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Eclesiastes e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Ecclesiastes bible commentary

Introdução a Eclesiastes

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Eclesiastes captura de forma brilhante o esforço e a alegria, o sucesso passageiro e as perguntas sem resposta que todos experimentamos em nosso trabalho. É um dos livros bíblicos favoritos de muitos trabalhadores cristãos, e seu narrador — chamado de Mestre, Pregador ou Sábio nas traduções em português — tem muito a dizer sobre o trabalho. Muito do que ele ensina é sucinto, prático e inteligente. Qualquer pessoa que já tenha trabalhado em equipe pode apreciar o valor de uma máxima como: “É melhor ter companhia do que estar sozinho, porque maior é a recompensa do trabalho de duas pessoas” (Eclesiastes 4.9). A maioria de nós passa a maior parte de nossa vida trabalhando, e encontramos afirmação quando o Mestre diz: “Por isso recomendo que se desfrute a vida, porque debaixo do sol não há nada melhor para o homem do que comer, beber e alegrar-se. Sejam esses os seus companheiros no seu duro trabalho durante todos os dias da vida que Deus lhe der debaixo do sol!” (Ec 8.15).

No entanto, a imagem do trabalho do Mestre também é profundamente preocupante. “Quando avaliei tudo o que as minhas mãos haviam feito e o trabalho que eu tanto me esforçara para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento” (Ec 2.11). A preponderância quase esmagadora de observações negativas sobre o trabalho ameaça sufocar o leitor. O Mestre começa com “Que grande inutilidade!” (Ec 1.2) ou “Vaidade de vaidades” (NAA) e termina com “Nada faz sentido” (Ec 12.8) ou “Tudo é vaidade” (NAA). As palavras e frases que ele repete com mais frequência são “inútil”, “vaidade”, “absurdo” e “correr atrás do vento”, além de ideias como “não encontrar” e “não saber”. A menos que haja uma perspectiva mais ampla para moderar suas observações, Eclesiastes pode ser realmente um livro muito triste.

A tarefa de dar sentido ao livro como um todo é difícil. Será que Eclesiastes realmente retrata o trabalho como vaidade, ou será que o Mestre vasculha as muitas maneiras vãs de trabalhar para encontrar um conjunto central de maneiras significativas? Ou, pelo contrário, será que as muitas máximas e observações positivas são negadas por uma avaliação geral do trabalho como “correr atrás do vento”? A resposta depende, em grande parte, de como abordamos o livro.

Uma maneira de ler Eclesiastes é considerá-lo simplesmente uma salada de observações sobre a vida, incluindo o trabalho. Sob essa abordagem, o Mestre é principalmente um observador realista que relata os altos e baixos da vida à medida que os encontra. Cada observação é por si só um pouco de sabedoria. Se extrairmos conselhos úteis de algo como: “Para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho” (Ec 2.24), não precisamos ficar muito preocupados com o fato de que ele seja seguido em breve por: “Isso também é inútil, é correr atrás do vento” (Ec 2.26).

O leitor que deseja adotar essa abordagem está em boa companhia. A maioria dos estudiosos de hoje não reconhece um argumento abrangente em Eclesiastes e, mesmo entre aqueles que o reconhecem, “dificilmente há um comentarista que concorde com outro”. [1] Mas há algo de insatisfatório nessa abordagem fragmentada. Queremos saber: “Qual é a mensagem geral de Eclesiastes?” Se quisermos descobrir isso, devemos procurar uma estrutura que reúna a ampla gama de observações que vivem lado a lado no livro.

Seguiremos a estrutura proposta pela primeira vez por Addison Wright, em 1968, que divide o livro em unidades de pensamento. [2] A estrutura de Wright é recomendada por três razões: 1) baseia-se objetivamente na repetição de frases e ideias principais ao longo do texto de Eclesiastes, e não em interpretações subjetivas do conteúdo; 2) é aceito por mais estudiosos — reconhecidamente ainda uma pequena minoria — do que qualquer outro; [3] e 3) traz tópicos relacionados ao trabalho para o primeiro plano. Não temos tempo para reproduzir os argumentos de Wright, mas indicaremos as frases e ideias que se repetem e que delineiam as unidades de pensamento que ele propõe. Na primeira metade do livro, a frase “correr atrás do vento” marca o final de cada unidade. Na segunda metade, a ideia de “não encontrar” (ou “quem consegue encontrar?”) desempenha a mesma função. A estrutura de Wright contribuirá diretamente para nossa compreensão geral do livro.

Há outra expressão, “debaixo do sol”, que não pode passar despercebida quando lemos Eclesiastes. Ela ocorre 29 vezes na Bíblia, todas elas em Eclesiastes. [4] É uma reminiscência do termo “no mundo caído”, derivado de Gênesis 3, que descreve o mundo em que a criação de Deus ainda é boa, mas severamente marcada por males. Por que o Mestre usa essa expressão com tanta frequência? Ele pretende reforçar a inutilidade do trabalho evocando uma imagem do sol circulando infinitamente pelo céu, enquanto nada muda? Ou ele imagina que possa haver um mundo além da Queda, não “debaixo do sol”, onde o trabalho não seria em vão? É uma pergunta que vale a pena ter em mente ao lermos Eclesiastes.

Em contraste com a vida humana debaixo do sol, o Mestre nos dá vislumbres de Deus no céu. Nossa luta aqui é passageira, mas “tudo o que Deus faz permanecerá para sempre” (Ec 3.14). Esses vislumbres começam a nos dar uma compreensão do caráter de Deus, o que, talvez, nos ajude a dar sentido à vida. Observaremos o que Eclesiastes revela sobre o caráter de Deus à medida que os aspectos surgirem, e depois os examinaremos juntos no final do livro.

De qualquer forma, Eclesiastes faz uma contribuição vital para a teologia do trabalho por meio de seu olhar honesto e franco sobre a realidade do trabalho. Qualquer pessoa atenciosa que esteja engajada em seu trabalho, seja um seguidor de Cristo ou não, se conectará com ele. Sua honestidade revigorante abre as portas para conversas profundas sobre trabalho, mais do que as prescrições ordenadas para fazer negócios à maneira de Deus, tão comumente encontradas nos círculos cristãos.

Trabalhando debaixo do sol (Ec 1.1-11)

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O trabalho é a atividade principal explorada em Eclesiastes. É chamado de “trabalho em que se esforça” (Hebr. amal), indicando as dificuldades do trabalho. O tópico é apresentado no início do livro, em Eclesiastes 1.3: “O que o homem ganha com todo o seu trabalho em que tanto se esforça debaixo do sol?” A avaliação que o Mestre faz de todo esforço é que é “inútil” (Ec 2.1), “sem sentido” (cf. NVT) ou “vaidade” (cf. NAA). Em hebraico, esta palavra é hebel e domina Eclesiastes. A palavra hebel, na verdade, significa “respiração”, mas daí passa a se referir a algo que é insubstancial, passageiro e sem valor permanente. Ela é mais que adequada para ser a palavra-chave deste livro, porque uma respiração é, por natureza, breve, de pouca substância discernível e se dissipa rapidamente. No entanto, nossa sobrevivência depende dessas breves inalações e exalações de sopros de ar. Em breve, porém, a respiração cessará e a vida terminará. A palavra hebel, da mesma forma, descreve algo de valor passageiro que logo chegará ao fim. Em certo sentido, “vaidade” é uma tradução enganosa, pois parece afirmar que tudo é totalmente inútil. Mas o verdadeiro ponto de hebel é algo que tem apenas um valor passageiro e efêmero. Uma única respiração pode não ter valor permanente, mas, em seu único momento, ela nos mantém vivos. Da mesma forma, o que somos e fazemos nesta vida transitória tem um significado real, embora temporário.

Considere o trabalho de construir um navio. Pela boa criação de Deus, a terra contém as matérias-primas de que precisamos para construir navios. A engenhosidade humana e o trabalho árduo — também criados por Deus — podem criar navios seguros, eficazes e até belos. Eles se juntam à frota e transportam alimentos, recursos, produtos manufaturados e pessoas para onde são necessários. Quando um navio é lançado e a garrafa de champanhe é quebrada na proa, todos os envolvidos podem celebrar sua conquista. No entanto, uma vez que sai do pátio, os construtores não têm mais controle sobre ele. O navio pode ser capitaneado por um tolo que o deixa encalhar nos bancos de areia. Pode ser fretado para contrabandear drogas, armas ou até mesmo escravos. Sua tripulação pode ser tratada com severidade. Ele pode servir nobremente por muitos anos, mas mesmo assim se desgastará e se tornará obsoleto. É quase certo que seu destino final será um estaleiro de desmanche de navios, provavelmente localizado em um país onde a segurança dos trabalhadores e a poluição ambiental são tratadas com descaso. Os navios passam, como as rajadas de vento que antes os moviam. Primeiro ele se torna uma carcaça enferrujada, depois uma mistura de metal reciclado e lixo descartado e, finalmente, sai do conhecimento humano. Os navios são bons, mas não duram para sempre. Enquanto vivermos, devemos trabalhar nessa tensão.

Isso nos leva à imagem do sol correndo ao redor da terra, que discutimos na introdução (Ec 1.5). A atividade incessante desse grande objeto no céu traz a luz e o calor dos quais dependemos todos os dias, mas não muda nada com o passar dos tempos. “Não há nada novo debaixo do sol” (Ec 1.9). Essa é uma observação nada sentimental, embora não uma condenação eterna, sobre nosso trabalho.

Trabalhar é correr atrás do vento (Ec 1.12—6.9)

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Tendo declarado seu tema de que o esforço é inútil (ou vaidade) em Eclesiastes 1.1-11, o Mestre, no entanto, passa a investigar várias possibilidades para tentar viver bem a vida. Ele considera, em ordem, realização, prazer, sabedoria, riqueza, oportunidade, amizade e encontrar alegria nos dons de Deus. Em algumas delas, ele encontra certo valor, menos nas primeiras investigações e mais nas últimas. No entanto, nada parece permanente, e a conclusão característica em cada seção é que trabalhar é “correr atrás do vento”.

Realização (Ec 1.12-18)

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Primeiro, o Mestre investiga a realização. Ele era tanto um rei como um sábio — um superdotado, para usar os termos de hoje — alguém que podia afirmar: “ultrapassei em sabedoria todos os que governaram Jerusalém antes de mim” (Ec 1.16). E o que toda essa conquista significou para ele? Não muito. “Que fardo pesado Deus pôs sobre os homens! Tenho visto tudo o que é feito debaixo do sol; tudo é inútil, é correr atrás do vento!” (Ec 1.13-14). Nenhuma conquista duradoura parece possível. “O que é torto não pode ser endireitado; o que está faltando não pode ser contado” (Ec 1.15). Alcançar seus objetivos não lhe deu felicidade, pois apenas o fez perceber o quão vazio e limitado deveria ser tudo o que ele pudesse realizar. Em suma, ele diz novamente: “Aprendi que isso também é correr atrás do vento” (Ec 1.17-18).

Prazer (Ec 2.1-11)

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Em seguida, ele diz a si mesmo: “Venha. Experimente a alegria. Descubra as coisas boas da vida!” (Ec 2.1). Ele adquire riqueza, casas, jardins, álcool, servos (escravos), joias, entretenimento e pronto acesso ao prazer sexual. “Não me neguei nada que os meus olhos desejaram; não me recusei a dar prazer algum ao meu coração” (Ec 2.10a).

Ao contrário da realização, ele encontra algum valor na busca de prazer. “Na verdade, eu me alegrei em todo o meu trabalho; essa foi a recompensa de todo o meu esforço” (Ec 2.10). Suas supostas conquistas acabaram não sendo nada de novo, mas seus prazeres, pelo menos, eram agradáveis. Parece que o trabalho realizado como meio para um fim — neste caso, o prazer — é mais satisfatório do que o trabalho realizado como uma obsessão. Sem necessariamente dispor de “um harém” (Ec 2.8), os trabalhadores de hoje podem fazer bem em reservar um tempo para parar tudo e relaxar. Se deixamos de trabalhar em direção a um objetivo além do trabalho, se não podemos mais desfrutar dos frutos de nosso trabalho, acabamos nos tornando escravos do trabalho, e não seus senhores.

No entanto, trabalhar apenas para obter prazer é, em última análise, insatisfatório. Esta seção termina com a avaliação negativa: “percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento” (Ec 2.11).

Sabedoria (Ec 2.12-17)

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Talvez seja bom buscar um objeto fora do próprio trabalho, mas é necessário um objetivo maior do que o prazer. Assim, o Mestre relata: “passei a refletir na sabedoria, na loucura e na insensatez” (Ec 2.12). Em outras palavras, ele se torna algo semelhante ao professor ou pesquisador de hoje. Ao contrário da conquista pela conquista, a sabedoria pode, pelo menos, ser alcançada até certo ponto. “Percebi que a sabedoria é melhor que a insensatez, assim como a luz é melhor do que as trevas” (Ec 2.13). Mas, além de encher a cabeça com pensamentos exaltados, isso não faz diferença real na vida, pois o sábio morre, assim como o tolo (Ec 2.16). Buscar sabedoria levou o Mestre à beira do desespero (Ec 1.17), um resultado que permanece muito comum nas atividades acadêmicas de hoje. O Mestre conclui: “Tudo era inútil, era correr atrás do vento” (Ec 2.17).

Riqueza (Ec 2.18-26)

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Então, o Mestre se volta para a riqueza, que pode ser adquirida como resultado do trabalho árduo. E quanto ao acúmulo de riqueza como o propósito maior por trás do trabalho? Isso acaba sendo pior do que gastar riqueza para obter prazer. A riqueza traz o problema da herança. Quando você morrer, a riqueza que acumulou passará para outra pessoa que pode ser completamente indigna. “Algumas pessoas trabalham com sabedoria, conhecimento e habilidade, mas terão de deixar o resultado de seu trabalho para alguém que não se esforçou. Isso também não faz sentido; é uma grande tragédia” (Ec 2.21). Isso é tão perturbador que o Mestre diz: “Cheguei a me desesperar” (Ec 2.20).

Nesse ponto, temos nosso primeiro vislumbre do caráter de Deus. Deus é um doador. “Deus concede sabedoria, conhecimento e alegria àqueles que lhe agradam” (Ec 2.26). Esse aspecto do caráter de Deus é repetido várias vezes em Eclesiastes, e seus dons incluem comida, bebida e alegria (Ec 5.18; 8.15), riqueza e posses (Ec 5.19; 6.20), honra (Ec 6.2), integridade (Ec 7.29), o mundo em que habitamos (Ec 11.5) e a própria vida (Ec 12.7).

Assim como o Mestre, muitas pessoas que acumulam grandes riquezas acham isso extremamente insatisfatório. Enquanto estamos fazendo fortuna, não importa o quanto tenhamos, isso nunca parece ser suficiente. Quando conquistamos nossa fortuna e começamos a apreciar nossa mortalidade, doar nossa riqueza com sabedoria parece se tornar um fardo quase intolerável. Andrew Carnegie observou o peso desse fardo quando disse: “Resolvi parar de acumular e começar a tarefa infinitamente mais séria e difícil de uma distribuição sábia”. [1] No entanto, se Deus é um doador, não é surpresa que a distribuição de riqueza, em vez de sua acumulação, possa ser mais satisfatória.

Mas o Mestre não encontra satisfação em dar riquezas mais do que em ganhá-las (Ec 2.18-21). A satisfação que Deus no céu tem em dar, de alguma forma, escapa ao Mestre debaixo do sol. Ele não parece considerar a possibilidade de investir a riqueza ou doá-la para um propósito maior. A menos que haja de fato um propósito mais elevado, além de qualquer coisa que o Mestre descubra, o acúmulo e a distribuição de riqueza “também é inútil, é correr atrás do vento” (Ec 2.26).

Tempo (Ec 3.1—4.6)

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Se o trabalho não tem um propósito único e imutável, talvez ele tenha uma infinidade de propósitos, cada um significativo em seu próprio tempo. O Mestre analisa isso no início do famoso capítulo: “há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu” (Ec 3.1). A chave é que toda atividade é governada pelo tempo.

Um trabalho que é completamente errado em um momento pode ser certo e necessário em outro. Em um momento é certo chorar e errado dançar; em outro momento, o oposto é que é verdadeiro.

Nenhuma dessas atividades ou condições é permanente. Não somos anjos em felicidade atemporal. Somos criaturas deste mundo passando pelas mudanças e estações do tempo. Essa é outra lição difícil. Enganamos a nós mesmos sobre a natureza fundamental da vida se pensarmos que nosso trabalho pode trazer paz, prosperidade ou felicidade permanentes. Algum dia, tudo o que construímos será justamente demolido (Ec 3.3). Se nosso trabalho tem algum valor eterno, o Mestre não vê sinal dele “debaixo do sol” (Ec 4.1). Nossa condição é duplamente difícil, pois somos criaturas do momento; porém, ao contrário dos animais, temos um senso de passado e futuro em nossa mente (Ec 3.11). Assim, o Mestre anseia por aquilo que tem valor permanente, mesmo que não possa encontrá-lo.

Além disso, até mesmo o bem oportuno que as pessoas tentam fazer pode ser frustrado pela opressão. “Vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem os console; o poder está do lado dos seus opressores, e não há quem os console” (Ec 4.1). O pior de tudo é a opressão por parte do governo. “Descobri também que debaixo do sol: No lugar da justiça havia impiedade” (Ec 3.16). No entanto, aqueles que não têm poder não são necessariamente melhores. Uma resposta comum ao sentimento de impotência é a inveja. Invejamos aqueles que têm poder, riqueza, status, relacionamentos, posses ou outras coisas que nos faltam. O Mestre reconhece que a inveja é tão ruim quanto a opressão. “Descobri que todo trabalho e toda realização surgem da competição que existe entre as pessoas. Mas isso também é absurdo, é correr atrás do vento” (Ec 4.4). O desejo de obter realizações, prazer, sabedoria ou riqueza, seja por opressão ou inveja, é uma total perda de tempo. No entanto, quem nunca caiu nessas duas loucuras?

Mas o Mestre não se desespera, pois o tempo é uma dádiva do próprio Deus. “Ele fez tudo apropriado ao seu tempo” (Ec 3.11a). É certo chorar no funeral de um ente querido, e é bom se alegrar com o nascimento de um filho. E não devemos recusar os prazeres legítimos que nosso trabalho pode trazer. “Descobri que não há nada melhor para o homem do que ser feliz e praticar o bem enquanto vive. Descobri também que poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho é um presente de Deus” (Ec 3.12-13).

Essas lições de vida se aplicam especialmente ao trabalho. “Concluí que não há nada melhor para o homem do que desfrutar do seu trabalho, porque esta é a sua recompensa” (Ec 3.22a). O trabalho é realizado sob a maldição, mas o trabalho não é em si uma maldição. Mesmo a visão limitada que temos do futuro é uma espécie de bênção, pois nos alivia do fardo de tentar prever todos os fins. “Quem poderá fazê-lo ver o que acontecerá depois de morto?” (Ec 3.22b). Se nosso trabalho servir ao momento em que se pode prever, então é um dom de Deus.

Nesse ponto, temos dois vislumbres do caráter de Deus. Primeiro, Deus é incrível, eterno, onisciente. “Deus assim faz para que os homens o temam” (Ec 3.14). Embora estejamos limitados pelas condições da vida debaixo do sol, Deus não está. Há mais em Deus do que se aparenta. A transcendência de Deus — para lhe dar um nome teológico — aparece novamente em Eclesiastes 7.13-14 e 8.12-13.

O segundo vislumbre nos mostra que Deus é um Deus de justiça. “Deus investigará o passado” (Ec 3.15). “O justo e o ímpio, Deus julgará ambos” (Ec 3.17). Essa ideia é repetida mais adiante, em Eclesiastes 8.13; 11.9; 12.14. Podemos não ver a justiça de Deus na aparente injustiça da vida, mas o Mestre nos garante que isso acontecerá.

Como observamos, Eclesiastes é uma investigação realista da vida no mundo caído. O trabalho é penoso. No entanto, mesmo em meio ao esforço, nossa sina é ter prazer em nosso esforço e desfrutar de nosso trabalho. Essa não é uma resposta para os enigmas da vida, mas um sinal de que Deus está no mundo, mesmo que não vejamos claramente o que exatamente isso significa para nós. Apesar dessa nota um tanto esperançosa, a investigação do tempo termina com uma dupla repetição de “correr atrás do vento”, uma vez em Eclesiastes 4.4 (como discutido acima) e novamente em Eclesiastes 4.6.

Amizade (Ec 4.7—4.16)

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Talvez os relacionamentos ofereçam um significado real no trabalho. O Mestre exalta o valor das amizades no trabalho. “É melhor ter companhia do que estar sozinho, porque maior é a recompensa do trabalho de duas pessoas” (Ec 4.9, ênfase adicionada).

Quantas pessoas encontram suas amizades mais próximas no local de trabalho? Mesmo que não precisássemos do pagamento, mesmo que o trabalho não nos interessasse, poderíamos encontrar um significado profundo em nossos relacionamentos profissionais. Essa é uma das razões pelas quais muitas pessoas acham a aposentadoria decepcionante. Sentimos falta de nossos amigos do trabalho depois que saímos e achamos difícil formar novas amizades profundas sem os objetivos comuns que nos uniam aos colegas de trabalho.

Construir bons relacionamentos no trabalho requer abertura e desejo de aprender com os outros. “Melhor é um jovem pobre e sábio, do que um rei idoso e tolo, que já não aceita repreensão” (Ec 4.13). Arrogância e poder são frequentemente barreiras para o desenvolvimento de relacionamentos dos quais o trabalho eficaz depende (Ec 4.14-16), uma verdade explorada no artigo da Harvard Business School, “How Strength Becomes a Weakness” [“Como a força se torna uma fraqueza”]. [1] Tornamo-nos amigos no trabalho, em parte porque é preciso trabalhar em equipe para fazer um bom trabalho. Essa é uma das razões pelas quais muitas pessoas são melhores em fazer amizades no trabalho do que em ambientes sociais em que não há um objetivo compartilhado.

A investigação sobre a amizade pelo Mestre é mais otimista do que suas investigações anteriores. Mesmo assim, as amizades de trabalho são necessariamente temporárias. As atribuições de trabalho mudam, as equipes são formadas e dissolvidas, colegas se demitem, são demitidos ou se aposentam, e entram novos trabalhadores de quem podemos não gostar. O Mestre o compara a um novo e jovem rei, cujos súditos o recebem com prazer a princípio, mas cuja popularidade cai à medida que uma nova geração de jovens passa a considerá-lo apenas mais um velho rei. No final, nem o avanço na carreira nem a fama oferecem satisfação. “Isso também não faz sentido, é correr atrás do vento” (Ec 4.16).

Alegria (Ec 5.1—6.9)

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A busca do Mestre por significado no trabalho termina com muitas lições curtas que têm aplicação direta no trabalho. Primeiro, ouvir é mais sábio do que falar. “Quem se aproxima para ouvir é melhor do que os tolos que oferecem sacrifício sem saber que estão agindo mal” (Ec 5.1). Em segundo lugar, cumpra seus votos e promessas, especialmente quando se dirigem a Deus (Ec 5.4). Terceiro, espere que o governo seja corrupto. Isso não é bom, mas é universal e é melhor que a anarquia (Ec 5.8-9). Quarto, a obsessão pela riqueza é um vício e, como qualquer outro vício, consome aqueles a quem aflige (Ec 5.10-12), mas não satisfaz (Ec 6.7-8). Quinto, a riqueza é passageira. Ela pode desaparecer nesta vida e certamente desaparecerá na morte. Não construa sua vida sobre isso (Ec 5.13-17).

No meio desta seção, o Mestre investiga novamente o dom de Deus, que nos permite desfrutar de nosso trabalho e da riqueza, posses e honra que ele pode trazer por um tempo. “Descobri que, para o homem, o melhor e o que mais vale a pena é comer, beber, e desfrutar o resultado de todo o esforço que se faz debaixo do sol durante os poucos dias de vida que Deus lhe dá” (Ec 5.18). Embora o prazer seja passageiro, é real. “Raramente essa pessoa fica pensando na brevidade de sua vida, porque Deus o mantém ocupado com a alegria do coração” (Ec 5.20). Essa alegria não vem de se esforçar com mais sucesso do que os outros, mas de receber a vida e o trabalho como um presente de Deus. Se a alegria em nosso trabalho não vem como um dom de Deus, ela não vem de forma alguma (Ec 6.1-6).

Como na seção sobre amizade, o tom do Mestre é relativamente positivo nesta seção. No entanto, o resultado final ainda é frustração. Pois vemos claramente que todas as vidas terminam na sepultura, e mesmo a vida vivida com sabedoria não chega a nada maior do que a vida vivida de forma insensata. É melhor ver isso claramente do que tentar viver em uma ilusão de conto de fadas. “Melhor é contentar-se com o que os olhos veem do que sonhar com o que se deseja” (Ec 6.9a). Mas o resultado final de nossa vida continua sendo algo que “não faz sentido; é correr atrás do vento” (Ec 6.9b).

Não há como descobrir o que é bom fazer (Ec 6.10—8.17)

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Uma vida de esforços equivale a correr atrás do vento, pois os resultados do trabalho não são permanentes no mundo como o Mestre o conhece. Então, ele começa uma busca para descobrir o que é melhor fazer com o tempo que tem. Como visto anteriormente neste livro, esse bloco de material é dividido em seções demarcadas por uma ideia repetida ao final de cada investigação. Na frustração da esperança do Mestre, essa ideia é “não encontrar”, ou sua pergunta retórica equivalente, “quem pode encontrar?”.

Os resultados finais de nossas ações (Ec 7.1-14)

Nossos esforços terminam com nossa morte. Eclesiastes, portanto, recomenda que passemos algum tempo sério no cemitério (Ec 7.1-6). Podemos ver alguma vantagem real que um túmulo tenha sobre o outro? Algumas pessoas passam assobiando pelo cemitério, recusando-se a considerar suas lições. O riso deles é como o crepitar de espinhos ardentes, que é consumido pelas chamas (Ec 7.6).

Como nosso tempo é curto, não podemos descobrir que impacto podemos ter no mundo. Não podemos nem mesmo descobrir por que hoje é diferente de ontem (Ec 7.10), muito menos o que o amanhã pode trazer. Faz sentido desfrutar de qualquer bem que venha de nosso esforço enquanto vivemos, mas não temos promessa de que o verdadeiro fim seja bom, pois “Deus fez tanto um quanto o outro [os dias bons e os ruins], para evitar que o homem descubra alguma coisa sobre o seu futuro” (Ec 7.14).

Uma aplicação que podemos tirar de nossa ignorância quanto a nosso legado é que bons fins não justificam meios ruins. Afinal, não podemos ver os fins de todas as ações que tomamos, e o poder de mitigar as consequências de nossos meios pode vir a qualquer momento. Políticos que apaziguam a opinião pública agora às custas do dano público mais tarde, executivos do setor financeiro que escondem perdas num trimestre na esperança de compensar no próximo trimestre, recém-formados que mentem em uma solicitação de emprego com a esperança de ter sucesso em empregos para os quais não são qualificados — todos eles estão contando com futuros que não têm o poder de trazer. Enquanto isso, eles estão causando um mal que nunca poderá ser realmente apagado, mesmo que suas esperanças se tornem realidade.

O bem e o mal (Ec 7.15-28)

Portanto, devemos tentar agir agora de acordo com o bem. No entanto, não podemos realmente saber se qualquer ação que tomamos é totalmente boa ou totalmente má. Quando imaginamos que estamos agindo com justiça, a iniquidade pode se infiltrar e vice-versa (Ec 7.16-18). Pois “não há um só justo na terra, ninguém que pratique o bem e nunca peque” (Ec 7.20). A verdade do bem e do mal “está bem distante e é muito profunda; quem pode descobri-la?” (Ec 7.24, ênfase adicionada). Como que para enfatizar essa dificuldade, a ideia característica de “não encontrar” é repetida novamente duas vezes em Eclesiastes 7.28.

O melhor que podemos fazer é temer a Deus (Ec 7.18), isto é, para evitar a arrogância e a justiça própria. Um bom autodiagnóstico é examinar se temos de recorrer a lógicas distorcidas e esquemas complicados para justificar nossas ações. “Deus fez os homens justos, mas eles foram em busca de muitas intrigas” (Ec 7.29). O trabalho tem muitas complexidades, muitos fatores que devem ser levados em conta, e a certeza moral geralmente é impossível. Mas buscar ética na “lógica do pretzel” é quase sempre um mau sinal (a “lógica do pretzel” é um raciocínio falho ou circular que não resiste a um exame minucioso).

Poder e justiça (Ec 8.1-17)

O exercício do poder é um fato da vida, e temos o dever de obedecer àqueles que têm autoridade sobre nós (Ec 8.2-5). No entanto, não sabemos se eles usarão sua autoridade com justiça. Muito possivelmente, eles usarão seu poder para prejudicar os outros (Ec 8.9). A justiça é pervertida. Os justos são punidos e os ímpios são recompensados ​​(Ec 8.10-14).

Em meio a essa incerteza, o melhor que podemos fazer é temer a Deus (Ec 8.13) e aproveitar as oportunidades de felicidade que ele nos dá. “Por isso recomendo que se desfrute a vida, porque debaixo do sol não há nada melhor para o homem do que comer, beber e alegrar-se. Sejam esses os seus companheiros no seu duro trabalho durante todos os dias da vida que Deus lhe der debaixo do sol!” (Ec 8.15).

Como na seção anterior, a ideia de “não encontrar” é repetida três vezes no final deste tópico. “Ninguém é capaz de entender o que se faz debaixo do sol. Por mais que se esforce para descobrir o sentido das coisas, o homem não o encontrará. O sábio pode até afirmar que entende, mas, na realidade, não o consegue encontrar” (Ec 8.17). Isso encerra a busca do Mestre para descobrir o que é bom fazer com o tempo limitado que temos. Embora ele tenha descoberto algumas boas práticas, o resultado geral é que ele não conseguiu descobrir o que é realmente significativo.

Não há como saber o que vem depois (Ec 9.1—11.6)

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Talvez fosse possível descobrir o que é melhor fazer na vida, se fosse possível saber o que vem depois. Assim, o Mestre busca conhecimento sobre a morte (Ec 9.1-6), o Sheol [“sepultura”] (Ec 9.7-10), o tempo da morte (Ec 9.11-12), o que vem após a morte (Ec 13-10.15), o mal que pode vir após a morte (Ec 10.16—11.2) e o bem que pode vir (Ec 11.3-6). Mais uma vez, uma ideia marcadora é repetida — neste caso, “não saber” e seu equivalente “não ter conhecimento” — divide o material em seções.

O Mestre descobre que simplesmente não é possível saber o que está por vir. “Os mortos nada sabem” (Ec 9.5). “Na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria” (Ec 9.10). “Ninguém sabe quando virá a sua hora” (Ec 9.12). “ Ninguém sabe o que está para vir; quem poderá dizer a outrem o que lhe acontecerá depois?” (Ec 10.14). “Você não sabe que desgraça poderá cair sobre a terra” (Ec 11.2). “Você não sabe o que acontecerá, se esta ou aquela produzirá, ou se as duas serão igualmente boas” (Ec 11.5-6).

Apesar de nossa colossal ignorância sobre o futuro, o Mestre descobre algumas coisas que são boas para se fazer enquanto temos chance. Investigaremos apenas as passagens que são particularmente relevantes para o trabalho.

Jogue-se em seu trabalho de todo o coração (Ec 9.10)

“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria” (Ec 9.10). Embora não possamos saber o resultado final de nosso trabalho, não faz sentido deixar que isso nos paralise. Os seres humanos foram criados para trabalhar (Gn 2.15). Precisamos trabalhar para sobreviver e, sendo assim, devemos trabalhar com toda força. O mesmo vale para aproveitar os frutos de nosso trabalho, sejam eles quais forem. “Portanto, vá, coma com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz” (Ec 9.7).

Aceite o sucesso e o fracasso como parte da vida (Ec 9.11-12)

Primeiro, não devemos nos enganar pensando que nosso sucesso se deve a nossos próprios méritos ou que nosso fracasso se deve a nossas próprias deficiências. “Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos” (Ec 9.11). O sucesso ou o fracasso podem ser devidos ao acaso. Isso não quer dizer que trabalho árduo e engenhosidade não sejam importantes. Eles nos preparam para aproveitar ao máximo as oportunidades da vida e podem criar oportunidades que, de outra forma, não existiriam. No entanto, alguém que é bem-sucedido no trabalho pode não ser mais merecedor do que outro que falha. Por exemplo, a Microsoft teve uma chance de sucesso em grande parte por causa da decisão improvisada da IBM de usar o sistema operacional MS-DOS para um projeto que estava atrasado, chamado de computador pessoal. Bill Gates refletiu mais tarde: “Nosso tempo para criar a primeira empresa de software voltada para computadores pessoais foi essencial para nosso sucesso. O momento não foi inteiramente de sorte, mas, sem muita sorte, não poderia ter acontecido.” Questionado sobre por que havia fundado uma empresa de software exatamente na época em que a IBM estava se arriscando com um computador pessoal, ele respondeu: “Nasci no lugar e no momento certos”. [1]

Trabalhe com diligência e invista com sabedoria (Ec 10.18—11.6)

Essa passagem contém o conselho financeiro mais direto que pode ser encontrado em qualquer parte da Bíblia. Primeiro, seja diligente, caso contrário, a economia de sua família entrará em colapso como um telhado podre e com goteiras (Ec 10.18). Segundo, entenda que, nesta vida, o bem-estar financeiro importa. “Tudo se paga com dinheiro” (Ec 10.19) pode ser lido de maneira cínica, mas o texto não diz que o dinheiro é a única coisa que importa. A questão é simplesmente que o dinheiro é necessário para lidar com todos os tipos de questões. Para colocar em termos modernos, se meu carro precisar de um reparo na transmissão, se minha filha precisar quitar as mensalidades na faculdade ou se eu quiser levar minha família de férias, tudo isso exigirá dinheiro. Não se trata de ganância ou materialismo; é bom senso. Terceiro, tenha cuidado com as pessoas em posição de autoridade (Ec 10.20). Se você menosprezar seu chefe ou até mesmo um cliente, poderá se arrepender. Quarto, diversifique seus investimentos (Ec 11.1-2). “Atire o seu pão sobre as águas” não se refere a doações de caridade, mas a investimentos; nesse caso, as “águas” representam um empreendimento no comércio exterior. Assim, repartir com “sete” ou “oito” refere-se a investimentos diversos, “pois você não sabe que desgraça poderá cair sobre a terra” (Ec 11.2). Quinto, não seja excessivamente tímido ao investir (Ec 11.3-5). O que há de acontecer vai mesmo acontecer, e você não tem como controlar isso (Ec 11.3). Mas isso não deve nos assustar a ponto de colocarmos dinheiro debaixo do colchão, onde ele não rende nada. Em vez disso, devemos encontrar coragem para assumir riscos razoáveis. “Quem fica observando o vento não plantará, e quem fica olhando para as nuvens não colherá” (Ec 11.4). Sexto, entenda que o sucesso está nas mãos de Deus. Mas você não sabe quais planos ou propósitos ele tem; portanto, não tente duvidar dele (Ec 11.5). Sétimo, seja persistente (Ec 11.6). Não trabalhe arduamente por um tempo e depois diga: “Eu tentei isso e não funcionou”.

A busca do Mestre por conhecimento sobre o futuro termina em Ec 11.5-6 com uma repetição tripla da ideia de “não saber”. Isso nos lembra que, embora trabalhar de todo o coração, aceitar o sucesso e o fracasso como parte da vida, trabalhar com diligência e investir com sabedoria sejam boas práticas, estas são apenas adaptações para lidar com nossa ignorância sobre o futuro. Se realmente soubéssemos como nossas ações se desenrolariam, poderíamos planejar com confiança o sucesso. Se soubéssemos quais investimentos dariam certo, não precisaríamos diversificar como proteção contra perdas sistêmicas. É difícil saber se devemos abaixar a cabeça entristecidos pelos desastres que podem nos acontecer neste mundo caído, ou se devemos louvar a Deus por ainda ser possível sobreviver — e talvez até se sair bem — em um mundo assim. Ou, na verdade, será que não é um pouco dos dois?

Um poema sobre a juventude e a velhice (Ec 11.7—12.8)

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O Mestre conclui com um poema exortando os jovens a terem bom ânimo (Ec 11.7—12.1) e relatando os problemas da velhice (Ec 12.2-8). Ele recapitula o padrão encontrado nas seções anteriores do livro. Há muita coisa boa a ser encontrada em nossa vida e trabalho, mas, em última análise, tudo é passageiro. O Mestre termina no mesmo tom que começou: “Nada faz sentido! Nada faz sentido!” (Ec 12.8).

Epílogo de louvor ao Mestre (Ec 12.9-14)

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Segue-se um epílogo a respeito do Mestre, e não escrito por ele. O epílogo elogia sua sabedoria e repete sua admoestação de temer a Deus. Acrescenta novos elementos não encontrados anteriormente no livro, como a sabedoria de seguir os mandamentos de Deus à luz do julgamento futuro de Deus.

Tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial para o homem. Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja bom, seja mau. (Ec 12.13-14)

O julgamento futuro de Deus é visto como a chave para separar a mistura de bem e mal que permeia o trabalho no mundo caído. Os vislumbres do caráter de Deus que vimos no livro — a generosidade, a justiça e a transcendência de Deus além dos limites do mundo — retratam uma bondade subjacente nos fundamentos do mundo, se pudéssemos viver de acordo com isso. Isso começa a sugerir que, no tempo de Deus, as tensões tão vividamente descritas pelo Mestre serão trazidas para uma harmonia que não é visível nos dias do Mestre, debaixo do sol. Será que o epílogo está prevendo um dia em que as condições da Queda não dominem nossa vida e nosso trabalho?

Conclusões a Eclesiastes

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O que devemos fazer com essa mistura de bem e mal, significado e vaidade, ação e ignorância, que o Mestre encontra na vida e no trabalho? O trabalho é “correr atrás do vento”, como o Mestre nos lembra continuamente. Como o vento, o trabalho é real e tem impacto enquanto dura. Ela nos mantém vivos e oferece oportunidades de alegria. No entanto, é difícil avaliar o efeito total de nosso trabalho, prever as consequências não intencionais para o bem e para o mal. E é impossível saber a que nosso trabalho pode levar além do momento presente. Será que o trabalho equivale a algo duradouro, eterno ou, em última análise, bom? O Mestre diz que realmente não é possível saber nada com certeza debaixo do sol.

Mas podemos ter uma perspectiva diferente. Ao contrário do Mestre, os seguidores de Jesus Cristo hoje veem uma esperança concreta além do mundo caído. Pois somos testemunhas da vida, morte e ressurreição de um novo Mestre, Jesus, cujo poder não morreu com o fim de seus dias debaixo do sol (Lc 23.44). Ele anuncia que “chegou a vocês o Reino de Deus” (Mt 12.28). O mundo em que vivemos agora está em processo de ser colocado sob o governo de Cristo e redimido por Deus. O que o escritor de Eclesiastes não sabia — não podia saber, como ele estava tão profundamente ciente — é que Deus enviaria seu Filho não para condenar o mundo, mas para restaurar o mundo da maneira que Deus pretendia que fosse (Jo 3.17). Os dias do mundo caído debaixo do sol estão passando em favor do Reino de Deus na terra, onde os filhos de Deus “não precisarão de luz de candeia, nem da luz do sol, pois o Senhor Deus os iluminará” (Ap 22.5). Por causa disso, o mundo em que vivemos não é apenas o remanescente do mundo caído, mas também a vanguarda do Reino de Cristo, que desce “dos céus, da parte de Deus” (Ap 21.2).

O trabalho que fazemos como seguidores de Cristo, portanto, tem — ou pelo menos poderia ter —um valor eterno que não poderia ter sido visível ao Mestre de Eclesiastes. Trabalhamos não apenas no mundo debaixo do sol, mas também no Reino de Deus. Isso não significa se envolver em uma tentativa equivocada de corrigir Eclesiastes com uma dose do Novo Testamento. Em vez disso, é apreciar Eclesiastes como um presente de Deus para nós, tal como se apresenta. Pois nós também vivemos a vida cotidiana sob as mesmas condições que o Mestre viveu. Como Paulo nos lembra: “Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.22-23). Gememos sob o mesmo peso que o Mestre, porque ainda estamos esperando pelo cumprimento do Reino de Deus na terra.

Eclesiastes, então, oferece duas percepções incomparáveis ​​em outras partes das Escrituras: 1) um relato franco do trabalho sob as condições da Queda; e 2) um testemunho de esperança nas circunstâncias mais sombrias do trabalho.

Um relato franco e aberto do trabalho sob a Queda (Eclesiastes)

Se sabemos que o trabalho em Cristo tem um valor duradouro, algo que não era visível ao Mestre de Eclesiastes, como suas palavras ainda podem ser úteis para nós? Para começar, suas palavras afirmam que o esforço, a opressão, o fracasso, a falta de sentido, a tristeza e a dor que experimentamos no trabalho são reais. Cristo veio, mas a vida para seus seguidores ainda não se tornou um passeio pelo jardim. Se sua experiência de trabalho é árdua e dolorosa — apesar das boas promessas de Deus — você não está louco, afinal. As promessas de Deus são verdadeiras, mas nem todas são cumpridas no momento presente. Somos pegos na realidade de que o Reino de Deus veio à terra agora (Mt 12.28), mas ainda não foi concluído (Ap 21.2). No mínimo, pode ser um consolo que as Escrituras ousem descrever as duras realidades da vida e do trabalho, enquanto proclamam que Deus é o Senhor.

Se Eclesiastes serve de conforto para aqueles que trabalham em condições difíceis, também pode servir de desafio para aqueles que são abençoados com boas condições de trabalho. Não se torne complacente! Até que o trabalho se torne uma bênção para todos, o povo de Deus é chamado a lutar pelo bem de todos os trabalhadores. De fato, devemos comer, beber e encontrar prazer em todo o trabalho com que somos abençoados. Mas fazemos isso enquanto lutamos — e também oramos — para que venha o Reino de Deus.

Um testemunho de esperança nas circunstâncias mais sombrias do trabalho (Eclesiastes)

Eclesiastes também dá um exemplo de como manter a esperança em meio às duras realidades do trabalho no mundo caído. Apesar do pior que vê e vive, o Mestre não abandona a esperança no mundo de Deus. Ele encontra os momentos de alegria, as faíscas de sabedoria e as maneiras de lidar com um mundo que é efêmero, mas não absurdo. Se Deus tivesse abandonado a humanidade às consequências da Queda, não haveria qualquer sentido ou mesmo algo de bom no trabalho. Em vez disso, o Mestre descobre que há significado e bondade no trabalho. Sua queixa é que eles são sempre transitórios, incompletos, incertos, limitados. Dada a alternativa — um mundo completamente sem Deus — esses são, na verdade, sinais de esperança.

Esses sinais de esperança podem ser um conforto para nós em nossas experiências mais sombrias de vida e trabalho. Além disso, eles nos dão uma compreensão de nossos colaboradores que não receberam as boas-novas do Reino de Cristo. Sua experiência de trabalho pode ser muito semelhante à do Mestre. Se pudermos imaginar suportar as dificuldades que enfrentamos, mas sem a promessa da redenção de Cristo, poderemos ter um vislumbre do fardo que a vida e o trabalho podem ser para nossos cooperadores. Ore a Deus para que isso pelo menos nos dê mais compaixão. Talvez isso também nos dê um testemunho mais eficaz. Pois, se quisermos testemunhar as boas-novas de Cristo, devemos começar entrando na realidade daqueles a quem testemunhamos. Caso contrário, nosso testemunho é sem sentido, superficial, egoísta e vão.

O brilhantismo de Eclesiastes pode ser precisamente o fato de ele ser tão perturbador. A vida é perturbadora, e Eclesiastes encara a vida com honestidade. Precisamos ficar chateados quando nos tornamos muito acomodados à vida “debaixo do sol”, muito dependentes dos confortos que podemos encontrar em situações de prosperidade e facilidade. Precisamos ficar chateados na direção oposta quando caímos no cinismo e no desespero por causa das dificuldades que enfrentamos. Sempre que transformamos em ídolos as conquistas transitórias de nosso trabalho e a arrogância que ele produz em nós — e, inversamente, sempre que deixamos de reconhecer o significado transcendente de nosso trabalho e o valor das pessoas com quem trabalhamos —, precisamos ficar chateados. Eclesiastes pode ser singularmente capaz de nos perturbar para a glória de Deus.