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Choque de reinos: Comunidade e mercadores de poder (At 13—19)

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Clash of kingoms powerbrokers

Exploraremos esta seção de acordo com quatro temas principais relevantes para a teologia do trabalho presente em Atos. Primeiro, examinaremos mais uma passagem relacionada à vocação como testemunho. Segundo, discutiremos como a comunidade cristã exerce o poder de liderança e de tomada de decisão. Terceiro, veremos como a comunidade liderada pelo Espírito se envolve com os poderes existentes na cultura mais ampla. Quarto, examinaremos se o fato de seguir a Cristo exclui certas formas de vocação e engajamento cívico. Por fim, exploraremos a prática do próprio Paulo de continuar trabalhando como fabricante de tendas em suas jornadas missionárias.

Vocação no contexto da comunidade (Atos 13.1-3)

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A passagem de Atos 13.1-3 nos traz um conjunto de práticas presentes na igreja de Antioquia. Essa comunidade é notável tanto por sua diversidade étnica quanto por seu compromisso com o testemunho prático do reino de Deus. [1] Já vimos como Lucas mostra que o trabalho — especialmente o uso de poder e recursos — funciona como uma forma de testemunho. [2] Vimos em Atos 6.1-7 que isso se aplica igualmente às vocações que associamos mais naturalmente ao ministério (como a missionária) e àquelas que mais provavelmente chamamos de “trabalho” (como a hospitalidade). Todas as vocações têm o potencial de servir e testemunhar do reino, especialmente quando empregadas na busca da justiça e da retidão.

Em Atos 13.1-3 vemos a comunidade cristã tentando discernir como o Espírito conduz os crentes ao testemunho. Paulo e Barnabé são escolhidos para trabalhar como evangelistas e promotores de cura itinerantes. O ponto de destaque é que esse discernimento se dá de forma comunitária. A comunidade cristã, e não o indivíduo, é mais capaz de discernir as vocações de seus membros individualmente. Isso pode significar que as comunidades cristãs de hoje devem atuar ao lado de famílias e jovens enquanto estes buscam respostas para perguntas como “o que você quer fazer quando crescer?”, “o que você fará depois da formatura?” ou “para o que Deus está chamando você?”. Isso exigiria que as comunidades cristãs desenvolvessem uma experiência muito maior em discernimento vocacional do que acontece atualmente. Também exigiria que houvesse um interesse muito mais sério no trabalho que serve ao mundo, além das estruturas da igreja. Apenas declarar autoridade sobre a vida profissional dos jovens não é suficiente. Os jovens só prestarão atenção se a comunidade cristã puder ajudá-los a realizar um trabalho de discernimento mais completo do que são capazes por outros meios.

Fazer isso de maneira adequada seria uma dupla forma de testemunho. Primeiro, jovens de todas as tradições religiosas — e de nenhuma — enfrentam enormes dificuldades para a tarefa de escolher ou encontrar trabalho. Imagine se a comunidade cristã pudesse de fato ajudar a reduzir esse fardo e melhorar os resultados. Segundo, a grande maioria dos cristãos trabalha fora das estruturas da igreja. Imagine se todos nos engajássemos em nosso trabalho como um meio de serviço cristão ao mundo, melhorando a vida de bilhões de pessoas com quem e para quem trabalhamos. Quão mais visível ao mundo Cristo se tornaria por meio disso?

O discernimento comunitário da vocação continua ao longo de Atos, com a convocação por parte de Paulo de muitos parceiros missionários da comunidade: Barnabé, Timóteo, Silas e Priscila, para citar apenas alguns. Em segundo lugar, testemunhando novamente do realismo de Lucas, vemos que essa vocação compartilhada para testemunhar não elimina a tensão relacional provocada pela pecaminosidade humana. Paulo e Barnabé têm um desentendimento tão sério sobre a inclusão de João Marcos (que havia abandonado a equipe em um compromisso anterior) que seguem caminhos distintos (At 15.36-40).

Liderança e tomada de decisões na comunidade cristã (At 15)

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Um exemplo da reorientação radical das interações sociais na comunidade cristã surge durante uma intensa discussão sobre se os cristãos gentios deveriam adotar leis e costumes judaicos. Na sociedade romana hierárquica, o patrício de uma organização social ditava a decisão a seus seguidores, talvez depois de ouvir várias opiniões. Na comunidade cristã, porém, as decisões importantes eram tomadas pelo grupo como um todo, confiando no igual acesso à orientação do Espírito Santo.

A discussão, na verdade, começa no capítulo 11. Pedro experimenta uma revelação surpreendente, segundo a qual Deus está oferecendo o “arrependimento para a vida” (At 11.18) aos gentios, sem exigir que eles primeiro se tornassem judeus. Porém, quando ele viaja para Jerusalém na companhia de alguns homens incircuncisos (gentios), alguns dos cristãos de lá reclamam que ele está violando a lei judaica (At 11.1-2). Quando desafiado dessa maneira, Pedro não fica com raiva, não tenta dominar os homens, lembrando-lhes sua posição de liderança entre os discípulos de Jesus, não menospreza a opinião deles nem contesta seus motivos. Em vez disso, ele conta a história dos acontecimentos para que chegasse a essa conclusão, e como vê a mão de Deus nisso: “Se, pois, Deus lhes deu o mesmo dom que nos tinha dado quando cremos no Senhor Jesus Cristo, quem era eu para pensar em opor-me a Deus?” (At 11.17). Observe que ele se retrata não como sábio nem moralmente superior, mas como alguém que estava à beira de cometer um erro grave até ser corrigido por Deus.

Então, ele deixa que seus desafiantes respondam. Tendo ouvido a experiência de Pedro, eles não reagem na defensiva, não desafiam a autoridade de Pedro em nome de Tiago (irmão do Senhor e líder da igreja de Jerusalém) nem o acusam de exceder sua autoridade. Em vez disso, também enxergam a ação da mão de Deus e chegam à mesma conclusão que Pedro. O que começou como um confronto termina em comunhão e louvor. “Ouvindo isso, não apresentaram mais objeções e louvaram a Deus” (At 11.18). Não podemos esperar que todos os desentendimentos sejam resolvidos de forma tão amigável, mas podemos compreender que, quando as pessoas reconhecem e observam a graça de Deus na vida umas das outras, há todos os motivos para esperar um resultado mutuamente edificante.

Pedro deixa Jerusalém em clima de concordância com seus antigos antagonistas, mas na Judeia permanecem outros que estão ensinando que os gentios devem primeiro se converter ao judaísmo. “Se vocês não forem circuncidados conforme o costume ensinado por Moisés, não poderão ser salvos” (At 15.1). Paulo e Barnabé estão em Antioquia nessa época e, assim como Pedro, experimentaram a graça de Deus aos gentios sem necessidade de conversão ao judaísmo. O texto nos diz que a divisão era séria, mas que foi tomada uma decisão conjunta de buscar a sabedoria da comunidade cristã como um todo. “Isso levou Paulo e Barnabé a uma grande contenda e discussão com eles. Assim, Paulo e Barnabé foram designados, com outros, para irem a Jerusalém tratar dessa questão com os apóstolos e com os presbíteros.” (At 15.2)

Eles chegam a Jerusalém e são recebidos calorosamente pelos apóstolos e presbíteros (At 15.4). Aqueles que mantêm a opinião contrária — que os gentios devem primeiro se converter ao judaísmo — também estão presentes (At 15.5). Todos decidem se reunir para considerar o assunto e se envolvem em um grande debate (At 15.7). Então Pedro, que, é claro, está entre os apóstolos em Jerusalém, repete a história de como Deus lhe revelou sua graça para os gentios, sem a exigência de se converterem ao judaísmo (At 15.8). Paulo e Barnabé relatam as experiências semelhantes que tiveram, também se concentrando no que Deus está fazendo, em vez de reivindicar qualquer sabedoria superior ou autoridade (At 15.12). Todos os oradores são ouvidos com respeito. Em seguida, o grupo considera o que cada um disse à luz das Escrituras (At 15.15-17). Tiago, que atua como chefe da igreja em Jerusalém, propõe uma resolução: “Julgo que não devemos pôr dificuldades aos gentios que estão se convertendo a Deus. Ao contrário, devemos escrever a eles, dizendo-lhes que se abstenham de comida contaminada pelos ídolos, da imoralidade sexual, da carne de animais estrangulados e do sangue” (At 15.19-20).

Se Tiago exercesse autoridade como um patrício romano, seria o fim da questão. Seu status, por si só, decidiria a questão. Mas não é assim que a decisão se desenrola na comunidade cristã. Ela aceita sua decisão, mas por concordância, e não imposição. Não apenas Tiago, mas todos os líderes — na verdade, toda a igreja — têm voz na decisão: “Os apóstolos e os presbíteros, com toda a igreja, decidiram…” (At 15.22). E, quando enviam uma mensagem às igrejas gentias sobre sua decisão de “não [lhes] impor [...] nada além das seguintes exigências necessárias” (At 15.28b), o fazem em nome de todo o corpo, não em nome de Tiago, como patrício: “Concordamos todos em escolher alguns homens e enviá-los a vocês” (At 15.25). Além disso, não reivindicam autoridade pessoal, mas afirmam apenas que tentaram ser obedientes ao Espírito Santo: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós...” (At 15.28a). A palavra pareceu indica humildade em sua decisão, ressaltando que eles renunciaram ao sistema de clientelismo romano, com suas reivindicações de poder, prestígio e status.

Antes de encerrarmos esse episódio, observemos mais um elemento. Os líderes em Jerusalém mostram notável consideração sobre a experiência dos obreiros no campo — Pedro, Paulo e Barnabé — que trabalham por conta própria, longe da sede, cada um enfrentando uma situação específica que exigia uma decisão prática. Os líderes em Jerusalém respeitam muito sua experiência e seu julgamento. Eles comunicam de forma cautelosa os princípios que devem orientar as decisões (At 15.19-21), mas delegam o processo decisório aos mais próximos da ação e confirmam as decisões tomadas por Pedro, Paulo e Barnabé no campo. Mais uma vez, trata-se de um afastamento radical do sistema de clientelismo romano, que concentrava poder e autoridade nas mãos do patrício.

Os efeitos benéficos da prática da educação uniforme sobre missão, princípios e valores, combinados com a delegação localizada da tomada de decisão e ação, são bem conhecidos devido à sua ampla adoção por instituições empresariais, militares, educacionais, sem fins lucrativos e governamentais na segunda metade do século 20. A gestão de praticamente todo tipo de organização foi radicalmente transformada por ela. A resultante liberação de criatividade, produtividade e serviço humanos não seria surpresa para os líderes da igreja primitiva, que experimentaram a mesma explosão na rápida expansão da igreja na era apostólica.

No entanto, não está claro se as igrejas de hoje adotaram plenamente essa lição no que diz respeito à atividade econômica. Por exemplo, os cristãos que trabalham em países em desenvolvimento frequentemente reclamam que são prejudicados por posturas rígidas das igrejas distantes do mundo desenvolvido. Boicotes bem-intencionados, regras de comércio justo e outras táticas de pressão podem ter consequências opostas às pretendidas. Um missionário de desenvolvimento econômico em um país asiático, por exemplo, relatou os resultados negativos causados pela imposição de restrições ao trabalho infantil por parte de sua organização patrocinadora nos Estados Unidos. Uma empresa que ele ajudava a desenvolver foi obrigada a parar de comprar materiais produzidos por trabalhadores com menos de dezesseis anos. Um de seus fornecedores era uma empresa composta por dois irmãos adolescentes. Por causa das novas restrições, a empresa teve que parar de comprar peças dos irmãos, o que deixou sua família sem nenhuma fonte de renda. Diante disso, sua mãe teve de voltar à prostituição, o que tornou as coisas muito piores para ela, os irmãos e o restante da família. “O que precisamos da igreja nos Estados Unidos é uma comunhão não opressiva”, disse o missionário mais tarde. “A obediência aos bem-intencionados ditames cristãos ocidentais significa que temos de ferir as pessoas em nosso país.” [1]

A comunidade do Espírito confronta os agentes do poder (At 16 e 19)

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Na segunda metade de Atos, Paulo, seus companheiros e várias comunidades cristãs entram em conflito com os que detêm o poder econômico e cívico local. O primeiro incidente ocorre em Antioquia da Pisídia, onde “as mulheres religiosas de elevada posição e os principais da cidade” (At 13.50) são incitados contra Paulo e Barnabé, terminando por expulsá-los da cidade. Então, em Icônio, Paulo e Barnabé são maltratados por “gentios e judeus, com os seus líderes” (At 14.5). Em Filipos, Paulo e Silas são presos por estarem “perturbando” a cidade (At 16.19-24). Paulo se desentende com os oficiais da cidade de Tessalônica (At 17.6-9) e com o procônsul da Acaia (At 18.12). Mais tarde, ele entra em conflito com a associação dos ourives de Éfeso (At 19.23-41). Os conflitos culminam com o julgamento de Paulo por perturbação da paz em Jerusalém, que ocupa os oito capítulos finais de Atos.

Esses confrontos com os poderes locais não devem ser surpresa, dada a vinda do Espírito de Deus anunciada por Pedro em Atos 2. Ali, vimos que a vinda do Espírito foi, de alguma forma misteriosa, o início do novo mundo de Deus. Isso certamente ameaçaria os poderes do velho mundo. Vimos que o Espírito trabalhou na comunidade para formar uma economia baseada em dons, muito diferente da economia romana baseada no clientelismo. As comunidades cristãs formavam um sistema dentro do sistema, em que os crentes, embora ainda participassem da economia romana, tinham uma maneira diferente de usar os recursos. O conflito com os líderes locais se devia precisamente ao fato de que o maior interesse deles era a manutenção da economia clientelista de Roma.

Os confrontos relatados em Atos 16.16-24 e Atos 19.23-41 merecem ambos uma discussão mais profunda. Neles, o caminho do reino colide de maneira intensa com as práticas econômicas do mundo romano.

Confronto em razão da libertação de uma escrava em Filipos (At 16.16-24)

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O primeiro dos dois confrontos ocorre em Filipos, onde Paulo e Silas encontram uma moça possuída por um espírito de adivinhação. [1] No contexto greco-romano, esse tipo de espírito estava associado à adivinhação — uma conexão que gerava “muito dinheiro para os seus senhores” (At 16.16). Esse parece ser um exemplo da forma mais grosseira de exploração econômica. É curioso que Paulo e Silas não ajam mais rapidamente (At 16.18). Talvez seja porque Paulo queira estabelecer uma conexão com seus donos antes de corrigi-los. Quando Paulo age, no entanto, o resultado é libertação espiritual para a moça e perda financeira para seus senhores. A reação dos proprietários é arrastar Paulo e Silas perante as autoridades, sob a acusação de perturbação da paz.

Esse incidente demonstra de forma poderosa que o ministério de libertação que Jesus proclamou em Lucas 4 pode contrariar pelo menos uma prática comercial comum, a exploração de escravos. Negócios que produzem lucro econômico às custas da exploração humana conflitam com o evangelho cristão. (Governos que exploram seres humanos são igualmente ruins. Discutimos anteriormente como a violência de Herodes contra seu povo — e até mesmo contra seus próprios soldados — o levou à morte nas mãos de um anjo do Senhor.) Paulo e Silas não estavam em uma missão para reformar as práticas econômicas e as políticas corruptas do mundo romano, mas o poder de Jesus de libertar as pessoas do pecado e da morte não se furta a quebrar os laços da exploração. Não pode haver libertação espiritual sem consequências econômicas. Paulo e Silas estavam dispostos a se expor ao ridículo, ao espancamento e à prisão a fim de trazer libertação econômica a alguém cujo gênero, situação econômica e idade a tornavam vulnerável a abusos.

Se olharmos dois mil anos adiante, será possível que os cristãos tenham se acomodado ou até lucrado com produtos, empresas, indústrias e governos que violam os princípios éticos e sociais cristãos? É fácil protestar contra indústrias ilegais, como as de narcóticos e a prostituição, mas e quanto às muitas indústrias legalizadas que prejudicam trabalhadores, consumidores ou o público em geral? E as brechas legais, os subsídios e as regulamentações governamentais injustos que beneficiam alguns cidadãos às custas de outros? Será que ao menos reconhecemos que talvez estejamos nos beneficiando da exploração de outros? Em uma economia global, pode ser difícil rastrear as condições e consequências da atividade econômica. É necessário discernir com base em informações confiáveis, e a comunidade cristã nem sempre foi rigorosa em suas críticas. O fato é que o livro de Atos não fornece princípios para avaliar a atividade econômica. Mas ele demonstra que questões econômicas são questões do evangelho. Nas pessoas de Paulo e Silas, dois dos maiores missionários e heróis da fé, vemos todo o exemplo de que precisamos de que os cristãos são chamados a enfrentar os abusos econômicos do mundo.

Os capítulos 17 e 18 contêm muito material interessante no que diz respeito ao trabalho, mas, para continuar a discussão dos confrontos decorrentes do desafio do evangelho aos sistemas do mundo, este artigo é seguido pelo relato do confronto no capítulo 19.21-41, retornando então aos capítulos 17, 18 e às outras partes do capítulo 19.

Confronto sobre a interrupção do comércio em Éfeso (At 19.21-41)

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A discussão a seguir está um pouco fora de ordem (vamos pular o relato de Atos 19.17-20, por enquanto) para que possamos cobrir o segundo incidente de confronto. Ele ocorre em Éfeso, onde fica o Templo de Ártemis (também conhecida pelo nome romano Diana). O culto a Ártemis em Éfeso era uma poderosa força econômica na Ásia Menor. Peregrinos afluíam ao templo (uma estrutura tão grandiosa a ponto de ser considerada uma das sete maravilhas do mundo antigo) na esperança de receber de Ártemis mais fertilidade na caça, no campo ou na família. Nesse contexto, tal como em outros centros turísticos, muitas das indústrias locais estavam ligadas à relevância contínua da atração. [19]

Um ourives chamado Demétrio, que fazia miniaturas de prata do templo de Ártemis e que dava muito lucro aos artífices, reuniu-os com os trabalhadores desse ramo e disse: “Senhores, vocês sabem que temos uma boa fonte de lucro nesta atividade e estão vendo e ouvindo como este indivíduo, Paulo, está convencendo e desviando grande número de pessoas aqui em Éfeso e em quase toda a província da Ásia. Diz ele que deuses feitos por mãos humanas não são deuses. Não somente há o perigo de nossa profissão perder sua reputação, mas também de o templo da grande deusa Ártemis cair em descrédito e de a própria deusa, adorada em toda a província da Ásia e em todo o mundo, ser destituída de sua majestade divina”. Ao ouvirem isso, eles ficaram furiosos e começaram a gritar: “Grande é a Ártemis dos efésios!” Em pouco tempo a cidade toda estava em tumulto. O povo foi às pressas para o teatro, arrastando os companheiros de viagem de Paulo, os macedônios Gaio e Aristarco. (Atos 19.24-29)

Como Demétrio reconhece, quando as pessoas se tornam seguidoras de Jesus, pode-se esperar que mudem seu jeito de usar o dinheiro. Deixar de comprar itens relacionados à adoração a ídolos é apenas a mudança mais óbvia. Também se pode esperar que os cristãos gastem menos com artigos de luxo para si mesmos e mais em coisas necessárias para o bem-estar dos outros. Talvez eles consumam menos, doem ou invistam mais de maneira geral. Não há nada que proíba os cristãos de comprarem itens de prata em geral. Mas Demétrio está certo em sua percepção de que os padrões de consumo mudarão se muitas pessoas começarem a acreditar em Jesus. Isso sempre será ameaçador para aqueles que lucram mais com o status quo das coisas.

Isso nos leva a pensar quais aspectos da vida econômica em nosso próprio contexto podem ser incompatíveis com o evangelho cristão. Por exemplo, é possível que, ao contrário dos temores de Demétrio, os cristãos tenham continuado a comprar bens e serviços incompatíveis com o fato de seguirem a Jesus? Tornamo-nos cristãos, mas continuamos a comprar o equivalente a miniaturas de prata do templo de Ártemis? Certos itens de marca “desejáveis” vêm à mente, e eles apelam aos desejos dos compradores de se associarem a status social, riqueza, poder, inteligência, beleza ou outros atributos implícitos na “promessa da marca”. Se os cristãos afirmam que sua posição vem exclusivamente do amor incondicional de Deus em Cristo, a associação pessoal com marcas funciona como um tipo de idolatria? Comprar uma marca de prestígio é essencialmente semelhante a comprar um santuário de prata para Ártemis? Esse incidente em Éfeso nos adverte de que seguir Jesus tem consequências econômicas que às vezes podem nos deixar desconfortáveis, para dizer o mínimo.

Envolvimento respeitoso com a cultura (Atos 17.16-34)

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Apesar da necessidade de confrontar os agentes do poder na cultura mais ampla, a confrontação nem sempre é a melhor maneira de a comunidade cristã se envolver com o mundo. Com muita frequência, embora a cultura seja equivocada, apresente dificuldades ou desconheça a graça de Deus, não é verdadeiramente opressora. Nesses casos, a melhor maneira de proclamar o evangelho pode ser cooperar com a cultura e envolver-se com ela de forma respeitosa.

Em Atos 17, Paulo nos fornece um exemplo de como envolver a cultura respeitosamente. Ele começa com a observação. Paulo passeia pelas ruas de Atenas e observa o templo dos vários deuses que ali encontra. Relata que observou “cuidadosamente” os “objetos de culto” que viu naquela cidade (At 17.23), os quais, destaca ele, foram feitos “pela arte e imaginação” das pessoas (At 17.29). Ele leu obras literárias deles, conhecendo-as tão bem a ponto de citá-las e tratando-as com respeito suficiente para incorporá-las a sua pregação sobre Cristo. De fato, Paulo afirma que a literatura deles contém até mesmo um pouco da verdade de Deus, pois ele a cita dizendo: “como disseram alguns dos poetas de vocês: ‘Também somos descendência dele’” (At 17.28). Um compromisso com a transformação radical da sociedade não significa que os cristãos tenham que se opor a tudo que diz respeito à sociedade. Ela não é totalmente ímpia — “pois nele vivemos, nos movemos e existimos” –, embora não tenha consciência de Deus.

Do mesmo modo, precisamos ser observadores no local de trabalho. Podemos encontrar muitas boas práticas nas escolas, nos negócios, no governo ou em outros locais de trabalho, mesmo que não derivem da comunidade cristã. Se formos verdadeiramente observadores, veremos que mesmo aqueles que não têm consciência de Cristo ou que o desprezam são feitos à imagem de Deus. Como Paulo, devemos cooperar com eles, em vez de tentar desacreditá-los. Podemos trabalhar com descrentes para melhorar as relações trabalhistas e administrativas, o atendimento ao cliente, a pesquisa e o desenvolvimento, a governança corporativa e cívica, a educação pública e outras áreas. Devemos fazer uso das habilidades e percepções desenvolvidas em universidades, corporações, organizações sem fins lucrativos e outros lugares. Nosso papel não é condenar o trabalho deles, mas aprofundá-lo e mostrar que se trata de uma prova de que Deus “não [está] longe de cada um de nós” (At 17.27). Imagine a diferença entre dizer “como você não conhece a Cristo, todo o seu trabalho está errado” e “como conheço a Cristo, acho que posso apreciar seu trabalho ainda mais do que você”.

No entanto, ao mesmo tempo, precisamos estar atentos ao quebrantamento e ao pecado evidentes no local de trabalho. Nosso propósito não é julgar, mas curar, ou pelo menos limitar os danos. Paulo é particularmente observador em relação ao pecado e à distorção da idolatria. “Paulo ficou profundamente indignado ao ver que a cidade estava cheia de ídolos.” (At 17.16) Assim como os ídolos da antiga Atenas, os ídolos dos locais de trabalho modernos são muitos e variados. Um líder cristão na cidade de Nova York diz:

Quando estou trabalhando com educadores, cujo ídolo é que todos os problemas do mundo serão resolvidos pela educação, meu coração se conecta ao coração deles no que tange ao desejo de resolver os problemas do mundo, mas eu lhes diria que não podem ir tão longe com a educação, mas sim que a verdadeira solução vem de Cristo. O mesmo vale para muitas outras profissões. [1]

Nossas observações cuidadosas, tal como as de Paulo, nos tornam testemunhas mais perspicazes do poder único de Cristo de corrigir o mundo.

No passado Deus não levou em conta essa ignorância, mas agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam. Pois estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do homem que designou. E deu provas disso a todos, ressuscitando-o dentre os mortos. (Atos 17.30-31)

Fabricação de tendas e vida cristã (At 18.1-4)

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A passagem mais frequentemente ligada ao trabalho no livro de Atos é a fabricação de tendas realizada por Paulo em Atos 18.1-4. Embora essa passagem seja familiar, muitas vezes é entendida de forma muito restrita. Na leitura familiar, Paulo ganha dinheiro fazendo tendas a fim de se sustentar em seu ministério real de testemunhar de Cristo. Essa visão é muito estreita, porque não vê que a fabricação de tendas em si é um ministério real de testemunho de Cristo. Paulo é uma testemunha quando prega e quando faz tendas, e usa seus ganhos para beneficiar a comunidade em geral.

Isso se encaixa diretamente na visão de Lucas, segundo a qual o Espírito capacita os cristãos a usarem seus recursos para o bem de toda a comunidade, o que, por sua vez, se torna um testemunho do evangelho. É preciso lembrar que a ideia orientadora de Lucas para a vida cristã é a de testemunho, e a totalidade da vida de uma pessoa tem o potencial para testemunhar. É impressionante, então, que Paulo seja um exemplo dessa prática moldada pelo Espírito.

Certamente é verdade que Paulo quer se sustentar. No entanto, seu impulso não era apenas se sustentar em seu ministério de pregação, mas também fornecer apoio financeiro a toda a comunidade. Quando descreve seu impacto econômico entre os efésios, Paulo diz:

“Não cobicei a prata, nem o ouro, nem as roupas de ninguém. Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos supriram minhas necessidades e as de meus companheiros. Em tudo o que fiz, mostrei a vocês que mediante trabalho árduo devemos ajudar os fracos, lembrando as palavras do próprio Senhor Jesus, que disse: ‘Há maior felicidade em dar do que em receber’” (Atos 20.33-35, ênfase adicionada)

O trabalho lucrativo de Paulo era um esforço para edificar economicamente a comunidade. [1] Paulo emprega suas habilidades e posses em prol da comunidade, e diz explicitamente que se trata de um exemplo a ser seguido. Ele não diz que todos devem seguir seu exemplo de pregação. Mas de fato diz que todos devem seguir seu exemplo de trabalhar para ajudar os fracos e doar generosamente, como o próprio Jesus ensinou. Ben Witherington argumenta de forma convincente que Paulo não está reivindicando nenhum status mais elevado em decorrência de sua posição apostólica, mas está “descendo a escada social por causa de Cristo”. [2]

Em outras palavras, Paulo não se envolve na fabricação de tendas porque precisa fazer seu “verdadeiro trabalho” de pregar. Em vez disso, as variedades de trabalho de Paulo — na oficina de costura, no mercado, na sinagoga, no auditório e na prisão — são todas formas de testemunho. Em qualquer um desses contextos, Paulo participa do projeto restaurador de Deus. Em qualquer um desses contextos, Paulo vive sua nova identidade em Cristo em favor da glória de Deus e por amor ao próximo — até mesmo aos seus antigos inimigos. Mesmo quando está sendo transportado pelo mar como prisioneiro, ele emprega seus dons de liderança e encorajamento para guiar em segurança, durante uma forte tempestade, os soldados e os marinheiros que o mantêm cativo (At 27.27-38). Se ele não tivesse o dom de ser pregador e apóstolo, ainda assim teria sido uma testemunha de Cristo simplesmente por seu engajamento na fabricação de tendas, no esforço pelo bem da comunidade e no trabalho pelo bem dos outros em todas as situações.

Fabricar tendas tornou-se uma metáfora comum para os cristãos que se envolvem em uma profissão remunerada como meio de apoiar o que é frequentemente chamado de “ministério profissional”. O termo “bivocacional” é frequentemente usado para indicar que duas profissões distintas estão envolvidas: a que gera renda e a do ministério. Mas o exemplo de Paulo mostra que todos os aspectos da vida humana devem ser um testemunho ininterrupto. Há pouco espaço para estabelecer distinções entre “ministério profissional” e outras formas de testemunho. De acordo com Atos, os cristãos, na verdade, têm apenas uma vocação: testemunhar do evangelho. Temos muitas formas de serviço, incluindo pregação e cuidado pastoral, fabricação de tendas, construção de móveis, doação de dinheiro e assistência aos fracos. Um cristão que se envolve em uma profissão remunerada, como a de fabricar tendas, a fim de apoiar uma profissão não remunerada, como ensinar sobre Jesus, seria descrito com mais precisão como alguém que possui um “serviço duplo”, em vez de “bivocacionado” — um chamado, duas formas de serviço. O mesmo se aplica a qualquer cristão que sirva em mais de uma frente de trabalho.

O evangelho e os limites da vocação e do engajamento (At 19.17-20)

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A passagem de Atos 19.13-16 apresenta uma história estranha que leva ao arrependimento de um “grande número dos que tinham praticado ocultismo” (At 19.19). Eles reuniram seus livros de magia e os queimaram publicamente, e Lucas nos diz que o valor dos pergaminhos queimados por esses convertidos foi de 50.000 dracmas. Isso foi estimado como o equivalente a 137 anos de salário contínuo de um diarista ou a pão suficiente para alimentar 100 famílias por 500 dias. [1] A incorporação à comunidade do reino de Deus tem um enorme impacto econômico e vocacional.

Embora não possamos ter certeza de que aqueles que se arrependeram de seu envolvimento com o ocultismo estavam se arrependendo de um meio de ganhar a vida, é improvável que uma coleção tão cara de livros tenha sido mero hobby. Vemos aqui que a mudança na vida promovida pela fé em Jesus se reflete imediatamente em uma decisão vocacional — um resultado conhecido do Evangelho de Lucas. Nesse caso, os crentes acharam necessário abandonar completamente sua antiga ocupação.

Em muitos outros casos, embora seja possível permanecer na vocação, é necessário praticá-la diferentemente. Imagine, por exemplo, que um vendedor criou um negócio vendendo seguros desnecessários para idosos. Essa pessoa teria de interromper essa prática, mas poderia continuar na profissão de vendedor de seguros, mudando para uma linha de produtos benéfica para quem a compra. As comissões podem ser menores (ou não), mas a profissão tem muito espaço para um sucesso legítimo e para muitos participantes éticos.

Uma situação muito mais difícil ocorre em profissões que poderiam ser exercidas legitimamente, mas nas quais as práticas ilícitas possuem ramificações tão profundas que é difícil competir sem violar os princípios bíblicos. Muitos funcionários públicos em países com alto índice de corrupção enfrentam esse dilema. É possível ser um inspetor de obras honesto, mas será muito difícil se seu salário oficial for equivalente a US$ 10 por semana e seu supervisor exigir uma taxa de US$ 100 por mês para permitir que você mantenha seu emprego. Um crente nessa situação enfrenta uma escolha difícil. Se todas as pessoas honestas deixarem a profissão, tanto pior para o público. Mas, se é difícil ou impossível ganhar a vida honestamente na profissão, como um cristão pode permanecer nela? Isso é algo que Lucas discute em Lucas 3.9, quando João Batista aconselha soldados e cobradores de impostos a permanecerem em seu emprego, mas a cessarem a extorsão e a fraude praticadas pela maioria dos que têm essa profissão. (Veja “Lucas 3.8-14” em Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esta passagem.)