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Gênesis 1—11 e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Genesis bible commentary

Introdução a Gênesis 1-11

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O livro de Gênesis é o fundamento para a teologia do trabalho. Qualquer discussão sobre trabalho na perspectiva bíblica encontra-se baseada em passagens deste livro. Gênesis é incomparavelmente importante para a teologia do trabalho, porque conta a história da obra da criação de Deus, a primeira de todas e o protótipo de toda a obra que se segue. Deus não está sonhando uma ilusão, mas criando uma realidade. Assim, o universo criado que Deus traz à existência fornece o material do trabalho humano — espaço, tempo, matéria e energia. Dentro do universo criado, Deus está presente no relacionamento com suas criaturas e, especialmente, com as pessoas. Agindo à imagem de Deus, trabalhamos em criação, sobre criação, com criação e — se trabalharmos como Deus espera — para criação.

Em Gênesis, vemos Deus em ação e aprendemos como Deus espera que trabalhemos. Tanto obedecemos quanto desobedecemos a Deus em nosso trabalho, e descobrimos que Deus está trabalhando em nossa obediência e em nossa desobediência. Os outros sessenta e cinco livros da Bíblia têm, cada um, suas contribuições únicas para acrescentar à teologia do trabalho. No entanto, todas elas brotam da fonte encontrada aqui em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia.

Deus cria o mundo (Gênesis 1.1—2.3)

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A primeira coisa que a Bíblia nos diz é que Deus é um criador. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). Deus fala e surgem coisas que não existiam antes, começando pelo próprio universo. A criação é totalmente um ato de Deus. Não é um acidente, um erro ou o produto de uma divindade inferior, mas a autoexpressão de Deus.

Deus traz à existência o mundo material (Gênesis 1.1-2)

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Gênesis continua enfatizando a materialidade do mundo. “Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gn 1.2). A criação nascente, embora ainda “sem forma”, tem as dimensões materiais do espaço (o “abismo”) e da matéria (“águas”), e Deus está totalmente envolvido com essa materialidade (“o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”). Mais tarde, no capítulo 2, vemos até Deus trabalhando com o pó de sua criação. “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra” (Gn 2.7). Ao longo dos capítulos 1 e 2, vemos Deus envolvido na fisicalidade de sua criação.

Qualquer teologia do trabalho deve começar com uma teologia da criação. Consideramos o mundo material, as coisas com as quais trabalhamos, como sendo coisas de primeira qualidade pertencentes a Deus e imbuídas de valor duradouro? Ou o descartamos como um ambiente de trabalho temporário, uma área de testes, um navio afundando de onde devemos escapar para chegar à verdadeira localização de Deus em um “céu” imaterial? Gênesis argumenta contra qualquer noção de que o mundo material é menos importante para Deus do que o mundo espiritual. Ou, para ser mais exato, em Gênesis não há uma distinção nítida entre o material e o espiritual. O ruah de Deus em Gênesis 1.2 é simultaneamente “sopro”, “vento” e “espírito”. “Os céus e a terra” (Gn 1.1; 2.1) não são dois reinos separados, mas uma figura de linguagem hebraica que significa “o universo”.[1]

Mais significativamente, a Bíblia termina onde começa — na terra. A humanidade não parte da terra para se juntar a Deus no céu. Em vez disso, Deus aperfeiçoa seu Reino na terra e cria “a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus” (Ap 21.2). A habitação de Deus com a humanidade está aqui, na criação renovada. “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens” (Ap 21.3). É por isso que Jesus disse a seus discípulos que orassem usando as palavras: “Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Durante o tempo entre Gênesis 2 e Apocalipse 21, a terra está corrompida, destruída, fora de ordem e cheia de pessoas e forças que trabalham contra os propósitos de Deus (veja mais sobre isso em Gênesis 3 e adiante). Nem tudo no mundo vai de acordo com o desígnio de Deus. Mas o mundo ainda é algo criado por Deus, ao que ele chama de “bom”. (Para mais informações sobre o novo céu e nova terra, veja “Apocalipse 17-22” in Apocalipse e o trabalho.)

Muitos cristãos, que trabalham principalmente com objetos materiais, dizem que parece que seu trabalho importa menos para a igreja — e até para Deus — do que um trabalho centrado em pessoas, ideias ou religião. É mais provável que um sermão elogiando o bom trabalho use o exemplo de um missionário, um assistente social ou um professor do que o de um pedreiro, um mecânico de automóveis ou um químico. Os irmãos cristãos são mais propensos a reconhecer um chamado para se tornar um pastor ou médico do que um chamado para se tornar um estoquista ou um escultor. Mas isso tem alguma base bíblica? Deixando de lado o fato de que trabalhar com pessoas é trabalhar com objetos materiais, é sábio lembrar que Deus deu às pessoas tarefas de trabalhar tanto com pessoas (Gn 2.18) quanto com coisas (Gn 2.15). De fato, Deus parece levar a criação muito a sério.

A criação de Deus dá trabalho (Gênesis 1.3-25; 2.7)

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Criar um mundo é trabalho. Em Gênesis 1, o poder da obra de Deus é inegável. Deus traz mundos à existência e, passo a passo, vemos o exemplo primordial do uso correto do poder. Observe a ordem de criação. Os três primeiros atos criativos de Deus separam o caos sem forma em reinos de céus (ou céu), água e terra. No primeiro dia, Deus cria a luz e a separa das trevas, formando o dia e a noite (Gn 1.3-5). No segundo dia, ele separa as águas e cria o céu (Gn 1.6-8). Na primeira parte do terceiro dia, ele separa a terra seca do mar (Gn 1.9-10). Todos são essenciais para a sobrevivência do que se segue. Em seguida, Deus começa a preencher os reinos que ele criou. No restante do terceiro dia, ele cria a vida vegetal (Gn 1.11-13). No quarto dia, ele cria o sol, a lua e as estrelas (Gn 1.14-19) no céu. Os termos “luminar maior” e “luminar menor” são usados ​​em vez dos nomes “sol” e “lua”, desencorajando assim a adoração desses objetos criados e nos lembrando de que ainda corremos o risco de adorar a criação em vez do Criador. As luzes são belas em si mesmas e também essenciais para a vida das plantas, com sua necessidade de sol, noite e estações do ano. No quinto dia, Deus enche a água e o céu com peixes e pássaros que não poderiam ter sobrevivido sem a vida vegetal criada anteriormente (Gn 1.20-23). Finalmente, no sexto dia, ele cria os animais (Gn 1.24-25) e, como o ápice da criação, cria a humanidade para povoar a terra (Gn 1.26-31). [1]

No capítulo 1, Deus realiza toda a sua obra falando. “Disse Deus...” e tudo aconteceu. Isso nos permite saber que o poder de Deus é mais do que suficiente para criar e manter a criação. Não precisamos nos preocupar com o fato de Deus estar ficando cansado ou de que a criação esteja em um estado precário de existência. A criação de Deus é robusta, sua existência é segura. Deus não precisa da ajuda de ninguém nem de nada para criar ou manter o mundo. Nenhuma batalha com as forças do caos ameaça desfazer a criação. Mais tarde, quando Deus escolhe compartilhar a responsabilidade criativa com os seres humanos, sabemos que essa é uma escolha de Deus, não uma necessidade. O que quer que as pessoas façam para estragar a criação ou tornar a Terra imprópria para a plenitude da vida, Deus tem um poder infinitamente maior para redimir e restaurar.

A exibição do poder infinito de Deus no texto não significa que a criação de Deus não é trabalho, assim como é trabalho escrever um programa de computador ou atuar em uma peça de teatro. Mas se a majestade transcendente da obra de Deus em Gênesis 1 pode nos levar a pensar que aquilo não é realmente trabalho, Gênesis 2 não nos deixa dúvidas. Deus trabalha imanentemente com suas mãos para esculpir corpos humanos (Gn 2.7,21), plantar um jardim (Gn 2.8), cultivar um pomar (Gn 2.9) e, um pouco mais tarde, costurar “roupas de pele” (Gn 3.21). Isso é apenas o começo da obra física de Deus em uma Bíblia cheia de trabalho divino. [2]

A criação é de Deus, mas não é idêntica a Deus (Gênesis 1.11)

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Deus é a fonte de tudo na criação. No entanto, a criação não é idêntica a Deus. Deus dá à sua criação o que Colin Gunton chama Selbständigkeit ou uma “autonomia”. Não se trata da independência absoluta imaginada pelos ateus ou deístas, mas sim a existência significativa da criação como algo distinto do próprio Deus. Isso é melhor capturado na descrição da criação das plantas por Deus: “Então disse Deus: ‘Cubra-se a terra de vegetação: plantas que deem sementes e árvores cujos frutos produzam sementes de acordo com as suas espécies’. E assim foi” (Gn 1.11). Deus cria todas as coisas, mas também literalmente lança a semente para a perpetuação da criação ao longo dos tempos. A criação é dependente de Deus para sempre — “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28) —, mas permanece distinta. Isso dá ao nosso trabalho uma beleza e um valor acima do valor de um relógio ou de um fantoche. Nosso trabalho tem sua fonte em Deus, mas também tem seu próprio peso e dignidade.

Deus vê que sua obra é boa (Gênesis 1.4,10, 12, 18, 21, 25, 31)

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Contra qualquer noção dualista de que o céu é bom e a terra é má, Gênesis declara, a cada dia da criação, que “Deus viu que ficou bom” (Gn 1.4, 10, 12, 18, 21,25). No sexto dia, com a criação da humanidade, Deus viu que “tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.31). Com os seres humanos — os agentes por meio dos quais o pecado em breve entraria na criação de Deus — tudo, no entanto, ficou “muito bom”. Simplesmente não há apoio em Gênesis para a noção, que de alguma forma entrou na imaginação cristã, de que o mundo é irremediavelmente mau e que a única salvação é uma fuga para um mundo espiritual imaterial, muito menos para a noção de que, enquanto estivermos na terra, devemos gastar nosso tempo em tarefas “espirituais” em vez de tarefas “materiais”. Não há divórcio entre o espiritual e o material no bom mundo de Deus.

Deus opera de modo relacional (Gênesis 1.26a)

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Mesmo antes de Deus criar as pessoas, ele fala no plural: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26; grifo nosso). Embora haja divergência entre os estudiosos sobre se essa forma plural se refere a uma assembleia divina de seres angelicais ou a uma singular pluralidade na unidade de Deus, qualquer uma das visões implica que Deus é inerentemente relacional. [1]

É difícil ter certeza de como os antigos israelitas teriam entendido o significado do plural aqui. Para nossos propósitos, parece melhor seguir a interpretação cristã tradicional de que se refere à Trindade. De qualquer forma, sabemos pelo Novo Testamento que Deus está realmente em relacionamento consigo mesmo — e com sua criação — em uma Trindade de amor. No evangelho de João, aprendemos que o Filho — “a Palavra [que] tornou-se carne” (Jo 1.14) — está presente e ativo na criação desde o princípio.

No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito. Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. (João 1.1-4)

Assim, os cristãos reconhecem nosso Deus Trino, o único que é três Pessoas em um ser — Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo —, todos pessoalmente ativos na criação.

Deus limita seu trabalho, descansando no sétimo dia (Gênesis 2.1-3)

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Ao final de seis dias, a criação do mundo por Deus está terminada. Isso não significa que Deus deixa de trabalhar, pois, como Jesus disse: “Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando” (Jo 5.17). Também não significa que a criação está completa, pois, como veremos, Deus deixa muito trabalho para as pessoas fazerem para levar a criação adiante. Mas o caos havia se transformado em um ambiente habitável, agora sustentando plantas, peixes, pássaros, animais e seres humanos.

E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia. Assim foram concluídos os céus e a terra, e tudo o que neles há. No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou. (Gn 1.31—2.2; grifo nosso)

Deus coroa seus seis dias de trabalho com um dia de descanso. Embora a criação da humanidade tenha sido o clímax da obra criadora de Deus, descansar no sétimo dia foi o clímax da semana criadora de Deus. Por que Deus descansa? A majestade da criação de Deus somente pela palavra, no capítulo 1, deixa claro que Deus não está cansado. Ele não precisa descansar. Mas ele escolhe limitar sua criação no tempo e no espaço. O universo não é infinito. Tem um começo, atestado pelo Gênesis, que a ciência aprendeu a observar à luz da teoria do Big Bang. Se ele tem um fim no tempo, não é inequivocamente claro, seja na Bíblia ou na ciência, mas Deus dá ao tempo um limite dentro do mundo como o conhecemos. Enquanto o tempo está correndo, Deus abençoa seis dias para o trabalho e um para o descanso. Esse é um limite que o próprio Deus observa e, mais tarde, se torna seu mandamento também para as pessoas (Êx 20.8-11).

As pessoas são criadas à imagem de Deus (Gênesis 1.26-27; 5.1)

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Tendo contado a história da obra de Deus na criação, Gênesis passa a contar a história do trabalho humano. Tudo está fundamentado no fato de Deus ter criado as pessoas à sua própria imagem.

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. (Gn 1.26)
Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gn 1.27)
Quando Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. (Gn 5.1)

Toda a criação exibe o desígnio, o poder e a bondade de Deus, mas é dito que apenas os seres humanos foram feitos à imagem de Deus. Uma teologia completa da imagem de Deus está além do nosso escopo aqui; portanto, apenas observemos que algo em nós é singularmente semelhante a ele. Seria ridículo acreditar que somos exatamente como Deus. Não podemos criar mundos a partir do caos e não devemos tentar fazer tudo o que Deus faz. “Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor” (Rm 12.19). Mas a principal coisa a respeito de Deus que sabemos, na narrativa até agora, é que Deus é um criador que trabalha no mundo material, que trabalha em relacionamentos e cuja obra respeita limites. Temos a capacidade de fazer o mesmo.

O restante de Gênesis 1 e 2 desenvolve o trabalho humano em cinco categorias específicas: domínio, relacionamentos, frutificação/crescimento, provisão e limites. O desenvolvimento ocorre em dois ciclos, um em Gênesis 1.26—2.4 e o outro em Gênesis 2.4-25. A ordem das categorias não é exatamente a mesma nas duas ocasiões, mas todas as categorias estão presentes nos dois ciclos. O primeiro ciclo desenvolve o que significa trabalhar à imagem de Deus. O segundo ciclo descreve como Deus equipa Adão e Eva para seu trabalho ao começarem a vida no jardim do Éden.

A linguagem do primeiro ciclo é mais abstrata e, portanto, adequada para desenvolver os princípios do trabalho humano. A linguagem do segundo ciclo, mais terrena, mostra Deus formando coisas a partir do pó e de outros elementos e é bem adequada para a instrução prática de Adão e Eva em seu trabalho específico no jardim. Essa mudança de linguagem — com mudanças semelhantes nos quatro primeiros livros da Bíblia — tem atraído quantidades incontáveis de pesquisas, hipóteses, debates e até divisões entre os estudiosos. Qualquer comentário geral fornecerá muitos detalhes. A maioria desses debates, no entanto, tem pouco impacto sobre o que o livro de Gênesis contribui para a compreensão do trabalho, dos trabalhadores e dos ambientes de trabalho, e não tentaremos tomar uma posição a respeito disso aqui. O que é relevante para nossa discussão é que o capítulo 2 repete cinco temas desenvolvidos anteriormente — no âmbito de domínio, provisão, fecundidade/crescimento, limites e relacionamentos — descrevendo como Deus equipa as pessoas para cumprir a obra para a qual fomos criados à sua imagem. Para facilitar o acompanhamento desses temas, exploraremos Gênesis 1.26—2.25 categoria por categoria, em vez de versículo por versículo. A tabela a seguir fornece um índice prático (com links) para os interessados ​​em explorar um versículo específico imediatamente.

Passagem (clique para ir para passagem)

Categoria (clique para ir para a categoria)

Ciclo

Gênesis 1.26—2.4

Domínio

1

Gênesis 1.27

Relacionamentos

1

Gênesis 1.28

Frutificação/Crescimento

1

Gênesis 1.29-30

Provisão

1

Gênesis 2.3

Limites

1

Gênesis 2.5

Domínio

2

Gênesis 2.8-14

Provisão

2

Gênesis 2.15; 2.19-20

Frutificação/Crescimento

2

Gênesis 2.17

Limites

2

Gênesis 2.18; 2.21-25

Relacionamentos

2


Domínio (Gênesis 1.26; 2.5)

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Trabalhar à imagem de Deus é exercer domínio (Gênesis 1.26)

Em Gênesis, vemos uma consequência de sermos criados à imagem de Deus: devemos exercer domínio: “Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão” (Gn 1.26). Como Ian Hart coloca: “Exercer domínio real sobre a terra como representante de Deus é o propósito básico para o qual Deus criou o homem... O homem é nomeado rei sobre a criação, responsável perante Deus, o rei de fato, e como tal espera-se que ele gerencie, desenvolva e cuide da criação, tarefa esta que inclui o trabalho físico real”. [1] Nosso trabalho à imagem de Deus começa com sermos uma representação fiel de Deus.

Ao exercermos domínio sobre o mundo criado, fazemos isso sabendo que espelhamos Deus. Não somos os originais, mas as imagens, e nosso dever é usar o original — Deus — como nosso padrão, não nós mesmos. Nosso trabalho deve servir aos propósitos de Deus mais do que aos nossos, o que nos impede de dominar tudo o que Deus colocou sob nosso controle.

Pense nas implicações disso em nosso ambiente de trabalho. Como Deus faria nosso trabalho? Que valores Deus traria? Que produtos Deus faria? A quais pessoas Deus serviria? Que organizações Deus construiria? Que padrões Deus usaria? Como portadores da imagem de Deus, de que maneiras nosso trabalho deve mostrar o Deus que representamos? Quando concluímos um trabalho, os resultados são tais que podemos dizer: “Obrigado, Deus, por me usar para fazer isso?”

Deus prepara as pessoas para a obra de domínio (Gênesis 2.5)

O ciclo começa novamente com o domínio, embora isso talvez não seja fácil de perceber imediatamente. “Ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo” (Gn 2.5; grifo do autor). A frase-chave é “não havia homem para cultivar o solo”. Deus escolheu não encerrar sua criação até que ele criasse pessoas para trabalhar com (ou sob) ele. Meredith Kline coloca desta forma: “O modo de Deus fazer o mundo era como um rei plantando uma fazenda, um parque ou um pomar, no qual Deus coloca a humanidade para ‘servir’ o solo e para ‘servir’ e ‘cuidar’ da propriedade.” [2]

Assim, o trabalho de exercer domínio começa com o cultivo do solo. A partir disso, vemos que o uso que Deus faz das palavras subjugar [3] e domínio no capítulo 1 não nos dá permissão para menosprezar qualquer parte de sua criação. Muito pelo contrário. Devemos agir como se tivéssemos o mesmo relacionamento de amor que Deus tem com suas criaturas. Subjugar a terra inclui tanto aproveitar seus vários recursos quanto protegê-los. O domínio sobre todas as criaturas vivas não é uma licença para abusar delas, mas um mandato de Deus para cuidar delas. Devemos servir aos melhores interesses de todos aqueles cujas vidas tocam a nossa; nossos empregadores, nossos clientes, nossos companheiros ou colegas de trabalho, ou ainda aqueles que trabalham para nós ou que conhecemos, mesmo que casualmente. Isso não significa que permitiremos que as pessoas passem por cima de nós, mas significa que não permitiremos que nosso interesse próprio, nossa autoestima ou nossa autoexaltação nos deem a licença para passar por cima dos outros. A história que se desenrola mais tarde, em Gênesis, concentra a atenção exatamente nessa tentação e em suas consequências.

Hoje, nos tornamos especialmente conscientes de como a busca humana por interesse próprio ameaça o ambiente natural. Deveríamos cuidar e preservar o jardim (Gn 2.15). A criação é destinada ao nosso uso, mas não apenas para nosso uso. Recordar que o ar, a água, a terra, as plantas e os animais são bons (Gn 1.4-31) nos lembra que devemos sustentar e preservar o meio ambiente. Nosso trabalho pode preservar ou destruir o ar puro, a água e a terra, a biodiversidade, os ecossistemas e os biomas e até o clima com o qual Deus abençoou sua criação. Domínio não é autoridade para trabalhar contra a criação de Deus, mas a capacidade de trabalhar para isso.

Relacionamentos e trabalho (Gênesis 1.27; 2.18, 21-25)

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Trabalhar à imagem de Deus é trabalhar no relacionamento com os outros (Gênesis 1.27)

Trabalhar à imagem de Deus é trabalhar no relacionamento com os outros (Gênesis 1.27)Uma consequência que vemos em Gênesis de sermos criados à imagem de Deus é que trabalhamos em relacionamento com Deus e uns com os outros. Já vimos que Deus é inerentemente relacional (Gn 1.26); portanto, como imagens de um Deus relacional, somos inerentemente relacionais. A segunda parte de Gênesis 1.27 enfatiza isto novamente, pois fala de nós não individualmente, mas em pares: “homem e mulher os criou”. Estamos em relacionamento com nosso criador e com nossos semelhantes. Esses relacionamentos não são deixados como abstrações filosóficas em Gênesis. Vemos Deus falando e trabalhando com Adão ao dar nome aos animais (Gn 2.19). Vemos Deus visitando Adão e Eva no “jardim quando soprava a brisa do dia” (Gn 3.8).Como essa realidade nos afeta em nossos ambientes de trabalho? Acima de tudo, somos chamados a amar as pessoas com quem, entre as quais e para quem trabalhamos. O Deus de relacionamento é o Deus de amor (1Jo 4.7). Alguém poderia simplesmente dizer que “Deus ama”, mas as Escrituras vão mais fundo no próprio cerne do ser de Deus, que é Amor, um amor que flui entre o Pai, o Filho (Jo 17.24) e o Espírito Santo. Esse amor também flui do ser de Deus para nós, não fazendo nada que não seja para o nosso bem (o amor ágape em contraste com os amores humanos situados em nossas emoções).Francis Schaeffer explora ainda mais a ideia de que podemos ter um relacionamento pessoal com Deus, porque fomos feitos à imagem de Deus e porque Deus é pessoal. Ele observa que isso torna possível o amor genuíno, afirmando que as máquinas não podem amar. Como resultado, temos a responsabilidade de cuidar conscientemente de tudo o que Deus colocou sob nossos cuidados. Ser uma criatura relacional traz responsabilidade moral. [1]

Deus equipa as pessoas para o trabalho em relacionamento com os outros (Gênesis 2.18,21-25)

Visto que fomos criados à imagem de um Deus relacional, somos inerentemente relacionais. Fomos feitos para nos relacionar com o próprio Deus e também com outras pessoas. Deus diz: “Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda” (Gn 2.18). Todos os seus atos criativos foram chamados de “bons” ou “muito bons”, e esta é a primeira vez que Deus pronuncia algo que “não é bom”. Então, Deus faz uma mulher da carne e dos ossos do próprio Adão. Quando Eva chega, Adão fica cheio de alegria. “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (Gn 2.23). (Depois deste único caso, todas as novas pessoas continuarão a sair da carne de outros seres humanos, mas nascidas de mulheres, e não de homens.) Adão e Eva embarcam em um relacionamento tão próximo que se tornaram “uma só carne” (Gn 2.24). Embora isso possa soar como um assunto puramente erótico ou familiar, também é uma relação de trabalho. Eva é criada para auxiliar e ser parceira de Adão, de modo que ela se juntará a ele no trabalho do jardim do Éden. A noção de alguém que auxilie indica que, como Adão, ela cuidará do jardim. Prestar auxílio significa trabalhar. Alguém que não está trabalhando não está auxiliando. Ser parceiro significa trabalhar com alguém, em relacionamento.

Quando Deus chama Eva de “auxiliadora” (ARA), ele não está dizendo que ela será inferior a Adão ou que seu trabalho será menos importante, menos criativo, menos qualquer coisa que o dele. A palavra traduzida como “auxiliadora” (ARA; ezer em hebraico) é uma palavra usada em outras partes do Antigo Testamento para se referir ao próprio Deus. “Deus é o meu auxílio [ezer]” (Sl 54.4). “Senhor, sê tu o meu auxílio [ezer]” (Sl 30.10). Claramente, ezer não se refere a um subordinado. Além disso, Gênesis 2.18 descreve Eva não apenas como uma “auxiliadora”, mas também como uma “parceira”. Uma palavra muito usada hoje para alguém que é tanto um ajudante quanto um parceiro é “colaborador”. Este é, de fato, o sentido já dado em Gênesis 1.27, “homem e mulher os criou”, e não há distinção de prioridade ou dominância. A dominação das mulheres pelos homens — ou vice-versa — não está de acordo com a boa criação de Deus. É uma consequência trágica da queda (Gn 3.16).

Os relacionamentos não são incidentais no trabalho; eles são essenciais. O trabalho serve como um lugar de relacionamentos profundos e significativos, pelo menos sob as condições adequadas. Jesus descreveu nosso relacionamento consigo mesmo como uma espécie de trabalho: “Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas” (Mt 11.29). Um jugo é o que torna possível que dois bois trabalhem juntos. Em Cristo, as pessoas podem realmente trabalhar juntas, como Deus planejou quando criou a mulher e o homem como colaboradores. Enquanto nossa mente e nosso corpo trabalham em relacionamento com outras pessoas e com Deus, nossa alma “encontra descanso”. Quando não trabalhamos com os outros em direção a um objetivo comum, ficamos espiritualmente inquietos. Para saber mais sobre o jugo, consulte a seção sobre 2Coríntios 6.14-18 no Comentário Teologia do Trabalho.

Um aspecto crucial do relacionamento modelado pelo próprio Deus é a delegação de autoridade. Deus delegou a Adão a tarefa de dar nome aos animais, e a transferência de autoridade foi genuína: “o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome” (Gn 2.19). Ao delegar, como em qualquer outra forma de relacionamento, abrimos mão de alguma medida de nosso poder e independência e corremos o risco de deixar que o trabalho dos outros nos afete. Grande parte dos últimos cinquenta anos de desenvolvimento nos campos de liderança e gestão ocorreu na forma de delegação de autoridade, capacitação de trabalhadores e promoção do trabalho em equipe. O fundamento desse tipo de desenvolvimento sempre esteve em Gênesis, embora os cristãos nem sempre tenham notado isso.

Muitas pessoas formam seus relacionamentos mais próximos quando encontram um propósito e uma meta comuns em algum tipo de trabalho — seja remunerado ou não. Por sua vez, as relações de trabalho possibilitam a criação de uma vasta e complexa gama de bens e serviços além da capacidade de produção de qualquer indivíduo. Sem relacionamentos no trabalho não há automóveis, computadores, correios, legislaturas, lojas, escolas. E, sem o relacionamento íntimo entre um homem e uma mulher, não haverá pessoas no futuro para fazer a obra que Deus dá. Nosso trabalho e nossa comunidade são dons de Deus totalmente entrelaçados. Juntos, eles fornecem os meios para sermos frutíferos e nos multiplicarmos em todos os sentidos das palavras.

Frutificação/Crescimento (Gênesis 1.28; 2.15,19-20)

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Trabalhar à imagem de Deus é dar fruto e multiplicar-se (Gênesis 1.28)

Visto que fomos criados à imagem de Deus, devemos ser frutíferos ou fecundos. Isso é frequentemente chamado de “mandato da criação” ou “mandato cultural”. Deus fez uma criação sem falhas, um ambiente ideal, e depois criou a humanidade para continuar o projeto da criação. “Deus os abençoou, e lhes disse: ‘Sejam férteis e multipliquem-se!’” (Gn 1.28a). Deus poderia ter criado tudo o que se possa imaginar e preenchido a terra. Mas ele escolheu criar a humanidade para trabalhar ao seu lado na realização do potencial do universo, para participar da própria obra de Deus. É notável que Deus confie em nós para realizar essa incrível tarefa de edificar sobre a boa terra que ele nos deu. Por meio de nosso trabalho, Deus produz comida e bebida, produtos e serviços, conhecimento e beleza, organizações e comunidades, crescimento e saúde, louvor e glória para si mesmo.

Uma palavra sobre beleza está presente. A obra de Deus não é apenas produtiva, mas também é “atraente aos olhos” (Gn 3.6). Isso não causa surpresa, já que as pessoas, criadas à imagem de Deus, são inerentemente belas. Como qualquer outro bem, a beleza pode se tornar um ídolo, mas os cristãos muitas vezes se preocupam demais com os perigos da beleza e não apreciam muito o valor da beleza aos olhos de Deus. Inerentemente, a beleza não é um desperdício de recursos, algo que desvia de um trabalho mais importante ou uma flor fadada a murchar no final dos tempos. A beleza é uma obra à imagem de Deus, e o Reino de Deus está cheio de beleza como “uma joia muito preciosa” (Ap 21.11). As comunidades cristãs fazem bem em apreciar a beleza da música com palavras sobre Jesus. Talvez pudéssemos valorizar melhor todos os tipos de verdadeira beleza.

Uma boa pergunta a fazer a nós mesmos é se estamos trabalhando de forma mais produtiva e bonita. A história está repleta de exemplos de pessoas cuja fé cristã resultou em realizações surpreendentes. Se nosso trabalho parece infrutífero quando comparado ao deles, a resposta não está no autojulgamento, mas na esperança, na oração e no crescimento na companhia do povo de Deus. Independentemente das barreiras que enfrentamos — de dentro ou de fora —, pelo poder de Deus, podemos fazer mais bem do que jamais poderíamos imaginar.

Deus capacita as pessoas para darem frutos e se multiplicarem (Gênesis 2.15,19-20)

“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo” (Gn 2.15). Essas duas palavras em hebraico, avad (“cuidar”; lit. “cultivar”) e shamar (“cultivar”; lit. “guardar”), também são usados ​​para a adoração a Deus e a guarda de seus mandamentos, respectivamente. [1] O trabalho feito de acordo com o propósito de Deus tem uma santidade inconfundível.

Adão e Eva recebem dois tipos específicos de trabalho em Gênesis 2.15-20: cultivar o jardim (um tipo de trabalho físico) e dar nomes aos animais (um tipo de trabalho cultural/científico/intelectual). Ambos são empreendimentos criativos que fornecem atividades específicas a pessoas criadas à imagem do Criador. Ao cultivar coisas e desenvolver cultura, somos de fato frutíferos. Trazemos os recursos necessários para sustentar uma população em crescimento e aumentar a produtividade da criação. Desenvolvemos os meios para encher a Terra, mas não demais. Não precisamos imaginar que cuidar do jardim e dar nome a animais são as únicas tarefas adequadas para os seres humanos. Em vez disso, a tarefa humana é estender a obra criadora de Deus de várias maneiras, sendo limitada apenas pelos dons divinos de imaginação e habilidade e pelos limites que Deus estabelece. O trabalho está para sempre enraizado no desígnio de Deus para a vida humana. É uma via para contribuir para o bem comum e é um meio de provisão para nós mesmos, para nossas famílias e para aqueles que podemos abençoar com nossa generosidade.

Um aspecto importante (embora às vezes esquecido) de Deus em ação na criação é a vasta imaginação que foi capaz de criar tudo, desde a exótica vida marinha até elefantes e rinocerontes. Embora os teólogos tenham criado listas variadas das características de Deus que nos foram dadas e que carregam a imagem divina, a imaginação é certamente um dom de Deus que vemos em ação ao nosso redor, em nosso ambiente de trabalho e em nossa casa.

Grande parte do trabalho que fazemos usa nossa imaginação de alguma forma. Apertamos os parafusos numa linha de montagem de caminhões e imaginamos esse caminhão na estrada. Abrimos um documento em nosso computador e imaginamos a história que estamos prestes a escrever. Mozart imaginou uma sonata e Beethoven imaginou uma sinfonia. Picasso imaginou Guernica antes de pegar seus pincéis para trabalhar nessa pintura. Tesla e Edison imaginaram aproveitar a eletricidade, e hoje temos luz na escuridão e uma infinidade de eletrodomésticos, eletrônicos e equipamentos. Alguém em algum lugar imaginou praticamente tudo ao nosso redor. A maioria dos empregos que as pessoas ocupam existe porque alguém poderia imaginar um produto ou processo que criasse empregos no ambiente de trabalho.

No entanto, é preciso trabalho para que a imaginação seja realizada; e, depois da imaginação, vem o trabalho de trazer o produto à existência. Na verdade, na prática, a imaginação e a realização ocorrem frequentemente em processos entrelaçados. Picasso disse sobre sua Guernica: “Uma pintura não é pensada e preparada de antemão. Enquanto está sendo feita, ela muda à medida que os pensamentos mudam. E, quando terminada, continua mudando, de acordo com o estado de espírito de quem está olhando para ela.” [2] O trabalho de transformar a imaginação em realidade traz sua própria criatividade inevitável.

Provisão (Gênesis 1.29-30; 2.8-14)

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Trabalhar à imagem de Deus é receber a provisão de Deus (Gênesis 1.29-30)

Visto que fomos criados à imagem de Deus, Deus supre nossas necessidades. Essa é uma das maneiras pelas quais se nota que aqueles que foram feitos à imagem de Deus não são o próprio Deus. Deus não tem necessidades ou, se tivesse, teria o poder de atender a todas elas sozinho. Nós não. Portanto:

Disse Deus: “Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês. E dou todos os vegetais como alimento a tudo o que tem em si fôlego de vida: a todos os grandes animais da terra, a todas as aves do céu e a todas as criaturas que se movem rente ao chão”. E assim foi. (Gn 1.29-30)

Por um lado, reconhecer a provisão de Deus nos alerta para não cairmos em arrogância. Sem ele, nosso trabalho não é nada. Não podemos gerar a própria vida. Não podemos nem mesmo prover nossa própria manutenção. Precisamos da constante provisão divina de ar, água, terra, luz do sol e do crescimento milagroso de seres vivos para alimentar nosso corpo e nossa mente. Por outro lado, reconhecer a provisão de Deus nos dá confiança em nosso trabalho. Não precisamos depender de nossa própria capacidade ou dos caprichos das circunstâncias para atender às nossas necessidades. O poder de Deus torna nosso trabalho frutífero.

Deus equipa as pessoas com provisão para suas necessidades (Gênesis 2.8-14)


O segundo ciclo do relato da criação nos mostra algo de como Deus provê nossas necessidades. Ele prepara a Terra para ser produtiva quando aplicamos nosso trabalho a ela. “O Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara” (Gn 2.8). Nós até podemos cultivar, mas Deus é o plantador original. Além do alimento, Deus criou a terra com recursos para sustentar tudo o que precisamos para sermos frutíferos e nos multiplicar. Ele nos dá uma multidão de rios que fornecem água, minérios que fornecem materiais de pedra e metal e precursores dos meios de troca econômica (Gn 2.10-14). “O ouro daquela terra é excelente” (Gn 2.12). Mesmo quando sintetizamos novos elementos e moléculas, ou quando reorganizamos o DNA entre os organismos ou criamos células artificiais, estamos trabalhando com a matéria e a energia que Deus criou para nós.

Deus estabelece limites (Gênesis 2.3; 2.17)

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Trabalhar à imagem de Deus é ser abençoado pelos limites que Deus estabelece (Gênesis 2.3)

Visto que fomos criados à imagem de Deus, devemos obedecer a certos limites em nosso trabalho. “Abençoou Deus o sétimo dia e o santificou, porque nele descansou de toda a obra que realizara na criação” (Gn 2.3). Deus descansou porque estava exausto ou descansou para oferecer a nós, portadores de sua imagem, um ciclo modelo de trabalho e descanso? O quarto dos Dez Mandamentos nos diz que o descanso de Deus deve ser um exemplo a seguir.

“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou. (Êx 20.8-11)

Enquanto as pessoas religiosas, ao longo dos séculos, tendiam a acumular regras definindo o que constituía a guarda do sábado, Jesus disse claramente que Deus fez o sábado para nós — para nosso benefício (Mc 2.27). O que devemos aprender com isso?

Quando, assim como Deus, paramos de trabalhar no sétimo dia, reconhecemos que nossa vida não é definida apenas pelo trabalho ou pela produtividade. Walter Brueggemann colocou desta forma: “O sábado fornece um testemunho visível de que Deus está no centro da vida — que a produção e o consumo humanos ocorrem em um mundo ordenado, abençoado e restringido pelo Deus de toda a criação”. [1] Em certo sentido, renunciamos a parte de nossa autonomia, assumindo nossa dependência de Deus, nosso Criador. Caso contrário, vivemos com a ilusão de que a vida está completamente sob controle humano. Em certo sentido, tornar o sábado uma parte regular de nossa vida profissional é reconhecer que Deus está, em última análise, no centro da vida. (Mais discussões sobre sábado, descanso e trabalho podem ser encontradas nas seções sobre “Marcos 1.21-45”, “Marcos 2.23—3.6”, “Lucas 6.1-11”, e “Lucas 13.10-17” no Comentário da Teologia do Trabalho.)

Deus equipa as pessoas para trabalharem dentro de limites (Gênesis 2.17)

Tendo abençoado os seres humanos com seu próprio exemplo de observar os dias de trabalho e os sábados, Deus fornece a Adão e Eva instruções específicas sobre os limites de seu trabalho. No meio do jardim do Éden, Deus planta duas árvores, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.9). A última árvore está fora dos limites. Deus diz a Adão: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá” (Gn 2.16-17).

Os teólogos têm especulado longamente sobre por que Deus colocaria uma árvore no jardim do Éden que ele não queria que os habitantes usassem. Várias hipóteses são encontradas nos comentários, e não precisamos estabelecer uma resposta aqui. Para nossos propósitos, basta observar que nem tudo o que pode ser feito deve ser feito. A imaginação e a habilidade humanas podem trabalhar com os recursos da criação de Deus de maneiras hostis às intenções, propósitos e mandamentos de Deus. Se quisermos trabalhar com Deus, e não contra ele, devemos escolher observar os limites que Deus estabelece, em vez de realizar tudo o que é possível na criação.

Francis Schaeffer salientou que Deus não deu a Adão e Eva a escolha entre uma árvore boa e uma árvore má, mas a escolha entre adquirir ou não o conhecimento do mal (eles já conheciam o bem, é claro). Ao fazer essa árvore, Deus abriu a possibilidade do mal, mas, ao fazê-lo, validou a escolha. Todo amor está ligado à escolha; sem escolha, a palavra amor é sem sentido. [2] Adão e Eva poderiam amar e confiar em Deus o suficiente para obedecer ao seu mandamento sobre a árvore? Deus espera que aqueles que se relacionam com ele sejam capazes de respeitar os limites que trazem o bem à criação.

Nos ambientes de trabalho de hoje, alguns limites continuam a nos abençoar quando os observamos. A criatividade humana, por exemplo, surge tanto dos limites quanto das oportunidades. Os arquitetos encontram inspiração nos limites de tempo, dinheiro, espaço, materiais e propósito impostos pelo cliente. Os pintores encontram expressão criativa aceitando os limites da mídia com a qual escolhem trabalhar, começando com as limitações de representar o espaço tridimensional em uma tela bidimensional. Os escritores encontram brilhantismo quando enfrentam limites de páginas e palavras.

Todo bom trabalho respeita os limites de Deus. Existem limites para a Terra quanto à capacidade de extração de recursos, poluição, modificação de habitats e uso de plantas e animais para alimentação, vestuário e outros fins. O corpo humano tem grande força, resistência e capacidade de trabalho, mas tudo isso é limitado. Há limites para uma alimentação saudável e exercícios físicos. Há limites para distinguir a beleza da vulgaridade, a crítica do abuso, o lucro da ganância, a amizade da exploração, o serviço da escravidão, a liberdade da irresponsabilidade e a autoridade da ditadura. Na prática, pode ser difícil saber exatamente onde está a linha divisória, e deve-se admitir que os cristãos muitas vezes erraram ao agir com conformismo, legalismo, preconceito e uma monotonia sufocante, especialmente ao proclamar o que outras pessoas devem ou não fazer. No entanto, a arte de viver como portadores da imagem de Deus requer de nós que aprendamos a discernir onde as bênçãos podem ser encontradas ao observar os limites estabelecidos por Deus que são evidentes em sua criação.

A obra do “mandato da criação” (Gênesis 1.28, 2.15)

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Ao descrever a criação da humanidade à imagem de Deus (Gn 1.1—2.3) e equipar a humanidade para viver de acordo com essa imagem (Gn 2.4-25), percebemos que Deus criou as pessoas para que exerçam domínio, para que sejam fecundos e se multipliquem, para que recebam a provisão de Deus, para que trabalhem nos relacionamentos e para que observem os limites da criação. Observamos que estes frequentemente têm sido chamados de “mandato da criação” ou “mandato cultural”, com destaque especial para Gênesis 1.28 e 2.15:

Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”. (Gn 1.28)
O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo. (Gn 2.15)

O uso dessa terminologia não é essencial, mas a ideia representada por ela parece clara em Gênesis 1 e 2. Desde o início, Deus planejou que os seres humanos fossem seus parceiros menores na obra de levar sua criação à plenitude. Não está em nossa natureza ficar satisfeitos com as coisas do jeito que estão, receber provisão para nossas necessidades sem trabalhar, suportar a ociosidade por muito tempo, labutar em um sistema de organização não criativa ou trabalhar em isolamento social. Para recapitular, fomos criados para trabalhar como subcriadores em relacionamento com outras pessoas e com Deus, dependendo da provisão de Deus para tornar nosso trabalho frutífero e respeitando os limites dados em sua Palavra e evidentes em sua criação.

As pessoas caem em pecado no trabalho (Gênesis 3.1-24)

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Até este ponto, discutimos o trabalho em sua forma ideal, sob as condições perfeitas do jardim do Éden. Mas então chegamos a Gênesis 3.1-6.

Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: “Foi isto mesmo que Deus disse: ‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’?” Respondeu a mulher à serpente: “Podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas Deus disse: ‘Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem toquem nele; do contrário vocês morrerão’ ”. Disse a serpente à mulher: “Certamente não morrerão! Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como Deus, serão conhecedores do bem e do mal”. Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também. (grifo nosso)

A serpente representa o antideus, o adversário de Deus. Bruce Waltke observa que o adversário de Deus é maligno e mais sábio do que os seres humanos. Ele é perspicaz ao chamar a atenção para a vulnerabilidade de Adão e Eva, mesmo quando distorce o mandamento de Deus. Ele conduz Eva para o que parece ser uma discussão teológica sincera, mas a distorce ao enfatizar a proibição de Deus, em vez de sua provisão com o restante das árvores frutíferas do jardim. Em essência, ele quer que a palavra de Deus soe difícil e restritiva.

O plano da serpente é bem-sucedido e, primeiro, Eva, come do fruto da árvore proibida; depois Adão faz o mesmo. Ambos quebram os limites que Deus havia estabelecido para eles, em uma vã tentativa de se tornar “como Deus” de alguma forma além do que já tinham como portadores da imagem de Deus (Gn 3.5). Já conhecendo por experiência própria a bondade da criação de Deus, eles escolhem se tornar “sábios” nos caminhos do mal (Gn 3.4-6). Tanto Eva como Adão decidiram comer o fruto; são escolhas que favorecem seus próprios gostos pragmáticos, estéticos e sensuais em detrimento da palavra de Deus. O “bem” não está mais enraizado naquilo que Deus diz trazer melhoras para a vida, mas no que as pessoas pensam ser desejável para elevar a vida. Em suma, eles transformam o que é bom em mal. [1]

Ao escolher desobedecer a Deus, eles quebram os relacionamentos inerentes ao seu próprio ser. Primeiro, o relacionamento entre eles — “osso dos meus ossos e carne da minha carne”, como havia sido anteriormente (Gn 2.23) — é quebrado, pois eles se escondem um do outro cobrindo-se com folhas de figueira (Gn 3.7). O próximo passo é o relacionamento deles com Deus, pois não falam mais com ele na brisa do dia, mas se escondem de sua presença (Gn 3.8). Adão rompe ainda mais o relacionamento entre ele e Eva, culpando-a por sua decisão de comer do fruto e, ao mesmo tempo, criticando Deus. “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3.12). Da mesma forma, Eva rompe o relacionamento da humanidade com as criaturas da terra, culpando a serpente por sua própria decisão (Gn 3.13).

As decisões de Adão e Eva naquele dia tiveram resultados desastrosos que se estendem até o ambiente de trabalho moderno. Deus profere juízo contra o pecado deles e declara consequências que resultam em uma labuta difícil. A serpente terá de rastejar sobre o seu ventre todos os seus dias (Gn 3.14). A mulher enfrentará sofrimento ao dar à luz, e também sentirá conflito quanto a seu desejo pelo homem (Gn 3.16). O homem terá de labutar para obter o sustento do solo, e este produzirá “espinhos e ervas daninhas” às custas do grão desejado (Gn 3.17-18). Em suma, os seres humanos ainda farão o trabalho para o qual foram criados, e Deus ainda suprirá suas necessidades (Gn 3.17-19). Mas o trabalho se tornará mais difícil, desagradável e sujeito a falhas e consequências indesejadas.

É importante notar que, quando o trabalho se tornou esforço, não foi o começo do trabalho. Algumas pessoas veem a maldição como a origem do trabalho, mas Adão e Eva já haviam cultivado o jardim. O trabalho não é inerentemente uma maldição, mas a maldição afeta o trabalho. De fato, o trabalho se torna mais importante como resultado da Queda, e não menos, porque é necessário mais trabalho agora para produzir os resultados necessários. Além disso, os materiais originais dos quais Adão e Eva surgiram na liberdade e no prazer de Deus agora se tornam fontes de sujeição. Adão, feito da terra, agora lutará para cultivar o solo até que seu corpo retorne à terra quando morrer (Gn 3.19); Eva, feita de uma costela do lado de Adão, agora estará sujeita ao domínio de Adão, em vez de tomar seu lugar ao lado dele (Gn 3.16). A dominação de uma pessoa sobre outra no casamento e no trabalho não fazia parte do plano original de Deus, mas pessoas pecadoras fizeram disso uma nova maneira de se relacionar quando romperam os relacionamentos que Deus lhes tinha dado (Gn 3.12-13).

Duas formas de mal nos confrontam diariamente. O primeiro é o mal natural, as condições físicas na terra que são hostis à vida que Deus deseja para nós. Inundações e secas, terremotos, tsunamis, calor e frio excessivos, doenças, pragas e coisas semelhantes causam danos que não existiam no jardim. O segundo é o mal moral, quando as pessoas agem com vontades hostis às intenções de Deus. Ao agir de maneira maligna, prejudicamos a criação e nos distanciamos de Deus, e também prejudicamos os relacionamentos que mantemos com outras pessoas.

Vivemos em um mundo caído e quebrado e não podemos esperar uma vida sem esforço. Fomos feitos para o trabalho, mas, nesta vida, esse trabalho é manchado por tudo o que foi quebrado naquele dia no jardim do Éden. Isso também é muitas vezes o resultado de não respeitarmos os limites que Deus estabelece para nossos relacionamentos, sejam pessoais, corporativos ou sociais. A Queda criou alienação entre as pessoas e Deus, entre as pessoas e, ainda, entre as pessoas e a terra que deveria sustentá-las. A suspeita mútua substituiu a confiança e o amor. Nas gerações que se seguiram, a alienação alimentou ciúme, raiva e até assassinato. Todos os ambientes de trabalho hoje refletem essa alienação entre os trabalhadores — em maior ou menor grau — tornando nosso trabalho ainda mais penoso e menos produtivo.

Pessoas trabalham em meio a uma criação caída (Gênesis 4—8)

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Quando Deus expulsa Adão e Eva do Jardim do Éden (Gn 3.23-24), eles trazem consigo seus relacionamentos rompidos e seu trabalho árduo, esboçando uma existência em solo resistente. No entanto, Deus continua a prover-lhes o necessário, a ponto de costurar roupas para eles, quando eles mesmos não têm habilidade (Gn 3.21). A maldição não destruiu sua capacidade de se multiplicar (Gn 4.1-2) ou de alcançar certa medida de prosperidade (Gn 4.3-4).

O trabalho de Gênesis 1 e 2 continua. Ainda há terreno a ser cultivado e fenômenos da natureza a serem estudados, descritos e nomeados. Homens e mulheres ainda devem ser frutíferos, ainda devem se multiplicar, ainda devem governar. Mas agora, uma segunda camada de trabalho também deve ser realizada — a obra de curar, reparar e restaurar as coisas que dão errado e os males que são cometidos. Para colocar isto em um contexto contemporâneo, ainda é necessário o trabalho de agricultores, cientistas, parteiras, pais, líderes, e cada um em empreendimentos criativos. Mas o mesmo vale para o trabalho de policiais, médicos, agentes funerários, agentes penitenciários, auditores forenses e todos aqueles em profissões que restringem o mal, previnem desastres, reparam danos e restauram a saúde. Na verdade, o trabalho de todos é uma mistura de criação e reparo, encorajamento e frustração, sucesso e fracasso, alegria e tristeza. Grosso modo, há agora o dobro de trabalho a fazer do que havia no jardim. O trabalho não é menos importante para o plano de Deus, mas ainda é mais importante.

O primeiro assassinato (Gênesis 4.1-25)

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Gênesis 4 detalha o primeiro assassinato, quando Caim mata seu irmão Abel em um ataque de ciúmes. Ambos os irmãos trazem o fruto de seu trabalho como oferta a Deus. Caim é agricultor e traz alguns frutos da terra, sem indicação no texto bíblico de que este seja o primeiro ou o melhor de seus produtos (Gn 4.3). Abel é pastor e traz as “primeiras crias”, os melhores, as “as partes gordas” de seu rebanho (Gn 4.4). Embora ambos estejam produzindo alimentos, eles não estão trabalhando nem adorando juntos. O trabalho não é mais um lugar de bons relacionamentos.

Deus olha com favor para a oferta de Abel, mas não para a de Caim. Nessa primeira menção à ira na Bíblia, Deus adverte Caim a não entrar em desespero, mas a dominar seu ressentimento e trabalhar por um resultado melhor no futuro. “Se você fizer o bem, não será aceito?”, o Senhor lhe pergunta (Gn 4.7). Mas Caim cede à sua ira e mata seu irmão (Gn 4.8; cf. 1Jo 3.12 ; Jd 11 ). Deus responde à ação com estas palavras:

“Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão. Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo”. (Gn 4.10-12)

O pecado de Adão não trouxe a maldição de Deus sobre as pessoas, mas apenas sobre a terra (Gn 3.17). O pecado de Caim traz a maldição da terra sobre o próprio Caim (Gn 4.11). Ele não pode mais cultivar o solo, e Caim, o lavrador, torna-se um fugitivo errante, finalmente se estabelecendo na terra de Node, a leste do Éden, onde constrói a primeira cidade mencionada na Bíblia (Gn 4.16-17). (Veja Gn 10—11 para saber mais sobre o tema das cidades.)

O restante do capítulo 4 segue os descendentes de Caim por sete gerações até Lameque, cujos atos tirânicos fazem seu ancestral Caim parecer inofensivo. Lameque nos mostra um endurecimento progressivo no pecado. Primeiro vem a poligamia (Gn 4.19), violando o propósito de Deus para o casamento em Gênesis 2.24 (cf. Mt 19.5-6). Depois, uma vingança o leva a matar alguém que apenas o golpeou (Gn 4.23-24). No entanto, em Lameque também vemos o início da civilização. A divisão do trabalho — que causou problemas entre Caim e Abel — traz aqui uma especialização que possibilita certos avanços. Alguns dos filhos de Lameque criam instrumentos musicais e usam ferramentas de bronze e ferro (Gn 4.21-22). A capacidade de criar música, de fabricar os instrumentos para tocá-la e de desenvolver avanços tecnológicos na metalurgia estão todos dentro do escopo dos criadores que fomos criados para ser à imagem de Deus. As artes e as ciências são um desdobramento digno do mandato da criação, mas o elogio de Lameque sobre seus atos cruéis aponta para os perigos que acompanham a tecnologia em uma cultura depravada e inclinada à violência. O primeiro poeta humano após a queda celebra o orgulho humano e o abuso de poder. No entanto, a harpa e a flauta podem ser redimidas e usadas no louvor a Deus (1Sm 16.23), assim como a metalurgia, que entrou na construção do tabernáculo hebraico (Êx 35.4-19,30-35).

À medida que as pessoas se multiplicam, elas começam a divergir. Por meio de Sete, Adão tinha esperança de uma semente piedosa, que incluía Enoque e Noé. Mas, com o tempo, surge um grupo de pessoas que se afastam dos caminhos de Deus.

Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas, e escolheram para si aquelas que lhes agradaram. Então disse o Senhor: “Por causa da perversidade do homem, meu Espírito não contenderá com ele para sempre; ele só viverá cento e vinte anos”. Naqueles dias, havia nefilins na terra, e também posteriormente, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas lhes deram filhos. Eles foram os heróis do passado, homens famosos. O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. (Gn 6.1-5)

O que a linhagem piedosa de Sete — por fim restrita apenas a Noé e sua família — poderia fazer contra uma cultura tão depravada que levaria Deus a tomar a decisão de destruí-la completamente?

Para muitos cristãos hoje, uma grande preocupação no ambiente de trabalho é como observar os princípios que acreditamos refletir a vontade e os propósitos de Deus para nós, como portadores ou representantes de sua imagem. Como podemos fazer isso nos casos em que nosso trabalho nos pressiona para o caminho da desonestidade, deslealdade, mão de obra de baixa qualidade, salários e condições de trabalho degradantes, exploração da vulnerabilidade de colegas de trabalho, clientes, fornecedores ​​ou da comunidade em geral? Pelo exemplo de Sete — e de muitos outros nas Escrituras —, sabemos que há espaço no mundo para as pessoas trabalharem de acordo com o desígnio e o mandato de Deus.

Quando outros podem cair no medo, na incerteza e na dúvida, ou sucumbir ao desejo ilimitado de poder, riqueza ou reconhecimento humano, o povo de Deus pode permanecer firme no trabalho ético, significativo e compassivo, porque confiamos em Deus para nos ajudar a superar as dificuldades que se mostram difíceis de lidar sem a graça de Deus. Quando as pessoas são abusadas ou prejudicadas pela ganância, injustiça, ódio ou negligência, podemos defendê-las, fazer justiça e curar feridas e divisões, porque temos acesso ao poder redentor de Cristo. Os cristãos, dentre todas as pessoas, podem se dispor a lutar contra o pecado que encontramos em nossos ambientes de trabalho, quer ele surja das ações de outras pessoas ou de nosso próprio coração. Deus anulou o projeto em Babel porque “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6); as pessoas não se referiam às nossas habilidades reais, mas à nossa arrogância. No entanto, pela graça de Deus, realmente temos o poder de realizar tudo o que Deus tem reservado para nós em Cristo, que declara que “nada lhes será impossível” (Mt 17.20) e “nada é impossível para Deus” (Lc 1.37).

Será que realmente trabalhamos como se acreditássemos no poder de Deus? Ou desperdiçamos as promessas de Deus simplesmente tentando sobreviver sem causar confusão?

Deus chama Noé e cria um novo mundo (Gênesis 6.9-8.19)

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Algumas situações podem ser resgatáveis. Outras podem estar além da redenção. Em Gênesis 6.6-8, ouvimos o lamento de Deus sobre o estado do mundo e da cultura pré-diluvianos, bem como sua decisão de começar de novo:

Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e isso cortou-lhe o coração. Disse o Senhor: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, os homens e também os grandes animais e os pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito”. A Noé, porém, o Senhor mostrou benevolência.

De Adão até nós, Deus procura pessoas que possam se posicionar contra a cultura do pecado, quando necessário. Adão falhou no teste, mas gerou a linhagem de Noé, “homem justo, íntegro entre o povo da sua época; ele andava com Deus” (Gn 6.9). Noé é a primeira pessoa cuja obra é principalmente redentora. Ao contrário de outros, que estão ocupados tirando a vida do solo, Noé é chamado para salvar a humanidade e a natureza da destruição. Nele vemos o progenitor de sacerdotes, profetas e apóstolos, que são chamados à obra da reconciliação com Deus, e daqueles que cuidam do meio ambiente, que são chamados à obra da natureza redentora. Em maior ou menor grau, todos os trabalhadores, desde Noé, são chamados para a obra de redenção e reconciliação.

E que projeto de construção é a arca! Contrariando as chacotas dos vizinhos, Noé e seus filhos devem derrubar milhares de ciprestes e, com eles, fazer tábuas na quantidade suficiente para construir um zoológico flutuante. Essa embarcação de três andares precisa ter capacidade para transportar as várias espécies de animais e armazenar comida e água necessárias por um período indefinido. Apesar das dificuldades, o texto nos assegura que “Noé fez tudo exatamente como Deus lhe tinha ordenado” (Gn 6.13-22).

No mundo dos negócios, os empreendedores estão acostumados a correr riscos, trabalhando contra a sabedoria convencional para criar novos produtos ou processos. É necessária uma visão de longo prazo, em vez de atenção aos resultados de curto prazo. Noé enfrentou o que às vezes deve ter parecido uma tarefa impossível, e alguns estudiosos da Bíblia sugerem que a construção real da arca levou cem anos. Também é preciso fé, tenacidade e planejamento cuidadoso diante de céticos e críticos. Talvez devêssemos acrescentar o gerenciamento de projetos à lista de desenvolvimentos pioneiros de Noé. Hoje, inovadores, empreendedores e aqueles que desafiam as opiniões e os sistemas predominantes em nossos ambientes de trabalho ainda precisam de uma fonte de força interior e convicção. A resposta não é nos convencermos a correr riscos tolos, é claro, mas recorrer à oração e ao conselho dos sábios em Deus quando formos confrontados com oposição e desânimo. Talvez precisemos de um florescimento de cristãos talentosos e treinados para o trabalho de encorajar e ajudar a refinar a criatividade de inovadores nos negócios, na ciência, na academia, nas artes, no governo e em outras esferas de trabalho.

A história do dilúvio, encontrada em Gênesis 7.1—8.19, é bem conhecida. Por mais de meio ano, Noé, sua família e todos os animais saltitam dentro da arca, enquanto as inundações se alastram, fazendo a arca girar na água que cobria o topo das montanhas. Quando finalmente o dilúvio diminui, o solo está seco e uma nova vegetação está surgindo. Os ocupantes da arca mais uma vez pisam em terra firme. O texto ecoa Gênesis 1, enfatizando a continuidade da criação. Deus sopra um “vento” sobre “as profundezas” e “as águas” retrocedem (Gn 8.1-3). No entanto, em certo sentido, aquele era um mundo novo, remodelado pela força do dilúvio. Deus estava dando à cultura humana uma nova oportunidade de começar do zero e acertar. Para os cristãos, isso prenuncia o novo céu e a nova terra em Apocalipse 21—22, quando a vida e o trabalho humanos são levados à perfeição dentro do cosmos, curados dos efeitos da Queda, como discutimos em "Deus traz à existência o mundo material” (Gn 1.1-2).

O que pode ficar menos aparente é que este, o primeiro trabalho de engenharia em larga escala da humanidade, é um projeto ambiental. Apesar — ou talvez como resultado — do relacionamento rompido da humanidade com a serpente e todas as criaturas (Gn 3.15), Deus atribui a um ser humano a tarefa de salvar os animais e confia nele para fazê-lo fielmente. As pessoas não estavam isentas do chamado de Deus para dominar “sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.28). Deus está sempre trabalhando para restaurar o que foi perdido na Queda, e ele usa como seu principal instrumento a humanidade — caída sim, mas em restauração.

A aliança de Deus com Noé (Gênesis 9.1-19)

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Mais uma vez em terra firme, diante de um novo começo, o primeiro ato de Noé é construir um altar ao Senhor (Gn 8.20). Aqui ele oferece sacrifícios que agradam a Deus, e Deus resolve nunca mais destruir a humanidade: “Enquanto durar a terra, plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite jamais cessarão” (Gn 8.22). Deus estabelece uma aliança com Noé e seus descendentes, prometendo nunca mais destruir a terra por meio de um dilúvio (Gn 9.8-17). Deus coloca o arco-íris como um sinal de sua promessa. Embora a Terra tenha novamente mudado de maneira radical, os propósitos de Deus para o trabalho permanecem os mesmos. Ele repete sua bênção e seu mandato a Noé e seus filhos: “Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra” (Gn 9.1). Ele afirma sua promessa de provisão de alimento por meio do trabalho (Gn 9.3). Em troca, estabelece requisitos para a justiça entre os seres humanos e para a proteção de todas as criaturas (Gn 9.4-6).

A palavra hebraica traduzida como “arco-íris” refere-se simplesmente a um arco — uma ferramenta de batalha e caça. Waltke observa que, nas mitologias antigas do Oriente Próximo, estrelas em forma de arco eram associadas à raiva ou hostilidade do deus, mas que “aqui o arco do guerreiro está pendurado, apontado para longe da terra ”. [1] Meredith Kline observa que “o símbolo da belicosidade e da hostilidade divinas foi transformado em um símbolo de reconciliação entre Deus e o homem”. [2] O arco em posição de descanso se estende da terra ao céu, de horizonte a horizonte. Um instrumento de guerra tornou-se um símbolo de paz por meio da aliança de Deus com Noé.

A queda de Noé (Gênesis 9.20-29)

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Depois de seu trabalho heróico em nome da humanidade, Noé cai em um incidente doméstico preocupante. Tudo começa — como muitas tragédias em casa e no ambiente de trabalho — com o abuso de substâncias, neste caso o álcool. (Adicione a produção de bebidas alcoólicas à lista de inovações de Noé; Gn 9.20.) Depois de ficar bêbado, Noé desmaia nu em sua tenda. Seu filho, Cam, entra ali e o vê nesse estado, mas seus outros filhos — alertados por Cam — entram na tenda de costas para a tenda e cobrem o pai sem olhar para a sua nudez. É difícil para a maioria dos leitores modernos entender exatamente o que há de tão vergonhoso ou imoral nessa situação, mas ele e seus filhos entendem claramente que é um desastre familiar. Quando Noé recupera a consciência e fica ciente do acontecido, sua resposta destrói permanentemente a tranquilidade da família. Noé amaldiçoa os descendentes de Cam por meio de Canaã e os torna escravos dos descendentes dos outros dois filhos. Isso prepara o terreno para milhares de anos de inimizade, guerra e atrocidades entre a família de Noé.

Noé pode ser a primeira pessoa de grande estatura a cair em desgraça, mas não foi a última. Algo na grandeza parece tornar as pessoas vulneráveis ​​ao fracasso moral — especialmente, ao que parece, na vida pessoal e familiar. Em um instante, todos nós poderíamos citar uma dúzia de exemplos no cenário mundial. O fenômeno é comum o suficiente para gerar provérbios, tanto bíblicos — “O orgulho vem antes da destruição; o espírito altivo, antes da queda” (Pv 16.18) — quanto coloquiais — “Quanto mais alto, maior é a queda”.

Noé sem dúvida, é uma das grandes figuras da Bíblia (Hb 11.7), portanto, nossa melhor resposta não é julgar Noé, mas pedir a graça de Deus para nós mesmos. Se nos encontrarmos buscando grandeza, é melhor buscar primeiro a humildade. Se nos tornamos grandes, é melhor implorar a Deus a graça de escapar do destino de Noé. Se caímos, assim como Noé, vamos confessar rapidamente e pedir às pessoas ao nosso redor que nos impeçam de transformar uma queda em um desastre por meio de nossas reações autojustificadas.

Os descendentes de Noé e a torre de Babel (Gênesis 10.1—11.32)

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No capítulo chamado de Origem dos Povos, Gênesis 10 traça primeiro os descendentes de Jafé (Gn 10.2-5), depois os descendentes de Cam (Gn 10.6-20) e, finalmente, os descendentes de Sem (Gn 10.21-31). Entre eles, o neto de Cam, Ninrode, se destaca por sua importância para a teologia do trabalho. Ninrode funda um império de pura agressão com base na Babilônia. Ele é um tirano, um poderoso caçador a ser temido e, o que é mais significativo, um construtor de cidades (Gn 10.8-12).

Com Ninrode, o tirânico construtor de cidades, ainda presente em nossa memória, chegamos à construção da torre de Babel (Gn 11.1-9). Babel, como muitas cidades no antigo Oriente Próximo, foi projetada como uma área murada de um grande templo ou zigurate, uma torre de tijolos de barro em forma de escada, projetada para alcançar o reino dos deuses. Com tal torre, as pessoas poderiam ascender aos deuses, e os deuses poderiam descer à terra. Embora Deus não condene esse desejo de alcançar os céus, vemos nele a ambição de autoexaltação e o pecado crescente do orgulho que leva essas pessoas a começarem a construir uma torre tão poderosa. “Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra” (Gn 11.4). O que eles queriam? Fama. O que eles temiam? Ser dispersos sem a segurança de um grande grupo. A torre que eles imaginaram construir parecia enorme para eles, mas o narrador de Gênesis sorri enquanto nos diz que era tão insignificante que Deus “desceu para ver a cidade e a torre” (Gn 11.5). Quão diferente da cidade de paz, ordem e virtude, que são os propósitos de Deus para o mundo. [1]

A objeção de Deus à torre é que ela dará às pessoas a expectativa de que “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6). Assim como Adão e Eva antes deles, eles pretendem usar o poder criativo que possuem como portadores da imagem de Deus para agir contra os propósitos de Deus. Nesse caso, eles planejam fazer o contrário do que Deus ordenou no mandato cultural. Em vez de encher a terra, eles pretendem se concentrar aqui em um único local. Em vez de explorar a plenitude do nome que Deus lhes deu — Adão, “humanidade” (Gn 5.2) —, eles decidem fazer um nome para si mesmos. Deus vê que sua arrogância e ambição estão fora dos limites e diz: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros” (Gn 11.7). Então, “o Senhor os espalhou dali por toda a face de toda a terra, e eles pararam de construir a cidade. Por isso, foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de toda a terra; e dali o Senhor os dispersou por toda a face de toda a terra” (Gn 11.8-9).

Podemos ser tentados a concluir, a partir deste estudo, que as cidades são inerentemente ruins, mas não é bem assim. Deus deu a Israel uma capital, Jerusalém, e a morada final do povo de Deus é a cidade santa de Deus que desce do céu (Ap 21.2). O conceito de “cidade” não é mau, mas o orgulho que podemos vir a atribuir às cidades é o que desagrada a Deus (Gn 19.12-14). Pecamos quando olhamos para o triunfo cívico e a cultura, e não para Deus, como nossa fonte de significado e direção. Bruce Waltke conclui sua análise de Gênesis 11 nestas palavras:

A sociedade sem Deus é totalmente instável. Por um lado, as pessoas buscam sinceramente significado existencial e segurança em sua unidade coletiva. Por outro lado, elas têm um apetite insaciável para consumir o que os outros possuem... No coração da cidade do homem está o amor a si mesmo e o ódio a Deus. A cidade revela que o espírito humano não se deterá em nada menos que usurpar o trono de Deus no céu. [2]

Embora possa parecer que o fato de Deus ter dispersado as pessoas é uma punição, na verdade, é também um meio de redenção. Desde o início, Deus pretendia que as pessoas se dispersassem pelo mundo. “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra” (Gn 1.28). Ao dispersar as pessoas após a queda da torre, Deus as colocou de volta no caminho de encher a terra, o que resultou na bela variedade de povos e culturas que a povoam hoje. Se as pessoas tivessem completado a torre sob uma singularidade de intenções maliciosas e tirania social, com o resultado de que “nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6), só podemos imaginar os horrores que teriam enfrentado em seu orgulho e força do pecado. A amplitude do mal operado pela humanidade nos séculos 20 e 21 dá um mero vislumbre do que as pessoas poderiam fazer se todas as coisas fossem possíveis sem depender de Deus. Como Dostoievski disse: “Sem Deus e a vida futura, isso significa que tudo é permitido”. [3] Às vezes, Deus não nos deixa seguir nosso caminho porque sua misericórdia para conosco é grande demais.

O que podemos aprender com o incidente da torre de Babel para nosso trabalho hoje? A ofensa específica que os construtores cometeram foi desobedecer à ordem de Deus de se espalhar e encher a terra. Eles centralizaram não apenas suas moradias geográficas, mas também sua cultura, sua língua e suas instituições. Em sua ambição de fazer uma grande coisa (“nosso nome será famoso”; Gn 11.4), eles reprimiram a amplitude do esforço que deveria vir com a variedade de dons, serviços, atividades e funções com os quais Deus dota as pessoas (1Co 12.4-11). Embora Deus queira que as pessoas trabalhem juntas para o bem comum (Gn 2.18 ; 1Co. 12.7), ele não nos criou para realizá-lo por meio da centralização e do acúmulo de poder. Ele advertiu o povo de Israel contra os perigos de concentrar o poder em um rei (1Sm 8.10-18). Deus preparou para nós um rei divino, Cristo, nosso Senhor, e sob ele não há lugar para grande concentração de poder em indivíduos, instituições ou governos humanos.

Portanto, podemos esperar que lideranças e instituições cristãs tenham o cuidado de dispersar a autoridade e favorecer a coordenação, objetivos e valores comuns e a tomada de decisões democráticas, em vez da concentração de poder. Mas, em muitos casos, os cristãos buscaram algo diferente, o mesmo tipo de concentração de poder que tiranos e autoritários buscam, embora com objetivos mais benevolentes. Dessa forma, os legisladores cristãos buscam o mesmo controle sobre a população, embora com o objetivo de impor a piedade ou a moralidade. Dessa forma, os empresários cristãos buscam o oligopólio tanto quanto os outros, embora com o objetivo de melhorar a qualidade, o atendimento ao cliente ou o comportamento ético. Dessa forma, os educadores cristãos buscam tão pouca liberdade de pensamento quanto os educadores autoritários, embora com a intenção de impor a expressão moral, a bondade e a sã doutrina.

Por mais louváveis ​​que sejam todos esses objetivos, os acontecimentos da torre de Babel sugerem que eles são muitas vezes perigosamente equivocados (mais tarde, a advertência de Deus a Israel sobre os perigos de ter um rei ecoa essa sugestão; veja 1Sm 8.10-18). Em um mundo em que mesmo aqueles que estão em Cristo ainda lutam contra o pecado, a ideia de Deus sobre o bom domínio (da parte de seres humanos) parece ser dispersar pessoas, poder, autoridade e capacidades, em vez de concentrá-los em uma pessoa, instituição, partido ou movimento. É claro que algumas situações exigem o exercício decisivo do poder por uma pessoa ou um pequeno grupo. Um piloto seria tolo se aceitasse o voto de um passageiro para escolher em qual pista pousar. Mas será que, com mais frequência do que imaginamos, quando estamos em posições de poder, Deus está nos chamando para dispersar, delegar, autorizar e treinar outros, em vez de exercer o poder sozinhos? Agir assim pode ser confuso, ineficiente, difícil de medir, arriscado e levar à ansiedade. Mas pode ser exatamente o que Deus espera que os líderes cristãos façam em muitas situações.

Conclusões de Gênesis 1—11

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Nos capítulos iniciais da Bíblia, Deus cria o mundo e nos traz para nos juntarmos a ele em mais criatividade. Ele nos cria à sua imagem para exercer domínio, ser frutíferos e multiplicar, receber sua provisão, trabalhar em relacionamento com ele e com outras pessoas e observar os limites de sua criação. Ele nos equipa com recursos, habilidades e comunidades para cumprir essas tarefas, e nos dá o padrão de trabalhar por elas em seis dos sete dias da semana. Ele nos dá a liberdade de fazer essas coisas por amor a ele e à sua criação, o que também nos dá a liberdade de não fazer as coisas para as quais ele nos criou. Para nosso prejuízo duradouro, os primeiros seres humanos escolheram violar o mandato de Deus, e as pessoas continuam a escolher a desobediência — em maior ou menor grau — até os dias atuais. Como resultado, nosso trabalho tornou-se menos produtivo, mais penoso e menos satisfatório, e nossos relacionamentos e nosso trabalho diminuíram e, às vezes, até foram destrutivos.

No entanto, Deus continua a nos chamar para trabalhar, nos equipando e suprindo nossas necessidades. E muitas pessoas têm a oportunidade de fazer um trabalho bom, criativo e gratificante, que supra suas necessidades e contribua para uma comunidade próspera. A Queda tornou o trabalho que começou no jardim do Éden mais necessário, não menos. Embora os cristãos às vezes tenham entendido mal isso, Deus não respondeu à Queda se retirando do mundo material e confinando seus interesses ao espiritual, e não é possível divorciar o material e o espiritual. O trabalho, incluindo os relacionamentos que o permeiam e os limites que o abençoam, continua sendo um presente de Deus para nós, mesmo que seja severamente prejudicado pelas condições de existência após a Queda.

Ao mesmo tempo, Deus está sempre trabalhando para redimir sua criação dos efeitos da Queda. Gênesis 4—11 começa a história de como o poder de Deus está trabalhando para ordenar e reordenar o mundo e seus habitantes. Deus é soberano sobre o mundo criado e sobre toda criatura viva, humana ou não. Ele continua a cuidar de sua própria imagem na humanidade. Mas ele não tolera os esforços humanos para ser “como Deus” (Gn 3.5), a fim de adquirir poder excessivo ou substituir o relacionamento com Deus pela autossuficiência. Aqueles que, como Noé, recebem o trabalho como um dom de Deus e fazem o possível para trabalhar de acordo com sua direção encontram bênçãos e frutos em seu trabalho. Aqueles que, como os construtores da torre de Babel, tentam alcançar o poder e o sucesso em seus próprios termos encontram violência e frustração, especialmente quando seu trabalho se volta para prejudicar os outros. Como todos os personagens desses capítulos de Gênesis, enfrentamos a escolha de trabalhar com Deus ou em oposição a ele. Como a história da obra de Deus para redimir sua criação terminará é algo que não é contado no livro de Gênesis, mas sabemos que, em última análise, leva à restauração da criação — incluindo a obra das criaturas de Deus — como Deus planejou desde o início.

Para leitura adicional

Mark Biddle, Missing the Mark: Sin and Its Consequences in Biblical Theology (Nashville, TN: Abingdon Press, 2005).

Walter Brueggemann, Genesis (Atlanta: John Knox, 1982).

Victor Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (Grand Rapids: Eerdmans, 1990).

Walter Kaiser Jr., Toward Old Testament Ethics (Grand Rapids: Zondervan, 1983).

Thomas Keiser, Genesis 1-11: Its Literary Coherence and Theological Message (Eugene, OR: Wipf & Stock, 2013).

John Mason, “Biblical Teaching and Assisting the Poor,” Interpretation 4, no.2 (1987).

John Mason and Kurt Schaefer, “The Bible, the State, and the Economy: A Framework for Analysis,” Christian Scholar’s Review 20, no. 1 (1990).

Kenneth Mathews, The New American Commentary: Vol. 1A Genesis 1-11.26 (Nashville: Broadman and Holman, 1996).

Gerhard von Rad, Genesis rev. edn. (London: SCM, 1972).

Bruce Vawter, On Genesis: A New Reading (New York: Doubleday, 1977).

John Walton, The NIV Application Commentary: Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 2001).

Claus Westermann, Genesis 1-11 (Minneapolis: Augsburg, 1984).

Albert Wolters, Creation Regained (Grand Rapids: Eerdmans, 2005).

Christopher Wright, Old Testament Ethics for the People of God (Leicester: Inter-Varsity Press, 2004).