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Salmos e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Psalms bible commentary

Introdução aos Salmos

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O livro de Salmos pode ser visto, em partes, como hinário, livro de orações, literatura sapiencial e antologia de poemas sobre Israel e Deus. Sua gama de assunto é surpreendentemente ampla. Por um lado, proclama louvor pelo Deus Altíssimo e lhe dirige orações (Sl 50.14-15) e, por outro, abrange experiências humanas tão íntimas quanto lamentar a perda de uma mãe (Sl 35.14). O livro dos Salmos é distinto no Antigo Testamento, pois a maior parte consiste em pessoas falando com Deus. Em outros lugares, o Antigo Testamento retrata principalmente Deus falando com as pessoas (como na Lei e nos Profetas), ou então é uma narrativa.

Embora tenham milhares de anos, praticamente todos os salmos, de uma forma ou de outra, refletem nossas próprias lutas e alegrias de hoje. Seja qual for o assunto de um salmo em particular, cada um dá voz às emoções que sentimos ao lidar com os problemas da vida. Alguns salmos capturam nosso deleite em Deus, à medida que experimentamos a presença divina conosco em uma situação difícil que teve um bom final. Outros expressam emoções cruas de raiva ou tristeza em uma luta para entender por que Deus não agiu como esperávamos que agisse, enquanto os ímpios continuam triunfando (Sl 94.3). Em alguns, Deus fala. Em outros, Deus está em silêncio. Alguns encontram uma solução, enquanto outros nos deixam com perguntas sem resposta.

Os salmos não foram todos escritos por uma só pessoa e nem ao mesmo tempo, como indica a variedade de atribuições em seus títulos descritivos. De fato, o estudo da autoria do livro dos Salmos — bem como suas datas de composição, contextos, propósitos, usos e transmissão — é um campo importante nos estudos bíblicos. As ferramentas da crítica da forma e da análise literária comparativa (especialmente comparações com a literatura ugarítica) têm grande presença nos estudos de Salmos. [1] Não tentaremos nos aprofundar nesses estudos em geral, mas contaremos com essas pesquisas, conforme necessário, para nos ajudar a entender e aplicar os salmos ao trabalho.

O trabalho nos salmos

Ao longo dos 150 salmos, o trabalho aparece com regularidade. Às vezes, o interesse dos salmos pelo trabalho está na ética individual, incluindo integridade e obediência a Deus em nosso trabalho, maneiras de lidar com oponentes e a ansiedade sobre o aparente sucesso de pessoas antiéticas. Outros salmos se interessam pela ética das organizações — sejam elas tão pequenas quanto uma família, ou tão grandes quanto uma nação. Há alguns temas modernos aos quais esses salmos se aplicam, como ética nos negócios, maneiras de lidar com a pressão institucional, globalização e as consequências de falhas no ambiente de trabalho e transgressões nacionais. Outro tema importante relacionado ao trabalho em Salmos é a presença de Deus conosco em nosso trabalho. Aqui encontramos tópicos como a orientação de Deus, a criatividade humana fundamentada em Deus (que sustenta toda a produtividade), a importância de fazer um trabalho verdadeiramente valioso e a graça de Deus em nosso trabalho. Os salmos têm um interesse particular no trabalho envolvido no casamento, na criação dos filhos e no cuidado dos pais. Por trás de todos os tópicos específicos está a proclamação dos Salmos sobre a glória de Deus em toda a criação. A grande variedade de temas relacionados ao trabalho em Salmos não é surpresa.

Os cinco livros de Salmos

A característica estrutural mais óbvia do Saltério é sua divisão em cinco livros: Livro 1 (Sl 1—41), Livro 2 (Sl 42—72), Livro 3 (Sl 73—89), Livro 4 (Sl 90—106) e Livro 5 (Sl 107—150). As razões e a história dessa divisão não são totalmente conhecidas. O Livro 1 concentra-se fortemente nas experiências de Davi, e o Livro 2 fala de Davi e do seu reino. O Livro 3 é mais sombrio, com muitas lamentações e reclamações. O livro termina no Salmo 89 com a aliança davídica em frangalhos e a nação em ruínas. O Livro 4 fala sobriamente da mortalidade humana (Sl 90), mas também fala triunfantemente de Deus como o grande rei que governa tudo (Sl 93; 95—99). O Livro 5 é mais variado, mas termina em celebração, pois as nações e toda a criação adoram o Deus de Israel (veja Sl 148).

Assim, vemos um movimento geral que vai do homem Davi para o reino de Davi, então mostra a proximidade do fim da dinastia de Davi, seguido pelo louvor do próprio Deus como rei da terra e, finalmente, o triunfo do reino de Deus. Isso dá uma direção narrativa ao Saltério como um todo. Mas muitos salmos da coleção não se encaixam nesse arranjo. Até certo ponto, o motivo da ordem atual dos salmos permanece um mistério. Se existe uma estrutura única e grandiosa, ou não a entendemos completamente ou ela não é seguida rigidamente.

Estratégias interpretativas para os Salmos

A natureza singular dos salmos pode tornar difícil entendê-los em seu contexto original, assim como sua aplicação à vida e ao trabalho de hoje. Salmos é uma coleção altamente diversificada, por isso fica difícil qualquer generalização. Devemos estudar os salmos como fonte de instrução? Lê-los como relatos históricos? Orar ou cantá-los individualmente ou com outras pessoas? A própria Bíblia não nos dá a resposta a essas perguntas. Antes de nos aprofundarmos na aplicação dos salmos ao trabalho, precisamos desenvolver estratégias interpretativas que nos ajudem a tirar o máximo proveito dos salmos.

Nossa abordagem aqui será explorar uma seleção de salmos escolhidos porque parecem dizer algo significativo sobre o trabalho ou algo significativo sobre a vida que se aplica significativamente ao trabalho. Na prática, isso geralmente quer dizer que os salmos foram selecionados porque os colaboradores, o comitê diretor ou os revisores do Projeto Teologia do Trabalho os consideraram particularmente significativos em seu próprio estudo ou experiência. Esse é um método de seleção reconhecidamente não sistemático. O comentário resultante não pretende ser exaustivo, nem mesmo necessariamente certo. Em vez disso, pretende ser uma série de exemplos de como grupos ou indivíduos cristãos podem empregar fielmente os salmos, à medida que buscam integrar sua fé e seu trabalho.

Livro 1 (Salmos 1—41)

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O livro 1 consiste em grande parte de salmos falados por Davi individualmente, e não por Israel como nação. Eles abordam assuntos que dizem respeito a Davi pessoalmente, e isso os torna aplicáveis ​​às situações que enfrentamos no trabalho por conta própria. Livros posteriores destacam os aspectos sociais e comunitários da vida e do trabalho.

Integridade pessoal no trabalho (Salmos 1)

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Os dois salmos iniciais estabelecem temas que percorrem todo o saltério. O salmo 1 descreve a integridade pessoal, indicando que é assim que todo leitor deve viver. Aplica isso especificamente ao trabalho e ao nosso desejo de sucesso. Ele diz que o justo “é como árvore plantada à beira de águas correntes: Dá fruto no tempo certo e suas folhas não murcham. Tudo o que ele faz prospera!” (Sl 1.3). O trabalho feito de maneira ética tende a prosperar. Essa é uma verdade geral e não uma regra infalível. Às vezes, as pessoas sofrem por agirem eticamente, no trabalho ou em qualquer outro lugar. Mas ainda é verdade que as pessoas que temem a Deus e são íntegras provavelmente se sairão bem. Isso ocorre porque eles vivem com sabedoria e porque a bênção de Deus está sobre eles.

Obediência a Deus (Salmos 2)

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O salmo 2 centra-se na casa de Davi. Deus escolheu este reino e seu templo, Sião, para serem o foco do reino de Deus. Algum dia, os gentios se submeterão a ele ou enfrentarão a ira de Deus. Assim, Salmos 2.11-12 diz: “Adorem o Senhor com temor; exultem com tremor. Beijem o filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de repente, pois num instante acende-se a sua ira. Como são felizes todos os que nele se refugiam!”. Jesus cumpriu as promessas feitas a Davi. Para nós, a lição é que devemos valorizar o Reino de Cristo acima de todas as coisas. Uma boa ética de trabalho é valiosa, mas não podemos fazer da prosperidade nossa prioridade. Não podemos servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6.24).

Trazendo nossos inimigos e oponentes a Deus (Salmos 4; 6; 7; 17)

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Depois dos salmos 1 e 2, o Livro 1 tem muitos salmos nos quais Davi reclama com Deus sobre seus inimigos. Esses salmos podem ser difíceis para os leitores de hoje, visto que Davi às vezes parece vingativo. Mas não devemos ignorar o fato de que, quando os inimigos estão ao seu redor, ele entrega o problema a Deus. Ele não procura resolver o assunto com suas próprias mãos.

Esses salmos têm aplicação no ambiente de trabalho. Frequentemente, conflitos e rivalidades aparecerão entre as pessoas no trabalho e, às vezes, essas brigas podem ser cruéis. Disputas no trabalho podem levar à depressão e à perda de sono. Salmos 4.8 é uma oração sobre inimigos pessoais, e diz: “Quando vocês ficarem irados, não pequem; ao deitar-se reflitam nisso, e aquietem-se”. Quando entregamos um assunto a Deus, podemos ter tranquilidade. Quando estamos no meio de uma batalha como essa, no entanto, nossas orações por ajuda podem parecer fúteis. Mas Deus ouve e responde: “Afastem-se de mim todos vocês que praticam o mal, porque o Senhor ouviu o meu choro” (Sl 6.8). Por outro lado, devemos ter o cuidado de manter nossa integridade em meio a tais conflitos. De nada adianta clamarmos a Deus se estivermos sendo mesquinhos, desonestos ou antiéticos no trabalho. “Senhor, meu Deus, se assim procedi, se nas minhas mãos há injustiça, se fiz algum mal a um amigo ou se poupei sem motivo o meu adversário, persiga-me o meu inimigo até me alcançar, no chão me pisoteie e aniquile a minha vida, lançando a minha honra no pó” (Sl 7.3-5). Salmos 17.3 faz o mesmo.

Autoridade (Salmos 8)

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O salmo 8 é uma exceção no Livro 1, pois não se refere especificamente a Davi. Sua preocupação é com toda autoridade humana, não apenas o governo de Davi. Embora Deus tenha criado todo o universo (Sl 8.1-3), ele escolheu designar seres humanos para governar a criação (Sl 8.5-8). Este é um chamado elevado. “Tu o fizeste um pouco menor do que os seres celestiais e o coroaste de glória e de honra. Tu o fizeste dominar sobre as obras das tuas mãos; sob os seus pés tudo puseste” (Sl 8.5-6). Quando exercemos autoridade e liderança, fazemos isso como representantes de Deus. Nosso governo não pode ser arbitrário ou egoísta, mas deve servir aos propósitos de Deus. O principal deles é cuidar das criaturas da terra (Sl 8.7-8) e proteger os fracos e vulneráveis, especialmente as crianças (Sl 8.2).

Se conquistamos autoridade no trabalho, é tentador encarar nossa posição como uma recompensa por nosso trabalho árduo ou nossa inteligência e explorar nossa autoridade para ganho pessoal. Mas o salmo 8 nos lembra que a autoridade não vem como uma recompensa, mas como uma obrigação. É certo que devemos prestar contas aos superiores, aos conselhos de administração, aos curadores, aos eleitores ou a quaisquer outras formas terrenas de governança sob as quais servimos, mas isso por si só não é suficiente. Também devemos prestar contas a Deus. Os líderes políticos, por exemplo, têm o dever de prestar atenção à melhor ciência ambiental e econômica disponível ao considerar a política energética, esteja ela de acordo ou não com os ventos políticos atuais. Da mesma forma, os líderes empresariais são chamados a prever e evitar possíveis danos às crianças — sejam eles físicos, mentais, culturais ou espirituais — causados ​​por seus produtos e serviços. Isso se aplica não apenas a brinquedos, filmes, televisão e alimentos, mas também a varejo, transporte, telecomunicações e serviços financeiros, entre outros.

Ética nos negócios (Salmos 15; 24; 34)

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O Saltério diz muito sobre ética no ambiente de trabalho. Em Salmos 15.1,5 lemos: “Senhor, quem habitará no teu santuário? Quem poderá morar no teu santo monte? [... Aquele] que não empresta o seu dinheiro visando lucro nem aceita suborno contra o inocente. Quem assim procede nunca será abalado!”. Se admitirmos que os juros não são necessariamente proibidos no contexto contemporâneo (veja “A Bíblia proíbe a cobrança de juros?” em www.teologiadotrabalho.org), a aplicação desse salmo é que não devemos tirar vantagem dos outros no ambiente de trabalho. Empréstimos que aumentam as dívidas dos mutuários em dificuldades seriam um exemplo, assim como os cartões de crédito que intencionalmente aprisionam titulares inexperientes com taxas inesperadas e aumentos nas taxas de juros. Em um sentido mais amplo, qualquer produto ou serviço que tenha como alvo pessoas vulneráveis ​​(ou “inocentes”) e as deixe em situação pior é uma violação da ética do Saltério. A boa ética nos negócios — e suas contrapartes em outros campos de trabalho — exige que os clientes se beneficiem genuinamente dos bens e serviços oferecidos a eles.

Salmos 24.4-5 acrescenta a isso que Deus aceita “aquele que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por deuses falsos. Ele receberá bênçãos do Senhor, e Deus, o seu Salvador lhe fará justiça”. A falsidade descrita aqui é perjúrio. Como no mundo moderno, também no mundo antigo era difícil se envolver em negócios sem, às vezes, ser envolvido em ações judiciais. A passagem nos leva a testemunhar honestamente e a não perverter a justiça por meio de fraude. Quando outros são inescrupulosos, nossa honestidade pode custar em promoções perdidas, transações comerciais, eleições, notas e publicações. Mas, a longo prazo, tais contratempos são triviais em comparação com a bênção e a justiça recebidas de Deus (Sl 24.5).

A ética também vem à tona em Salmos 34.12-13: “Quem de vocês quer amar a vida e deseja ver dias felizes? Guarde a sua língua do mal e os seus lábios da falsidade”. Isso pode se referir a qualquer tipo de engano, calúnia ou fraude. A referência a “dias felizes” simplesmente aponta que, se você enganar as pessoas ou caluniá-las, provavelmente criará inimigos. Em casos extremos, isso pode levar à sua morte nas mãos deles, mas, mesmo que não seja, a vida cercada por inimigos não é agradável. Se a vida é seu principal desejo, amigos confiáveis ​​são muito mais lucrativos do que ganhos ilícitos. É possível que uma vida de integridade seja onerosa em termos mundanos. Em um país corrupto, um empresário que não dá subornos ou um funcionário público que não os aceita podem ser incapazes de obter uma renda estável. “O justo passa por muitas adversidades”, reconhece o salmo, “mas o Senhor o livra de todas”, acrescenta (Sl 34.19). Trabalhar com integridade pode ou não resultar em prosperidade, mas a integridade aos olhos de Deus é sua própria recompensa.

Confiando em Deus diante da pressão institucional (Salmos 20)

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O salmo 20 nos ensina a confiar em Deus em vez de confiar no poder humano, como o poderio militar. “Alguns confiam em carros e outros em cavalos, mas nós confiamos no nome do Senhor, o nosso Deus” (Sl 20.7). Os ativos financeiros, tanto quanto os militares, podem ser a base para uma falsa confiança no poder humano. A propósito, devemos lembrar que, no mundo antigo, apenas os soldados da classe alta tinham cavalos e carros. Os soldados comuns seriam recrutados entre os camponeses e estariam a pé. É uma realidade perturbadora que a riqueza e o poder, mesmo que modestos, muitas vezes nos afastam de Deus.

A presença de Deus em nossas lutas no trabalho (Salmos 23)

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“O Senhor é o meu pastor” (Sl 23.1). Se confiarmos em Deus, teremos a tranquilidade de saber que Deus cuida de nós, como um pastor cuida de suas ovelhas. Este é um lembrete para vermos nosso trabalho da perspectiva de Deus — não principalmente como um instrumento para nossa gratificação, mas como nossa parte na missão de Deus no mundo. “Guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome” (Sl 23.3, ênfase adicionada). Trabalhamos para honrá-lo e não para nossa própria glória — um lembrete poderoso que precisamos ouvir regularmente.

Uma perspectiva tão piedosa sobre nosso trabalho geralmente nos leva para nosso trabalho mais profundamente, não para longe dele. No salmo 23, vemos isso na maneira como a narrativa do salmo é impulsionada pelos detalhes do trabalho de pastoreio. Os pastores encontram água, boas pastagens e caminhos no deserto. Eles afastam os predadores com varas e cajados e confortam as ovelhas com suas palavras e sua presença. O salmo 23 é, antes de tudo, uma representação precisa do trabalho do pastor. Isso lhe dá a base necessária na realidade para ser significativo como meditação espiritual.

Embora procuremos honrar a Deus em nosso trabalho, isso não significa que o caminho será fácil. Às vezes, podemos nos encontrar no “vale de trevas” (Sl 23.4). Isso pode acontecer de várias maneiras, como a perda de um contrato, uma tarefa acadêmica que deu errado ou sentimentos de isolamento e falta de sentido em nosso trabalho. Ou pode vir como uma luta de longo prazo, como um ambiente de escritório tóxico ou a incapacidade de encontrar um emprego. Essas são coisas que preferimos evitar. Mas o salmo 23 nos lembra que Deus está próximo em todas as circunstâncias. “Não temerei perigo algum, pois tu estás comigo” (Sl 23.4a). O trabalho de Deus em nosso favor não é hipotético, mas tangível e real. Um pastor tem uma vara e um cajado, e Deus tem todos os instrumentos necessários para nos conduzir em segurança mesmo no pior da vida (Sl 23.4b). Deus cuidará de nós, mesmo em um mundo às vezes hostil, em que estamos “à vista dos meus inimigos” (Sl 23.5). É fácil lembrar disso quando as coisas estão calmas, mas aqui somos chamados a lembrar disso em meio ao desafio e à adversidade. Embora muitas vezes nem queremos pensar nisso, é por meio dos desafios de nossa vida que Deus opera seus propósitos em nós.

O salmo 23 conclui lembrando-nos do destino de nossa jornada com Deus. “E voltarei à [ou ‘habitarei na’] casa do Senhor enquanto eu viver” (Sl 23.6b). Como no Salmo 127 e em outros lugares, a casa ou o lar não é apenas um abrigo onde as pessoas comem e dormem, mas a unidade básica de trabalho e produção econômica. Assim, habitar na casa do Senhor não significa esperar até morrer para que possamos parar de trabalhar e receber nossa recompensa. Em vez disso, promete que está chegando o tempo em que encontraremos um lugar onde nosso trabalho e nossa vida possam prosperar. A primeira metade do versículo nos diz diretamente que essa é uma promessa para nossa vida presente e para a eternidade. “A bondade e a fidelidade me acompanharão todos os dias da minha vida” (Sl 23.6). A promessa de que Deus estará conosco, trazendo bondade e amor em todas as circunstâncias de nossa vida e trabalho, é um tipo de conforto mais profundo do que jamais poderemos obter ao esperar evitar todas as adversidades que possam nos acontecer.

A orientação de Deus em nosso trabalho (Salmos 25)

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A vida humana é uma série de escolhas, e muitas delas envolvem vocação. Devemos desenvolver o hábito de levar todas essas decisões a Deus. Lemos em Salmos 25.12: “Quem é o homem que teme o Senhor? Ele o instruirá no caminho que deve seguir”. Como Deus nos ensina o caminho a ser escolhido? O salmo 25 observa várias maneiras, começando com: “Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas; guia-me com a tua verdade e ensina-me” (Sl 25.4-5). Isso requer a leitura regular da Bíblia, a principal maneira pela qual conhecemos os caminhos de Deus e aprendemos sua verdade. Uma vez que conhecemos os caminhos de Deus, precisamos colocá-los em prática, sem precisar de orientação especial de Deus, na maioria dos casos. “Todos os caminhos do Senhor são amor e fidelidade para com os que cumprem os preceitos da sua aliança” (Sl 25.10). Sua aliança e seus decretos são encontrados, é claro, na Bíblia.

“Não te lembres dos pecados e transgressões da minha juventude”, acrescenta Salmos 25.7. Confessar nossos pecados e pedir a misericórdia de Deus é outra maneira de recebermos orientação de Deus. Quando somos honestos com Deus — e conosco mesmos — sobre nossos pecados, isso abre a porta para a orientação de Deus em nosso coração. “Perdoa todos os meus pecados”, o salmo pede (Sl 25.11,18). Quando somos perdoados por Deus, isso nos liberta para parar de tentar justificar a nós mesmos, o que, de outra forma, é uma poderosa barreira à orientação de Deus. Da mesma forma, a humildade em nosso trato com Deus e com as pessoas nos leva além da defensiva que bloqueia a orientação de Deus. “Conduz os humildes na justiça e lhes ensina o seu caminho”, como Salmos 25.9 nos informa.

“Os meus olhos estão sempre voltados para o Senhor”, continua o salmo (Sl 25.15). Recebemos a orientação de Deus quando procuramos evidências sobre as coisas com as quais Deus se importa, como justiça, fidelidade, reconciliação, paz, fé, esperança e amor. (O salmo não cita esses itens específicos, mas são exemplos de outras partes da Bíblia.) “Que a integridade e a retidão me protejam”, diz o texto (Sl 25.21). Integridade significa viver toda a vida sob um conjunto coerente de valores, em vez de, por exemplo, ser honesto e compassivo com nossas famílias, mas enganoso e cruel com nossos clientes ou colegas de trabalho. Pensar claramente sobre como aplicar nossos valores mais elevados no trabalho acaba sendo um meio de orientação de Deus, pelo menos na medida em que nossos valores mais elevados são formados pelas Escrituras e pela fidelidade a Cristo.

Embora esses meios de orientação possam parecer abstratos, eles podem ser muito práticos quando os colocamos em prática em situações de trabalho. A chave é ser específico em nosso estudo da Bíblia, confissão, oração e raciocínio moral. Quando levamos nossas situações reais e específicas de trabalho a Deus e à palavra de Deus, podemos encontrar Deus respondendo com a orientação específica de que precisamos. Para obter mais informações sobre a orientação de Deus em relação à nossa vocação ou chamado no trabalho, veja “Discernindo a orientação de Deus para um tipo específico de trabalho” em Visão geral sobre vocação em www.teologiadotrabalho.org.

Livro 2 (Salmos 42—72)

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Todos nós enfrentamos sentimentos de insegurança, e a ruína financeira está no topo de nossa lista de preocupações. No segundo livro do Saltério, vemos vários textos que se relacionam com os medos que assediam as pessoas e os caminhos a que elas recorrem em busca de ajuda. Assim, aprendemos sobre os verdadeiros e os falsos fundamentos da esperança em um mundo de incertezas.

A presença de Deus em meio ao desastre (Salmos 46)

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Às vezes, o desastre ameaça nosso ambiente de trabalho, o trabalho em si ou nossa sensação de bem-estar. Esses desastres incluem os naturais (furacões, tornados, inundações, tufões, incêndios florestais), os econômicos (recessões, falências, colapso das principais instituições financeiras) e os políticos (mudanças repentinas na política, prioridades, guerra). O salmo 46 destaca a amplitude mundial que um desastre pode levar, e vemos isso hoje na economia global. As decisões cambiais tomadas em Londres e Pequim afetam o preço que os agricultores dos Estados Unidos ou da Indonésia obtêm por suas colheitas. A turbulência política no Oriente Médio pode afetar o preço da gasolina em uma pequena cidade em qualquer lugar do mundo, e isso, por sua vez, por meio de uma cadeia de acontecimentos, pode determinar se um restaurante local continuará funcionando. Mesmo que as economias antigas não fossem tão “globais”, as pessoas sabiam muito bem que aquilo que acontecia entre as nações poderia, mais cedo ou mais tarde, mudar suas vidas. O derretimento da terra implica que algum dia todos os poderes das nações serão vistos como tão efêmeros quanto castelos feitos de cera. A turbulência no mundo significa incerteza para o comércio, o governo, as finanças e todo tipo de trabalho.

Não importa quão grande possa ser o desastre, Deus é ainda maior.

Deus é o nosso refúgio e a nossa fortaleza,
auxílio sempre presente na adversidade.
Por isso não temeremos,
ainda que a terra trema e os montes afundem no coração do mar,
ainda que estrondem as suas águas turbulentas
e os montes sejam sacudidos pela sua fúria. (Sl 46.1-3)

Em meio a circunstâncias difíceis e ameaçadoras, podemos abordar nosso trabalho e nossos colegas de trabalho com calma, confiança e até alegria. Nossa confiança suprema está em Deus, cujo próprio ser fornece um refúgio de força e bem-estar quando nossas forças se esgotam. Não apenas nós individualmente, mas nossas comunidades e o mundo inteiro estão sob a graça de Deus. O desastre global não é páreo para a providência de Deus. Revisar a maneira como Deus cuidou de nós em circunstâncias anteriores — as nossas e as do povo de Deus — nos garante que Deus está conosco no meio da cidade (Sl 46.5) e em todos os lugares da terra (Sl 46.10). Às vezes, podemos até ter o privilégio de servir como um dos meios de Deus para ajudar outras pessoas em meio ao desastre.

Ansiedade quando pessoas sem escrúpulos têm sucesso (Salmos 49; 50; 52; 62)

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Às vezes, os piedosos têm uma perspectiva distorcida sobre como Deus governa, e isso lhes causa ansiedade desnecessária. Eles pensam que os justos devem obviamente se sair bem na vida, enquanto os ímpios obviamente devem cair em ruína. Mas as coisas nem sempre seguem esse roteiro. Quando os ímpios prosperam, os cristãos sentem que o mundo virou de cabeça para baixo e que sua fé se mostrou vã. Salmos 49.16-17 responde o seguinte: “Não se aborreça quando alguém se enriquece e aumenta o luxo de sua casa; pois nada levará consigo quando morrer; não descerá com ele o seu esplendor”. A piedade não garante o sucesso comercial, e a impiedade não garante o fracasso. Aqueles que dedicam sua vida a ganhar dinheiro devem finalmente fracassar, pois fizeram um tesouro de algo que é possível perder (Lc 12.16-21). Veja “Preocupação para os ricos (Lc 6.25; 12.13-21; 18.18-30)” em Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org

Não se trata apenas de os ímpios terem de enfrentar o julgamento de Deus após a morte. Quando alguém que é mau, mas bem-sucedido, finalmente cai em ruínas, as pessoas percebem. Eles entendem a conexão entre como essa pessoa viveu e a calamidade que, em última análise, tomou conta dela. Salmos 52.7 descreve tal situação: ““Veja só o homem que rejeitou a Deus como refúgio; confiou em sua grande riqueza e buscou refúgio em sua maldade!” Por esta razão, Salmos 62.10 nos diz para não buscarmos segurança seguindo o caminho dos ímpios ou na aquisição de riquezas: “Não confiem na extorsão, nem ponham a esperança em bens roubados; se as suas riquezas aumentam, não ponham nelas o coração”. Em tempos difíceis, tendemos a olhar para aqueles que prosperaram por meio de práticas corruptas ou de clientelismo e acreditar que devemos fazer o mesmo, se quisermos escapar da pobreza. Mas, na verdade, apenas garantimos que compartilharemos sua desgraça diante das pessoas e sua condenação diante de Deus.

Por outro lado, se decidirmos confiar em Deus, devemos fazê-lo de forma plena e não superficial. Salmos 50.16 declara: “Mas ao ímpio Deus diz: ‘Que direito você tem de recitar as minhas leis ou de ficar repetindo a minha aliança?’ É uma coisa ruim alguém usar de fraude para ganhar riqueza. É uma coisa terrível fazer isso enquanto finge lealdade a Deus.

Faríamos bem em perguntar o que os outros veem quando observam nosso trabalho e a maneira como o fazemos. Por acaso damos justificativas quando tomamos atalhos éticos, discriminamos ou tratamos mal as pessoas, murmurando que aquilo é “bênção”, “favor” ou “vontade de Deus”? Talvez devêssemos ser mais relutantes em atribuir nossos aparentes sucessos à vontade de Deus e estar mais prontos para dizer simplesmente: “Eu não mereço isso”.

Livro 3 (Salmos 73—89)

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O livro 3 de Salmos contém muita lamentação e queixa. O julgamento divino — positivo e negativo — vem à tona em muitos dos salmos aqui. Contemplar esses salmos nos dá um espelho no qual podemos explorar nossa própria fidelidade — ou a falta dela —, bem como expressar nossos sentimentos reais ao Deus que é capaz de reconciliar tudo consigo mesmo.

As consequências de falhas pessoais no ambiente de trabalho (Salmos 73)

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O salmo 73 retrata uma jornada quádrupla de tentação e fidelidade, desempenhando-a na obra do salmista. [1] No primeiro estágio, ele reconhece que o julgamento favorável de Deus é uma fonte de força. “Certamente Deus é bom para Israel, para os puros de coração” (Sl 73.1). No entanto, rapidamente (estágio dois), ele é tentado a abandonar os caminhos de Deus. “Quanto a mim, os meus pés quase tropeçaram; por pouco não escorreguei. Pois tive inveja dos arrogantes” (Sl 73.2-3). Ele se vê preocupado com o aparente sucesso dos ímpios, que descreve em detalhes obsessivos nos dez versículos seguintes. Ele observa em particular aqueles que “falam com más intenções” e “ameaçam com opressão” (Sl 73.8). Em sua inveja, ele começa a pensar que sua própria integridade havia sido inútil: “Certamente foi-me inútil manter puro o coração” (Sl 73.13), ele diz, observando que chegou ao limite de se juntar aos ímpios (Sl 73.14-15).

No último minuto, porém, ele entra “no santuário de Deus”, o que significa que ele começa a “compreender” as coisas do ponto de vista de Deus (Sl 73.17). Ele vê que Deus fará os ímpios “cair em ruínas” (Sl 73.18). Isso inicia o terceiro estágio, no qual ele vê que o sucesso de pessoas que não têm integridade é apenas temporário. Todos eles, no fim, “são destruídos de repente” e se tornam “como um sonho que se vai quando acordamos” (Sl 73.19-20). Ele percebe que, quando estava pensando em se juntar aos ímpios, ele havia sido “insensato e ignorante” (Sl 73.22). No quarto estágio, ele se compromete novamente com os caminhos de Deus. “Sempre estou contigo”, diz ele, e “tu me diriges com o teu conselho” (Sl 73.23,24).

Também nós, até certo ponto, seguimos essa jornada de quatro estágios? Talvez também comecemos com integridade e fidelidade a Deus. Então, vemos que os outros parecem estar prosperando com engano e opressão. Às vezes, ficamos impacientes com o tempo que Deus está levando para executar seu julgamento. Enquanto Deus demora, os ímpios parecem estar “sempre despreocupados” e “aumentam suas riquezas”, enquanto o justo parece ser “afligido” e “castigado” pela injustiça da vida (Sl 73.12,14). Mas o tempo do julgamento de Deus é assunto do próprio Deus, não nosso. De fato, visto que não somos perfeitos, não devemos ficar ansiosos para que Deus julgue os ímpios.

Quando damos muita atenção ao sucesso imerecido dos outros, ficamos tentados a buscar vantagens injustas para nós mesmos. É especialmente tentador sucumbir a esse impulso no trabalho, onde pode parecer que há um conjunto diferente de regras. Vemos pessoas arrogantes (Sl 73.3) ganharem reconhecimento e intimidarem outros para que lhes deem uma parte indevida das recompensas (Sl 73.6). Vemos pessoas cometerem fraudes, mas prosperarem por anos. Aqueles que têm poder sobre nós no trabalho parecem tolos (Sl 73.7), mas são promovidos. Talvez devêssemos fazer o mesmo. Talvez Deus realmente não saiba ou não se importe com a maneira como agimos (Sl 73.11), pelo menos não no trabalho.

Como o salmista, nosso remédio é lembrar que trabalhar ao lado de Deus — ou seja, estar de acordo com seus caminhos — é um prazer em si mesmo. “Para mim, bom é estar perto de Deus” (Sl 73.28). Quando fazemos isso, nos abrimos novamente ao conselho de Deus e voltamos aos seus caminhos. Por exemplo, pode ser que possamos subir a escada do sucesso mais rapidamente — pelo menos no início — levando o crédito pelo trabalho dos outros, culpando os outros por nossos erros ou fazendo com que outros façam nosso trabalho por nós. Mas a promoção e a renda extra valerão a sensação de vazio e o medo de ser exposto como uma fraude? O sucesso compensará a perda de amizades e a incapacidade de confiar em alguém ao nosso redor? Se cuidarmos das pessoas ao nosso redor, compartilharmos o crédito pelo sucesso e assumirmos nossa parcela de culpa pelos fracassos, pode parecer que começamos mais devagar. Mas nosso trabalho não será mais agradável? E, quando precisarmos de apoio, quando precisarmos de confiança nos colegas de trabalho, e eles em nós, não estaremos em uma posição melhor do que os arrogantes e abusivos? Na verdade, Deus é bom para com os justos.

As consequências econômicas dos erros nacionais (Salmos 81; 85)

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Apesar da atenção ao julgamento pessoal que vimos no salmo 73, na maior parte do livro 3 é a nação de Israel que está sob julgamento. O tópico do julgamento nacional, por si só, é relevante para este artigo, na medida em que estabelece o contexto para as pessoas que realizam seu trabalho naquela nação. Também sugere um tipo importante de trabalho em que os cristãos podem se engajar enquanto representam o Reino de Deus, a saber, a formulação de políticas nacionais. Mas podemos notar que, quando um governo nacional se torna maligno, a economia do país sofre. O salmo 81 é um exemplo disso, pois começa com o julgamento de Deus contra a nação de Israel. “Mas o meu povo não quis ouvir-me; Israel não quis obedecer-me. Por isso os entreguei ao seu coração obstinado, para seguirem os seus próprios planos” (Sl 81.11-12). Em seguida, passa a descrever as consequências econômicas. “Se o meu povo apenas me ouvisse... eu sustentaria Israel com o melhor trigo, e com o mel da rocha eu o satisfaria” (Sl 81.13.16). Aqui, vemos como as violações nacionais da aliança de Deus causam escassez e dificuldades econômicas. Se o povo tivesse sido fiel aos caminhos de Deus, teria experimentado prosperidade. Em vez disso, eles abandonaram os caminhos de Deus e passaram fome (Sl 81.10).

Da mesma forma, o salmo 85 descreve os benefícios econômicos que se acumulam quando Israel é fiel aos mandamentos de Deus. O povo experimenta paz e segurança, trabalho produtivo e maior prosperidade (Sl 85.10-13). Sem um bom governo, nenhum de nós pode esperar prosperidade por muito tempo. Em muitos lugares, os cristãos são altamente visíveis na oposição a políticas governamentais com as quais discordamos, mas também é necessário um engajamento construtivo. O que você pode fazer para ajudar a estabelecer ou preservar um bom governo em sua cidade, região ou nação?

A graça de Deus em meio ao juízo (Salmos 86)

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Embora o julgamento de Deus tenha destaque no livro 3 dos Salmos, também encontramos a graça de Deus. No salmo 86, o salmista implora: “Misericórdia, Senhor”, pois “Tu és bondoso e perdoador, Senhor, rico em graça para com todos os que te invocam” (Sl 86.2,5). O salmo vem de alguém que se sente desgastado pela oposição dos mais poderosos. “Sou pobre e necessitado” (Sl 86.1). “Os arrogantes estão me atacando, ó Deus; um bando de homens cruéis, gente que não faz caso de ti procura tirar-me a vida” (Sl 86.14). “Os meus inimigos” são uma ameaça constante (Sl 86.17). “Salva o filho da tua serva” (Sl 86.16b).

O salmo não reivindica justiça, mas se regozija por Deus ser “muito paciente” (Sl 86.15). O que o salmo pede apenas é a graça de Deus: “Volta-te para mim! Tem misericórdia de mim!” (Sl 86.16a). “No dia da minha angústia clamarei a ti, pois tu me responderás” (Sl 86.7).

Há momentos em que todos nós enfrentamos oposição no trabalho. Às vezes, é algo diretamente pessoal e perigoso. Podemos ser oprimidos por outros, podemos ter culpa ou pode ser uma mistura de ambos. Podemos nos sentir indignos em nosso trabalho, não amados em nossos relacionamentos, incapazes de mudar nossas circunstâncias ou a nós mesmos. Não importa a fonte de oposição a nós — mesmo que tenhamos visto que o inimigo somos nós mesmos — podemos pedir a graça de Deus para nos salvar. A graça de Deus corta a ambiguidade que envolve nossa vida e nosso trabalho e nos mostra um sinal do favor de Deus (Sl 86.17) além do que merecemos.

É claro que Deus não salva ninguém — nem a nós mesmos nem a nossos inimigos — com o propósito de infligir mais danos. Com a graça vem a reforma. “Ensina-me o teu caminho, Senhor, para que eu ande na tua verdade” (Sl 86.11a). A petição do salmista é para si mesmo, mas aceitar a graça de Deus significa nos voltarmos para ele antes de nós mesmos. “Dá-me um coração inteiramente fiel, para que eu tema o teu nome. De todo o meu coração te louvarei, Senhor, meu Deus” (Sl 86.11-12).

Com o coração de Deus, também nos tornamos misericordiosos, mesmo com aqueles que se opõem a nós. O salmo pede que os oponentes “sejam humilhados” (Sl 86.17) pelo ódio que têm, mas que, ao fazê-lo, eles “virão e te adorarão, Senhor” (Sl 86.9), entrando assim na graça de Deus. Graça significa misericórdia não apenas para nós, mas também para nossos oponentes, para que o poder de Deus seja manifesto a seus inimigos, para que seu nome seja glorificado (Sl 86.9).

Livro 4 (Salmos 90—106)

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O Livro 4 de Salmos coloca o quebrantamento do mundo — incluindo a mortalidade humana — no contexto da soberania de Deus. Nenhum de nós é capaz de construir a própria vida — muito menos o mundo inteiro — como deveria ser. Sofremos e não podemos proteger do sofrimento aqueles que amamos. No entanto, Deus continua no comando, e nossa esperança de que todas as coisas sejam corrigidas repousa nele.

Trabalhando em um mundo decaído (Salmos 90; 101)

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O Livro 4 começa com o sombrio Salmo 90. “Fazes os homens voltarem ao pó”; “todos os nossos dias ... vão-se como um murmúrio” (Sl 90.3,9). Esse salmo concentra nossa atenção na dificuldade e na brevidade da vida. “Os anos de nossa vida chegam a setenta, ou a oitenta para os que têm mais vigor; entretanto, são anos difíceis e cheios de sofrimento, pois a vida passa depressa, e nós voamos!” (Sl 90.10). A brevidade da vida obscurece todos os aspectos de nossa vida e trabalho. Temos poucos anos para ganhar o suficiente para sustentar nossa família, economizar algo para tempos de dificuldades ou velhice, contribuir para o bem comum, fazer nossa parte na obra de Deus no mundo. Quando jovens, podemos ser inexperientes demais para conseguir o tipo de trabalho que queremos. Quando envelhecemos, enfrentamos capacidades e habilidades em declínio e, às vezes, discriminação por idade. Nesse meio tempo, ficamos preocupados se estamos no caminho certo o suficiente para alcançar nossos objetivos. O trabalho deveria ser uma colaboração criativa com Deus (Gn 2.19). Mas a pressão do tempo faz com que o trabalho pareça “difícil e cheio de sofrimento”.

O que devemos fazer então? Convide Deus para habitar em nosso trabalho, por mais árduo que possa parecer. “Sejam manifestos os teus feitos [de Deus] aos teus servos... Consolida, para nós, a obra de nossas mãos; consolida a obra de nossas mãos!” (Sl 90.16-17). Isso não significa apenas colocar lembretes de nosso Senhor em nosso ambiente de trabalho. Significa colocar Deus na “obra de nossas mãos”. Isso inclui nossa consciência da presença de Deus no trabalho, nosso reconhecimento do propósito de Deus para nosso trabalho, nosso compromisso de trabalhar de acordo com os princípios de Deus e nosso serviço às pessoas ao nosso redor — que, afinal, são feitas à imagem de Deus (Gn 1.27; 9.6; Tg 3.9).

Salmos 101.2 ilustra como nos tornamos equipados para fazer a obra de Deus. “Seguirei o caminho da integridade; quando virás ao meu encontro? Em minha casa viverei de coração íntegro”. Cultivar um bom caráter diante de Deus e das pessoas é nossa primeira tarefa. Se temos filhos, uma de nossas tarefas é ajudá-los a aprender o conhecimento dos caminhos de Deus e a crescer em um caráter piedoso. Estamos fazendo a obra de Deus quando administramos bem nosso lar e damos a nossos filhos a chance de crescerem fortes e estarem preparados para as dificuldades da vida. Para o niilista e o cínico, a crueldade da vida justifica a imoralidade e o egoísmo. Para o crente, é mais uma razão para cultivar o caráter.

Criatividade humana com Deus (Salmos 104)

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Desde o início, Deus pretendia que o trabalho humano fosse uma forma de criatividade sob ou ao lado da própria criatividade de Deus (Gn 1.26-31; 2.5,15-18). O trabalho humano destina-se a cumprir a intenção criativa de Deus, levar cada pessoa a um relacionamento com outras pessoas e com Deus e glorificar a Deus. O salmo 104 dá uma descrição encantadora dessa parceria criativa. Começa com uma ampla tela da glória da criação de Deus (Sl 104.1-9). Isso leva naturalmente à obra ativa de Deus em sustentar o mundo dos animais, pássaros e criaturas marinhas (Sl 104.10-12,14,16-18,20-22,25). Deus também provê ricamente para os seres humanos (Sl 104.13-15,23). A obra de Deus torna possível a fecundidade da natureza e da humanidade. “Dos teus aposentos celestes regas os montes; sacia-se a terra com o fruto das tuas obras!” (Sl 104.13).

O trabalho dos seres humanos é construir ainda mais, usando o que Deus dá. Temos de colher e usar as plantas. “É o Senhor que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva” (Sl 104.14). Fazemos o vinho e o pão e extraímos o óleo das plantas que Deus faz crescer (Sl 104.15). Deus provê tão ricamente, em parte, povoando sua criação com pessoas que trabalham seis dias por semana. Assim, embora este salmo fale de todas as criaturas que buscam alimento em Deus, e Deus abre sua mão para suprir o necessário (Sl 104.27-28), as pessoas ainda precisam trabalhar com afinco para processar e usar as boas dádivas de Deus. O salmo 104 vai tão longe a ponto de citar algumas das ferramentas usadas para a obra do mundo de Deus: roupas, tendas, vigas, vento, navios (Sl 104.2,3,4,26, respectivamente). Curiosamente, o salmo alegremente atribui o uso de tais ferramentas ao próprio Deus, bem como aos seres humanos. Nós trabalhamos com Deus, e a ampla provisão de Deus vem, em parte, por meio do esforço humano.

Mesmo assim, lembre-se de que somos os parceiros menores na criação de Deus. Assim como em Gênesis, os seres humanos são as últimas criaturas mencionadas no Salmo 104. Mas, diferentemente de Gênesis, entramos em cena aqui com pouca pompa. Somos apenas mais uma das criaturas de Deus, cuidando de seus negócios ao lado do gado, das aves, dos bodes selvagens, dos coelhos e dos leões (Sl 104.14-23). Cada um tem sua atividade própria — para os seres humanos, é trabalho e labuta até a noite — mas, por baixo de cada atividade, é Deus quem fornece tudo o que é necessário (Sl 104.21). O salmo 104 nos lembra que Deus fez sua obra extremamente bem. Nele, nosso trabalho também pode ser feito extremamente bem, se apenas trabalharmos humildemente na força que seu Espírito fornece, cultivando o belo mundo em que ele nos colocou por sua graça.

Livro 5 (Salmos 107—150)

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Os salmos do Livro 5 têm menos tema ou cenário em comum do que os dos outros livros. No entanto, em meio à diversidade de formas e ambientes, o trabalho aparece mais diretamente entre esses salmos do que em outras partes do Saltério. Nestes salmos encontramos questões de criatividade econômica, ética nos negócios, empreendedorismo, produtividade, o trabalho de criar os filhos e administrar uma casa, o uso adequado do poder e a glória de Deus no mundo material e por meio dele.

Deus sustenta todo trabalho e produtividade (Salmos 107)

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O salmo 107 relaciona os esforços econômicos humanos com o mundo da criação de Deus. Vale a pena citar um trecho.

Fizeram-se ao mar em navios, para negócios na imensidão das águas, e viram as obras do Senhor, as suas maravilhas nas profundezas. Deus falou e provocou um vendaval que levantava as ondas. Subiam aos céus e desciam aos abismos; diante de tal perigo, perderam a coragem. Cambaleavam, tontos como bêbados, e toda a sua habilidade foi inútil. Na sua aflição, clamaram ao Senhor, e ele os tirou da tribulação em que se encontravam. Reduziu a tempestade a uma brisa e serenou as ondas. As ondas sossegaram, eles se alegraram, e Deus os guiou ao porto almejado. Que eles deem graças ao Senhor por seu amor leal e por suas maravilhas em favor dos homens. (Sl 107.23-31)

Tanto naquela época quanto agora, as pessoas iam para o mar para pescar e fazer comércio. Seus navios eram frágeis e eles não tinham como prever com antecedência a chegada de uma tempestade. A vida e seus meios de subsistência dependiam do clima. Apesar de nossas vantagens tecnológicas, também dependemos de uma infinidade de fatores que estão além de nosso controle em grande parte de nosso trabalho. Aa coisa mais honesta que alguém pode dizer sobre o sucesso no trabalho talvez seja isso: “Eu tive sorte”. Como Bill Gates observou sobre o incrível sucesso da Microsoft: “Eu nasci no lugar certo e no momento certo”. [1] Para o crente, o fator “sorte” é visto como a provisão constante de Deus para nossas necessidades. Para obter sucesso mesmo com as incertezas inerentes ao nosso trabalho, dependemos um pouco da habilidade (um dom de Deus em si), um pouco do trabalho árduo e muito da providência de Deus. Seja qual for nosso “porto almejado” na vida e no trabalho, que possamos das “graças ao Senhor por seu amor leal e por suas maravilhas em favor dos homens”. Talvez Tiago tivesse esse salmo em mente quando disse: “Vocês devem dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’” (Tg 4.15).

Um pouco mais tarde, o Salmo 107 acrescenta mais ideias sobre isso.

[Deus] transforma o deserto em açudes e a terra ressecada, em fontes. Ali ele assenta os famintos, para fundarem uma cidade habitável, semearem lavouras, plantarem vinhas e colherem uma grande safra. Ele os abençoa, e eles se multiplicam; e não deixa que os seus rebanhos diminuam (Sl 107.35-38).

Deus cria as condições para que a vida prospere na terra. Ele pode transformar um deserto em pastagem (ou uma pastagem em deserto). A agricultura, incluindo a semeadura e o manejo do gado, depende do crescimento dado por Deus. Onde a agricultura prospera, surgem as cidades. Com o surgimento das cidades, todo tipo de trabalho aparece. A economia urbana fornece todos os tipos de bens e serviços a uma população crescente e diversificada. Em uma economia antiga, além de agricultores e pastores, uma comunidade precisaria de oleiros, metalúrgicos e escribas (para registrar acordos e transações comerciais, bem como leis e textos religiosos). Toda a economia de qualquer cidade, passada ou presente, depende da abundância agrícola, seja ela cultivada internamente ou por meio do comércio. Quando o agricultor do mundo pode cultivar mais do que suas necessidades para sua própria subsistência, comunidades complexas podem prosperar. E isso vem de Deus, que rega a terra seca (Sl 65.9, Gn 2.5).

Assim, o salmo 107 abrange a atividade econômica em terra e no mar, e afirma que Deus está acima de tudo. E Deus não é hostil ao nosso trabalho. O salmo fala de como ele salva e provê. Nosso sustento depende do governo beneficente de Deus sobre as forças naturais.

Virtudes para quem está nos negócios (Salmos 112)

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O salmo 112 declara as bênçãos de Deus sobre aquele que “conduz os seus negócios” e “empresta com generosidade” (para usar os termos do versículo 5), de acordo com os mandamentos de Deus. “Grande riqueza há em sua casa”, observa o salmo, e “não temerá más notícias” (Sl 112.3,7). As virtudes que trazem tais bênçãos incluem graça, misericórdia, retidão, generosidade e justiça (Sl 112.4-5). Retidão e justiça podem não nos surpreender. As pessoas querem comprar e vender de empresas que são retas e justas, de modo que se pode esperar que essas virtudes, em geral, tragam prosperidade.

Mas e quanto à misericórdia, compaixão e justiça (v. 4)? Misericórdia pode significar informar um cliente sobre uma solução de custo mais baixo, mesmo que isso traga menos lucro para nós mesmos ou para nossa empresa. Compaixão pode significar dar outra chance a um fornecedor depois que ele perde uma entrega. Justiça pode significar compartilhar especificações com outras pessoas do setor, para que possam criar produtos que operem em conjunto com os nossos — o que é bom para os clientes, mas pode até mesmo criar concorrência para nós mesmos. O salmo 112 diz que essas coisas levam a uma maior prosperidade, não a uma menor, certo? Aparentemente sim. “Reparte generosamente”, diz o salmo, e quem o faz é mais firme, mais seguro, mais estável e, em última análise, mais bem-sucedido do que aquele que não pratica tais virtudes (Sl 112.7-10). O salmo atribui isso ao Senhor (Sl 112.1,7), mas não diz se isso ocorre porque ele intervém em seu favor ou porque criou e manteve o mundo de tal forma que essas virtudes tendem a trazer prosperidade. Talvez ele faça as duas coisas.

Por outro lado, talvez o Senhor abençoe os justos, dando-lhes uma ideia diferente do que é prosperidade. Riquezas e bens estão incluídos (Sl 112.3, como acima), mas o quadro geral inclui muito mais do que riqueza. Terá descendentes prósperos (Sl 112.2), será lembrado (Sl 112.6) e honrado (Sl 112.9), terá relacionamentos estáveis ​​(Sl 112.6), paz sincera (Sl 112.7) e a capacidade de enfrentar o futuro sem medo (Sl 112.8) — tudo isso é igualmente importante na visão de Deus sobre a prosperidade. Será possível que, quando seguimos os mandamentos do Senhor nos negócios, não apenas nossa sorte mude, mas também nossos desejos? Se pudéssemos desejar para nós mesmos o que Deus deseja para nós, não teríamos a garantia de encontrar uma felicidade que duraria para sempre?

Participando da obra de Deus (Salmos 113)

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O salmo 113 nos informa: “Do nascente ao poente, seja louvado o nome do Senhor!” (Sl 113.3). O salmista está sugerindo que devemos ficar no templo (ou na igreja) o dia todo para louvar ao Senhor? Ou está sugerindo que, em tudo o que fizermos, incluindo nosso trabalho diário, o façamos em louvor ao Senhor? Dos versículos 7 a 9, vemos claramente que é a segunda opção. “Ele levanta do pó o necessitado e ergue do lixo o pobre, para fazê-los sentar-se com príncipes, com os príncipes do seu povo” (Sl 113.7-8). Embora o salmo não nos diga como Deus realiza isso, sabemos — assim como o salmista — que geralmente significa por meio do trabalho. A oportunidade de um trabalho bem remunerado tira os pobres da pobreza e, em geral, Deus cria essas oportunidades por meio do trabalho de seu povo — pessoas com negócios que criam oportunidades econômicas, pessoas no governo que garantem justiça, pessoas na educação que incutem as habilidades necessárias para bons empregos. Com sua ênfase em ajudar os pobres e necessitados, o Salmo 113 clama por uma vida inteira de louvor prático a Deus.

Embora o salmo pudesse ter nomeado milhares de tipos de trabalho para ilustrar seu ponto, ele seleciona apenas um: o trabalho de dar à luz e criar filhos “Dá um lar à estéril, e dela faz uma feliz mãe de filhos” (Sl 113.9). Talvez isso ocorra porque a falta de filhos no antigo Israel praticamente condenava uma mulher (e seu marido) à pobreza na velhice. Ou talvez seja por algum outro motivo. De qualquer maneira, isso nos lembra de dois assuntos importantes hoje. Mais obviamente, quando mães (e pais) concebem, alimentam, limpam, protegem, brincam, ensinam, educam, perdoam, treinam e amam as crianças, isso dá trabalho! No entanto, muitas mães sentem que ninguém — nem mesmo a igreja — reconhece que o que elas fazem é tão valioso quanto o trabalho que os outros fazem, porque os outros são pagos. Em segundo lugar, o alívio de Deus para adultos que não têm filhos e para crianças que não tem adultos responsáveis por elas geralmente ocorre por meio do trabalho de outras pessoas. Profissionais médicos podem restaurar a fertilidade. Profissionais de adoção e agentes de assistência social procuram reunir candidatos a pais e crianças que precisam de pais, acompanhando as famílias para fornecer treinamento e supervisão, conforme necessário. Todas as famílias dependem do apoio de uma ampla comunidade de outras pessoas, incluindo o povo de Deus. Para saber mais sobre o trabalho das famílias, consulte “O trabalho do casamento, da criação dos filhos e do cuidado dos pais (Salmos 127; 128; 139)”.

Produzindo verdadeiro valor no trabalho (Salmos 127 e 128)

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Como o salmo 107 fala de atividade econômica em larga escala, assim os salmos 127 e 128 falam do lar, a unidade básica de produção econômica até a época da Revolução Industrial. O salmo 127 começa com um lembrete de que toda boa obra está fundamentada em Deus.

Se não for o Senhor o construtor da casa, será inútil trabalhar na construção. Se não é o Senhor que vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda. Será inútil levantar cedo e dormir tarde, trabalhando arduamente por alimento. O Senhor concede o sono àqueles a quem ele ama. (Sl 127.1-2)

Tanto a “casa” quanto a “cidade” referem-se à mesma coisa: o objetivo de fornecer bens e segurança para os moradores. Em última análise, toda atividade econômica visa permitir que as famílias prosperem. A passagem obviamente afirma que o trabalho diligente por si só não é suficiente (veja Provérbios 26.13-16, que fala sobre preguiça). Além do óbvio, há um significado mais profundo. O trabalho árduo pode produzir uma casa grande e bonita, mas não pode criar um lar feliz. Um empreendedor zeloso pode criar um negócio de sucesso, mas não pode, apenas com o trabalho, criar uma vida boa. Só Deus pode fazer tudo valer a pena.

Na maioria das economias de hoje, o trabalho que não seja a agricultura geralmente não é realizado nas famílias, mas em organizações maiores. Mas a mensagem do salmo 127 se aplica aos ambientes de trabalho institucionalizados de hoje, tanto quanto aos lares antigos. Para prosperar, todo ambiente de trabalho deve produzir algo de valor. Trabalhar horas não é suficiente — o trabalho precisa resultar em bens ou serviços de que os outros precisam.

Os crentes podem oferecer algo de especial significado a esse respeito. Em todos os ambientes de trabalho, há a tentação de produzir itens que possam render muito dinheiro, mas que não ofereçam nenhum valor duradouro. As empresas podem aumentar os lucros — no curto prazo — reduzindo a qualidade dos materiais. Os vendedores podem aproveitar a falta de familiaridade dos compradores para vender produtos e acessórios duvidosos. As instituições educacionais podem oferecer aulas que atraem alunos sem desenvolver capacidades duradouras. E assim por diante. Quanto mais entendermos as necessidades genuínas das pessoas que usam nossos bens e serviços, e quanto mais contribuirmos para o verdadeiro valor do que produzimos, mais poderemos ajudar nossas instituições de trabalho a resistir a essas tentações. Como o verdadeiro valor está, em última análise, fundamentado em Deus, podemos ter uma capacidade única de servir a esse papel. Mas isso deve ser feito com humildade e escuta constante. Não adiantará de nada anunciar em voz alta nossas opiniões imaturas, pois as pessoas ficarão cansadas de nos ouvir.

O trabalho do casamento, da criação dos filhos e do cuidado dos pais (Salmos 127; 128; 139)

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O trabalho presente no casamento, na criação filhos e no cuidado dos pais vem à tona novamente nos salmos 127, 128 e 139. (O trabalho de ter filhos é um elemento importante do Salmo 113; veja “Participando da obra de Deus (Salmos 113)”). “Sua mulher será como videira frutífera em sua casa; seus filhos serão como brotos de oliveira ao redor da sua mesa” (Sl 128.3). Maridos e esposas juntos se envolvem na produção do tipo mais fundamental — a reprodução! É desnecessário dizer que a esposa realiza mais trabalho nessa empreitada do que o marido. Na Bíblia, esse papel não é desprezado — é entendido como essencial para a sobrevivência e foi honrado no antigo Israel. Além da geração de filhos, as esposas normalmente administravam a casa, incluindo a produção doméstica e comercial (Pv 31.10-31).

A Bíblia honra aqueles que navegam pelo mar e aqueles que pastoreiam as ovelhas (ocupações tradicionalmente masculinas), bem como aqueles que administram a casa (uma ocupação tradicionalmente feminina). Hoje, as funções de trabalho são muito menos divididas de acordo com o sexo — exceto a administração da casa da família, que ainda é desempenhada principalmente por mulheres [1] — mas a honra concedida ao casamento e ao trabalho das famílias ainda se aplica.

Como toda forma de trabalho — e ter filhos é trabalho! — ter filhos também vem de Deus. “Tu [Deus] criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe” (Sl 139.13). Da mesma forma, como acontece com qualquer outra forma de trabalho, isso não significa que, quando a tragédia ocorre, é uma punição ou um abandono de Deus. Em vez disso, ter filhos é um ponto da graça comum de Deus para a humanidade em todo o mundo. No ventre, Deus nos cria, e ele nos cria para um propósito. Nosso direito de nascimento é fazer obras de valor para o próprio Deus.

Voltamos ao salmo 127 como elemento final deste tema, isto é, que o trabalho doméstico inclui cuidar daqueles cuja capacidade para o trabalho é diminuída por causa da idade. “Os filhos são herança do Senhor, uma recompensa que ele dá” (Sl 127.3). No mundo antigo, as pessoas não tinham planos de pensão institucionalizados, nem seguro de saúde. À medida que ficavam mais velhos, passavam a ser sustentadas por seus filhos. (O texto fala de “filhos” porque, em geral, as filhas se casavam e entravam na casa das famílias de seus maridos.) Na verdade, os filhos eram o plano de aposentadoria de um casal, e isso unia intimamente as gerações.

Pode parecer difícil colocar o valor da criação dos filhos em termos econômicos. Hoje, podemos nos sentir mais à vontade falando sobre as recompensas emocionais de criar filhos. Seja como for, esse versículo ensina que os adultos precisam de crianças tanto quanto as crianças precisam de adultos, e que as crianças são um presente de Deus, não um fardo. Também nos lembra de todo tipo de investimentos que nossos pais fizeram em nós — emocional, físico, intelectual, criativo, econômico e muito mais. À medida que crescemos e nossos pais passam a depender de nós, é certo que assumamos o trabalho de cuidar deles. Isso pode ser feito de uma variedade de maneiras. O ponto é simplesmente que o mandamento de Deus de honrar nossos pais (Êx 20.12) não é apenas uma questão de atitude, mas também de trabalho e cuidado econômico.

O uso correto do poder (Salmos 136)

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O poder é essencial para a maioria das obras e deve ser exercido corretamente. O salmo 136 expõe o uso adequado do poder, mostrando quatro exemplos de como Deus usa o poder.

O primeiro exemplo vem nos versículos 4-9. Ele mostra o uso do poder de Deus para criar o mundo, visto que ele “com habilidade fez os céus” e “estendeu a terra sobre as águas” (Sl 136.5-6). Isso nos leva de volta a Gênesis 1 — ao Deus da criação, que dá ao mundo tudo o que é preciso para florescer. Mas observe a ordem em que Deus trabalha, primeiro criando sistemas (terra e água, noite e dia, sol e lua) que foram necessários para a sobrevivência de todo o que foi criado posteriormente (plantas, animais terrestres, criaturas que nadam e voam). Deus não criou os animais até que houvesse terra seca e vegetação para sustentá-los. Quando está em nosso poder criar tarefas ou sistemas, o poder é corretamente usado quando criamos ambientes nos quais nós e aqueles ao nosso redor não apenas sobrevivemos, mas prosperamos. Para mais informações sobre a provisão de Deus na criação, veja “ Provisão (Gênesis 1.29-30; 2.8-14) ” em Gênesis 1—11 e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org

O segundo exemplo está em Salmos 136.10-15, quando Deus libertar seu povo da escravidão no Egito. A terceira vem imediatamente depois, quando Deus derruba os reis cananeus que se opõem a Israel em sua jornada para estabelecer a terra prometida (Sl 136.16-22). Juntos, eles nos mostram que Deus usa o poder para libertar as pessoas da opressão e para se opor àqueles que impedem os outros do bem que Deus deseja para eles. Quando nosso trabalho libera outros para cumprirem seu destino no desígnio de Deus, estamos usando o poder da maneira correta. Quando nosso trabalho escraviza novamente os trabalhadores ou se opõe à obra de Deus neles e por meio deles, estamos abusando do poder.

O quarto exemplo vem no final do salmo. Deus “se lembrou de nós quando fomos humilhados ... e nos livrou dos nossos adversários ... [Ele] dá alimento a todos os seres vivos” (Sl 136.23-25). Deus amorosamente reconhece nossa fraqueza e supre nossas necessidades. Quando usamos o poder para fazer um trabalho que beneficie os outros, estamos usando o poder como Deus o usaria.

Finalmente, para o uso adequado do poder, cada versículo do salmo 136 nos lembra de dar graças a Deus, pois “o seu amor dura para sempre”.

A glória de Deus em toda a criação (Salmos 146—150)

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Os cinco salmos finais começam cada um com o grito “Aleluia” (que significa “Louvado seja o Senhor!”). Como nossa pesquisa dos salmos mostrou, o trabalho deve ser uma forma de louvor a Deus. Esses cinco salmos descrevem uma variedade de maneiras pelas quais nosso trabalho pode louvar ao Senhor. Em todas elas, vemos que nosso trabalho está fundamentado na obra do próprio Deus. Quando trabalhamos como Deus deseja, estamos imitando, estendendo e cumprindo a obra de Deus.

Salmo 146

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Deus executa justiça pelos oprimidos (Sl 146.7a). Nós fazemos o mesmo quando trabalhamos de acordo com os mandamentos de Deus, pela graça de Deus. Deus dá comida aos famintos (Sl 146.7b). Nós também. Deus liberta pessoas acorrentadas, assim como fazem os legisladores, advogados, juízes e júris. Deus restaura a visão aos cegos, assim como fazem os oftalmologistas e os oculistas. Deus levanta aqueles que não podem se levantar sozinhos, assim como fazem os fisioterapeutas, enfermeiros, fabricantes de elevadores e pais de crianças (Sl 146.8). O Senhor cuida de estranhos, assim como é feito por policiais e agentes de segurança, comissários de bordo, salva-vidas, inspetores de saúde e forças de paz. Ele cuida de órfãos e viúvas (Sl 146.9), assim como pais adotivos, cuidadores de idosos, advogados de família e assistentes sociais, planejadores financeiros e funcionários de internatos. Louvado seja o Senhor! (Sl 146.10).

Salmo 147

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Deus reúne os exilados (Sl 147.2), assim como as entidades de caridade, os professores nas prisões e os líderes comunitários. Ele cura os quebrantados de coração (Sl 147.3), assim como fazem os conselheiros de luto, casamenteiros, humoristas e cantores de blues. Ele conta as estrelas e lhes dá nomes (Sl 147.4), como fazem os astrônomos, navegadores e contadores de histórias. Ele é abundante em poder (Sl 147.5a), assim como presidentes, CEOs, almirantes, pais e prisioneiros políticos que se tornaram estadistas. Ele tem uma compreensão profunda (Sl 147.5b), assim como professores, poetas, pintores, maquinistas, operadores de sonar e pessoas cujo autismo lhes dá poderes extraordinários de concentração nos detalhes. Ele levanta os oprimidos, assim como ativistas de direitos civis e doadores, e quebra o poder dos ímpios, assim como promotores de justiça, denunciantes e todos aqueles que se afastam das fofocas e defendem colegas de trabalho que são tratados injustamente (Sl 147.6).

Deus prepara a terra para o tempo vindouro (Sl 147.8), assim como meteorologistas, pesquisadores do clima, arquitetos, construtores e controladores de tráfego aéreo. Ele alimenta os animais (Sl 147.9), como fazem fazendeiros e pastores, bem como meninos e meninas nas aldeias rurais. Ele fortalece os portões, protege as crianças e preserva a paz nas fronteiras (Sl 147.13-14a), assim como engenheiros, soldados, despachantes aduaneiros e diplomatas. Ele prepara os melhores alimentos (Sl 147.14b), assim como cozinheiros, chefes de cozinha, padeiros, vinicultores, cervejeiros, agricultores, donas de casa e pessoas com dupla jornada (principalmente as mulheres), blogueiros de receitas, mercearias, caminhoneiros e — do seu próprio jeito — trabalhadores de fast food, atendentes de lanchonetes e cozinheiros de comida congelada. Ele declara sua palavra — seus decretos e ordenanças (Sl 147.19). Louvado seja o Senhor! (Sl 147.20).

Salmo 148

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Ao contrário dos salmos 146, 147 e 149, os salmos 148 e 150 não retratam Deus em ação, mas pulam diretamente para nossa resposta de louvor pelo trabalho que ele já fez. O salmo 148 fala da criação de Deus, como se a própria existência da criação fosse um louvor a Deus. “Louvem o Senhor, vocês que estão na terra, serpentes marinhas e todas as profundezas, relâmpagos e granizo, neve e neblina, vendavais que cumprem o que ele determina, todas as montanhas e colinas, árvores frutíferas e todos os cedros, todos os animais selvagens e os rebanhos domésticos, todos os demais seres vivos e as aves” (Sl 148.7-10). Sua criação torna nosso trabalho frutífero, por isso é apropriado que ofereçamos todo o trabalho que fazemos como louvor a ele. “Moços e moças, velhos e crianças. Louvem todos o nome do Senhor” (Sl 148.12-13). Louvado seja o Senhor! (Sl 148.14).

Salmo 149

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O Senhor tem prazer em cânticos, danças e na música dos instrumentos (Sl 149.2-3), assim como se vê nos músicos, dançarinos, compositores, arranjadores, coreógrafos, compositores de filmes, arquivistas musicais, professores, trabalhadores de organizações artísticas e doadores, membros de corais, musicoterapeutas, bandas, corais e orquestras de estudantes, bandas de garagem, folcloristas, trabalhadores que cantam em seu trabalho, produtores e editores musicais, YouTubers, rappers, letristas, fabricantes de áudio, afinadores de piano, instrumentistas, acústicos, criadores de aplicativos de música e todos os que cantam no chuveiro. Talvez nenhuma forma de esforço humano seja mais universal, embora mais variada, do que fazer música, e tudo isso deriva do amor de Deus pela música.

O Senhor tem prazer em seu povo (Sl 149.4a), assim como todos os bons líderes, membros da família, profissionais de saúde mental, pastores, vendedores, guias turísticos, treinadores, organizadores de festas e todos os que servem aos outros. Se as situações oprimem pessoas ou se sistemas impossibilitam que as pessoas tenham prazer saudável nos outros, o Senhor vence os opressores e reforma os sistemas (Sl 149.4b-9a), assim como é feito por reformadores sociais e corporativos, jornalistas, mulheres e homens comuns que se recusam a aceitar o status quo, psicólogos organizacionais e profissionais de recursos humanos e — se as condições forem extremas e não houver outro caminho — exércitos, marinhas, forças aéreas e seus comandantes. Quando a justiça e o bom governo forem restaurados, a música poderá começar de novo (Sl 149.6). Louvado seja o Senhor! (Sl 149.9b).

Salmo 150

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O salmo final retorna à música como nossa resposta aos “feitos poderosos” de Deus, sobre as quais toda a nossa atividade e todo trabalho se baseiam. Louve a Deus com trombetas, liras, harpas, tamborins, cordas, flautas, címbalos — tanto sonoros quanto retumbantes — e dançando. Vindo como o clímax de cinco canções cheias de trabalho, e como o fim último de toda a coleção de salmos, temos a impressão de que a música é realmente um trabalho muito importante. Não a música em si, no entanto, mas porque nos permite louvar ao Senhor mais alto. Podemos entender isso literal e metaforicamente. Da perspectiva literal, podemos considerar a música, a dança e as outras artes com um pouco mais de consideração do que o habitual na comunidade cristã, que nem sempre é receptiva à música (exceto dentro de limites bem claros) e às artes (em geral). Ou, pelo menos, podemos manter nossa própria música e arte em uma estima um pouco maior. Se não conseguimos encontrar tempo para expressar nossa própria criatividade artística, é possível que estejamos perdendo o valor das canções que Deus coloca em nosso coração?

Metaforicamente, será que o salmo 150 está nos convidando a fazer nosso trabalho como se fosse um tipo de música? Todos nós provavelmente poderíamos ter mais harmonia em nossos relacionamentos, um ritmo mais constante de trabalho e descanso, uma atenção à beleza do trabalho que fazemos e das pessoas com quem trabalhamos. Se pudéssemos ver a beleza em nosso trabalho, será que isso nos ajudaria a superar os desafios do trabalho, como tentações éticas, tédio, relacionamentos ruins, frustração e, às vezes, baixa produtividade? Por exemplo, imagine que você está tão frustrado com seu chefe que se sente tentado a parar de fazer seu trabalho da melhor maneira. Ajudaria se você pudesse ver a beleza em seu trabalho além do relacionamento com seu chefe? Que tipo de beleza seu trabalho traz ao mundo? Que beleza Deus vê no que você faz? Isso é suficiente para sustentá-lo em tempos difíceis ou para levá-lo a fazer as mudanças necessárias em seu trabalho ou na maneira como o faz?

De qualquer forma, não importa como percebamos nosso trabalho, Deus deseja que nosso trabalho o louve. Os 150 salmos da Bíblia cobrem todos os aspectos da vida e da obra, desde os terrores mais sombrios até as esperanças mais brilhantes. Alguns falam de morte e desespero, outros de prosperidade e esperança. Mas a conclusão final do livro dos Salmos é o louvor. “Tudo o que tem vida louve o Senhor! Aleluia!” (Sl 150.6).