiro século acreditava que a sociedade deveria ser ordenada de acordo com a “natureza”. Portanto, se a natureza é a criação de Deus, então a maneira de Deus ordenar a criação deve se refletir em como a sociedade também é ordenada. Como Johnson observa: “Não há descontinuidade radical entre a vontade de Deus e as estruturas da sociedade. As estruturas do oikos (família) e da ekklēsia (igreja) não são apenas continuidade uma da outra, mas ambas são partes da dispensação [administração] de Deus no mundo”. [3] Locais de trabalho, casas e igrejas refletem a única e singular ordem da criação.

Uma verdadeira compreensão dos caminhos de Deus é essencial em todos os locais de trabalho. Por exemplo, um tema proeminente na Criação é que os seres humanos foram criados bons. Mais tarde, caímos em pecado, e uma verdade cristã central é que Jesus veio para redimir os pecadores. Os trabalhadores são, portanto, seres humanos que pecam, mas que podem experimentar a redenção e se tornar bons como Deus sempre quis. A verdade sobre bondade, pecado e redenção precisa ser considerada nas práticas organizacionais. Nem as igrejas nem os locais de trabalho podem funcionar adequadamente se presumirem que as pessoas são apenas boas e não pecadoras. As contas precisam ser auditadas e o assédio precisa ser interrompido. O atendimento ao cliente precisa ser recompensado. Sacerdotes e pastores, funcionários e executivos precisam ser supervisionados. Da mesma forma, nem as igrejas nem os locais de trabalho podem presumir que as pessoas que erram ou pecam devem ser descartadas automaticamente. A oferta de redenção — e ajuda prática para fazer a transformação — precisa ser feita. Nas igrejas, o foco está na redenção espiritual e eterna. Os locais de trabalho fora da igreja estão focados em uma redenção mais limitada relacionada à missão da organização. Programas de liberdade condicional, planos de melhoria de desempenho, reciclagem, transferência para um cargo diferente, orientação e programas de assistência aos funcionários — em oposição à demissão imediata — são exemplos de práticas redentoras em certos locais de trabalho, especialmente no Ocidente. As particularidades do que é realmente redentor variarão consideravelmente, é claro, dependendo do tipo de organização, de sua missão, do ambiente cultural, legal e econômico e de outros fatores.

Se os cristãos no mercado de trabalho devem entender como Deus deseja que eles e aqueles ao seu redor ajam (cf. 1Tm 3.15), devem entender a revelação de Deus na Bíblia e crer nela. A verdade leva ao amor (1Tm 1.5), enquanto a falsa doutrina promove “controvérsias” (1Tm 1.4), “brigas” (1Tm 6.4) e destruição espiritual (1Tm 1.19). O conhecimento dos caminhos de Deus, conforme revelados em sua palavra, não pode ser domínio apenas dos estudiosos da Bíblia, nem o entendimento bíblico é relevante apenas dentro da igreja. Os obreiros cristãos também devem ser biblicamente instruídos para que possam operar no mundo de acordo com a vontade de Deus e para a glória dele.

Todos os cristãos têm um papel de liderança, independentemente de seu lugar na organização. Os executivos geralmente têm a maior oportunidade de moldar a estratégia e a estrutura de uma organização. Todos os trabalhadores têm oportunidades contínuas de desenvolver bons relacionamentos, produzir produtos e serviços excelentes, agir com integridade, ajudar os outros a desenvolverem suas habilidades e moldarem a cultura de seus grupos de trabalho imediatos. Todos têm uma esfera de influência no trabalho. Paulo aconselhou Timóteo a não permitir que sua percepção de falta de status o impedisse de tentar fazer a diferença. “Ninguém o despreze pelo fato de você ser jovem, mas seja um exemplo para os fiéis na palavra, no procedimento, no amor, na fé e na pureza” (1Tm 4.12).

É interessante notar que parte dessa realidade já é percebida nos locais de trabalho contemporâneos. Muitas organizações têm “declarações de missão” e “valores fundamentais”. Essas palavras significam aproximadamente a mesma coisa para as organizações seculares que “crenças” ou “doutrina” significam para as igrejas. As organizações, como as igrejas, prestam muita atenção à cultura. Essa é mais uma evidência de que o que os trabalhadores acreditam ou o que uma organização ensina afeta o comportamento das pessoas. Na medida do possível, os cristãos no local de trabalho devem estar na vanguarda da formação dos valores, da missão e da cultura das organizações das quais participamos.

Oração, paz e ordem são necessárias no trabalho, como na igreja (1Tm 2.1-15)

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Paulo começa este capítulo exortando “que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade” (1Tm 2.1-2). O objetivo desta oração é que os cristãos venham a levar “uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade” (1Tm 2.2). Presumivelmente, esses governantes do primeiro século tinham o poder de tornar a vida difícil e perturbadora para os cristãos. Por isso, Paulo exorta os cristãos a orarem por seus governantes cívicos. Oração, paz e ordem são os primeiros instrumentos de engajamento dos cristãos com o mundo secular.

Novamente, vemos que as instruções de Paulo estão fundamentadas na unicidade de Deus, na singularidade de Cristo como mediador, no resgate universal de Cristo e no desejo universal de Deus de que todos sejam salvos (1Tm 2.3-7). Cristo é o Senhor da criação e o Salvador do mundo. Seu reino inclui todos os locais de trabalho. Os cristãos devem orar por todos aqueles que estão em seu local de trabalho específico, especialmente aqueles que têm funções de supervisão, em posições de “autoridade”. Os cristãos devem se esforçar para fazer seu trabalho sem interromper o trabalho dos outros, sem chamar indevidamente atenção para si mesmos e sem desafiar constantemente a autoridade — em outras palavras, trabalhando “com toda a piedade e dignidade” (1Tm 2.2). Para os cristãos, esse tipo de comportamento pacífico e submisso não é motivado pelo medo, pelo desejo de agradar às pessoas ou pela conformidade social, mas por uma apreciação saudável pela ordem que Deus estabeleceu e pelo desejo de que os outros “cheguem ao conhecimento da verdade” (1Tm 2.4). Como Paulo diz em outro lugar: “Deus não é Deus de desordem, mas de paz” (1Co 14.33).

Isso entra em conflito com o dever de estar na vanguarda da formação da missão e dos valores fundamentais de nosso local de trabalho? Alguns cristãos tentam moldar missões e valores por meio do confronto em torno de questões controversas, como benefícios para parceiros do mesmo sexo, exclusão de aborto e/ou contraceptivos nos planos de saúde, organização sindical, exibição de símbolos religiosos e afins. Se bem-sucedida, essa abordagem pode ajudar a moldar a missão e o valor da organização. Mas muitas vezes atrapalha o trabalho dos outros, quebra a paz e desrespeita a autoridade dos supervisores.

O que é necessário é um engajamento mais pessoal, mais profundo e mais respeitoso com a cultura organizacional. Em vez de entrar em conflito sobre os benefícios para a saúde, os cristãos não poderiam investir em amizades com colegas de trabalho e se tornar uma fonte de aconselhamento ou sabedoria para aqueles que enfrentam grandes decisões na vida? Em vez de ultrapassar os limites entre liberdade de expressão e assédio, os cristãos não poderiam fazer o trabalho que lhes foi designado com tanta excelência a ponto de os colegas de trabalho pedirem a eles que expliquem qual é a fonte de sua força? Em vez de discutir sobre questões periféricas, como decoração de festas, os cristãos não poderiam ajudar a melhorar as atividades principais no trabalho, como desempenho, atendimento ao cliente e design de produtos, e, assim, conquistar o respeito das pessoas ao redor? Ao responder a essas perguntas, podemos lembrar que o conselho de Paulo a Timóteo é equilibrado, não contraditório. Viver em paz e cooperação com aqueles que nos rodeiam. Procurar influenciar os outros servindo-os, e não tentando dominá-los. Não foi isso que o Rei dos reis fez?

Integridade e capacidade relacional são qualidades-chave de liderança (1Tm 3.1-13; Tt 1.5-9)

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O texto de 1Timóteo 3.1-13 é bem conhecido e encontra um paralelo em Tito 1.5-9. Tanto 1Timóteo 3.1-7 quanto Tito 1.5-9 estabelecem qualificações para bispos e presbíteros, [1] enquanto 1Timóteo 3.8-13 descreve as qualificações para diáconos, possivelmente incluindo diaconisas. Uma variedade de qualificações é dada, mas o traço comum parece ser a integridade moral e a capacidade de se relacionar bem com as pessoas. Competência para ensinar, embora mencionada como uma qualificação para os bispos (1Tm 3.2; Tt 1.9), não recebe a mesma ênfase em geral. Nessas listas, observamos novamente a conexão entre a família e a igreja: administrar bem a família é visto como experiência necessária para administrar a família de Deus (1Tm 3.4-5, 12; Tt 3.6; cf. 1Tm 3.15). Refletiremos mais sobre essa conexão em uma seção subsequente.

Como observado anteriormente, diferentes organizações têm missões diferentes. Portanto, a qualificação para a liderança é diferente. Seria uma aplicação errônea dessa passagem usá-la como uma lista geral de qualificações para o trabalho. “Sérios” (1Tm 3.8, NTLH) pode não ser uma qualificação adequada para um guia turístico, por exemplo. Mas e a prioridade à integridade moral e à capacidade relacional? Qualidades morais, como “irrepreensível”, de “consciência limpa”, “confiáveis em tudo”, e qualidades relacionais, como “hospitaleiro”, “pacífico” e “moderado”, são habilidades e experiências muito mais proeminentes do que específicas.

Se isso é verdade para a liderança da igreja, também se aplica à liderança no trabalho? As falhas morais e relacionais bem divulgadas de alguns líderes empresariais e governamentais de destaque nos últimos anos tornaram a integridade, o caráter e os relacionamentos mais importantes do que nunca na maioria dos locais de trabalho. Não é menos importante desenvolver e selecionar líderes adequadamente nos locais de trabalho do que nas igrejas. Contudo, à medida que nos preparamos para emprego e carreira, será que dedicamos uma fração de nosso esforço tanto no desenvolvimento de caráter ético e habilidades relacionais quanto no desenvolvimento de habilidades especializadas e no acúmulo de credenciais?

Curiosamente, muitos dos líderes da igreja primitiva também eram líderes no local de trabalho. Lídia negociava a valiosa commodity de corante púrpura (At 16.14, 40). Dorcas era uma fabricante de roupas (At 9.26-41). Áquila e Priscila eram fabricantes de tendas (ou coureiros) que se tornaram parceiros comerciais de Paulo (At 18.2-3). Esses líderes foram eficazes na igreja depois de já terem se mostrado eficazes no local de trabalho e conquistado o respeito da comunidade em geral. Talvez as qualificações básicas de liderança na igreja, no trabalho e nas esferas cívicas tenham muito em comum.

A criação de Deus é boa (1Tm 4.1-5)

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A primeira carta a Timóteo declara “a maneira de Deus ordenar a realidade” e que esse ordenamento divino tem implicações sobre como os cristãos devem se comportar em casa, na igreja e — por uma extensão da lógica do texto — no trabalho. A afirmação mais clara da ordem de criação de Deus vem em 1Timóteo 4.1-5. Em 1Timóteo 4.4 Paulo afirma claramente: “Tudo o que Deus criou é bom”. Esse é um claro eco de Gênesis 1.31: “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom”. Dentro do contexto da carta, essa avaliação extremamente positiva da criação é usada para combater os falsos mestres que proíbem o casamento e certos alimentos (1Tm 4.3). Paulo se opõe ao ensino deles, afirmando que essas coisas devem ser recebidas com ação de graças (1Tm 4.3-4). A comida, e qualquer outra coisa na criação de Deus, é “santificada” pela palavra de Deus e pela oração (1Tm 4.5). Isso não significa que a palavra e a oração fazem a criação de Deus ser boa caso ela não seja. Em vez disso, ao reconhecer Deus com gratidão como o criador e provedor de todas as coisas, um cristão separa as coisas criadas, como alimento, para um propósito santo e que honra a Deus. Como cristão, é possível até comer e beber para a glória de Deus (1Co 10.31).

Essa afirmação da criação significa que não há material criado inerentemente mau com o qual trabalhar, e nenhum trabalho envolvido com a criação que seja inaceitável para os cristãos, se não violar a vontade de Deus. Em outras palavras, um cristão pode cavar poços, projetar chips de computador, lavar banheiros, andar na Lua, consertar telefones celulares, plantar ou colher árvores para a glória de Deus. Nenhum desses empregos ou materiais é inerentemente maligno. De fato, todo trabalho pode agradar a Deus. Isso pode parecer intuitivo para aqueles no mundo ocidental moderno que não lutam muito com o ascetismo, como os antigos gregos e romanos lutavam. Mas 1Timóteo 4.4 nos lembra até mesmo de não vermos o reino material como algo neutro em valor moral ou ver coisas como a tecnologia, por exemplo, como inerentemente más. A bondade de toda a criação de Deus nos permite viver e trabalhar em alegre liberdade, recebendo todas as coisas como vindas das mãos de Deus.

Bons relacionamentos surgem do respeito genuíno (1Tm 5.1—6.2; Tt 2.1-10)

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O texto de 1Timóteo 4.6-16 está repleto de diretrizes específicas de Paulo para Timóteo. Seria útil que os obreiros cristãos se lembrassem de que o treinamento em piedade é um componente crucial do desenvolvimento profissional (cf. 1Tm 4.8). Passamos rapidamente desta seção, no entanto, para a próxima, que abrange 1Timóteo 5.1—6.2. Novamente, esta seção é semelhante a outra, de Tito 2.1-10. Ser membro da igreja não deve nos levar a explorar os outros dentro da igreja (cf. 1Tm 5.16; 6.2), mas sim a trabalhar mais para abençoá-los. Isso se aplica também no trabalho.

Em particular, essas duas passagens descrevem como homens e mulheres, idosos e jovens, senhores e escravos devem se comportar dentro da família de Deus. Os dois primeiros versículos desta seção em 1Timóteo são importantes. “Não repreenda asperamente o homem idoso, mas exorte-o como se ele fosse seu pai; trate os jovens como a irmãos; as mulheres idosas, como a mães; e as moças, como a irmãs, com toda a pureza”. Esse mandamento não diminui nenhuma distinção entre famílias e igreja (como 1Tm 5.4, 8 deixa claro), mas sugere que a bondade, a compaixão, a lealdade e a pureza que devem caracterizar nossos relacionamentos familiares mais íntimos também devem caracterizar nossos relacionamentos com os membros da família de Deus, a igreja.

A exortação de Paulo para agir “com toda a pureza” nos lembra que violações dos limites sexuais ocorrem em famílias e igrejas, bem como nos locais de trabalho. O assédio sexual pode passar despercebido — até mesmo daqueles que não estão sendo assediados — nos locais de trabalho. Podemos trazer uma bênção a todo tipo de local de trabalho prestando mais atenção em como homens e mulheres são tratados e desafiando palavras e ações inadequadas e abusivas.

É certo pensar em um local de trabalho como uma família? Não e sim. Não, não é verdadeiramente uma família, pelas razões retratadas de forma tão divertida na série de televisão The Office. A participação em um local de trabalho está condicionada ao desempenho adequado de uma função. Ao contrário dos membros da família, os funcionários que não são mais aprovados pela administração estão sujeitos a demissão. O emprego não é permanente, não é “algo que você, de alguma forma, não merece”. [1] Seria ingênuo — possivelmente até abusivo — fingir que um local de trabalho é uma família.

No entanto, em certos sentidos, um local de trabalho pode ser como uma família, se esse termo for usado para descrever o respeito, o compromisso, a comunicação aberta e o cuidado que os membros da família devem mostrar uns aos outros. Se os cristãos fossem conhecidos por tratar os colegas de trabalho da mesma forma, isso poderia ser um grande ponto do serviço redentor da igreja ao mundo. A mentoria, por exemplo, é um serviço extremamente valioso que trabalhadores experientes podem oferecer a colegas mais novos. Assemelha-se ao investimento que os pais fazem em seus filhos. E, assim como protegemos os membros da família contra abuso e exploração, o amor de Cristo nos impele a fazer o mesmo pelas pessoas no trabalho. Certamente, nunca devemos nos envolver em abuso ou exploração de outras no trabalho, por imaginar que lhes devemos menos respeito ou cuidado do que aos membros da família (ou da igreja). Em vez disso, devemos nos esforçar para amar todos os nossos semelhantes, incluindo aqueles no local de trabalho, como nossa família e como nós mesmos.

Piedade com contentamento é um grande lucro (1Tm 6.3-10, 17-19)

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A última seção de 1Timóteo está repleta de poderosas exortações e advertências para os cristãos ricos. (Vamos pular as recomendações de Paulo a Timóteo nos versículos 11-16;20, que são direcionadas a Timóteo em sua situação particular.) 1Timóteo 6.3-10 e 17-19 têm aplicações diretas no local de trabalho. Ao ler e aplicar essas passagens, entretanto, devemos evitar dois erros comuns.

Primeiro, essa passagem não ensina que não há “lucro” em ser piedoso. Quando Paulo escreve que aqueles que “têm a mente corrompida e que são privados da verdade” imaginam que “a piedade é fonte de lucro” (1Tm 6.5), o que ele está denunciando é a mentalidade de que a piedade necessariamente leva a ganho financeiro nesta vida ou que a piedade deve ser buscada em prol do ganho financeiro imediato. A loucura desse pensamento é tripla:

  1. Deus muitas vezes chama seus santos para sofrerem carência material nesta vida e, portanto, o povo de Deus não deve colocar sua esperança na “incerteza da riqueza” (1Tm 6.17).

  2. Mesmo que alguém receba grandes riquezas nesta vida, o ganho é de curta duração, porque, como John Piper coloca, “não há reboques atrás de carros funerários” (1Tm 6.7). [1]

  3. O desejo de riqueza leva ao mal, à apostasia, à ruína e à destruição (1Tm 6.9-10).

Observe cuidadosamente, porém, que Paulo encoraja seus leitores a saberem que a piedade é grande fonte de lucro quando combinada com contentamento nas necessidades básicas da vida (1Tm 6.6, 8). Nosso Deus é um Deus “que de tudo nos provê ricamente, para a nossa satisfação” (1Tm 6.17). Paulo ordena aos ricos justos que “pratiquem o bem, sejam ricos em boas obras, generosos e prontos a repartir” (1Tm 6.18) — não que vendam tudo o que têm e empobreçam. Eles devem ser ricos em boas obras para que possam acumular “um tesouro para si mesmos, um firme fundamento para a era que há de vir, e assim alcançarão a verdadeira vida” (1Tm 6.19). Em outras palavras, a piedade é um meio de ganho, desde que esse ganho seja entendido como vida e bênçãos na presença de Deus, e não apenas como mais dinheiro agora. A exortação de Paulo em 1Timóteo 6.18-19 é semelhante ao ensinamento de Jesus: “Mas acumulem para vocês tesouros nos céus, onde a traça e a ferrugem não destroem e onde os ladrões não arrombam nem furtam” (Mt 6.20; cf. Mt 19.21; Lc 12.33).

O segundo erro a ser evitado é pensar que essa passagem e sua condenação ao amor ao dinheiro significam que nenhum obreiro cristão deve buscar aumento ou promoção, ou que nenhuma empresa cristã deve tentar lucrar. Existem muitas razões pelas quais alguém poderia querer mais dinheiro; algumas delas podem ser ruins, mas outras podem ser boas. Se alguém quisesse mais dinheiro pelo status, pelo luxo ou pelo aumento do ego que isso proporcionaria, então realmente cairia na repreensão desta seção das Escrituras. Mas, se alguém quisesse ganhar mais dinheiro para sustentar adequadamente seus dependentes, dar mais às causas que honram a Cristo ou investir na criação de bens e serviços que permitissem à comunidade prosperar, não seria mau querer mais dinheiro. [2] Rejeitar o amor ao dinheiro não é se opor a todo desejo de ser bem-sucedido ou lucrativo no trabalho.

2Timóteo: Encorajamento para um trabalhador fiel

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A carta de 2Timóteo, assim como 1Timóteo, é dirigida pelo apóstolo Paulo a seu colaborador mais jovem e é talvez a última carta escrita que temos de Paulo. Ao contrário de 1Timóteo, no entanto, 2Timóteo parece ser uma carta mais pessoal, na qual Paulo encoraja Timóteo e lhe dá a solene ordem de permanecer fiel, mesmo depois de Paulo ter partido. O próprio fato de 2Timóteo ter sido preservada e incluída no cânon cristão das Escrituras indica, no entanto, que essa carta pessoal tem um significado além de seu contexto original e particular.

As culturas podem persistir por gerações (2Tm 1.1—2.13; 3.10-17)

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Uma das características marcantes de 2Timóteo é o tema da fidelidade geracional. Perto do início da carta, Paulo lembra a Timóteo a fé que habitava em sua avó, sua mãe e depois no próprio Timóteo (2Tm 1.5). Essa progressão sugere que o testemunho fiel e o exemplo da avó e da mãe de Timóteo estavam entre os meios que Deus usou para levar Timóteo à fé. Esse entendimento é confirmado mais adiante na carta, quando Paulo encoraja Timóteo a permanecer “nas coisas que aprendeu e das quais tem convicção, pois você sabe de quem o aprendeu” (2Tm 3.14-15a). Paulo também, como membro de uma geração mais velha, é um modelo a ser seguido por Timóteo. Paulo escreve: “Suporte comigo os meus sofrimentos pelo evangelho, segundo o poder de Deus” (2Tm 1.8), “retenha, com fé e amor em Cristo Jesus, o modelo da sã doutrina que você ouviu de mim” (2Tm 1.13) e “você tem seguido de perto o meu ensino, a minha conduta, o meu propósito, a minha fé, a minha paciência, o meu amor, a minha perseverança, as perseguições e os sofrimentos que enfrentei” (2Tm 3.10-11a).

Não apenas Timóteo recebeu ensinamentos de gerações anteriores, mas Paulo pretende que ele transmita o que aprendeu também às gerações seguintes: “E as palavras que me ouviu dizer na presença de muitas testemunhas, confie-as a homens fiéis que sejam também capazes de ensiná-las a outros” (2Tm 2.2). Esse tema desafia os trabalhadores cristãos a considerarem que tipo de legado desejam deixar no local de trabalho e em seu ramo de atividade. O primeiro passo para deixar um legado positivo é fazer seu trabalho com fidelidade e da melhor forma possível. Um passo adicional seria treinar seu sucessor, de modo que quem um dia for substituí-lo esteja preparado para fazer bem seu trabalho. Um obreiro cristão deve ser humilde o suficiente para aprender com os outros e compassivo o suficiente para ensinar com paciência. No entanto, no final, os obreiros cristãos devem se perguntar se deixaram um legado de redenção em palavras e ações.

O aspecto geracional de 2Timóteo se aplica não apenas a indivíduos, mas a todos os tipos de corporações, com ou sem fins lucrativos. A forma corporativa foi criada para que as organizações pudessem sobreviver aos indivíduos que as compõem, sem a necessidade de reformar a entidade a cada transição. Um dos princípios básicos das auditorias financeiras é que a corporação deve ser uma “empresa em atividade”, o que significa que deve operar de maneira sustentável. [1] Quando as práticas de remuneração, o endividamento, o gerenciamento de riscos, o controle financeiro, o controle de qualidade ou qualquer outro fator de uma organização se tornam seriamente prejudiciais à sua sustentabilidade, seus líderes têm o dever de exigir mudanças.

Isso não significa que as corporações nunca devam se fundir, dissolver ou deixar de existir. Às vezes, a missão de uma organização foi cumprida, seu propósito se tornou obsoleto ou deixou de fornecer valor significativo. Então, sua existência pode não fazer mais sentido. Mas, mesmo assim, seus líderes têm responsabilidade pelo legado que a corporação deixará na sociedade depois que for dissolvida. Por exemplo, várias empresas expõem seus aposentados ao risco de pobreza porque não financiaram adequadamente seus passivos previdenciários. Os governos municipais e estaduais são ainda mais propensos a essa falha. As organizações têm o dever — tanto do ponto de vista bíblico quanto cívico — de perguntar se suas operações estão transferindo responsabilidades para as gerações futuras.

Da mesma forma, 2Timóteo sugere que as organizações devem operar de maneira ambiental e socialmente sustentável. Depender da extração de recursos insustentáveis ​​ou da poluição ambiental para ter sucesso é uma violação do princípio geracional. Esgotar o “capital social” da comunidade — ou seja, os investimentos educacionais, culturais, legais e outros investimentos sociais que fornecem força de trabalho instruída, meios de transações, sociedade pacífica e outros fatores dos quais as organizações de trabalho dependem — também seria insustentável. Até certo ponto, os locais de trabalho investem em capital ambiental e social, pagando impostos para apoiar os programas ambientais e sociais dos governos. Mas talvez eles tivessem acesso mais confiável ao capital ambiental e social se fizessem mais para criar sistemas sustentáveis ​​por iniciativa própria.

Guarde sua língua (2Tm 2.14-26)

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Na seção seguinte, Paulo aconselha Timóteo com várias exortações que podem se aplicar diretamente ao local de trabalho. Paulo repetidamente adverte Timóteo que evite “discussões acerca de palavras” (2Tm 2.14), “conversas inúteis e profanas” (2Tm 2.16) e “controvérsias tolas e inúteis” (2Tm 2.23). Este é um bom lembrete para os obreiros cristãos de que nem toda conversa no café é proveitosa, mesmo que não seja totalmente má. As conversas em que nos envolvemos e como falamos são úteis para as pessoas ao redor? Nossas palavras servem como embaixadoras da reconciliação e da redenção (2Co 5.20)? Conversas inúteis podem se espalhar como câncer (2Tm 2.17), levar à perversão e à impiedade (2Tm 2.14, 16) e geram brigas (2Tm 2.23). Pode-se pensar em advertências semelhantes em Tiago (cf. Tg 3.2-12) sobre o potencial destrutivo das palavras.

Na verdade, a forma mais importante de dar testemunho de Jesus é como os cristãos falam com os colegas de trabalho, quando não estão falando sobre Jesus. Três palavras de fofoca podem destruir três mil palavras de louvor e piedade. Mas os cristãos que consistentemente encorajam, apreciam, respeitam e demonstram cuidado por meio de suas palavras são testemunhas poderosas de Jesus, mesmo que suas palavras raramente sejam diretamente sobre ele. Agir com humildade e evitar completamente o julgamento são os meios mais seguros de evitar controvérsias estúpidas e sem sentido.

Paulo também exorta Timóteo a que “fuja dos desejos malignos da juventude e siga a justiça” (2Tm 2.22). Isso pode nos lembrar que os funcionários trazem suas dificuldades pessoais para o trabalho. O abuso de álcool e drogas afeta praticamente todos os locais de trabalho, e “um quarto dos funcionários que usam a Internet visita sites pornográficos durante o trabalho [...] e as ocorrências são mais altas durante o expediente do que em qualquer outra hora do dia”. [1] Outra exortação que pode ser aplicada aos obreiros cristãos é que “ao servo do Senhor não convém brigar mas, sim, ser amável para com todos, apto para ensinar, paciente. Deve corrigir com mansidão os que se lhe opõem” (2Tm 2.24-25a). De fato, muito do retrato que Paulo esboça de Timóteo nesta carta pode ser considerado algo pelo qual os obreiros cristãos devem se esforçar. Paulo, escrevendo uma carta a Timóteo, torna-se uma rede de apoio para ele. Podemos perguntar que tipo de redes de apoio as organizações de hoje fariam bem em fornecer aos trabalhadores.

O tempo de dificuldade é agora (2Tm 3.1-9)

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O quarto e último capítulo de 2Timóteo consiste principalmente na incumbência de Paulo a Timóteo, nas reflexões de Paulo sobre sua vida e em instruções e saudações específicas. Não há dúvida de que parte desse material poderia se aplicar indiretamente ao trabalho. No entanto, examinaremos apenas mais um parágrafo da carta: 2Timóteo 3.1-9.

O primeiro versículo apresenta o ponto principal do parágrafo: “Nos últimos dias sobrevirão tempos terríveis” (2Tm 3.1). O que a descrição que se segue deixa claro, no entanto, é que Timóteo já está vivendo nesses últimos dias (cf. 2Tm 3.2, 5). Que os “últimos dias” já estão sobre todos nós é o testemunho claro e consistente do Novo Testamento (veja At 2.17; Hb 1.2; Tg 5.3; 2Pe 3.3). Os cristãos precisam estar preparados para as dificuldades e o sofrimento associados a esses últimos dias. Mais tarde, Paulo adverte: “De fato, todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Tm 3.12).

Este é um lembrete preocupante para aqueles cristãos que trabalham em ambientes que podem ser difíceis, mas são muito menos ameaçadores do que as realidades sociais do primeiro século ou de muitos lugares do mundo hoje. Como cristãos, devemos esperar maus-tratos no trabalho, injustiça, preconceito, oposição e zombaria. Se experimentarmos poucas dessas coisas, teremos motivos para nos regozijar, mas não devemos permitir que nossas atuais condições benevolentes de trabalho nos embalem para dormir. Talvez cheguem os dias em que ser fiel a Cristo no trabalho resulte em mais do que olhares estranhos e piadas pelas costas. De fato, os trabalhadores, a qualquer momento, podem ser pressionados a agirem de forma antiética ou contrária à palavra de Deus. Naquele momento, será visto com mais clareza se temos mais do que uma mera “aparência de piedade” (2Tm 3.5). Se tivermos, sabemos que Deus estará ao nosso lado e nos dará força (2Tm 4.17).

Tito: Trabalhando por boas ações

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A carta de Paulo a Tito é a última epístola pastoral e tem muitas semelhanças com 1 e 2Timóteo. (Sobre Tt 1.5-9 , veja 1Tm 3.1-13, acima. Sobre Tt 2.1-10, veja 1Tm 5.1—6.2, acima.) Nesta carta, Paulo lembra a Tito que ele o havia deixado em Creta “para que você pusesse em ordem o que ainda faltava” (Tt 1.5). Como Timóteo, Tito precisava combater os falsos ensinos, instalar a liderança adequada e garantir que o povo fosse devotado às boas obras (Tt 3.8, 14).

Seja dedicado à prática de boas obras (Tt 2.11—3.11)

Já consideramos as qualificações de liderança descritas em Tito 1.5-9 e os relacionamentos família-igreja descritos em Tito 2.1-10 nas seções anteriores deste capítulo. Muito do restante desta carta pode ser resumido pela visão de Paulo de que o povo de Deus deve ser dedicado à prática de boas obras. Essa visão certamente se aplica aos obreiros cristãos, que devem se dedicar às boas obras no local de trabalho. Boas obras, é claro, significam trabalho feito de forma a agradar a Deus, mais do que a si mesmo ou a qualquer outra pessoa. As boas obras cumprem os propósitos de Deus vistos em sua criação do mundo. Elas tornam o mundo um lugar melhor e ajudam a redimir sua situação e a reconciliar as pessoas umas com as outras e com Deus. A devoção a esse tipo de trabalho impulsiona os trabalhadores cristãos mais do que a paixão de fazer bem seu trabalho por causa de dinheiro ou de avaliações de desempenho. No entanto, para que os cristãos tenham essa paixão piedosa por boas obras, devemos entender o que as permite e por que as fazemos. A carta a Tito aborda essas duas questões.

Primeiro, é fundamental que os cristãos se lembrem de que Deus, “não por causa de atos de justiça por nós praticados, mas devido à sua misericórdia, [...] nos salvou pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo” (Tt 3.5). Nossa conduta no local de trabalho, em casa ou em qualquer outro lugar não estabelece nosso relacionamento com Deus. Não podemos “ganhar” sua misericórdia. No entanto, a carta a Tito ensina inequivocamente que a graça de Deus não apenas perdoa nossos pecados, mas também nos treina a “renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver de maneira sensata, justa e piedosa nesta era presente” (Tt 2.12). Jesus se entregou para que ele pudesse “nos remir de toda a maldade e purificar para si mesmo um povo particularmente seu, dedicado à prática de boas obras” (Tt 2.14). A maravilhosa seção de Tito 3.3-7 descreve a misericórdia de Deus na conversão e na justificação como a base do mandamento para que os crentes “se sujeitem aos governantes e às autoridades, sejam obedientes, estejam sempre prontos a fazer tudo o que é bom, não caluniem ninguém, sejam pacíficos, amáveis e mostrem sempre verdadeira mansidão para com todos os homens” (Tt 3.1-2). A graça que Deus concede na salvação resulta em uma vida piedosa (embora imperfeita) de obediência e boas obras. Lembrar-nos dessa realidade ao longo das atividades do dia nos levaria a nos tornarmos servos de Cristo mais eficazes e mordomos da criação?

Em segundo lugar, esta seção de Tito nos lembra dos propósitos das boas obras. Elas visam atender às necessidades dos outros e tornar produtivo nosso lugar da criação de Deus (Tt 3.14). Isso remonta ao mandato de lavrar a terra e torná-la frutífera (Gn 2.5, 15). As boas obras servem a Deus e às pessoas, mas não objetivam principalmente ganhar o favor de Deus e das pessoas. A produção de boas obras não é o oposto da fé, mas a consequência essencial da fé. É a resposta que damos a Deus depois de recebermos o “lavar regenerador e renovador do Espírito Santo” (Tt 3.5). “Justificados por sua graça, nos [tornamos] seus herdeiros, tendo a esperança da vida eterna” (Tt 3.7) e, como resultado, nos dedicamos e nos empenhamos na prática de boas obras. “Tais coisas são excelentes e úteis aos homens” (Tt 3.8). Paulo não está falando sobre fazer pregações, distribuir folhetos ou falar às pessoas sobre Jesus. Ele está falando sobre boas obras no sentido comum de fazer o que os outros reconhecem que atenderão às necessidades das pessoas. Em termos de local de trabalho, poderíamos dizer que ele quer dizer algo como ajudar novos colegas a se acostumarem com o trabalho, mais do que convidá-los a participar de um estudo bíblico.

Além disso, o comportamento piedoso é encorajado “a fim de que a palavra de Deus não seja difamada” (Tt 2.5) e “para que aqueles que se opõem a você fiquem envergonhados por não poderem falar mal de nós” (Tt 2.8). Colocado positivamente, o comportamento piedoso é encorajado para os cristãos “para que assim tornem atraente, em tudo, o ensino de Deus, nosso Salvador” (Tt 2.10). A doutrina correta leva a boas obras, e as boas obras tornam a verdade de Deus atraente para os outros. Esse é o objetivo por trás da devoção dos trabalhadores cristãos às boas obras no trabalho — viver por meio de suas ações a verdade que proclamam com os lábios. Isso pode ser um testemunho poderoso, tanto para desarmar a antipatia em relação aos cristãos quanto para apelar aos incrédulos para que eles mesmos sigam a Cristo.

Ao longo da carta, Paulo dá instruções práticas para realizar boas obras. A maioria delas pode ser aplicada ao local de trabalho. Tiramos nossa sugestão disso da própria carta. Nada nas instruções às mulheres mais velhas, por exemplo (serem reverentes, não caluniarem, não serem escravas da bebida, ensinarem o que é bom), sugere que apenas mulheres mais velhas devem segui-las, assim como nada nas instruções de Timóteo sugere que elas possam ser aplicadas na igreja. (Sobre a questão de saber se as instruções aos escravos podem ser aplicadas aos empregados modernos, ver Colossenses 3.18—4.1 em “Colossenses, Filemom e o trabalho”.)

Praticamente qualquer local de trabalho que procura uma declaração de valores organizacionais e de boas práticas começaria bem simplesmente recortando e colando de Tito. O conselho de Paulo inclui o seguinte:

Respeito

  • Mostre respeito a todos (Tt 3.1).

  • Seja hospitaleiro (Tt 1.8).

  • Seja bondoso (Tt 2.5).

  • Não se envolva em conflitos sobre questões inconsequentes (Tt 3.9).

  • Não seja orgulhoso, briguento ou ávido por lucro desonesto (Tt 1.7,8)

  • Não use a violência como meio de supervisão (Tt 1.7). Em vez disso, use a gentileza (Tt 3.1).

Autocontrole

  • Tenha domínio próprio (Tt 1.8; 2.6).

  • Não seja ganancioso (Tt 1.7).

  • Não se torne viciado em álcool (Tt 1.7; 2.3).

  • Evite inveja e maldade (Tt 3.3).

Integridade

  • Seja justo (Tt 1.8).

  • Amigo do bem (Tt 1.8).

  • Submeta-se àqueles que têm autoridade sobre você no local de trabalho (Tt 2.9). Obedeça às autoridades civis (Tt 3.1).

  • Respeite a propriedade dos outros (Tt 2.10) e administre-a fielmente em nome deles, se você tiver um dever fiduciário (Tt 2.5).

Autoridade e dever

  • Exerça a autoridade que lhe foi dada (Tt 2.15).

  • Seja prudente (Tt 1.8).

  • Silencie pessoas rebeldes, faladoras, enganadoras, caluniadoras e aquelas que intencionalmente causam divisões pessoais (Tt 1.10; 2.3; 3.10). Repreenda-as severamente (Tt 1.13).

  • Treine outros sob sua liderança nessas mesmas virtudes (Tt 2.2-10).

Devemos ter cuidado para não transformar tais aplicações em um dogma simplista. “Seja prudente”, portanto, não precisa significar que nunca há um momento adequado para assumir riscos instruídos. “Mostre mansidão” não significa nunca exercer poder. Essas são aplicações para locais de trabalho modernos de uma antiga carta para a igreja. Esses itens de Tito servem como uma excelente fonte de princípios e valores adequados à boa liderança, tanto na igreja quanto no local de trabalho.

Resumo e conclusão das epístolas pastorais

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As epístolas pastorais enfocam organização, relacionamentos e liderança dentro da família de Deus. Esta começa com a família, se estende até a igreja e, muitas vezes, se aplica ao local de trabalho. O Deus que criou a família e a igreja é também o Deus que criou o trabalho. Ele estabeleceu para a igreja uma ordem que traz paz, prosperidade e estabilidade. A mesma ordem — ou uma muito semelhante — pode trazer as mesmas bênçãos para outros locais de trabalho.

A primeira tarefa para qualquer organização é entender a verdadeira natureza de Deus e de sua criação. Todo local de trabalho precisa ser fundamentado na “coluna e fundamento da verdade” (1Tm 3.15), para que seja eficaz. Começamos reconhecendo a verdade da boa criação de Deus, a queda da humanidade, a persistência da graça de Deus no mundo, a missão de Cristo e da igreja de redimir o mundo e seu povo, e a promessa da restauração da perfeita ordem. Reconhecemos que a redenção surge apenas como um dom gratuito de Deus, resultando em nosso desejo e capacidade de realizar todo tipo de boas obras. Dessa forma, tornamos o mundo produtivo e atendemos às necessidades das pessoas.

As epístolas pastorais expõem as implicações dessa verdade para a organização da igreja, com uma preocupação especial com liderança e bons relacionamentos. As considerações também se aplicam a locais de trabalho fora da igreja, desde que sejam respeitadas as diferenças entre a igreja e as demais organizações. As aplicações das epístolas pastorais no local de trabalho nem sempre são diretas nem óbvias, mas a verdade encontrada nessas cartas, quando aplicadas em espírito de oração ao local de trabalho, pode manifestar a maneira de Deus ordenar a realidade e, assim, trazer glória àquele “a quem ninguém viu nem pode ver” (1Tm 6.16).

Versículos e temas-chave nas epístolas pastorais

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Versículos

Temas

1Timóteo 1.3-5 Partindo eu para a Macedônia, roguei que você permanecesse em Éfeso para ordenar a certas pessoas que não mais ensinem doutrinas falsas e que deixem de dar atenção a mitos e genealogias intermináveis, que causam controvérsias em vez de promoverem a obra de Deus, que é pela fé. O objetivo desta instrução é o amor que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera.

A crença afeta o comportamento ou a doutrina afeta a prática.

1Timóteo 1.3-4 Quando parti para a Macedônia, pedi a você que ficasse em Éfeso e advertisse certas pessoas de que não ensinassem coisas contrárias à verdade, nem desperdiçassem tempo com discussões intermináveis sobre mitos e genealogias, que só levam a especulações sem sentido em vez de promover o propósito de Deus, que é realizado pela fé. (Nova Versão Transformadora)

1Timóteo 3.5 Pois, se alguém não sabe governar sua própria família, como poderá cuidar da igreja de Deus?

1Timóteo 3.14-15 Escrevo estas coisas, embora espere ir vê-lo em breve; mas, se eu demorar, saiba como as pessoas devem comportar-se na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna e fundamento da verdade.

A maneira de Deus ordenar a realidade, conforme vista nos lares e nas igrejas, deve de alguma forma se refletir também nas organizações empresariais.

1Timóteo 2.1-2 Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade.

1Timóteo 2.8-9 Quero, pois, que os homens orem em todo lugar, levantando mãos santas, sem ira e sem discussões. Da mesma forma, quero que as mulheres se vistam modestamente, com decência e discrição [...].

Os cristãos devem orar pela paz e pela ordem de sua igreja, de sua sociedade e de seu local de trabalho.

1Timóteo 3.2-3 É necessário, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma só mulher, moderado, sensato, respeitável, hospitaleiro e apto para ensinar; não deve ser apegado ao vinho nem violento, mas sim amável, pacífico e não apegado ao dinheiro

1Timóteo 3.10 Devem ser primeiramente experimentados; depois, se não houver nada contra eles, que atuem como diáconos.

Tito 1.7-8 Por ser encarregado da obra de Deus, é necessário que o bispo seja irrepreensível: não orgulhoso, não briguento, não apegado ao vinho, não violento, nem ávido por lucro desonesto. Ao contrário, é preciso que ele seja hospitaleiro, amigo do bem, sensato, justo, consagrado, tenha domínio próprio.

A liderança que agrada a Deus é caracterizada por integridade moral e confiabilidade.

1Timóteo 4.4-5 Pois tudo o que Deus criou é bom, e nada deve ser rejeitado, se for recebido com ação de graças, pois é santificado pela palavra de Deus e pela oração.

A criação é boa e nosso envolvimento com ela pode ser santificado pela palavra de Deus e pela oração.

1Timóteo 4.7-8 [...] e exercite-se na piedade. O exercício físico é de pouco proveito; a piedade, porém, para tudo é proveitosa, porque tem promessa da vida presente e da futura

O treinamento na piedade é um componente essencial do desenvolvimento profissional.

1Timóteo 5.1-2 Não repreenda asperamente o homem idoso, mas exorte-o como se ele fosse seu pai; trate os jovens como a irmãos; as mulheres idosas, como a mães; e as moças, como a irmãs, com toda a pureza.

1Timóteo 6.2 Os que têm senhores crentes não devem ter por eles menos respeito, pelo fato de serem irmãos; ao contrário, devem servi-los ainda melhor, porque os que se beneficiam do seu serviço são fiéis e amados. Ensine e recomende essas coisas.

Os cristãos devem tratar seus colegas de trabalho com o respeito e o cuidado que demonstrariam aos membros de sua família ou à igreja.

1Timóteo 6.6-8 De fato, a piedade com contentamento é grande fonte de lucro, pois nada trouxemos para este mundo e dele nada podemos levar; por isso, tendo o que comer e com que vestir-nos, estejamos com isso satisfeitos.

1Timóteo 6.17-19 Ordene aos que são ricos no presente mundo que não sejam arrogantes, nem ponham sua esperança na incerteza da riqueza, mas em Deus, que de tudo nos provê ricamente, para a nossa satisfação. Ordene-lhes que pratiquem o bem, sejam ricos em boas obras, generosos e prontos a repartir. Dessa forma, eles acumularão um tesouro para si mesmos, um firme fundamento para a era que há de vir, e assim alcançarão a verdadeira vida.

Os cristãos devem se contentar com as provisões de Deus e não amar o dinheiro. Os ricos justos devem ser generosos e buscar a recompensa celestial.

2Timóteo 1.5 Recordo-me da sua fé não fingida, que primeiro habitou em sua avó Loide e em sua mãe, Eunice, e estou convencido de que também habita em você.

2Timóteo 2.2 [...] E as palavras que me ouviu dizer na presença de muitas testemunhas, confie-as a homens fiéis que sejam também capazes de ensiná-las a outros.

Um legado piedoso é transmitido de geração em geração.

2Timóteo 2.22-25 Fuja dos desejos malignos da juventude e siga a justiça, a fé, o amor e a paz, com aqueles que, de coração puro, invocam o Senhor. Evite as controvérsias tolas e inúteis, pois você sabe que acabam em brigas. Ao servo do Senhor não convém brigar mas, sim, ser amável para com todos, apto para ensinar, paciente. Deve corrigir com mansidão os que se lhe opõem, na esperança de que Deus lhes conceda o arrependimento, levando-os ao conhecimento da verdade.

Os cristãos devem se esforçar para alcançar maturidade e semelhança com Cristo em seu local de trabalho.

2Timóteo 3.1 Saiba disto: nos últimos dias sobrevirão tempos terríveis.

2Timóteo 3.12 De fato, todos os que desejam viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos.

Os cristãos devem esperar dificuldades, às vezes, no local de trabalho.

Tito 2.9-12 Ensine os escravos a se submeterem em tudo a seus senhores, a procurarem agradá-los, a não serem respondões e a não roubá-los, mas a mostrarem que são inteiramente dignos de confiança, para que assim tornem atraente, em tudo, o ensino de Deus, nosso Salvador. Porque a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens. Ela nos ensina a renunciar à impiedade e às paixões mundanas e a viver de maneira sensata, justa e piedosa nesta era presente.

Tito 3.14 Quanto aos nossos, que aprendam a dedicar-se à prática de boas obras, a fim de que supram as necessidades diárias e não sejam improdutivos.

Jesus nos purificou para que possamos nos dedicar às boas obras. Essas boas obras adornam os princípios de Deus e manifestam a produtividade com a qual ele criou o mundo.

Introdução a Hebreus

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O livro de Hebreus oferece uma base profunda para a compreensão do valor do trabalho no mundo. Oferece ajuda prática para superar o mal no trabalho, desenvolver um ritmo de trabalho e descanso, servir as pessoas com quem trabalhamos, suportar dificuldades, trazer paz ao ambiente de trabalho, perseverar por longos períodos, oferecer hospitalidade, cultivar uma atitude estimulante em relação ao dinheiro e encontrar fidelidade e alegria em locais de trabalho em que o amor de Cristo parece muitas vezes escasso.

O livro é baseado em uma mensagem essencial: Ouça Jesus! Alguns crentes estavam se sentindo pressionados a desistir do Messias e voltar para a antiga aliança. Hebreus os lembra de que Jesus, o Rei, por meio de quem o mundo foi criado, é também o Sumo Sacerdote consumado nas regiões celestiais, que iniciou um novo e melhor pacto, com consequências concretas na terra. Ele é o sacrifício final pelo pecado e o intercessor final por nós na vida diária. Não devemos buscar salvação em nenhum outro lugar, mas apenas confiar em Cristo e viver em obediência até que ele nos leve à cidade transformada e renovada de Deus. Lá encontraremos o descanso sabático eterno, que não é a cessação do trabalho, mas a perfeição do ciclo de trabalho e descanso pretendido por Deus nos sete dias da criação.

Cristo criou o mundo e o sustenta (Hb 1.1—2.8)

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Um ponto crítico para a teologia em Hebreus é que Cristo criou o mundo e o sustenta. Ele é o Filho “por meio de quem [Deus] fez o universo” (Hb 1.2). Portanto, Hebreus é um livro sobre Cristo, o criador, trabalhando em seu local de trabalho, a criação. Isso pode ser surpreendente para quem esteja acostumado a pensar somente no Pai como criador. Mas Hebreus é consistente com o restante do Novo Testamento (por exemplo, Jo 1.3; Cl 1.15-17) ao nomear Cristo como o agente do Pai na criação. [1] Como Cristo é plenamente Deus, “o resplendor da glória de Deus, a expressão exata do seu ser” (Hb 1.3), o escritor de Hebreus pode se referir indistintamente a Cristo ou ao Pai como o Criador.

Como, então, Hebreus retrata a ação de Cristo na criação? Ele é um construtor, que funda a terra e constrói os céus. “No princípio, Senhor, firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos” (Hb 1.10). Além disso, ele mantém a criação atual, sustentando “todas as coisas por sua palavra poderosa” (Hb 1.3). “Todas as coisas”, é claro, também nos inclui: “toda casa é edificada por alguém, mas Deus é aquele que edificou tudo [...]; essa casa somos nós, se é que nos apegamos firmemente à confiança e à esperança gloriosa” (Hb 3.4, 6). Toda a criação é edificada por Deus por meio de seu Filho. Isso confirma fortemente que a criação é o lugar principal da presença e da salvação de Deus.

A imagem de Deus como obreiro continua em Hebreus. Ele montou ou armou o tabernáculo celestial (Hb 8.2; por implicação, Hb 9.24), construiu um modelo ou uma planta para o tabernáculo de Moisés (Hb 8.5) e projetou e construiu uma cidade (Hb 11.10, 16; 12.22; 13.14). Ele é o juiz em um tribunal, bem como o algoz (Hb 4.12-13; 9.28; 10.27-31; 12.23). Ele é um líder militar (Hb 1.13), um pai (Hb 1.5; 5.8; 8.9; 12.4-11), um senhor que arruma sua casa (Hb 10.5), um lavrador (Hb 6.7-8), um escriba (Hb 8.10), um tesoureiro (Hb 10.35; 11.6) e um médico (Hb 12.13). [2]

É verdade que Hebreus 1.10-12, citando o salmo 102, aponta um contraste entre o Criador e a criação:

No princípio, Senhor, firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos. Eles perecerão, mas tu permanecerás; todos eles envelhecerão como vestimentas. O Senhor os enrolará como um manto; como roupas eles serão trocados. Tu, porém, permaneces o mesmo, e os teus anos jamais terão fim.

Isso está muito de acordo com a ênfase na natureza transitória da vida neste mundo e a necessidade de buscar a cidade duradoura dos novos céus e da nova terra. Ainda assim, a ênfase de Hebreus 1.10-12 está no poder do Senhor e na libertação que ele proporciona, e não na fragilidade do cosmos. [3] O Senhor está trabalhando na criação.

Os seres humanos não são apenas produtos da criação de Deus, também somos subcriadores (ou cocriadores, se você preferir) com ele. Como seu Filho, somos chamados à obra de ordenar o mundo. "Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes? Tu o fizeste um pouco menor do que os anjos e o coroaste com glória e com honra; sujeitaste todas as coisas debaixo dos seus pés” (Hb 2.6-8, citando Sl 8). [4] Se parece um pouco presunçoso considerar meros seres humanos participantes da obra da criação, Hebreus nos lembra: “Jesus não se envergonha de chamá-los irmãos” (Hb 2.11).

Portanto, nosso trabalho deve ser semelhante à obra de Deus. Ela tem um valor eterno. Quando fabricamos computadores, aviões e camisas, vendemos sapatos, fazemos empréstimos, colhemos café, criamos filhos, governamos cidades, províncias e nações ou fazemos qualquer tipo de trabalho criativo, estamos trabalhando ao lado de Deus em sua obra de criação.

O ponto é que Jesus é o supremo responsável pela criação, e somente trabalhando nele somos restaurados à comunhão com Deus. Só isso nos torna capazes de assumir novamente nosso lugar como vice-regentes de Deus na terra. O destino criado da humanidade está sendo alcançado em Jesus, em quem encontramos o padrão (Hb 2.10; 12.1-3), a provisão (Hb 2.10-18), o fim e a esperança para todo o nosso trabalho. No entanto, fazemos isso em uma época marcada pela frustração e pela ameaça da morte, cuja falta de sentido oferece risco a nossa própria existência (Hb 2.14-15). Hebreus reconhece que “ainda não vemos todas as coisas sujeitas” aos caminhos de seu reino (Hb 2.8). No momento, o mal desempenha um forte papel.

Tudo isso é crucial para entender o que Hebreus dirá mais tarde sobre o céu e “o mundo que há de vir” (Hb 2.5). Hebreus não está contrastando dois mundos diferentes — um mundo material ruim com um mundo espiritual bom. Pelo contrário, reconhece que a boa criação de Deus ficou sujeita ao mal e, portanto, precisa de uma restauração radical para voltar a se tornar totalmente boa. Todas as coisas da criação — não apenas almas humanas — estão em processo de remissão através de Cristo. “Ao lhe sujeitar [aos seres humanos] todas as coisas, nada deixou que não lhe estivesse sujeito” (Hb 2.8).

A criação ficou sujeita ao mal (Hb 2.14—3.6)

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Embora Cristo tenha criado o mundo inteiramente bom, ele foi contaminado por e sujeito àquele “que tem o poder da morte, isto é, o Diabo” (Hb 2.14). O escritor de Hebreus diz pouco sobre como isso aconteceu, mas fala longamente sobre como Deus está trabalhando para “aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados pelo medo da morte ”, a saber, “os descendentes de Abraão” (Hb 2.15-16); isso significa ambos os descendentes de Abraão, tanto por meio de Isaque (os judeus) quanto por Ismael (os gentios) — ou seja, todos. A pergunta feita por Hebreus é: como Deus libertará a humanidade do mal, da morte e do diabo? A resposta é, por meio de Jesus Cristo, o grande sumo sacerdote.

Exploraremos o sacerdócio de Jesus com maior profundidade quando nos voltarmos para os capítulos centrais do livro (Hb 5—10). Por enquanto, simplesmente observamos que os capítulos iniciais do livro enfatizam que a obra criativa de Jesus e a obra sacerdotal não estão isoladas uma da outra. Hebreus reúne ambas: “Senhor, firmaste os fundamentos da terra, e os céus são obras das tuas mãos” (Hb 1.10), e “para que, por meio da morte, derrotasse aquele que tem o poder da morte, isto é, o Diabo” (Hb 2.14). Isso nos diz que Cristo é o agente de Deus tanto da criação original quanto da obra de redenção. A obra da criação de Cristo o leva, após a Queda, a libertar “aqueles que durante toda a vida estiveram escravizados” (Hb 2.15) e a “oferecer um sacrifício de expiação pelos pecados do povo” (Hb 2.17).

Sabemos muito bem quão distante está nosso ambiente de trabalho da intenção original de Deus. Alguns trabalhos existem principalmente porque precisamos conter o mal que agora infesta o mundo. Precisamos de polícia para conter criminosos, de diplomatas para restaurar a paz, de profissionais de saúde para curar doenças, de evangelistas para chamar as pessoas de volta a Deus, de oficinas mecânicas para reparar sinistros, de jornalistas investigativos para descobrir corrupção e de engenheiros para reconstruir pontes deterioradas. E todo ambiente de trabalho sofre muito com a queda. Má administração, disputas trabalhistas, fofocas, assédio, discriminação, preguiça, ganância, falta de sinceridade e uma série de outros problemas, grandes e pequenos, que impede nosso trabalho e nossos relacionamentos a cada passo. A solução de Deus não é abandonar sua criação ou evacuar os seres humanos dela, mas transformá-la totalmente, recriá-la em sua bondade essencial. Para isso, ele envia seu Filho a fim de encarnar no mundo, assim como ele foi o criador do mundo. No ambiente de trabalho, nos tornamos “santos irmãos, participantes do chamado celestial” de Cristo (Hb 3.1) para sustentar e restaurar sua criação. Isso não substitui o trabalho criativo que começou no Jardim do Éden, mas o tempera e incrementa. As obras criativa e redentora ocorrem lado a lado e estão entrelaçadas até a volta de Cristo e a extinção do mal.

O descanso sabático em Cristo: necessário para a jornada da vida (Hb 3.7—4.16)

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Por mais que a criação seja, portanto, a boa obra de Deus em Cristo, ainda há um forte contraste entre o mundo quebrado de hoje e o mundo glorioso por vir. Em Hebreus 2.5, o autor descreve seu tópico principal como “o mundo que há de vir, a respeito do qual estamos falando”. Isso sugere que o foco principal em todo o livro é a criação aperfeiçoada por Deus na consumação de todas as coisas, o que é confirmado pela longa discussão sobre o “descanso sabático”, que domina os capítulos 3 e 4.

Ao longo do livro, Hebreus frequentemente toma um texto do Antigo Testamento como ponto de partida. Neste caso, ele se baseia na história do Êxodo para destacar a ideia do descanso sabático. Como Israel no Êxodo, o povo de Deus está em peregrinação rumo ao lugar prometido da salvação. No caso de Israel, foi Canaã. No nosso caso, é a criação aperfeiçoada. O descanso sabático em Hebreus 4.9-10 não é simplesmente uma cessação de atividade (Hb 4.10), mas também uma celebração sabática (Hb 12.22). [1] Continuando com a história do Antigo Testamento, Hebreus considera a conquista da terra sob Josué mais um sinal indicativo de nosso descanso final no mundo vindouro. O descanso de Josué é incompleto e precisa do cumprimento que ocorre somente por meio de Cristo. “Porque, se Josué lhes tivesse dado descanso, Deus não teria falado posteriormente a respeito de outro dia” (Hb 4.8).

Pelo menos duas coisas cruciais decorrem disso. Primeiro, a vida no mundo atual envolverá trabalho árduo. Isso está implícito na ideia de jornada, que é essencial para a história de Êxodo. Todos os que já viajaram sabem que qualquer jornada envolve uma quantidade imensa de trabalho. Hebreus usa o motivo do sábado para descrever não apenas o descanso, mas também o trabalho que o envolve. Você trabalha seis dias e depois descansa. Da mesma forma, você trabalha arduamente em Cristo durante sua jornada de vida e depois, quando o reino de Deus é cumprido, descansa em Cristo. É claro que Hebreus não está sugerindo que você não faça nada a não ser trabalho — como veremos em breve, também há momentos de descanso. Tampouco está dizendo que a atividade se encerra quando o reino de Cristo se completa. O ponto é que os cristãos têm trabalho a fazer aqui e agora. Não devemos nos jogar no deserto, levantar os pés e esperar que Deus apareça e torne nossa vida perfeita. Deus está trabalhando por meio de Cristo para trazer este mundo quebrado de volta ao que ele pretendia para o mundo no princípio. Temos o privilégio de ser convidados a participar desse grande trabalho.

O segundo ponto diz respeito ao descanso sabático semanal e à adoração. É importante notar que o autor de Hebreus não aborda a questão do sábado semanal para atestá-lo ou condená-lo. É provável que ele presumisse que seus leitores observariam o sábado de alguma forma, mas não podemos ter certeza. Em Hebreus, o valor do descanso semanal é governado por suas consequências para o reino vindouro. O descanso agora nos conecta mais profundamente à promessa de Deus de descanso futuro? Isso nos sustenta na jornada da vida? Guardar o sábado agora é um ato de fé em que celebramos a alegria de saber que será cumprido na eternidade? Certamente parece que algum tipo de descanso sabático (independentemente de como será implementado em qualquer comunidade) seria a maneira ideal de nos lembrar de que o trabalho não é um ciclo interminável de atividade árdua que não leva a lugar algum, mas sim uma atividade proposital pontuada por adoração e descanso.

Vista sob essa luz, nossa rotina semanal de trabalho — os seis dias, assim como um — pode se tornar um exercício de consciência espiritual. Quando sentimos a mordida da maldição no trabalho (Gn 3.16-19) por meio de colapsos econômicos, má gestão, colegas de trabalho fofoqueiros, membros da família ingratos, pagamento inadequado e coisas do gênero, lembramo-nos de que a casa de Deus foi gravemente danificada por seus inquilinos humanos, e ansiamos por sua restauração completa. Quando o trabalho vai bem, lembramo-nos de que a criação de Deus, e nosso trabalho nela, é uma coisa boa e que, em certa medida, nosso bom trabalho está promovendo os propósitos dele para o mundo. E, no sabático, reservamos um tempo para adoração e descanso.

Nosso Grande Sumo Sacerdote (Hb 5.1—10.18)

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A seção central de Hebreus é dominada pelo tema de Jesus como nosso grande sumo sacerdote. Tomando o salmo 110 como guia, o autor de Hebreus argumenta que o Messias estava destinado a ser “sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (Hb 5.6), e que esse sacerdócio é superior ao sacerdócio levítico, que supervisionava a vida religiosa de Israel. De acordo com Hebreus, o antigo sacerdócio, sob a antiga aliança, não podia genuinamente tirar pecados, mas apenas lembrar o povo de seus pecados por meio dos intermináveis ​​sacrifícios oferecidos por sacerdotes imperfeitos e mortais. O sacerdócio de Jesus oferece um sacrifício definitivo para todos os tempos e nos oferece um mediador que vive para interceder por nós sempre. Destacaremos aqui as implicações desses dois temas, sacrifício e intercessão, na realização de nosso trabalho.

O sacrifício de Cristo torna possível nosso serviço (Hb 5.1—7.28)

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Jesus, por meio de seu autossacrifício, conseguiu eliminar o pecado humano para sempre. “Depois que Jesus acabou de oferecer um único sacrifício pelos pecados [...], se assentou à direita de Deus. [...] Porque, por meio de um único sacrifício, ele aperfeiçoou para sempre os que têm sido santificados” (Hb 10.12, 14). “Ao contrário dos outros sumos sacerdotes, ele não tem necessidade de oferecer sacrifícios dia após dia, primeiro por seus próprios pecados e, depois, pelos pecados do povo. Ele o fez de uma vez por todas quando ofereceu a si mesmo” (Hb 7.27). Essa expiação completa pelo pecado é frequentemente chamada “a obra de Cristo”.

Pode parecer que o perdão dos pecados é um assunto puramente religioso ou espiritual, sem implicações para o trabalho, mas isso está longe da verdade. Pelo contrário, o sacrifício definitivo de Jesus promete libertar os cristãos para viverem uma existência de serviço apaixonado a Deus em todas as esferas da vida. O texto destaca as consequências éticas — isto é, práticas — do perdão em Hebreus 10.16: “Porei as minhas leis no coração deles e as escreverei na sua mente”. Em outras palavras, nós, que somos perdoados, desejaremos fazer a vontade de Deus (no coração) e receberemos sabedoria, visão e capacidade para fazê-lo (na mente).

Como isso acontece? Muitas pessoas encaram as atividades da igreja mais ou menos da mesma forma que alguns israelitas encaravam os rituais da antiga aliança. Essas pessoas acreditam que, se quisermos ficar do lado de Deus, precisaremos exibir algumas práticas religiosas, já que esse parece ser o tipo de coisa em que Deus está interessado. Ir à igreja é uma maneira agradável e fácil de atender ao requisito, embora a desvantagem seja que precisamos fazer isso toda semana, para que a “mágica” não se desfaça. A suposta boa notícia é que, uma vez cumpridas nossas obrigações religiosas, ficamos livres para cuidar dos negócios sem nos preocuparmos muito com Deus. Não faremos nada hediondo, é claro, mas estaremos basicamente por nossa conta até que enchamos o tanque com o favor de Deus ao irmos à igreja novamente na semana seguinte.

O livro de Hebreus destrói essa visão de Deus. Embora o sistema levítico fizesse parte dos bons propósitos de Deus para seu povo, ele sempre teve a intenção de apontar além de si mesmo, para o futuro e definitivo sacrifício de Cristo. Não era um dispensário de favores mágicos, mas um cantil para a viagem. Agora que Cristo veio e se ofereceu em nosso favor, podemos experimentar diretamente o genuíno perdão dos pecados por meio da graça de Deus. Não há mais sentido em fazer rituais perpétuos de purificação. Não temos tanques que precisem ser — ou possam ser — enchidos com o favor de Deus por meio de atividades religiosas. Confiando em Cristo e em seu sacrifício, estamos bem com Deus. Hebreus 10.5 esclarece da melhor forma possível: “Por isso, quando Cristo veio ao mundo, disse: ‘Sacrifício e oferta não quiseste, mas um corpo me preparaste’” (Hb 10.5).

Nada disso, é claro, significa que os cristãos não devam ir à igreja ou que os rituais não tenham lugar no culto cristão. O crucial, porém, é que o sacrifício consumado de Cristo significa que nossa adoração não é um exercício religioso autônomo, isolado do resto de nossa vida. Ao contrário, trata-se de um “sacrifício de louvor” (Hb 13.15) que revigora nossa conexão com o Senhor, purifica nossa consciência, santifica nossa vontade e, assim, nos liberta para servir a Deus todos os dias, onde quer que estejamos.

Somos santificados para o serviço. “Eu vim para fazer a tua vontade, ó Deus”, diz Cristo (Hb 10.7). O serviço é o resultado inevitável do perdão de Deus. “Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu de forma imaculada a Deus, purifica a nossa consciência de atos que conduzem à morte, para que sirvamos ao Deus vivo!” (Hb 9.14). [1]

Ironicamente, então, o foco na obra celestial e sacerdotal de Cristo deve nos levar a prestar um tremendo serviço prático e terreno. O sacrifício oferecido por Cristo, que leva, em última análise, à renovação do céu e da terra (Hb 12.26; veja também Ap 21.1), foi realizado aqui na terra. Da mesma forma, nosso serviço é realizado aqui, na agitação da vida cotidiana. Mas caminhamos e trabalhamos neste mundo com a confiança de que Jesus partiu antes de nós e completou a mesma jornada em que estamos. Isso nos dá confiança de que nosso trabalho para ele em todas as áreas da vida não será em vão.

A intercessão de Jesus capacita nossa vida e obra (Hb 7.1—10.18)

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Os sacerdotes no antigo Israel não apenas ofereciam sacrifícios pelo povo, mas também faziam orações de intercessão. Assim, Jesus ora por nós diante do trono de Deus (Hb 7.25). “[Jesus] é capaz de salvar definitivamente aqueles que, por meio dele, se aproximam de Deus, pois vive sempre para interceder por eles” (Hb 7.25). “[Jesus] entrou nos céus, para agora se apresentar diante de Deus em nosso favor” (Hb 9.24). Precisamos que Jesus esteja “sempre” intercedendo na presença de Deus em nosso favor, porque continuamos a pecar, falhamos e nos desviamos. Nossas ações depõem contra nós diante de Deus, mas as palavras de Jesus sobre nós são palavras de amor diante do trono de Deus.

Em termos de ambiente de trabalho, imagine o medo que um jovem engenheiro pode sentir quando é chamado para conhecer o chefe do departamento estadual de estradas de rodagem. O que ele dirá ao chefe? Ao reconhecer que o projeto em que trabalha está atrasado e acima do orçamento, ele fica ainda mais receoso. Mas então ele fica sabendo que seu supervisor, um mentor querido, também estará na reunião. E acontece que seu supervisor é um grande amigo do chefe do departamento de estradas de rodagem, desde a época da universidade. “Não se preocupe”, garante o mentor ao engenheiro, “eu cuido das coisas”. O jovem engenheiro não se sentirá muito mais confiante para aproximar-se do chefe na presença de um amigo do chefe?

Hebreus enfatiza que Jesus não é apenas um sumo sacerdote, mas também um sumo sacerdote que se solidariza conosco. “Pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, ainda que sem pecado” (Hb 4.15). Para voltar a um versículo que discutimos anteriormente, Jesus fala a Deus do “corpo [que] me preparaste” (Hb 10.5). Cristo veio em um corpo humano genuíno e abraçou verdadeiramente a vida como um de nós.

Para ser um sumo sacerdote fiel, argumenta o autor, Jesus precisa ser capaz de compreender os sentimentos do povo. Ele não pode fazê-lo se não tiver experimentado as mesmas coisas que eles experimentaram. E, assim, ele declara com muito cuidado que Jesus aprendeu obediência. “Embora fosse Filho, ele aprendeu a obediência por meio daquilo que sofreu” (Hb 5.8). Isso não significa, é claro, que Jesus teve de aprender, como nós, a obedecer, ou seja, deixando de desobedecer a Deus. Significa que ele precisava experimentar sofrimento e tentação em primeira mão para qualificar-se como sumo sacerdote. Outros versículos mostram o mesmo ponto, em linguagem igualmente expressiva, que os sofrimentos de Jesus o aperfeiçoaram (Hb 2.10; 5.9; 7.28). O significado pleno de “perfeito” não é apenas “impecável”, mas também “completo”. Jesus já era impecável — mas para ser qualificado como nosso sumo sacerdote, ele precisava desses sofrimentos para completá-lo para o trabalho. De que outra forma ele poderia se relacionar genuinamente conosco, enquanto lutamos neste mundo, dia após dia?

O mais encorajador aqui é que esse sofrimento e esse aprendizado ocorreram no cenário de trabalho de Jesus. Ele não vem como um tipo de antropólogo teológico que “aprende” sobre o mundo de maneira imparcial e clínica, ou como um turista que passa por lá para uma visita. Em vez disso, ele se entrelaça no tecido da vida humana real, incluindo o trabalho humano real. Quando enfrentamos dificuldades no trabalho, podemos recorrer ao nosso compreensivo sumo sacerdote com a plena certeza de que ele sabe em primeira mão o que estamos passando.

A realização da fé (Hb 10.19—11.40)

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Seguir Jesus é um trabalho árduo, e somente a fé no cumprimento de suas promessas pode nos manter firmes. “Ora, a fé é a confiança daquilo que esperamos e a certeza das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Precisamos ter fé na veracidade das promessas feitas por Deus, por mais improváveis que possam parecer nas circunstâncias atuais. Uma tradução mais precisa desse versículo nos ajuda a ver a importância prática da fé. “Ora, a fé é a realização das coisas que se esperam, a prova de coisas que não se veem”. [1] “Realização” é particularmente apropriado aqui, porque as diversas acepções dessa palavra capturam perfeitamente as nuances dos exemplos de fé dados em Hebreus 11. Quando enfim vemos as coisas com clareza, essa é uma forma de realização. Finalmente entendemos. Mas a segunda forma de realização é ver as coisas se tornarem reais, quando o que esperávamos finalmente se tornar realidade. Os heróis da fé em Hebreus 11 percebem isso de ambas as maneiras. Retomando a segunda metade do versículo, eles estão tão convencidos do que Deus disse que provam isso por suas ações.

Hebreus nos apresenta os exemplos práticos de Noé, Abraão, Moisés e outros do Antigo Testamento. Todos eles estavam ansiosos pelo cumprimento da promessa de Deus, por algo melhor do que sua experiência atual. Noé tinha fé no mundo justo além do dilúvio, e percebeu que fé significava construir uma arca para salvar sua casa (Hb 11.7). Abraão tinha fé no reino vindouro (ou “cidade”) de Deus (Hb 11.10), e percebeu que fé significava partir em uma jornada para a terra que Deus lhe havia prometido, mesmo que ele não soubesse para onde se dirigia (Hb 11.8-12). Moisés tinha fé em uma vida em Cristo que superava muito os prazeres que ele poderia ter reivindicado como filho da filha de Faraó, e percebeu que fé significava preferir “ser maltratado com o povo de Deus a desfrutar o prazer transitório do pecado”(Hb 11.25-26). Essas esperanças e promessas não foram completamente cumpridas na vida deles, mas viveram todos os dias como se já estivessem experimentando o poder de Deus para cumpri-las.

Esse tipo de fé não é ilusão. É levar a sério a autorrevelação de Deus nas Escrituras (Hb 8.10-11), combinada com um “ arrependimento de atos que conduzem à morte” (Hb 6.1), perseverança em “amor” e “boas obras” (Hb 10.24) e uma capacidade de ver a mão de Deus em ação no mundo (Hb 11.3), apesar do mal e do quebrantamento ao nosso redor. Em última análise, a fé é um dom do Espírito Santo (Hb 2.4), pois nunca poderíamos nos apegar a ela por nossa própria força de vontade.

Essa foi uma mensagem crucial para o público de hebreus, que foi tentado a jogar fora sua esperança em Cristo em troca de uma vida mais confortável, no aqui e agora. Seus olhos não estavam fixos na glória futura, mas na privação presente. A palavra de exortação do livro é que as promessas de Deus são mais duradouras, mais gloriosas e, de fato, mais reais que os prazeres fugazes do aqui e agora.

Se quisermos perceber a fé que Deus nos deu, temos de trabalhar em meio à tensão entre a promessa de Deus para o futuro e as realidades atuais. Por um lado, devemos reconhecer plenamente a natureza provisória e finita de tudo o que fazemos. Não ficaremos surpresos quando as coisas não saírem como esperávamos. “Todos estes receberam bom testemunho por meio da fé. No entanto, nenhum deles recebeu o que havia sido prometido” (Hb 11.39). Surgem situações em que nossos melhores esforços para fazer um bom trabalho são frustrados não apenas pelas circunstâncias, mas também por atos deliberados de seres humanos. Isso pode nos causar tristeza, mas não nos levará ao desespero, porque temos os olhos fixos na cidade vindoura de Deus.

Às vezes, nosso trabalho é frustrado por nossa própria fraqueza. Ficamos aquém do alvo. Considere a lista de nomes em Hebreus 11.32. Quando lemos suas histórias, vemos claramente os próprios fracassos, às vezes fracassos significativos. Se lermos sobre a timidez de Baraque como general (Jz 4.8-9) através de olhos humanos, provavelmente não veremos fé alguma. No entanto, Deus vê a fé de Baraque através dos olhos de Deus e credita o trabalho dele pela graça divina, não pela realização dele. Isso pode animar-nos quando também tropeçamos. Podemos ter falado duramente com um colega de trabalho, agido impacientemente com um aluno, ignorado nossa responsabilidade com a família e realizado mal o trabalho. Mas temos fé de que Deus é capaz de realizar sua intenção para o mundo, mesmo em meio a nossas fraquezas e fracassos.

Por outro lado, precisamente porque temos os olhos voltados para a cidade vindoura de Deus, procuramos viver de acordo com os caminhos dessa cidade, da melhor forma possível, em todos os aspectos da vida e do trabalho diários. Os heróis da fé em Hebreus realizaram sua fé em todos os tipos de locais de trabalho. Eles eram pessoas “os quais, pela fé, conquistaram reinos, praticaram a justiça, alcançaram o cumprimento de promessas, fecharam a boca de leões, apagaram o poder do fogo e escaparam do fio da espada; da fraqueza tiraram força, tornaram-se poderosos na batalha e puseram em fuga exércitos estrangeiros” (Hb 11.33-34).

Imagine um empreiteiro — uma ilustração adequada para um livro que trata da construção da casa cósmica de Deus. O contratante tem uma visão clara da vida no reino vindouro de Deus. Ele sabe que será caracterizada por justiça, relacionamentos harmoniosos e beleza duradoura. Como pessoa de fé, ele procura perceber essa visão no presente. Administra as matérias-primas da terra na construção da casa, criando um lar de beleza, mas não de opulência esbanjadora. Trata seus obreiros com a preocupação e o respeito que serão característicos da futura cidade de Deus. Mostra amor celestial a seus clientes, ouvindo suas esperanças para o lar terreno, tentando realizar essas esperanças dentro das restrições financeiras e materiais. Persevera em meio aos problemas, quando o radiador antigo é cinco centímetros maior que o necessário para o banheiro, ou quando um carpinteiro corta uma viga cara dois centímetros mais curta. Ele aceita que um terremoto ou um furacão pode destruir todo o seu trabalho em minutos, mas se dedica inteiramente ao trabalho. Em meio às alegrias e às frustrações, deseja viver os valores da cidade de Deus, mostrando amor consistente aos outros na qualidade de seus relacionamentos pessoais e na qualidade das casas que constrói. Ele confia que todo edifício, por mais frágil e imperfeito que seja, é uma testemunha diária da grande cidade que virá, “cujo arquiteto e construtor é Deus” (Hb 11.10).

Persevere nas dificuldades e busque a paz (Hb 12.1-16)

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Hebreus deixa de fornecer exemplos de santos fiéis para oferecer desafios para as pessoas de sua época. Como o restante do Novo Testamento, Hebreus descreve a vida cristã como cheia de dificuldades. Devemos suportá-las como medida da disciplina paternal de Deus. Por meio delas, passamos a compartilhar da santidade e da justiça de Cristo. Assim como o Filho foi disciplinado e aperfeiçoado (Hb 5.7-10), os filhos e filhas de Deus passam pelo mesmo processo.

A coisa mais comum do mundo é interpretarmos as dificuldades como castigo divino. Aqueles que se opõem a nós podem até enxergar assim, lançando-nos no rosto nossos pecados e falhas muito reais. Mas Hebreus nos lembra de que não há punição para aqueles que foram perdoados por meio do sacrifício todo-suficiente e único de Cristo. “Assim, já que esses pecados são perdoados, não há mais necessidade de sacrifício por eles” (Hb 10.18). Nosso amoroso Pai nos disciplinará (Hb 12.4-11), mas disciplina não é punição (1Co 11.32). É um treinamento árduo, mas ainda assim uma forma de amor: “Pois o Senhor disciplina a quem ama” (Hb 12.6). Que ninguém finja interpretar nossas dificuldades como um castigo de Deus. “Deus, porém, nos disciplina para o nosso bem, para que participemos da sua santidade” (Hb 12.10).

Mas essa disciplina não é apenas para o benefício pessoal. Hebreus prossegue exortando os seguidores de Jesus a que “busquem a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor”. A “paz” da qual Hebreus 12.14 fala é a noção completa do termo hebraico shalom, que transmite um estado último de justiça e prosperidade, compartilhado por toda a comunidade. É o objetivo final da salvação. Ela é capturada de outra maneira, mais adiante no capítulo, com as imagens da cidade santa e celestial de Sião (Hb 12.22-24).

Sabemos como é difícil suportar dificuldades e buscar a paz no trabalho. Tendo recebido as promessas de Deus, naturalmente esperamos que elas tornem nosso trabalho mais agradável de imediato. Queremos ser frutíferos, multiplicar riquezas e ganhar autoridade — todas as coisas boas aos olhos de Deus (Gn 1.28) — e desfrutar de amizades (Gn 2.18) no trabalho e por meio dele. Se, em vez disso, encontrarmos dificuldades, problemas financeiros, falta de poder e hostilidade por parte de colegas de trabalho, a perseverança pode ser a última coisa em nossa mente. Pode parecer muito mais fácil desistir, pedir demissão ou mudar de emprego — se tivermos escolha — ou nos descompromissar, relaxar ou buscar uma justiça grosseira criada por nós mesmos. Ou, mesmo permanecendo no trabalho, podemos cansar ​​e desanimar, perdendo o interesse em realizá-lo como um serviço a Deus. Que Deus nos dê a graça de suportar situações difíceis no trabalho! As dificuldades que lá enfrentamos podem ser o meio de disciplina de Deus para nós, a fim de nos tornarmos pessoas mais fiéis e úteis. Se não podemos manter a integridade, servir os outros e buscar a reconciliação em meio a empregos difíceis ou ambientes de trabalho hostis, como podemos nos tornar como Jesus, “que suportou tal oposição dos pecadores contra si mesmo” (Hb 12.3)?

Agitando as coisas (Hb 12.18-29)

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Um dos equívocos generalizados em relação a Hebreus é que ele opõe o mundo celestial (incriado) ao terreno (criado), que antecipa uma aniquilação do cosmos, enquanto o céu permanece como o reino inabalável de Deus. Tal mal-entendido pode parecer encontrar apoio em textos como Hebreus 12.26-27.

A voz dele naquela ocasião abalou a terra, mas agora promete: “Uma vez mais, abalarei não apenas a terra, mas também o céu”. As palavras “uma vez mais” indicam a remoção das coisas mutáveis, isto é, das coisas criadas, de forma que permaneça o que é inabalável.

Mas, examinando mais de perto, vemos que o céu e a terra não são muito diferentes um do outro. Os céus serão abalados, assim como a terra (Hb 12.26). Hebreus descreve o mundo celestial como uma “criação” tanto quanto o cosmos (Hb 8.2; 11.10). Fala de ressurreição (Hb 6.2, 11.35), que é uma recuperação, não uma aniquilação, da criação. Ele compreende o cosmos (Hb 1.2-6, 11.3) como a herança do Filho. Proclama que a oferta de Cristo foi um evento corporal, neste mundo, de carne e sangue (Hb 12.24; 13.2; 13.20). Em última análise, “abalar” é a remoção de tudo o que é imperfeito ou pecaminoso do céu e da terra, não a destruição da terra em favor do céu.

A linguagem aqui é uma referência a Ageu 2, onde “tremer” se refere à derrubada de ocupantes estrangeiros, para que Israel e seu templo possam ser reconstruídos. Essa referência, e o argumento de Hebreus como um todo, indica que o resultado final desse abalo será a tomada do templo de Deus — na terra — pela glória. Todo o cosmos se torna o templo de Deus, purificado e recuperado. Em Ageu 2, o tremor do céu e da terra leva à realização da paz na terra que fomos exortados a buscar anteriormente, em Hebreus 12. “‘E neste lugar estabelecerei a paz’, declara o Senhor dos Exércitos” (Ag 2.9).

O que é transitório, então, não é o mundo criado, mas a imperfeição, o mal e o conflito que infectam o mundo. Derramar nossa vida no reino de Deus significa trabalhar por meio da criação e redenção que pertencem ao avanço do governo de Cristo (Hb 7.2). Não importa se somos cozinheiros, educadores, atletas, gerentes, donas de casa, ecologistas, senadores, bombeiros, pastores ou qualquer outra pessoa, participar do reino de Cristo significa não abandonar o trabalho “mundano” em favor do trabalho “espiritual”. É perseverar — agradecidos a Deus (Hb 12.28) — em todos os tipos de trabalho, sob a disciplina de Cristo.

Hospitalidade (Hb 13.1-3)

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Em meio às várias exortações finais em Hebreus 13, duas têm uma relevância especial para o trabalho. Vamos começar com Hebreus 13.2, que diz: “Não se esqueçam da hospitalidade, pois foi praticando-a que, sem saber, alguns acolheram anjos”. O versículo faz alusão a Abraão e Sara recebendo visitantes (Gn 18.1-15) que acabam sendo anjos (Gn 19.1), os próprios portadores da promessa de um filho a Abraão e Sara (Gn 18.10), que figura de forma tão proeminente neste livro (Hb 6.13-15; 11.8-20). Esses versículos também nos lembram dos muitos atos de hospitalidade de Jesus (por exemplo, Mt 14.13-21; Mc 6.30-44; Lc 9.10-17; Jo 2.1-11; 6.1-14; 21.12-13) e daqueles que o seguiram (por exemplo, Mc 1.31; Lc 5.9), e parábolas como o banquete de casamento (Mt 22.1-4; Lc 14.15-24).

A hospitalidade pode ser uma das formas de trabalho mais subestimadas do mundo — pelo menos, no mundo ocidental moderno. Muitas pessoas trabalham duro para praticar a hospitalidade, embora, para a maioria, seja um trabalho não remunerado. No entanto, poucos, se inquiridos sobre qual é sua ocupação, diriam: “Ofereço hospitalidade”. É mais provável que vejamos isso como uma diversão ou um interesse privado, em vez de um serviço a Deus. No entanto, a hospitalidade é um grande ato de fé — que a provisão de Deus arcará com as despesas de dar comida, bebida, entretenimento e abrigo; que o risco de danos ou roubo de propriedade será suportável; que o tempo gasto com estranhos não diminuirá o tempo com familiares e amigos, e, acima de tudo, que vale a pena se preocupar com pessoas estranhas. Mesmo que tenhamos que sair de nosso caminho para oferecê-la — na prisão, por exemplo (Hb 13.3) — a hospitalidade é um dos atos mais significativos de trabalho ou serviço que os seres humanos podem fazer (Mt 25.31-40).

Além disso, quase todos têm a oportunidade de pôr em prática o espírito de hospitalidade no trabalho. Muitas pessoas trabalham em indústrias hoteleiras. Será que reconhecemos que estamos cumprindo Hebreus 13.1—3quando oferecemos um quarto de hotel limpo e bem cuidado, ou um jantar saudável e delicioso, ou organizamos uma festa ou recepção? Não importa o setor ou a ocupação, toda interação com um colega de trabalho, cliente, fornecedor ou estranho no local de trabalho é uma oportunidade de fazer os outros se sentirem bem-vindos e valorizados. Imagine o testemunho do amor de Deus se os cristãos tivessem uma reputação de hospitalidade no decorrer dos negócios.

Questões com o dinheiro (Hb 13.5-6)

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A segunda exortação relacionada ao trabalho, no capítulo 13, diz respeito ao amor ao dinheiro: “Conservem-se livres do amor ao dinheiro e contentem-se com o que vocês têm, porque Deus mesmo disse: ‘Nunca o deixarei; jamais o abandonarei’” (Hb 13.4). Essa ordem de nos livrarmos do amor ao dinheiro sugere que as pressões financeiras figuravam entre os problemas especiais enfrentados pelos leitores originais deste livro. Isso já foi indicado em Hebreus 10.32-36 e indiretamente em Hebreus 11.25-26. Talvez a ênfase na futura “cidade” (Hb 11.10; 12.22; 13.14) tenha sido estimulada em parte por sua experiência de alienação econômica e social em sua cidade presente.

Embora tenhamos total confiança na proteção e na provisão de nosso Deus, isso de forma alguma garante que desfrutaremos de uma vida de prosperidade material. Jesus nunca nos prometeu uma vida fácil, e o trabalho árduo pode não ser recompensado nesta vida com riqueza ou luxo. O ponto de Hebreus 13.5-6 é que o Senhor fornecerá tudo o que precisamos para uma vida fundamentada na fé. É claro que muitos crentes fiéis passaram por severas dificuldades financeiras, e muitos até morreram pela vulnerabilidade, de sede, fome, doenças e coisas piores. Eles morreram assim por meio da fé, não por falta dela. O autor de Hebreus está perfeitamente ciente disso, tendo relatado cristãos que sofreram tortura, zombaria, açoitamento, prisão, apedrejamento, que foram serrados ao meio, que morreram pela espada, por miséria, perseguição, tormento e peregrinação por montanhas, desertos, cavernas e buracos no solo (Hb 11.35-38)! Em última análise, as promessas de Deus e nossas orações são cumpridas assim como o foram para seu Filho — por meio da ressurreição dentre os mortos (Hb 5.7-10). Este livro opera com uma visão econômica transformada, de que nossas necessidades são atendidas no avanço do reino de Deus, e não em nossa prosperidade pessoal. Portanto, se não temos nada, não nos desesperamos; se temos o suficiente, estamos contentes, e, se temos muito, o sacrificamos pelo bem dos outros.

A advertência contra o amor ao dinheiro não decorre da descoberta de que o reino de Deus na criação, o mundo material, é de alguma forma menos espiritual que o reino de Deus no céu. Em vez disso, decorre da consciência surpreendente de que, em um mundo decaído, o amor ao dinheiro cria um apego à ordem atual que nos impede de trabalhar para a transformação do mundo. Se o dinheiro é a principal razão para aceitarmos um emprego, abrirmos uma empresa, concorrermos a um cargo, filiar-nos a uma igreja, escolhermos os amigos, investirmos os recursos, gastarmos nosso tempo ou encontrarmos um cônjuge, então não estamos vivendo pela fé.