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Deuteronômio e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Deuteronomy bible commentary

Introdução a Deuteronômio

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O trabalho é um assunto importante do livro de Deuteronômio, e os principais tópicos incluem os seguintes:

  • Significado e valor do trabalho. O mandamento de Deus para trabalhar em benefício dos outros, as bênçãos do trabalho para o indivíduo e para a comunidade, as consequências do fracasso e os perigos do sucesso e a responsabilidade que advém de representar Deus para os outros.

  • Relacionamentos no trabalho. A importância de bons relacionamentos, o desenvolvimento da dignidade e do respeito pelos outros e a exigência de não prejudicar os outros ou falar injustamente deles em nosso trabalho.

  • Liderança. O exercício sábio de liderança e autoridade, o planejamento e treinamento de sucessão e a responsabilidade dos líderes de trabalhar em benefício das pessoas que lideram.

  • Justiça econômica. Respeito à propriedade, aos direitos dos trabalhadores e aos tribunais, uso produtivo de recursos, empréstimos, e honestidade nos acordos comerciais e no comércio justo.

  • Trabalho e descanso. A exigência de trabalhar, a importância do descanso e o convite para confiar em Deus para nos prover o necessário, tanto no trabalho quanto no descanso.

Apesar dos séculos de mudanças no comércio e na vocação, Deuteronômio pode nos ajudar a entender melhor como viver em resposta ao amor de Deus e servir aos outros por meio de nosso trabalho.

A apresentação dramática e unificada do livro o torna especialmente memorável. Jesus citou Deuteronômio muitas vezes. Na verdade, suas primeiras citações das Escrituras foram três passagens de Deuteronômio (Mt 4.4,7,10). O Novo Testamento se refere a Deuteronômio mais de cinquenta vezes, número que é superado apenas por Salmos e Isaías. [1] E Deuteronômio contém a primeira formulação do Grande Mandamento: “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças” (Dt 6.4-5).

Implícita a todos os temas de Deuteronômio está a aliança de Israel com o único Deus verdadeiro. Tudo no livro flui da pedra angular da aliança: “Eu sou o Senhor, o teu Deus... Não terás outros deuses além de mim” (Dt 5.6-7). Quando as pessoas adoram somente ao Senhor, geralmente o resultado é boa governança, trabalho produtivo, comércio ético, bem civil e tratamento justo para todos. Quando as pessoas colocam outras motivações, valores e preocupações à frente de Deus, o trabalho e a vida enfrentam sofrimento.

Deuteronômio abrange o mesmo material que os outros livros da lei — Êxodo, Levítico e Números —, mas aumenta a atenção dada ao trabalho, principalmente nos Dez Mandamentos. Parece que, ao recontar os eventos e os ensinamentos dos outros livros, Moisés sentiu a necessidade de enfatizar a importância do trabalho na vida do povo de Deus. Talvez, em algum sentido, isso preveja a crescente atenção que os cristãos estão dando ao trabalho nos dias atuais. Olhando para as Escrituras com novos olhos, descobrimos que o trabalho é mais importante para Deus do que imaginávamos antes e que a palavra de Deus dá mais direção ao nosso trabalho do que pensávamos.

Rebelião e acomodação (Deuteronômio 1.1—4.43)

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Deuteronômio começa com um discurso de Moisés relatando os principais acontecimentos da história recente de Israel. Moisés tira lições desses acontecimentos e exorta Israel a responder à fidelidade de Deus, obedecendo a ele com confiança (Dt 4.40). Duas seções — sobre violar a confiança em Deus por meio de rebelião e sobre acomodação, respectivamente — são particularmente importantes para a teologia do trabalho.

Israel se recusa a entrar na terra prometida (Deuteronômio 1.19-45)

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No deserto, o medo leva o povo a falhar em sua confiança em Deus. Como resultado, eles se rebelam contra o plano de Deus para entrar na terra que ele prometeu a Abraão, Isaque e Jacó (Dt 1.7-8). Deus havia tirado Israel da escravidão no Egito, dado a lei no Monte Horebe (Sinai) e levado o povo rapidamente às fronteiras da terra prometida (Dt 1.19-20). De acordo com o livro de Números, Deus pede a Moisés que envie espiões para inspecionar a terra que ele está dando aos israelitas, e Moisés obedece (Nm 13.1-3). Mas outros israelitas usam essa missão de reconhecimento como uma chance de desobedecer a Deus. Eles pedem a Moisés que envie espiões para que possam impedir a ação militar que Deus ordenou. Quando os espiões retornam com um relatório favorável, os israelitas ainda se recusam a ir (Dt 1.26). “O povo é mais forte e mais alto do que nós; as cidades são grandes, com muros que vão até o céu”, dizem eles a Moisés, acrescentando que “nossos compatriotas nos desanimaram” (Dt 1.28). Embora Moisés assegure ao povo que Deus lutará por eles, assim como fez no Egito, eles não confiam em Deus para cumprir suas promessas (Dt 1.29-33). O medo leva à desobediência, que leva a uma punição severa.

Por causa dessa desobediência, os israelitas que viviam na época são impedidos de entrar na terra prometida. “Ninguém desta geração má verá a boa terra que jurei dar aos seus antepassados” (Dt 1.35). As únicas exceções são Calebe e Josué, os únicos membros da expedição de reconhecimento que encorajaram os israelitas a obedecer à ordem de Deus (Nm 13.30). O próprio Moisés é impedido de entrar na terra devido a um ato diferente de desobediência. Em Números 20.2-12 Moisés suplica a Deus por uma fonte de água, e Deus diz a Moisés para ordenar a uma rocha que se torne uma fonte. Em vez disso, Moisés golpeia a rocha duas vezes com sua vara. Se Moisés tivesse falado com a rocha, como Deus ordenou, o milagre resultante poderia ter satisfeito tanto a sede física do israelita quanto sua necessidade de acreditar que Deus estava cuidando deles. Em vez disso, quando Moisés golpeia a rocha como se fosse abri-la, o momento oportuno passa. Como os israelitas em Deuteronômio 1.19-45 , Moisés é punido por sua falta de fé, o que sublinha sua desobediência. “Como vocês não confiaram em mim para honrar minha santidade à vista dos israelitas”, diz Deus, “vocês não conduzirão esta comunidade para a terra que lhes dou”

Quando sabemos o que é certo, mas somos tentados a violar isso, confiar em Deus é tudo o que temos para nos manter nos caminhos de Deus. Essa não é uma questão de fibra moral. Se até mesmo Moisés falhou em confiar completamente em Deus, podemos realmente imaginar que seremos bem-sucedidos? Em vez disso, é uma questão da graça de Deus. Podemos orar para que o Espírito de Deus nos fortaleça quando defendemos o que é certo, e podemos pedir o perdão de Deus quando caímos. Como Moisés e o povo de Israel, deixar de confiar em Deus pode ter sérias consequências na vida, mas, em última análise, nosso fracasso é redimido pela graça de Deus. (Para mais informações sobre este episódio, veja “Quando a liderança leva à impopularidade” em Números 13—14.)

Quando o sucesso leva à acomodação (Deuteronômio 4.25-40)

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No deserto, o fato de Israel abandonar a confiança em Deus surge não apenas do medo, mas também do sucesso. Neste ponto de seu primeiro discurso, Moisés está descrevendo a prosperidade que aguarda a nova geração prestes a entrar na terra prometida. Moisés ressalta que o sucesso provavelmente gerará uma acomodação espiritual muito mais perigosa do que o fracasso. “Quando vocês tiverem filhos e netos, e já estiverem há muito tempo na terra, e se corromperem e fizerem ídolos de qualquer tipo... não viverão muito ali; serão totalmente destruídos” (Dt 4.25-26). Chegaremos à idolatria, por si só, em Deuteronômio 5.8, mas o ponto aqui é o perigo espiritual causado pela acomodação. Na esteira do sucesso, as pessoas param de temer a Deus e começam a acreditar que o sucesso é um direito inato. Em vez de gratidão, forjamos um senso de direito. O sucesso pelo qual lutamos não é errado, mas é um perigo moral. A verdade é que o sucesso que alcançamos é uma mistura de uma pitada de habilidade e trabalho árduo, combinado com um monte de circunstâncias afortunadas e a graça comum de Deus. Na verdade, não podemos atender às nossas próprias necessidades, desejos e segurança. O sucesso não é permanente. Não satisfaz verdadeiramente. Uma ilustração dramática dessa verdade é encontrada na vida do rei Uzias, em 2Crônicas. “Ele foi extraordinariamente ajudado [por Deus], e assim tornou-se muito poderoso e a sua fama espalhou-se para longe. Entretanto, depois que Uzias se tornou poderoso, o seu orgulho provocou a sua queda” (2Cr 26.15-16). Somente em Deus podemos encontrar a verdadeira segurança e satisfação (Sl 17.15).

Pode ser surpreendente que o resultado da acomodação não seja o ateísmo, mas a idolatria. Moisés prevê que, se o povo abandonar o Senhor, eles não se tornarão agentes espirituais livres. Eles se prenderão a “deuses de madeira e de pedra, deuses feitos por mãos humanas, deuses que não podem ver, nem ouvir, nem comer, nem cheirar” (Dt 4.28). Talvez, nos dias de Moisés, a ideia de uma existência sem religião não tenha ocorrido a ninguém. Mas, em nossos dias, sim. Uma onda crescente de secularismo tenta se livrar daquilo que entende — às vezes com bastante razão — como algemas da dominação por instituições, crenças e práticas religiosas corruptas. Mas isso resulta em uma verdadeira liberdade ou a adoração a Deus é necessariamente substituída pela adoração de invenções feitas pelo homem?

Embora essa pergunta pareça abstrata, ela tem efeitos tangíveis no trabalho e no ambiente de trabalho. Por exemplo, antes da última metade do século XX, as questões sobre ética nos negócios eram geralmente resolvidas com base nas Escrituras. Essa prática estava longe de ser perfeita, mas dava uma posição firme para aqueles que estavam do lado perdedor das lutas pelo poder relacionadas ao trabalho. O caso mais dramático foi provavelmente a oposição religiosa à escravidão na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, que, em última análise, conseguiu abolir tanto o tráfico de escravos quanto a própria escravidão. Nas instituições secularizadas, não há autoridade moral à qual se possa apelar. Em vez disso, as decisões éticas devem ser baseadas na lei e no “costume ético”, como disse Milton Friedman. [1] Sendo a lei e os costumes éticos construções humanas, a ética nos negócios torna-se reduzida ao domínio dos poderosos e dos populares. Ninguém quer um ambiente de trabalho dominado pela elite religiosa, mas será que um ambiente de trabalho totalmente secularizado não abre a porta para um tipo diferente de exploração? Certamente, é possível que os crentes tragam as bênçãos da fidelidade de Deus para seu ambiente de trabalho sem tentar reimpor privilégios especiais para si mesmos.

Tudo isso não quer dizer que o sucesso deva necessariamente levar à acomodação. Se pudermos nos lembrar de que a graça de Deus, a palavra de Deus e a orientação de Deus estão na raiz de qualquer sucesso que tenhamos, podemos ser gratos, não acomodados. O sucesso que experimentamos poderia, então, honrar a Deus e nos trazer alegria. A cautela é simplesmente que, ao longo da história, o sucesso parece ser espiritualmente mais perigoso do que a adversidade. Moisés ainda adverte Israel sobre os perigos da prosperidade em Deuteronômio 8.11-20.

A lei de Deus e suas aplicações (Deuteronômio 4.44—30.20)

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Deuteronômio continua com um segundo discurso contendo o corpo principal do livro. Esta seção se concentra na aliança de Deus com Israel, especialmente na lei, ou nos princípios e regras pelos quais Israel deve viver. Depois de uma introdução narrativa (Dt 4.44-49), o discurso em si consiste em três partes. Na primeira parte, Moisés expõe os Dez Mandamentos (Dt 5.1—11.33). Na segunda parte, ele descreve em detalhes os “decretos e ordenanças” que Israel deve seguir (Dt 12.1—26.19). Na terceira parte, Moisés descreve as bênçãos que Israel experimentará se guardarem a aliança, bem como as maldições que os destruirão se não o fizerem (Dt 27.1—28.68). O segundo discurso, portanto, tem o padrão de primeiramente fornecer os princípios governantes mais amplos (Dt 5.1—11.32), depois as regras específicas (Dt 12.1—26.19) e, então, as consequências para a obediência ou desobediência (Dt 27.1—28.68).

Os Dez Mandamentos (Deuteronômio 5.6-21)

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Os Dez Mandamentos trazem grandes contribuições para a teologia do trabalho. Eles descrevem os requisitos essenciais da aliança de Israel com Deus e são os princípios fundamentais que governam a nação e o trabalho de seu povo. A exposição de Moisés começa com a declaração mais memorável do livro: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças” (Dt 6.4-5). Como Jesus apontou séculos depois, esse é o maior mandamento de toda a Bíblia. Então Jesus acrescentou uma citação de Levítico 19.18: “E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’” (Mt 22.37-40). Embora o “segundo” maior mandamento não seja declarado explicitamente em Deuteronômio, veremos que os Dez Mandamentos realmente nos apontam para o amor a Deus e ao próximo.

A passagem é praticamente idêntica à Êxodo 20.1-17 — variações gramaticais à parte — exceto por algumas diferenças no quarto (guardar o sábado), quinto (honrar mãe e pai) e décimo (cobiçar) mandamentos. Curiosamente, as variações desses mandamentos abordam especificamente o trabalho. Repetiremos o comentário de Êxodo e o trabalho aqui, com acréscimos que exploram as variações entre os relatos de Êxodo e Deuteronômio.

“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3; Deuteronômio 5.7)

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O primeiro mandamento nos lembra que tudo na Torá flui do amor que temos por Deus, que é uma resposta ao amor que ele tem por nós. Este amor foi demonstrado pela libertação de Israel operada por Deus “da terra da escravidão” no Egito (Dt 5.6). Nada na vida deve nos preocupar mais do que nosso desejo de amar e ser amado por Deus. Se nós tivermos alguma outra preocupação mais forte em relação a nós do que nosso amor por Deus, não significa tanto que estarmos quebrando as regras de Deus, mas sim que não estamos realmente em um relacionamento com Deus. A outra preocupação — seja dinheiro, poder, segurança, reconhecimento, sexo ou qualquer outra coisa — tornou-se nosso deus. Esse deus terá seus próprios mandamentos em desacordo com os de Deus, e inevitavelmente violaremos a Torá se cumprirmos as exigências desse deus. A observância dos Dez Mandamentos só é concebível para aqueles que começam não tendo outro deus além de Deus.

No campo do trabalho, isso significa que não devemos permitir que o trabalho ou seus requisitos e frutos substituam Deus como nossa preocupação mais importante na vida. “Nunca permita que alguém ou alguma coisa ameace o lugar central de Deus em sua vida”, como diz David Gill. [1]

Como muitas pessoas trabalham principalmente para ganhar dinheiro, um desejo excessivo por dinheiro provavelmente seja o perigo mais comum do trabalho em relação ao primeiro mandamento. Jesus advertiu exatamente sobre esse perigo. “Ninguém pode servir a dois senhores... Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6.24). Mas quase tudo relacionado ao trabalho pode se tornar distorcido em nossos desejos, a ponto de interferir em nosso amor por Deus. Quantas carreiras chegam a um fim trágico porque os meios para realizar coisas pelo amor de Deus — como poder político, sustentabilidade financeira, compromisso com o trabalho, status entre colegas ou desempenho superior — tornam-se um fim em si mesmos? Quando, por exemplo, o reconhecimento no trabalho se torna mais importante do que o caráter no trabalho, não é um sinal de que a reputação está substituindo o amor de Deus como a preocupação principal?

“Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4; Deuteronômio 5.8)

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O segundo mandamento levanta a questão da idolatria. Ídolos são deuses que nós mesmos criamos, deuses que nada têm em si próprios a não ser o que nós mesmos criamos, deuses sobre os quais pensamos ter controle. Nos tempos antigos, a idolatria muitas vezes assumia a forma de adoração a objetos físicos. Mas a questão é realmente de confiança e devoção. Em última análise, em que depositamos nossa esperança de bem-estar e sucesso? Qualquer coisa que não seja capaz de cumprir nossa esperança — ou seja, qualquer coisa que não seja Deus — é um ídolo, seja ou não um objeto físico. A história de uma família que forja um ídolo com a intenção de manipular Deus, bem como as desastrosas consequências pessoais, sociais e econômicas que se seguem, são memoravelmente contadas em Juízes 17—21.

No mundo do trabalho, é comum falar em dinheiro, fama e poder como ídolos em potencial, e com razão. Eles não são ídolos em si e, de fato, podem ser necessários para cumprirmos nossos papéis na obra criadora e redentora de Deus no mundo. No entanto, começamos a cair na idolatria quando imaginamos que temos total controle sobre eles, ou que, ao alcançá-los, nossa segurança e prosperidade serão garantidas. O mesmo pode ocorrer com praticamente todos os outros elementos do sucesso, incluindo preparação, trabalho árduo, criatividade, risco, riqueza e outros recursos e circunstâncias favoráveis. Somos capazes de reconhecer quando começamos a idolatrar essas coisas? Pela graça de Deus, podemos vencer a tentação de adorar essas coisas no lugar de Deus.

“Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus” (Êxodo 20.7; Deuteronômio 5.11)

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O terceiro mandamento literalmente proíbe o povo de Deus de tomar “em vão” o nome de Deus. Isso não precisa se restringir ao nome “YHWH” (Dt 5.11), mas inclui “Deus”, “Jesus”, “Cristo” e assim por diante. Mas o que significa tomar em vão? Isso inclui, é claro, o uso desrespeitoso para xingar, caluniar e blasfemar. Mas, mais significativamente, inclui atribuir falsamente desígnios humanos a Deus. Isso nos proíbe de reivindicar a autoridade de Deus para nossas próprias ações e decisões. Lamentavelmente, alguns cristãos parecem acreditar que seguir a Deus no trabalho consiste principalmente em falar por Deus com base em seu entendimento individual, em vez de trabalhar respeitosamente com os outros ou assumir a responsabilidade por suas ações. “A vontade de Deus é que…” ou “Deus está punindo você por…” são coisas muito perigosas de se dizer e quase nunca válidas quando ditas por um indivíduo sem o discernimento da comunidade de fé (1Ts 5.20-21). À luz disso, talvez a tradicional reticência dos judeus em proferir até mesmo o termo traduzido por “Deus” — sem falar do próprio nome divino — demonstre uma sabedoria que os cristãos muitas vezes carecem. Se fôssemos um pouco mais cuidadosos ao usar a palavra “Deus”, talvez fôssemos mais criteriosos ao afirmar que conhecemos a vontade de Deus, especialmente no que se refere a outras pessoas.

O terceiro mandamento também nos lembra que respeitar os nomes humanos é importante para Deus. O Bom Pastor “chama as ovelhas pelo nome” (Jo 10.3), enquanto nos adverte que, se você chamar outra pessoa de “louco” (ou “tolo”, NAA), então “corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.22). Tendo isso em mente, não devemos fazer uso indevido do nome de outras pessoas ou chamá-las por apelidos desrespeitosos. Usamos o nome das pessoas de forma errada quando o fazemos para amaldiçoar, humilhar, oprimir, excluir e fraudar. Usamos bem o nome das pessoas quando o fazemos para encorajar, agradecer, demonstrar solidariedade e acolher. Simplesmente aprender e dizer o nome de alguém é uma bênção, especialmente se essa pessoa é frequentemente tratada como alguém sem nome, invisível ou insignificante. Você sabe o nome da pessoa que esvazia sua lixeira, atende sua ligação telefônica ou dirige o ônibus que você pega todos os dias? Se esses exemplos não dizem respeito ao próprio nome do Senhor, eles dizem respeito ao nome daqueles que foram feitos à sua imagem.

“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo” (Êxodo 20.8-11; Deuteronômio 5.12)

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A questão do sábado é complexa, não apenas nos livros de Deuteronômio, Êxodo e no Antigo Testamento, mas também na teologia e na prática cristãs. A aplicabilidade exata do quarto mandamento — guardar o sábado — aos crentes gentios tem sido uma questão de debate desde os tempos do Novo Testamento (Rm 14.5-6). No entanto, o princípio geral do sábado se aplica diretamente à questão do trabalho.

O sábado e o trabalho que fazemos (Deuteronômio 5.13)
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A primeira parte do mandamento exige que se pare de trabalhar um dia a cada sete. Por um lado, esse foi um presente incomparável para o povo de Israel. Nenhum outro povo antigo tinha o privilégio de descansar um dia em cada sete. Por outro lado, exigia uma confiança extraordinária na provisão de Deus. Seis dias de trabalho tinham de ser suficientes para plantar, colher, carregar água, fiar e tirar o sustento da criação. Enquanto Israel descansava um dia por semana, as nações ao redor continuavam a forjar espadas, preparar flechas e treinar soldados. Israel tinha de confiar em Deus para não deixar que um dia de descanso levasse a uma catástrofe econômica e militar.

Enfrentamos a mesma questão de confiança na provisão de Deus hoje. Se obedecermos ao mandamento de Deus de observar o próprio ciclo de trabalho e descanso de Deus, seremos capazes de competir na economia moderna? São necessários sete dias de trabalho para ter um emprego (ou dois ou três empregos), limpar a casa, preparar as refeições, cortar a grama, lavar o carro, pagar as contas, terminar os trabalhos da escola e comprar roupas? Ou podemos confiar em Deus para nos sustentar, mesmo que tiremos um dia de folga durante o curso de cada semana? Podemos reservar um tempo para adorar a Deus, orar e nos reunir com outras pessoas para estudo e encorajamento e, se o fizermos, isso nos tornará mais ou menos produtivos em geral? O quarto mandamento não explica como Deus fará com que tudo dê certo para nós. Ele simplesmente nos diz para descansar um dia a cada sete.

Os cristãos, com algumas exceções significativas, geralmente adotam como dia de descanso o Dia do Senhor (domingo, o dia da ressurreição de Cristo), mas a essência do sábado não é escolher um dia específico da semana em detrimento de outro (Rm 14.5-6). A polaridade que realmente está na base do sábado é trabalhar e descansar. Tanto o trabalho quanto o descanso estão incluídos no quarto mandamento. Os seis dias de trabalho fazem parte do mandamento tanto quanto o dia de descanso. Embora muitos cristãos corram o risco de permitir que o trabalho consuma o tempo reservado para o descanso, outros correm o risco de evitar o trabalho e tentar levar uma vida de lazer e preguiça. Isso é ainda pior do que negligenciar o sábado, pois “se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1Tm 5.8). O que precisamos é de um ritmo adequado de trabalho e descanso, que, juntos, sejam bons para nós, nossa família, nossos funcionários e nossos hóspedes. O ritmo pode ou não incluir vinte e quatro horas contínuas de descanso, caindo no domingo (ou sábado). As proporções podem mudar devido a necessidades temporárias ou a necessidades mutáveis ​​das fases da vida.

Se o excesso de trabalho é o nosso principal perigo, precisamos encontrar uma maneira de honrar o quarto mandamento sem instituir um novo e falso legalismo que oponha o espiritual (adoração no domingo) contra o secular (trabalho de segunda a sábado). Se evitar o trabalho é o nosso perigo, precisamos aprender a encontrar alegria e significado em trabalhar como um serviço a Deus e ao próximo (Ef 4.28).

O sábado e o trabalho que as pessoas fazem por nós
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Das poucas variações entre as duas versões dos Dez Mandamentos, a maioria ocorre como acréscimos ao quarto mandamento em Deuteronômio. Primeiro, a lista daqueles que você não pode forçar a trabalhar no sábado é expandida para incluir “teu boi, teu jumento ou qualquer dos teus animais”. (Dt 5.14a). Em segundo lugar, é dada uma razão pela qual você não pode forçar escravos a trabalhar no sábado: “para que o teu servo e a tua serva descansem como tu. Lembra-te de que foste escravo no Egito” (Dt 5.14b-15a). Por fim, acrescenta-se um lembrete de que sua capacidade de descansar com segurança em meio à concorrência militar e econômica de outras nações é um dom de Deus, que protege Israel “com mão poderosa e com braço forte” (Dt 5.15b).

Uma distinção importante entre os dois textos sobre esse mandamento é seu fundamento na criação e na redenção, respectivamente. Em Êxodo, o sábado está enraizado nos seis dias da criação, seguidos por um dia de descanso (Gn 1.3—2.3). Deuteronômio acrescenta o elemento da redenção de Deus. “O Senhor, o teu Deus, te tirou de lá com mão poderosa e com braço forte. Por isso o Senhor, o teu Deus, te ordenou que guardes o dia de sábado” (Dt 5.15). Ao juntar os dois, vemos que os fundamentos para guardar o sábado são a maneira como Deus nos criou e a maneira como ele nos redime.

Esses acréscimos destacam a preocupação de Deus por aqueles que trabalham sob a autoridade de outros. Não é você apenas quem deve descansar, mas aqueles que trabalham para você — escravos, outros israelitas e até animais — também devem descansar. Quando você se lembra de que foi “escravo no Egito”, isso o lembra de não ter seu próprio descanso como um privilégio especial, mas de trazer descanso aos outros, assim como o Senhor o trouxe a você. Não importa que religião eles sigam ou o que possam escolher fazer com o tempo. Eles são trabalhadores, e Deus nos orienta a fornecer descanso para aqueles que trabalham. Podemos estar acostumados a pensar em guardar o sábado para nosso descanso, mas quanto pensamos no descanso daqueles que trabalham para nos servir? Muitas pessoas trabalham em horários que interferem em seus relacionamentos, ritmos de sono e oportunidades sociais, a fim de tornar a vida mais conveniente para os outros.

As chamadas “leis azuis” (ou “leis do domingo”) visavam proteger — ou impedir, dependendo do ponto de vista — as pessoas de trabalharem o tempo todo, mas acabaram desaparecendo na maioria dos países desenvolvidos. Sem dúvida, isso abriu muitas novas oportunidades para os trabalhadores e as pessoas a quem servem. Mas isso é sempre algo de que devemos fazer parte? Quando fazemos compras tarde da noite, vamos ao clube no domingo de manhã ou assistimos a eventos esportivos que continuam depois da meia-noite, consideramos como isso pode afetar aqueles que trabalham nesses horários? Talvez nossas ações ajudem a criar uma oportunidade de trabalho que, de outra forma, não existiria. Por outro lado, talvez simplesmente exigimos que alguém trabalhe em um horário miserável, sendo que poderia trabalhar em um horário mais conveniente.

A rede de restaurantes de fast-food Chick-fil-A é conhecida por fechar aos domingos. Muitas vezes, presume-se que isso se deva à interpretação particular do quarto mandamento do fundador Truett Cathy. Mas, de acordo com o site da empresa, “sua decisão foi tão prática quanto espiritual. Ele acredita que todos os dirigentes e funcionários dos restaurantes franqueados da Chick-fil-A devem ter a oportunidade de descansar, passar tempo com a família e os amigos e adorar a Deus, se assim o desejarem”. É claro que ler o quarto mandamento como uma forma de cuidar das pessoas que trabalham para você é uma interpretação particular, mas não uma interpretação sectária ou legalista. A questão é complexa e não há uma resposta única para todos. Mas, como consumidores e, em alguns casos, como empregadores, tomamos decisões que afetam as horas e as condições de descanso e trabalho de outras pessoas.

“Honra teu pai e tua mãe” (Êxodo 20.12; Deuteronômio 5.16)

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O quinto mandamento diz que devemos respeitar a autoridade mais básica entre os seres humanos, a dos pais em relação aos filhos. Em outras palavras, ser pai ou mãe está entre os tipos mais importantes de trabalho que existem no mundo e merece e requer o maior respeito. Há muitas maneiras de honrar — ou desonrar — seu pai e sua mãe. Nos dias de Jesus, os fariseus queriam restringir isso a falar bem deles. Mas Jesus salientou que obedecer a esse mandamento inclui trabalhar para sustentar seus pais (Mc 7.9-13). Honramos as pessoas trabalhando para o bem delas.

Para muitas pessoas, um bom relacionamento com os pais é uma das alegrias da vida. Servir com amor a eles é um deleite, e obedecer a esse mandamento é fácil. Mas somos postos à prova por esse mandamento quando achamos difícil trabalhar em favor de nossos pais. Podemos ter sido maltratados ou negligenciados por eles. Eles podem ser controladores e intrometidos. Estar perto deles pode minar nosso senso de identidade, nosso compromisso com nosso cônjuge (incluindo nossas responsabilidades sob o terceiro mandamento) e até mesmo nosso relacionamento com Deus. Mesmo que tenhamos um bom relacionamento com nossos pais, pode chegar um momento em que cuidar deles seja um grande fardo, simplesmente por causa do tempo e do trabalho que isso exige. Se o envelhecimento ou a demência começarem a roubar sua memória, suas capacidades e sua boa índole, cuidar deles pode se tornar uma profunda tristeza.

No entanto, o quinto mandamento vem com uma promessa: “para que tenhas longa vida e tudo te vá bem na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Dt 5.16). Por meio da devida honra aos pais, os filhos aprendem o respeito adequado em todos os outros tipos de relacionamento, incluindo aqueles em seus futuros ambientes de trabalho. A obediência a esse mandamento nos permite viver muito e fazer o bem, porque desenvolver relacionamentos adequados de respeito e autoridade é essencial para o sucesso individual e a ordem social.

Como essa é uma ordem para trabalhar em benefício dos pais, é inerentemente uma ordem do ambiente de trabalho. O ambiente de trabalho pode ser onde ganhamos recursos para sustentá-los ou pode ser onde os ajudamos nas tarefas da vida cotidiana. Ambos são trabalho. Quando aceitamos um emprego porque ele nos permite viver perto deles, enviamos dinheiro para eles, fazemos uso dos valores e dons que eles desenvolveram em nós ou ainda fazemos coisas que eles nos ensinaram como sendo importantes, então estamos honrando-os. Quando nós limitamos nossas carreiras para que possamos estar presentes com eles, limpar e cozinhar para eles, dar-lhes banho e abraçá-los, levá-los aos lugares de que gostam ou diminuir seus medos, estamos honrando-os.

Os pais, portanto, têm o dever de ser dignos de confiança, respeito e obediência. Criar filhos é uma forma de trabalho, e nenhum ambiente de trabalho exige padrões mais elevados de confiabilidade, compaixão, justiça e equidade. Como o apóstolo Paulo disse: “Pais, não irritem seus filhos; antes criem-nos segundo a instrução e o conselho do Senhor” (Ef 6.4). Somente pela graça de Deus alguém poderia esperar servir adequadamente como pai, outra indicação de que a adoração a Deus e a obediência aos seus caminhos estão implícitas em todo o Deuteronômio.

Em nosso ambiente de trabalho, podemos ajudar outras pessoas a cumprir o quinto mandamento, assim como nós mesmos obedecemos. Podemos lembrar que funcionários, clientes, colegas de trabalho, chefes, fornecedores e outros também têm família e, então, podemos ajustar nossas expectativas para apoiá-los a honrar suas famílias. Quando outras pessoas compartilham ou reclamam sobre suas dificuldades com os pais, podemos ouvi-las com compaixão, apoiá-las de forma prática (talvez oferecendo-se para fazer um turno no trabalho para que elas possam estar com os pais), talvez oferecer uma perspectiva piedosa para que considerem. Por exemplo, se um colega focado na carreira revela uma crise familiar, temos a chance de orar pela família e sugerir que ele pense em reequilibrar o tempo entre a carreira e a família.

“Não matarás” (Êxodo 20.13; Deuteronômio 5.17)

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Infelizmente, o sexto mandamento tem uma aplicação muito prática no ambiente de trabalho moderno, onde 10% de todas as mortes relacionadas ao trabalho (nos Estados Unidos) são homicídios. [1] No entanto, admoestar os leitores deste artigo para que “não mate ninguém no trabalho”, provavelmente não mudará muito essa estatística.

Mas o assassinato não é a única forma de violência no ambiente de trabalho, apenas a mais extrema. Jesus disse que até mesmo a ira é uma violação do sexto mandamento (Mt 5.21-22). Como Paulo observou, podemos não ser capazes de evitar o sentimento de raiva, mas podemos aprender a lidar com ele. “Quando vocês ficarem irados, não pequem. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha” (Ef 4.26). A implicação mais significativa do sexto mandamento para o trabalho, então, pode ser: “Se você ficar com raiva no trabalho, procure ajuda para controlar a raiva”. Muitos empregadores, igrejas, entidades governamentais e organizações sem fins lucrativos oferecem aulas e aconselhamento sobre controle da raiva, e aproveitá-las pode ser uma maneira altamente eficaz de obedecer ao sexto mandamento.

Assassinato é homicídio intencional, mas a jurisprudência que decorre do sexto mandamento mostra que também temos o dever de evitar mortes não intencionais. Um caso que serve de ilustração é quando um boi (um animal de trabalho) chifra um homem ou uma mulher até a morte (Êx 21.28-29). Se o evento era previsível, o dono do boi deve ser tratado como um assassino. Em outras palavras, os proprietários/gerentes são responsáveis ​​por garantir a segurança no ambiente de trabalho dentro do razoável. Esse princípio está bem estabelecido na lei na maioria dos países, e a segurança no ambiente de trabalho é objeto de atenção significativa do governo, da autorregulamentação do setor e de políticas e práticas organizacionais. No entanto, ambientes de trabalho de todos os tipos continuam a exigir ou permitir que as pessoas trabalhem em condições desnecessariamente inseguras. Os cristãos que de alguma maneira ajudam a estabelecer as condições de trabalho, supervisionar os trabalhadores ou modelar as práticas no ambiente de trabalho são lembrados pelo sexto mandamento de que condições seguras de trabalho estão entre suas maiores responsabilidades no mundo do trabalho.

“Não adulterarás” (Êxodo 20.14; Deuteronômio 5.18)

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O ambiente de trabalho é um dos ambientes mais comuns de adultério, não necessariamente porque o adultério ocorre no próprio ambiente de trabalho, mas porque surge das condições de trabalho e do relacionamento com colegas de trabalho. A primeira aplicação ao ambiente de trabalho, então, é literal. As pessoas casadas não devem fazer sexo com pessoas que não sejam seus cônjuges, no trabalho ou por causa de seu trabalho. Algumas profissões, como a prostituição e a pornografia, quase sempre violam esse mandamento, pois quase sempre envolvem sexo entre pessoas que são casadas com outras pessoas. Mas qualquer tipo de trabalho que corroa os laços do casamento infringe o sétimo mandamento. Existem muitas maneiras pelas quais isso pode ocorrer. Um trabalho que incentiva fortes laços afetivos entre colegas de trabalho, sem apoiar adequadamente seus compromissos com os cônjuges, como pode acontecer em hospitais, empreendimentos, instituições acadêmicas e igrejas, entre outros lugares. Condições de trabalho que colocam as pessoas em contato físico próximo por períodos prolongados ou que não incentivam limites razoáveis ​​para encontros fora do expediente, como pode acontecer em tarefas de campo prolongadas. O trabalho pode sujeitar as pessoas a assédio sexual e a pressão para fazer sexo com aqueles que detêm poder sobre elas. O trabalho pode inflar o ego das pessoas ou expô-las à bajulação, como pode ocorrer com celebridades, atletas famosos, gurus dos negócios, altos funcionários do governo e os super-ricos. O trabalho pode exigir tanto tempo longe — física, mental ou emocionalmente — que desgasta os laços entre os cônjuges. Tudo isso pode representar perigos que os cristãos fariam bem em reconhecer e evitar, melhorar ou resguardar-se.

“Não furtarás” (Êxodo 20.15; Deuteronômio 5.19)

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O oitavo mandamento é outro que tem o trabalho como seu assunto principal. Roubar é uma violação do trabalho adequado, porque priva a vítima dos frutos de seu trabalho. Também é uma violação do mandamento de trabalhar seis dias por semana, já que, na maioria dos casos, o roubo é um atalho em relação ao trabalho honesto, o que mostra novamente a inter-relação dos Dez Mandamentos. Portanto, podemos tomar como palavra de Deus que não devemos roubar daqueles para quem, com quem ou entre quem trabalhamos.

A própria ideia de que existe algo como “roubar” implica a existência de propriedade e direitos de propriedade. Existem apenas três maneiras de adquirir coisas — fabricando-as nós mesmos, pela troca voluntária de bens e serviços com outras pessoas (comércio ou presentes) ou pelo confisco. O roubo é a forma mais flagrante de confisco, quando alguém toma o que pertence a outro e foge. Mas o confisco também ocorre em uma escala maior e mais sofisticada, como quando uma corporação frauda clientes ou um governo impõe uma tributação desastrosa a seus cidadãos. Essas instituições não respeitam os direitos de propriedade. Este não é o lugar para fazer comparações entre o que constitui o comércio justo e o monopolista ou entre a tributação legítima e a excessiva. Mas o oitavo mandamento nos diz que nenhuma sociedade pode prosperar quando os direitos de propriedade são violados impunemente por indivíduos, gangues criminosas, empresas ou governos.

Em termos práticos, isso significa que o furto ocorre de muitas formas, além do roubo propriamente dito. Sempre que nos apossamos de algo de valor sem consentimento de seu legítimo dono, estamos cometendo um roubo. Apropriar-se indevidamente de recursos ou fundos para uso pessoal é roubar. Usar o engano para fazer vendas, ganhar participação no mercado ou aumentar os preços é roubar, porque o engano significa que aquilo que o comprador adquire não é o que realmente pensava ser. (Veja a seção sobre “Exagero” em Verdade e Engano em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.) Da mesma forma, lucrar tirando vantagem do medo, vulnerabilidade, impotência ou desespero das pessoas é uma forma de roubo, porque seu consentimento não é verdadeiramente voluntário. Violar patentes, direitos autorais e outras leis de propriedade intelectual é roubar porque priva os proprietários da capacidade de lucrar com sua criação, nos termos da lei civil.

O respeito pela propriedade e pelos direitos dos outros significa que não tomamos o que é deles nem nos intrometemos em seus assuntos. Mas isso não significa que olhamos apenas para nós mesmos. Deuteronômio 22.1 declara: “Se o boi ou a ovelha de um israelita se extraviar e você o vir, não ignore o fato, mas faça questão de levar o animal de volta ao dono”. Dizer “Não é da minha conta” não é desculpa para a insensibilidade.

Lamentavelmente, muitos trabalhos parecem incluir um elemento de aproveitar-se da ignorância dos outros ou da falta de alternativas para forçá-los a fazer transações com as quais, de outra forma, não concordariam. Empresas, governos, indivíduos, sindicatos e outros podem usar seu poder para coagir outras pessoas quanto a pagamento de salários, preços, termos financeiros, condições de trabalho, horários ou outros fatores injustos. Podemos até não estar roubando bancos, roubando de nossos empregadores ou furtando lojas, mas muito provavelmente podemos estar participando de práticas injustas ou antiéticas que privam outras pessoas de certos direitos que deveriam ser delas. Resistir a essas práticas pode ser difícil e até mesmo trazer consequências para nossa carreira, mas, mesmo assim, somos chamados a fazer isso.

“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20.16; Deuteronômio 5.20)

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O nono mandamento honra o direito à própria reputação. [1] Ele encontra aplicação direta em processos judiciais em que o que as pessoas dizem retrata a realidade e determina o curso da vida. Decisões judiciais e outros processos legais exercem grande poder. Manipulá-los mina o tecido ético da sociedade e, portanto, constitui uma ofensa muito grave. Walter Brueggemann diz que esse mandamento reconhece “que a vida em comunidade não é possível, a menos que haja uma arena na qual haja confiança pública de que a realidade social será descrita e relatada de forma confiável”. [2]

Embora afirmado na linguagem do tribunal, o nono mandamento também se aplica a uma ampla gama de situações que afetam praticamente todos os aspectos da vida. Nunca devemos dizer ou fazer algo que desvirtue outra pessoa. Brueggemann novamente fornece uma perspectiva:

Os políticos procuram destruir uns aos outros em campanhas negativas; colunistas de fofocas se alimentam de calúnias; e nas salas de estar cristãs, reputações são manchadas ou destruídas enquanto o café é servido em porcelana fina com a sobremesa. Esses tribunais informais são conduzidos sem o devido processo legal. Acusações são feitas; boatos são permitidos; difamações, perjúrios e comentários caluniosos são proferidos sem objeção. Sem provas, sem defesa. Como cristãos, devemos nos recusar a participar ou a tolerar qualquer conversa em que uma pessoa esteja sendo difamada ou acusada sem que a pessoa esteja presente para se defender. É errado transmitir boatos de qualquer forma, mesmo como pedidos de oração ou preocupações pastorais. Mais do que simplesmente não participar, cabe aos cristãos impedir os rumores e aqueles que os espalham. [3]

Isso sugere ainda que a fofoca no ambiente de trabalho é uma ofensa grave. Parte disso diz respeito a assuntos pessoais e externos, o que é bastante maligno. E quanto aos casos em que um funcionário mancha a reputação de um colega de trabalho? A verdade pode realmente ser dita quando aqueles de quem se fala não estão lá para falar por si mesmos? E as avaliações de desempenho? Que medidas devem ser adotadas para garantir que os relatórios sejam justos e precisos? Em larga escala, o negócio de marketing e propaganda opera no espaço público entre organizações e indivíduos. No interesse de apresentar os próprios produtos e serviços da melhor maneira possível, até que ponto se pode apontar as falhas e fraquezas da concorrência, sem incorporar a perspectiva dela? É possível que os direitos do seu “próximo” incluam os direitos de outras empresas? O escopo de nossa economia global sugere que esse mandamento pode ter uma aplicação muito ampla.

O mandamento proíbe especificamente falar falsamente sobre outra pessoa, mas levanta a questão de saber se devemos dizer a verdade em todo tipo de situação. A emissão de demonstrações financeiras falsas ou enganosas é uma violação do nono mandamento? E o que dizer de alegações de publicidade exageradas, mesmo que não depreciem falsamente os concorrentes? E quanto às garantias da administração que enganam os funcionários sobre demissões iminentes? Em um mundo em que a percepção muitas vezes conta para a realidade, a retórica da persuasão eficaz pode ou não ter muito a ver com a verdade genuína. A origem divina desse mandamento nos lembra de que as pessoas podem não ser capazes de detectar quando nossa representação dos outros é precisa ou não, mas Deus não pode ser enganado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que o engano às vezes é praticado, aceito e até aprovado nas Escrituras. Uma teologia completa da verdade e do engano baseia-se em textos que incluem, mas não se limitam ao nono mandamento. (Veja Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org para uma discussão muito mais completa desse tópico, incluindo se a proibição de “falso testemunho contra o próximo” abrange todas as formas de mentira e engano.)

“Não cobiçarás a casa do teu próximo [...] nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20.17; Deuteronômio 5.21)

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O décimo mandamento proíbe cobiçar qualquer coisa que pertença ao próximo (Dt 5.21). Não é errado notar as coisas que pertencem ao próximo, nem mesmo desejar obter essas coisas para nós mesmos legitimamente. A cobiça acontece quando alguém vê a prosperidade, as conquistas ou os talentos de outra pessoa e, em seguida, se ressente com isso, ou quer tomar aquilo para si, ou quer punir a pessoa bem-sucedida. É o dano a outra pessoa, o “próximo” — não o desejo de ter algo — que é proibido aqui.

Podemos nos inspirar no sucesso dos outros ou podemos cobiçar. A primeira atitude leva ao trabalho árduo e à prudência. A segunda atitude causa preguiça, gera desculpas para o fracasso e provoca atos de confisco. Nunca teremos sucesso se nos convencermos de que a vida é um jogo de soma zero e que, de alguma forma, somos prejudicados quando outras pessoas se saem bem. Nunca faremos grandes coisas se, em vez de trabalhar arduamente, fantasiarmos que as conquistas de outras pessoas são nossas. Aqui, novamente, o fundamento último desse mandamento é o mandamento de adorar somente a Deus. Se Deus é o foco de nossa adoração, o desejo por ele substitui todo desejo profano e cobiçoso por qualquer outra coisa, incluindo o que pertence ao próximo. Como o apóstolo Paulo disse: “Aprendi a ficar satisfeito com o que tenho” (Fp 4.11, NVT).

Deuteronômio, em relação a Êxodo, acrescenta as palavras “nem sua propriedade” à lista das coisas do próximo que não se deve cobiçar. Como nas outras adições aos Dez Mandamentos em Deuteronômio, esta chama a atenção para o ambiente de trabalho. Uma propriedade ou campo é um ambiente de trabalho, e cobiçar isso é cobiçar os recursos produtivos que outra pessoa possui.

A inveja e a ganância são de fato especialmente perigosas no trabalho, onde status, salário e poder são fatores rotineiros em nossos relacionamentos com as pessoas com quem passamos muito tempo. Podemos ter muitos bons motivos para desejar realizações, promoções ou recompensas no trabalho. Mas a inveja não é um deles, assim como não é um bom motivo trabalhar obsessivamente por inveja da posição social que isso pode possibilitar.

Em particular, enfrentamos no trabalho a tentação de inflar falsamente nossas realizações às custas dos outros. O antídoto é simples, embora às vezes difícil de fazer. Torne uma prática consistente reconhecer as realizações dos outros e dar a eles todo o crédito que merecem. Se pudermos aprender a nos alegrar com — ou pelo menos reconhecer — os sucessos dos outros, cortaremos a força vital da inveja e da cobiça em ação. Melhor ainda, se pudermos aprender a trabalhar para que nosso sucesso ande de mãos dadas com o sucesso dos outros, a cobiça será substituída pela colaboração e a inveja, pela unidade.

Leith Anderson, ex-pastor da Wooddale Church, em Eden Prairie, Minnesota, diz: “Como pastor titular, é como se eu tivesse um suprimento ilimitado de moedas no bolso. Sempre que dou crédito a um membro da equipe por uma boa ideia, elogio o trabalho de um voluntário ou agradeço a alguém, é como se estivesse enfiando uma moeda do meu bolso no dele. Esse é o meu trabalho como líder, passar moedas do meu bolso para o bolso dos outros, para aumentar o apreço que outras pessoas têm por elas.” [1]

Decretos e ordenanças (Deuteronômio 4.44—28.68)

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Na segunda parte de seu segundo discurso, Moisés descreve em detalhes os “decretos e ordenanças” que Deus ordena que Israel obedeça (Dt 6.1). Essas regras lidam com uma ampla gama de assuntos, incluindo guerra, escravidão, dízimos, festas religiosas, sacrifícios, comida kosher, profecia, monarquia e o santuário central. Esse material contém várias passagens que falam diretamente à teologia do trabalho. Vamos explorá-las em sua ordem bíblica.

As bênçãos de obedecer à aliança de Deus (Deuteronômio 7.12-15; 28.2-12)

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Mesmo que os mandamentos, decretos e ordenanças da aliança de Deus possam parecer não passar de um fardo para Israel, Moisés nos lembra que seu propósito principal é nos abençoar.

Se vocês obedecerem a essas ordenanças, as guardarem e as cumprirem, então o Senhor, o seu Deus, manterá com vocês a aliança e a bondade que prometeu sob juramento aos seus antepassados. Ele os amará, os abençoará e fará com que vocês se multipliquem. Ele abençoará os seus filhos e os frutos da sua terra: o cereal, o vinho novo e o azeite, as crias das vacas e das ovelhas, na terra que aos seus antepassados jurou dar a vocês. (Dt 7.12-13)

Todas estas bênçãos virão sobre vocês e os acompanharão, se vocês obedecerem ao Senhor, o seu Deus: “Vocês serão abençoados na cidade e serão abençoados no campo. Os filhos do seu ventre serão abençoados, como também as colheitas da sua terra e os bezerros e os cordeiros dos seus rebanhos. A sua cesta e a sua amassadeira serão abençoadas. Vocês serão abençoados em tudo o que fizerem... O Senhor lhes concederá grande prosperidade, no fruto do seu ventre, nas crias dos seus animais e nas colheitas da sua terra, nesta terra que ele jurou aos seus antepassados que daria a vocês. O Senhor abrirá o céu, o depósito do seu tesouro, para enviar chuva à sua terra no devido tempo e para abençoar todo o trabalho das suas mãos”. (Dt 28.2-7,11-12)

A obediência à aliança deve ser uma fonte de bênção, prosperidade, alegria e saúde para o povo de Deus. Como Paulo diz: “A Lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7.12), e “O amor é o cumprimento da Lei” (Rm 13.10).

Isso não deve ser confundido com o chamado “Evangelho da Prosperidade”, que afirma incorretamente que Deus inevitavelmente traz riqueza e saúde aos indivíduos que ganham seu favor. Significa que, se o povo de Deus vivesse de acordo com sua aliança, o mundo seria um lugar melhor para todos. Obviamente, o testemunho cristão é que não somos capazes de cumprir a lei por meio de qualquer poder que possamos ter. É por isso que há uma nova aliança em Cristo, na qual a graça de Deus se torna disponível para nós por meio da morte e ressurreição de Cristo, em vez de ser limitada por nossa própria obediência. Ao viver em Cristo, descobrimos que somos capazes de amar e servir a Deus, e que, por fim, recebemos as bênçãos descritas por Moisés, de modo parcial nos dias atuais e de modo completo depois, quando Cristo levar o Reino de Deus ao seu cumprimento.

De qualquer forma, a obediência à aliança de Deus é o tema abrangente que atravessa o livro de Deuteronômio. Além dessas três passagens extensas, o tema é abordado em muitas ocasiões breves ao longo do livro, e Moisés retorna a ele em seu discurso final, ao fim de sua vida, nos capítulos 29 e 30.

Os perigos da prosperidade (Deuteronômio 8.11-20)

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Em contraste com a alegre obediência a Deus está a arrogância que muitas vezes acompanha a prosperidade. Isso é semelhante ao perigo da acomodação sobre o qual Moisés adverte em Deuteronômio 4.25-40, mas com foco no orgulho ativo, em vez de no direito passivo.

Não aconteça que, depois de terem comido até ficarem satisfeitos, de terem construído boas casas e nelas morado, de aumentarem os seus rebanhos, a sua prata e o seu ouro, e todos os seus bens, o seu coração fique orgulhoso e vocês se esqueçam do Senhor, o seu Deus, que os tirou do Egito, da terra da escravidão. (Dt 8.12-14)

Quando, depois de muitos anos de suor, uma pessoa vê um negócio, uma carreira, um projeto de pesquisa, a criação dos filhos ou outro trabalho se tornar um sucesso, ela terá um senso de orgulho justificável. Mas podemos abrir as portas para que o orgulho alegre se transforme em arrogância. Deuteronômio 8.17-18 nos lembra: “Não digam, pois, em seu coração: ‘A minha capacidade e a força das minhas mãos ajuntaram para mim toda esta riqueza’. Mas, lembrem-se do Senhor, o seu Deus, pois é ele que lhes dá a capacidade de produzir riqueza, confirmando a aliança que jurou aos seus antepassados, conforme hoje se vê”. Como parte de sua aliança com seu povo, Deus nos dá a capacidade de nos engajarmos na produção econômica. Precisamos lembrar, no entanto, que isto é um dom de Deus. Quando atribuímos nosso sucesso inteiramente a nossas habilidades e esforços, esquecemos que Deus nos deu essas habilidades, bem como a própria vida. Não criamos a nós mesmos. A ilusão de autossuficiência nos torna insensíveis. Como sempre, a adoração adequada e a consciência da dependência de Deus fornecem o antídoto (Dt 8.18).

Generosidade e bênção de Deus (Deuteronômio 15.7-11)

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O tema da generosidade surge em Deuteronômio 15.7-8: “Se houver algum israelita pobre em qualquer das cidades da terra que o Senhor, o seu Deus, lhes está dando, não endureçam o coração, nem fechem a mão para com o seu irmão pobre. Ao contrário, tenham mão aberta”. Generosidade e compaixão são a essência da aliança. “Dê-lhe generosamente, e sem relutância no coração; pois, por isso, o Senhor, o seu Deus, o abençoará em todo o seu trabalho e em tudo o que você fizer” (Dt 15.10). Nosso trabalho só se torna plenamente abençoado quando abençoa os outros. Como Paulo disse: “o amor é o cumprimento da Lei” (Rm 13.10).

Para a maioria de nós, o dinheiro ganho com o trabalho nos dá os meios para sermos generosos. Será que realmente usamos isso generosamente? Além disso, há maneiras em que podemos ser generosos em nosso próprio trabalho? A passagem fala da generosidade especificamente como um aspecto do trabalho (“todo o seu trabalho”). Se um colega de trabalho precisa de ajuda para desenvolver uma habilidade ou capacidade, ou de uma palavra honesta de recomendação nossa, ou de paciência para lidar com suas deficiências, essas poderiam ser oportunidades de praticar a generosidade? Esses tipos de generosidade podem nos custar tempo e dinheiro, ou podem ainda exigir que reconsideremos nossa autoimagem, examinemos nossa conivência e questionemos nossos motivos. Se pudéssemos de bom grado fazer esses sacrifícios, será que abriríamos uma nova porta para a bênção de Deus por meio de nosso trabalho?

Escravidão (Deuteronômio 15.12-18)

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Um tópico preocupante em Deuteronômio é a escravidão. A permissão da escravidão no Antigo Testamento gera muito debate, e não podemos resolver todas as questões aqui. Não devemos, no entanto, equiparar a escravidão israelita à escravidão na era moderna. A última envolveu o sequestro de africanos ocidentais de sua terra natal para venda como escravos, seguido pela escravização perpétua de seus descendentes. O Antigo Testamento condena esse tipo de prática (Am 1.6) e a torna punível com a morte (Dt 24.7; Êx 21.16). Os israelitas se tornavam escravos uns dos outros, não por sequestro ou nascimento infeliz, mas por causa de dívidas ou pobreza (Dt 15.12). A escravidão era preferível à fome, e as pessoas podiam se vender como escravas para pagar uma dívida e pelo menos ter onde morar. Mas a escravidão não deveria durar a vida toda. “Se seu compatriota hebreu, homem ou mulher, vender-se a você e servi-lo seis anos, no sétimo ano dê-lhe a liberdade” (Dt 15.12). Após a libertação, os ex-escravos deveriam receber uma parte da riqueza que seu trabalho havia gerado. “Não o mande embora de mãos vazias. Dê-lhe com generosidade dos animais do seu rebanho e do produto da sua eira e do seu tanque de prensar uvas. Dê-lhe conforme a bênção que o Senhor, o seu Deus, lhe tem dado” (Dt 15.13-14).

Em algumas partes do mundo, as pessoas ainda são vendidas (geralmente pelos pais) para pagar uma dívida — uma forma de trabalho que é escravidão em tudo, menos no nome. Outros podem ser atraídos para o tráfico sexual, do qual é difícil ou impossível escapar. Em alguns lugares, os cristãos estão liderando a erradicação dessas práticas, mas muito mais pode ser feito. Imagine a diferença que faria se muito mais igrejas e cristãos fizessem disso uma alta prioridade para a missão e a ação social.

Nos países mais desenvolvidos, trabalhadores desesperados não são vendidos para o trabalho involuntário, mas aceitam quaisquer empregos que possam encontrar. Se Deuteronômio contém proteções até mesmo para escravos, essas proteções não se aplicam também aos trabalhadores? Deuteronômio exige que os senhores cumpram os termos do contrato e os regulamentos trabalhistas, incluindo a data fixa de liberação, o fornecimento de comida e abrigo e a responsabilidade pelas condições de trabalho. As horas de trabalho devem ser razoavelmente limitadas, incluindo um dia de folga semanal (Dt 5.14). Mais significativamente, os senhores devem considerar os escravos como iguais aos olhos de Deus, lembrando que todo o povo de Deus é formado por escravos resgatados. “Lembre-se de que você foi escravo no Egito e que o Senhor, o seu Deus, o redimiu. É por isso que hoje lhe dou essa ordem” (Dt 15.15).

Empregadores modernos podem abusar de trabalhadores desesperados de maneira semelhante à forma como os antigos senhores abusavam de escravos. Será que os trabalhadores perdem essas proteções simplesmente porque não são realmente escravos? De qualquer maneira, os empregadores têm o dever de, pelo menos, não tratar os trabalhadores como se fossem escravos. Os trabalhadores vulneráveis ​​de hoje podem enfrentar imposições para trabalhar horas extras sem remuneração, dar comissões a gerentes, trabalhar em condições perigosas ou tóxicas, pagar pequenos subornos para conseguir turnos, sofrer assédio sexual ou tratamento degradante, receber benefícios inferiores, sofrer discriminação ilegal e outras formas de maus-tratos. Mesmo trabalhadores abastados podem ver que lhes é negada injustamente uma parte razoável dos frutos de seu trabalho.

Para os leitores modernos, a aceitação da escravidão temporária pela Bíblia parece difícil de aceitar — embora reconheçamos que a escravidão antiga não era o mesmo que a escravidão dos séculos 16 ao 19 — e podemos ser gratos pelo fato de a escravidão ser, pelo menos tecnicamente, ilegal em todos os lugares hoje. Mas, em vez de considerar obsoleto o ensino bíblico sobre a escravidão, faríamos bem em trabalhar para abolir as formas modernas de servidão involuntária, ao mesmo tempo em que devemos seguir e promover as proteções da Bíblia para os membros economicamente desfavorecidos da sociedade.

Suborno e corrupção (Deuteronômio 16.18-20)

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A eficácia dos direitos de propriedade e da proteção dos trabalhadores geralmente depende da aplicação da lei e dos sistemas judiciais. A imposição de Moisés para com os juízes e oficiais é especialmente importante quando se trata de trabalho. “Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade. Não aceitem suborno, pois o suborno cega até os sábios e prejudica a causa dos justos” (Dt 16.19). A justiça imparcial seria fundamental: “Sigam única e exclusivamente a justiça, para que tenham vida e tomem posse da terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá” (Dt 16.20).

Os ambientes de trabalho e as sociedades modernas não estão menos suscetíveis ao suborno, à corrupção e ao preconceito do que o antigo Israel. De acordo com as Nações Unidas, o maior impedimento ao crescimento econômico nos países menos desenvolvidos são as falhas na aplicação imparcial das leis. [1] Em lugares onde a corrupção é endêmica, pode ser impossível ganhar a vida, atravessar a cidade ou viver em paz sem pagar suborno. Essa lei parece reconhecer que, em geral, aqueles que têm o poder de exigir subornos são mais culpados do que aqueles que concordam em pagá-los, pois a proibição é contra aceitar subornos, não contra pagá-los. Mesmo assim, tudo o que os cristãos podem fazer para reduzir a corrupção — seja no dar ou no receber — é uma contribuição para as decisões justas (Dt 16.18), que são sagradas para o Senhor. (Para uma exploração mais aprofundada das aplicações econômicas do estado de direito, veja “Propriedade da terra e direitos de propriedade” em Números 26—27; 36.1-12.

Obedecer às decisões dos tribunais (Deuteronômio 17.8-13)

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Moisés estabelece um sistema de tribunais de primeira instância e tribunais de apelação que são surpreendentemente semelhantes à estrutura dos tribunais de justiça modernos. Ele ordena ao povo que obedeça às suas decisões. “Procedam de acordo com a sentença e as orientações que eles lhes derem. Não se desviem daquilo que eles lhes determinarem, nem para a direita, nem para a esquerda” (Dt 17.11).

Os ambientes de trabalho hoje são regidos por leis, regulamentos e costumes, com procedimentos, tribunais e processos de apelação para interpretá-los e aplicá-los adequadamente. Devemos obedecer a essas estruturas legais, como Paulo também afirmou (Rm 13.1). Em alguns países, leis e regulamentos são rotineiramente ignorados por quem está no poder ou burlados por suborno, corrupção ou violência. Em outros países, as empresas e outras instituições de trabalho raramente infringem a lei intencionalmente, mas podem tentar infringi-la por meio de ações judiciais incômodas, favores políticos ou lobbies que se opõem ao bem comum. Mas os cristãos são chamados a respeitar o estado de direito, bem como obedecer, defender e procurar fortalecê-lo. Isso não quer dizer que a desobediência civil nunca tenha lugar. Algumas leis são injustas e devem ser quebradas se a mudança não for viável. Mas esses casos são raros e sempre envolvem sacrifício pessoal em busca do bem comum. Subverter a lei para fins de interesse próprio, por outro lado, não é justificável.

De acordo com Deuteronômio 17.9, tanto sacerdotes quanto juízes — ou, como poderíamos dizer hoje, tanto o espírito quanto a letra — são essenciais para a Lei. Se nos encontrarmos presos a certos pontos, explorando tecnicalidades legais para justificar práticas questionáveis, talvez precisemos de um bom teólogo tanto quanto de um bom advogado. Precisamos reconhecer que as decisões que as pessoas tomam no trabalho “secular” são questões teológicas, não meramente jurídicas e técnicas. Imagine um cristão moderno pedindo a seu pastor que o ajude a pensar em uma decisão importante no trabalho, quando as questões éticas ou legais parecerem complicadas. Para que isso valha a pena, o pastor precisa entender que o trabalho é um empreendimento profundamente espiritual e que eles precisam aprender a oferecer assistência útil aos trabalhadores. Talvez um primeiro passo seja simplesmente perguntar às pessoas sobre seu trabalho. “Que ações e decisões você toma diariamente?” “Quais desafios você enfrenta?” “Sobre quais assuntos você gostaria de ter alguém para conversar?” “Como posso orar por você?"

Usando a autoridade com justiça (Deuteronômio 17.14-20)

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Assim como pessoas e instituições não devem violar a autoridade legítima, pessoas em posições de poder não devem usar sua autoridade de forma ilegítima. Moisés lida especificamente com o caso de um rei.

Esse rei, porém, não deverá adquirir muitos cavalos... Ele não deverá tomar para si muitas mulheres; se o fizer, desviará o seu coração. Também não deverá acumular muita prata e muito ouro. Quando subir ao trono do seu reino, mandará fazer num rolo, para o seu uso pessoal, uma cópia da lei... Trará sempre essa cópia consigo e terá que lê-la todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o Senhor, o seu Deus, e a cumprir fielmente todas as palavras desta lei, e todos estes decretos (Dt 17.16-19).

Nesse texto, vemos duas restrições ao uso da autoridade — aqueles que exercem autoridade não estão acima da lei, mas devem sujeitar-se a ela e defendê-la; e aqueles que exercem autoridade não devem abusar de seu poder para enriquecer.

Hoje, pessoas em posições de autoridade podem tentar se colocar acima da lei, como, por exemplo, quando policiais e agentes judiciais “dão um jeitinho” em multas de trânsito para si e para seus amigos, ou quando funcionários públicos de alto escalão ou funcionários de empresas não obedecem às políticas de despesas a que outros estão sujeitos. Da mesma forma, os funcionários podem usar seu poder para enriquecer recebendo subornos, isenções de zoneamento e licenciamento, acesso a informações privilegiadas ou uso pessoal de propriedade pública ou privada. Às vezes, benefícios especiais são concedidos aos que estão no poder por uma questão de política ou lei, mas isso não elimina realmente a infração. A ordem de Moisés aos reis não é para se certificar de obter autorização legal para seus excessos, mas para evitar completamente os excessos. Quando aqueles que estão no poder usam sua autoridade não apenas para obter privilégios especiais, mas para criar monopólios para seus comparsas, apropriar-se de terras e de bens ou, ainda, prender, torturar ou matar oponentes, as apostas se tornam mortais. Não há diferença de tipo entre pequenos abusos de poder e opressão totalitária, apenas em grau.

Quanto mais autoridade você tiver, maior será a tentação de agir como se estivesse acima da lei. Moisés prescreve um antídoto. O rei deve ler a lei (ou palavra) de Deus todos os dias de sua vida. Ele não apenas deve ler, mas deve desenvolver a habilidade de interpretar e aplicar essa lei de maneira correta e justa. Ele deve desenvolver o hábito de obedecer à palavra de Deus, de colocá-la em prática em seu trabalho, a fim de “cumprir fielmente todas as palavras desta lei” (Dt 17.19). Por meio disso, o rei aprende a reverenciar o Senhor e a cumprir as responsabilidades que Deus lhe deu. Assim ele é lembrado de que também está debaixo de uma autoridade. Deus não lhe dá o privilégio de fazer uma lei para si mesmo, mas o dever de cumprir a lei de Deus para o benefício de todos.

O mesmo vale hoje para aqueles que exercem autoridade de qualquer tipo, mesmo que seja mera autoridade para fazer seu próprio trabalho. Para exercer autoridade com justiça, você precisa se envolver novamente com as Escrituras todos os dias de sua vida e procurar aplicá-las todos os dias às circunstâncias comuns do trabalho. Isso sugere que os trabalhadores cristãos precisam saber o suficiente sobre as Escrituras para aplicá-las ao seu trabalho, e as igrejas precisam treinar pessoas na habilidade de aplicá-las ao ambiente de trabalho. Somente pela arte da prática contínua, não nos voltando nem para a esquerda nem para a direita da palavra de Deus, podemos domar o impulso de fazer mau uso da autoridade. O resultado é que o líder serve à comunidade (Dt 17.20), e não o contrário.

Combine essa percepção com nossa observação anterior de que pastores e teólogos precisam aprender o suficiente sobre o trabalho para saber como oferecer assistência útil aos trabalhadores. Isso sugere que as igrejas e as instituições que treinam e apoiam os líderes da igreja precisam criar diálogos significativos entre pastores e trabalhadores, para que possam entender mais sobre o trabalho uns dos outros.

Empregando recursos para o bem comum (Deuteronômio 23.1—24.13)

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Deuteronômio exige que os proprietários de recursos produtivos os empreguem para beneficiar a comunidade, e faz isso de maneira clara. Por exemplo, os proprietários de terras devem permitir que os vizinhos usem suas terras para ajudar a atender às suas necessidades imediatas. “Se vocês entrarem na vinha do seu próximo, poderão comer as uvas que desejarem, mas nada poderão levar em sua cesta. Se entrarem na plantação de trigo do seu próximo, poderão apanhar espigas com as mãos, mas nunca usem foice para ceifar o trigo do seu próximo” (Dt 23.24-25). Essa era a lei que permitia aos discípulos de Jesus colher grãos dos campos locais enquanto seguiam seu caminho (Mt 12.1). Os respigadores eram responsáveis ​​por colher alimentos para si mesmos, e os proprietários de terras eram responsáveis ​​por dar-lhes acesso para fazê-lo. (Veja “Colheita e respiga” em Levítico 19.9-10 para saber mais sobre essa prática.)

Da mesma forma, aqueles que emprestam dinheiro não devem exigir termos que ponham em risco a saúde ou a subsistência que quem toma o empréstimo (Dt 23.19-20; 24.6,10-13). Em alguns casos, eles devem até estar dispostos a emprestar quando houver probabilidade de perda, simplesmente porque a necessidade do próximo é muito grande (Dt 15.7-9). Veja “Empréstimos e garantias” em Êxodo 22.25-27 para obter mais detalhes.

Deus exige que nossos recursos estejam disponíveis aos necessitados, ao mesmo tempo em que devemos exercer uma boa mordomia dos recursos que ele nos confia. Por um lado, tudo o que temos pertence a Deus, e seu mandamento é que usemos o que é dele para o bem da comunidade (Dt 15.7). Por outro lado, Deuteronômio não trata o campo de uma pessoa como propriedade comum. Os forasteiros não podiam levar tanto quanto quisessem. A exigência de contribuição para o bem público é estabelecida dentro de um sistema de propriedade privada como principal meio de produção. O equilíbrio entre propriedade privada e pública e a adequação de vários sistemas econômicos às sociedades de hoje são questões de debate para a qual a Bíblia pode contribuir com princípios e valores, mas não pode prescrever regulamentos.

Justiça econômica (Deuteronômio 24.14-15; 25.19; 27.17-25)

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Diferenças de classe e riqueza podem criar oportunidades para injustiça. O que se exige é que os trabalhadores sejam tratados com justiça. Lemos em Deuteronômio 24.14: “Não se aproveitem do pobre e necessitado, seja ele um irmão israelita ou um estrangeiro que viva numa das suas cidades”. Nem os pobres nem os estrangeiros tinham posição na comunidade para desafiar os ricos proprietários de terras nos tribunais e, portanto, eram vulneráveis ​​a esse tipo de abuso. Tiago 5.4 contém uma mensagem semelhante. Os empregadores devem considerar como sagradas e irrevogáveis suas obrigações para com todos os funcionários, mesmo os mais humildes.

O que se espera também é que os clientes com justiça. “Não tenham na bolsa dois padrões para o mesmo peso, um maior e outro menor” (Dt 25.13). Os pesos em questão são usados ​​para medir grãos ou outras commodities em uma venda. O vendedor poderia obter vantagens se pesasse o grão usando um peso mais leve do que o informado. O comprador lucraria usando um peso falsamente mais pesado. Mas Deuteronômio exige que uma pessoa sempre use o mesmo peso, seja comprando ou vendendo. A proteção contra fraudes não se limita a vendas feitas a clientes, mas a todos os tipos de negócios com todas as pessoas ao nosso redor.

Maldito quem mudar o marco de divisa da propriedade do seu próximo. (Dt 27.17)
Maldito quem fizer o cego errar o caminho. (Dt 27.18)
Maldito quem negar justiça ao estrangeiro, ao órfão ou à viúva. (Dt 27.19)
Maldito quem aceitar pagamento para matar um inocente. (Dt 27.25)

Em princípio, essas regras proíbem todo tipo de fraude. Como uma analogia moderna, uma empresa pode conscientemente vender um produto defeituoso, sem se importar com as implicações morais. Os clientes podem abusar das políticas da loja ao devolver mercadorias usadas. As empresas podem emitir demonstrações financeiras sem respeitar os princípios contábeis geralmente aceitos. Os trabalhadores, durante seu horário de trabalho, podem cuidar de assuntos pessoais e deixar de realizar seu trabalho. Essas práticas não são apenas injustas, mas também violam o compromisso de adorar somente a Deus: “Vocês serão um povo santo para o Senhor, o seu Deus” (Dt 26.19).

Apelo final de Moisés por obediência a Deus (Deuteronômio 29.1—30.20)

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Moisés conclui com um terceiro discurso, um apelo final por obediência à aliança de Deus, que resultará em prosperidade humana. Isso reforça suas exortações anteriores em Deuteronômio 7.12-15 e 28.2-12. Deuteronômio 30.15 resume bem: “Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição”. A obediência a Deus leva à bênção e à vida, enquanto a desobediência leva à maldição e à morte. Nesse contexto, “obediência a Deus” significava guardar a aliança do Sinai e, portanto, era uma obrigação que se relacionava exclusivamente a Israel. No entanto, a obediência a Deus, que leva à bênção, é um princípio atemporal, que não se limita ao antigo Israel, mas se aplica ao trabalho e à vida de hoje. Se amarmos a Deus e fizermos o que ele ordena, veremos que este é o melhor plano para nossa vida e nosso trabalho. Isso não significa que seguir a Cristo nunca envolve dificuldades e necessidades (os cristãos podem ser perseguidos, marginalizados ou presos). Significa que aqueles que vivem com genuína piedade e integridade se sairão bem não apenas porque têm um bom caráter, mas também porque estão sob a bênção de Deus. Mesmo em tempos difíceis, quando a obediência a Deus pode levar à perseguição, o doce fruto da bênção de Deus é melhor do que o resíduo azedo da cumplicidade com o mal. No quadro geral, estamos sempre em melhor situação nos caminhos de Deus do que em qualquer outro.

O fim da obra de Moisés (Deuteronômio 31.1-34.12)

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Planejamento de sucessão (Deuteronômio 31.1—32.47)

Após os discursos, Josué sucede Moisés como líder de Israel. “Então Moisés convocou Josué e lhe disse na presença de todo o Israel: ‘Seja forte e corajoso, pois você irá com este povo para a terra que o Senhor jurou aos seus antepassados que lhes daria, e você a repartirá entre eles como herança’” (Dt 31.7). Moisés conduz a transição publicamente por dois motivos. Primeiro, Josué tem de reconhecer perante toda a nação que aceitou os deveres que lhe foram impostos. Em segundo lugar, toda a nação deve reconhecer que Josué é o único e legítimo sucessor de Moisés. Depois disso, Moisés se afasta da maneira mais completa possível — ele morre. Qualquer organização, seja uma nação, uma escola, uma igreja ou uma empresa, ficará confusa se a questão da sucessão legítima não for clara ou não for resolvida.

Observe que Josué não é uma escolha aleatória de última hora. Os líderes têm o dever de preparar as pessoas em suas organizações para assumir a liderança no devido tempo. Isso não significa que os líderes tenham o direito de designar seus próprios sucessores. Esse poder geralmente pertence a outros, seja por nomeação, eleição, comissão ou outros meios. É o Senhor quem designa o sucessor de Moisés. Sob a direção do Senhor, Moisés há muito tempo prepara Josué para sucedê-lo. Desde cedo, como se vê em Deuteronômio 1.38, o Senhor se refere a Josué como “auxiliar” de Moisés. Moisés tinha notado a capacidade militar de Josué pouco depois de sua partida do Egito e, com o tempo, delegou a liderança do exército a ele (Dt 31.3). Moisés observou que Josué era capaz de ver as coisas da perspectiva de Deus e estava disposto a arriscar sua própria segurança para defender o que era certo (Nm 14.5-10). Moisés havia treinado Josué na arte de governar no incidente com os reis dos amorreus (Dt 3.21). Orar a Deus em favor de Josué era um elemento importante do regime de treinamento de Moisés (Dt 3.28). No momento em que Josué assume o lugar de Moisés, ele está totalmente preparado para a liderança, e o povo está totalmente preparado para segui-lo (Dt 34.9). Para a passagem paralela em Números, veja Números 27.12-23 .

Moisés também entoa seu cântico final (Dt 32.1-43), um texto profético advertindo que Israel não obedecerá à aliança, sofrerá terrivelmente, mas finalmente experimentará a redenção por um ato poderoso de Deus. Entre outras coisas, as palavras de Moisés são um lembrete dos perigos que podem advir do sucesso. “Você engordou, tornou-se pesado e farto de comida. Abandonou o Deus que o fez e rejeitou a Rocha, que é o seu Salvador” (Dt 32.15). Em tempos de dificuldade, muitas vezes recorremos a Deus em busca de ajuda, quando chega o desespero e não temos mais a quem recorrer. Mas, quando o sucesso vem, é fácil desmerecer a ação de Deus em nosso trabalho. Podemos até acreditar que nossas realizações se devem exclusivamente a nossos próprios esforços, e não à graça de Deus. Moisés lembra ao povo que o sucesso pode nos tornar vulneráveis ​​a abandonar o Deus que nos criou, com resultados desastrosos. Para saber mais sobre esse tópico, veja o relato de Uzias no comentário sobre 2Crônicas 26.

Então Moisés exorta o povo uma última vez para que a lei seja levada a sério (Dt 32.46-47).

Os últimos atos de Moisés (Deuteronômio 32.48—34.12)

O ato final de Moisés antes de partir de Israel e deste mundo é abençoar a nação, tribo por tribo, no cântico registrado em Deuteronômio 33.1-29. Esse cântico é análogo à bênção de Jacó às tribos pouco antes de sua morte (Gn 49.1-27). Isso é apropriado, pois Jacó era o pai biológico das doze tribos, mas Moisés é o pai espiritual da nação. Além disso, nesse cântico, Moisés se despede de Israel com palavras de bênção e não com palavras de repreensão e exortação. “Moisés, o servo do Senhor, morreu ali” (Dt 34.5). O texto honra Moisés com um título ao mesmo tempo humilde e exaltado: “o servo do Senhor”. Ele não havia sido perfeito, e Israel, sob sua liderança, não havia sido perfeito, mas Moisés havia sido grande. Mesmo assim, ele não era insubstituível. Israel continuaria, e os líderes que viessem depois dele teriam seus próprios sucessos e fracassos. Quando as pessoas de qualquer instituição consideram seu líder insubstituível, elas já estão em crise. Quando um líder se considera insubstituível, é uma calamidade para todos.

Conclusões do livro de Deuteronômio

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Ao recontar os eventos do início da história de Israel e a entrega da lei por Deus, Deuteronômio retrata vividamente a importância do trabalho para o cumprimento da aliança de Deus com seu povo. Os temas abrangentes do livro são a necessidade de confiar em Deus, obedecer a seus mandamentos e recorrer a ele em busca de ajuda. Abandonar qualquer uma dessas atividades é cair na idolatria, na adoração de falsos deuses que nós mesmos criamos. Embora esses temas possam inicialmente parecer abstratos ou filosóficos, eles são encenados de maneiras concretas e práticas no trabalho e na vida diários. Quando confiamos em Deus, damos-lhe graças pelas coisas boas que ele nos capacita a produzir. Reconhecemos nossas limitações e nos voltamos para Deus em busca de orientação. Tratamos os outros com respeito. Observamos um ritmo de trabalho e descanso que revigora a nós mesmos e às pessoas que trabalham em nosso benefício. Exercemos autoridade, obedecemos à autoridade diligentemente com um senso preciso de justiça e exercemos a autoridade com sabedoria para o bem comum. Limitamo-nos a um trabalho que, em vez de prejudicar, sirva os outros e que, em vez de destruir, construa famílias e comunidades. Fazemos uso generoso dos recursos que Deus coloca à nossa disposição e não nos apropriamos de recursos que pertencem a outros. Somos honestos em nossos relacionamentos com os outros. Nós nos treinamos para ser alegres no trabalho que Deus nos dá e não para invejar outras pessoas.

Cada dia nos dá oportunidades de ser gratos e generosos em nosso trabalho, de tornar nosso ambiente de trabalho mais justo, mais livre e mais gratificante para aqueles com quem trabalhamos, e de trabalhar pelo bem comum. À nossa maneira, cada um de nós tem a oportunidade — seja ela grande ou pequena — de transformar a si mesmo, a nossa família, as nossas comunidades e as nações do mundo, a fim de erradicar práticas idólatras, como escravidão e exploração de trabalhadores, corrupção e injustiça e indiferença à falta de recursos sofrida pelos mais pobres.

Mas, se Deuteronômio não fosse nada além de uma longa lista de coisas que devemos e não devemos fazer para nosso trabalho, o fardo sobre nós seria intolerável. Quem poderia cumprir a lei, mesmo que apenas na esfera do trabalho? Pela graça de Deus, Deuteronômio não é, em sua essência, uma lista de regras e regulamentos, mas um convite a um relacionamento com Deus. “E lá procurarão o Senhor, o seu Deus, e o acharão, se o procurarem de todo o seu coração e de toda a sua alma” (Dt 4.29). “Pois vocês são um povo santo para o Senhor, o seu Deus. O Senhor, o seu Deus, os escolheu dentre todos os povos da face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro pessoal” (Dt 7.6). Se acharmos que nosso trabalho fica aquém do quadro pintado por Deuteronômio, que nossa resposta não seja uma determinação sombria de nos esforçarmos mais, mas uma aceitação revigorante do convite de Deus para um relacionamento mais próximo com ele. Um relacionamento vivo com Deus é nossa única esperança de podermos viver de acordo com sua palavra. Esse, é claro, é o evangelho que Jesus pregou e estava profundamente enraizado no livro de Deuteronômio. Como Jesus disse: “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11.30). Não é uma lista impossível de exigências, mas um convite para nos aproximarmos de Deus. Nisso, ele ecoa Moisés: “E agora, ó Israel, que é que o Senhor, o seu Deus, lhe pede, senão que tema o Senhor, o seu Deus, que ande em todos os seus caminhos, que o ame e que sirva ao Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração e de toda a sua alma, e que obedeça aos mandamentos e aos decretos do Senhor, que hoje lhe dou para o seu próprio bem?” (Dt 10.12-13).