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Fé e trabalho antes do exílio — Oseias, Amós, Obadias, Joel, Miqueias

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Faith work before the exile

Oseias, Amós, Obadias, Joel e Miqueias exerceram sua atividade no século 8, quando o estado se encontrava bem desenvolvido, mas a economia em declínio. As camadas superiores cresceram em poder e riqueza, gerando uma classe cada vez mais desfavorecida. Existem algumas evidências de uma tendência ao cultivo comercial como forma de atender à crescente demanda urbana por alimentos. Isso provocou o efeito desestabilizador de reduzir a disseminação do risco inerente a uma agricultura de subsistência, suplantada. [1] As comunidades agrícolas tornaram-se vulneráveis ​​às variações anuais na produção e, por conseguinte, as cidades ficaram sujeitas a variações imprevisíveis no suprimento de alimentos (Am 4.6-9). Quando os profetas desse período começam a falar, os dias de glória dos suntuosos projetos de construção e da expansão territorial já haviam passado. Tais circunstâncias produzem um terreno fértil para a corrupção por parte daqueles desesperados por manter o poder e a riqueza, cada vez menores, além de abrir uma crescente lacuna entre ricos e pobres. Como resultado, os profetas de Deus desse período têm muito a dizer ao mundo do trabalho.

Deus exige mudanças (Oseias 1.1-9; Miqueias 2.1-5)

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Deus atribui ao povo como um todo a culpa pela corrupção de Israel. Eles haviam abandonado a aliança de Deus, o que não apenas rompe sua conexão com Deus como também as justas estruturas sociais da lei de Deus, levando diretamente à corrupção e ao declínio econômico. “Prostituição” é o termo que os profetas costumavam usar para descrever o rompimento da aliança por parte de Israel (por exemplo, Jr 3.2; Ez 23.7). Para dramatizar a situação, Deus toma a metáfora literalmente e ordena ao profeta Oseias que “tome uma mulher adúltera e filhos da infidelidade, porque a nação é culpada do mais vergonhoso adultério por afastar-se do Senhor” (Os 1.2). Oseias obedece à ordem de Deus, casa-se com uma mulher chamada Gômer, que aparentemente se encaixa no requisito, e com ela tem três filhos (Os 1.3). Resta-nos imaginar como deve ter sido construir um lar e criar filhos com uma “mulher adúltera”.

Embora os profetas usem imagens de prostituição e adultério, Deus está acusando Israel de corrupção econômica e social, não de imoralidade sexual.

Ai daqueles que planejam maldade, dos que tramam o mal em suas camas! Quando alvorece, eles o executam, porque isso eles podem fazer. Cobiçam terrenos e se apoderam deles; cobiçam casas e as tomam. Fazem violência ao homem e à sua família; a ele e aos seus herdeiros (Mq 2.1-2).

Isso faz da situação familiar de Oseias um exemplo dramático para aqueles que hoje trabalham em ambientes corruptos ou imperfeitos. Deus colocou Oseias deliberadamente em uma situação familiar difícil e corrupta. Será que hoje Deus coloca pessoas deliberadamente em locais de trabalho corruptos e difíceis? Embora possamos buscar um emprego confortável em um empregador de boa reputação, desenvolvendo uma atividade respeitável, talvez fôssemos capazes de realizar muito mais pelo reino de Deus trabalhando em lugares moralmente comprometidos. Se você abomina a corrupção, poderia combatê-la melhor trabalhando como advogado em uma empresa de prestígio ou como inspetor de obras em uma cidade dominada por corruptos? Não há respostas fáceis, mas o chamado de Deus a Oseias sugere que fazer diferença no mundo é mais importante para Deus que mantermos as mãos limpas. Como disse Dietrich Bonhoeffer em meio ao domínio nazista na Alemanha: “A principal questão para um homem responsável não é como livrar-se heroicamente do caso, mas como a próxima geração deve viver”. [1]

Deus viabiliza a mudança (Oseias 14.1-9; Amós 9.11-15; Miqueias 4.1-5; Obadias 1.21)

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O mesmo Deus que exige mudanças também promete viabilizá-la. “Foi determinada uma colheita para quando eu trouxer de volta o meu povo” (Os 6.11—7.1). Os Doze Profetas carregam o otimismo fundamental de que Deus está ativo no mundo a fim de mudá-lo para melhor. Apesar do aparente triunfo dos ímpios, Deus está no comando e “o reino será do Senhor” (Ob 1.21). Apesar da calamidade que as próprias pessoas trazem sobre si, Deus trabalha para restaurar a bondade na vida e no trabalho, como pretendia desde o início. “Ele é misericordioso e compassivo, muito paciente e cheio de amor” (Jl 2.13). Os oráculos finais de Joel, Oseias e Amós (Os 14; Am 9.11-15) ilustram isso em termos explicitamente econômicos.

As eiras ficarão cheias de trigo; os tonéis transbordarão de vinho novo e de azeite. [...] Vocês comerão até ficarem satisfeitos, e louvarão o nome do Senhor, o seu Deus, que fez maravilhas em favor de vocês; nunca mais o meu povo será humilhado. (Jl 2.24,26)
Os que habitavam à sua sombra voltarão. Reviverão como o trigo. Florescerão como a videira, e a fama de Israel será como a do vinho do Líbano. (Os 14.7)
Trarei de volta Israel, o meu povo exilado, eles reconstruirão as cidades em ruínas e nelas viverão. Plantarão vinhas e beberão do seu vinho; cultivarão pomares e comerão do seu fruto. (Am 9.14)

A palavra de Deus para seu povo em tempos de dificuldades econômicas e sociais expressa sua intenção de restaurar a paz, a justiça e a prosperidade caso o povo viva de acordo com os preceitos de sua aliança. O meio que ele usará é o trabalho de seu povo.

Responsabilidade individual e social pelo trabalho injusto (Miqueias 1.1-7; 3.1-2; 5.10-15)

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Apesar das intenções de Deus, o trabalho está sujeito ao pecado humano. O caso mais flagrante é o trabalho intrinsicamente pecaminoso. Miqueias menciona a prostituição — talvez, no caso, a prostituição cultual — e promete que os ganhos advindos dela serão queimados (Mq 1.7). Uma aplicação direta disso seria descartar a prostituição como ocupação legítima, mesmo que ela possa ser uma escolha compreensível para aqueles que não têm outra maneira de sustentar a si ou sua família. Há outros trabalhos que também levantam a questão sobre se devem ou não ser realizados. Sem dúvida, todos podemos pensar em vários exemplos, e os cristãos fariam bem em buscar um trabalho que beneficiasse o outro e a sociedade como um todo.

Mas Miqueias está falando a Israel como um todo, não só a indivíduos. Ele está criticando uma sociedade cujas condições sociais, econômicas e religiosas viabilizam a prostituição. A questão aqui não está em se “é aceitável ganhar a vida como prostituta”, mas “que tipo de mudança deve ocorrer na sociedade a fim de eliminar a necessidade de alguém realizar um trabalho degradante ou prejudicial”. Miqueias pede explicações não tanto àqueles que se sentem forçados a fazer um trabalho sórdido, mas aos líderes que falham em realizar mudanças na sociedade. Suas palavras são contundentes. “Ouçam, vocês que são chefes de Jacó, governantes da nação de Israel. Vocês deveriam conhecer a justiça! Mas odeiam o bem e amam o mal; arrancam a pele do meu povo e a carne dos seus ossos” (Mq 3.1-2).

Nossa sociedade é diferente daquela de Miqueias, e os remédios específicos que Deus promete ao antigo Israel não são necessariamente o que Deus pretende hoje. As palavras proféticas de Miqueias refletem a conexão entre a prostituição ritual e os cultos idólatras de sua época. Deus promete acabar com os abusos sociais centrados nos santuários idólatras. “Destruirei as suas imagens esculpidas e as suas colunas sagradas; vocês não se curvarão mais diante da obra de suas mãos. Desarraigarei do meio de vocês os seus postes sagrados e derrubarei os seus ídolos” (Mq 5.13-14). Hoje, precisamos da sabedoria de Deus para encontrar soluções eficazes para as questões sociais que levam ao trabalho pecaminoso e opressivo. Ao mesmo tempo, tal como os profetas de Israel, precisamos chamar as pessoas a se arrependerem de seu envolvimento voluntário em trabalhos pecaminosos. “Busquem o bem, não o mal, para que tenham vida. Então o Senhor, o Deus dos Exércitos, estará com vocês, conforme vocês afirmam” (Am 5.14).

Trabalhar injustamente (Oseias 4.1-10; Joel 2.28-29)

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Quando os profetas falam de prostituição, raramente estão preocupados apenas com esse tipo específico de trabalho. Em geral, também a usam como uma metáfora para a injustiça, que por definição significa infidelidade à aliança de Deus (Os 4.7-10). Em um lembrete genérico de que o salário pode ser ganho injustamente, Amós acusa os comerciantes que usam produtos inferiores, peso adulterado e outras formas de engano para obter lucro às custas de consumidores vulneráveis. Eles dizem a si mesmos: “Quando acabará a lua nova para que vendamos o cereal? E, quando terminará o sábado, para que comercializemos o trigo, diminuindo a medida, aumentando o preço, enganando com balanças desonestas e comprando o pobre com prata e o necessitado por um par de sandálias, vendendo até palha com o trigo?” (Am 8.5-6).

Muitas formas legítimas de ganhar a vida podem se tornar injustas pela maneira como são realizadas. Um fotógrafo deve tirar fotos de qualquer coisa que um cliente peça, sem levar em conta seu efeito sobre o objeto e os espectadores? Um cirurgião deve realizar qualquer tipo de cirurgia eletiva pela qual um paciente esteja disposto a pagar? Um agente financeiro imobiliário é responsável por certificar-se de que um mutuário tenha capacidade de honrar o empréstimo sem maiores dificuldades? Se nosso trabalho é uma forma de serviço a Deus, não podemos ignorar essas questões. No entanto, precisamos ter cuidado para não presumir uma hierarquia de atividades. Os profetas não estão alegando que alguns tipos de trabalho são mais piedosos que outros, mas que todo tipo de trabalho deve ser feito de modo a contribuir para a obra de Deus no mundo. “Até sobre os servos e as servas derramarei do meu Espírito naqueles dias” (Jl 2.29).

A justiça de Deus inclui justiça econômica e laboral (Amós 8.1-6, Miqueias 6.1-16)

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A justiça no trabalho não é apenas uma questão individual. As pessoas têm a responsabilidade de garantir que todos na sociedade tenham acesso aos recursos necessários para ganhar a vida. Amós critica a injustiça de Israel nesse quesito, mais intensamente ao aludir à lei da respiga. Respiga é o processo de colher os grãos que caem e permanecem no campo após a passagem das colheitadeiras. De acordo com a aliança de Deus com Israel, os agricultores não tinham permissão de respigar os próprios campos, em vez disso deveriam permitir que pessoas pobres (literalmente “o órfão e a viúva”) recolhessem os grãos caídos como um meio de sustento (Dt 24.19). Essa prática gerou uma forma rudimentar de bem-estar social, com vistas a gerar uma oportunidade de trabalho para os pobres (ao respigar os campos), em vez de mendigarem, roubarem ou passarem fome. A respiga é uma maneira de participar da dignidade do trabalho, mesmo para aqueles que não podem fazer parte do mercado de trabalho devido à falta de recursos, ao posicionamento socioeconômico, a discriminação, deficiência ou outros fatores. Deus não apenas quer que as necessidades de todos sejam atendidas, como também deseja oferecer a todos a dignidade de trabalhar para atender às próprias necessidades e às dos outros.

Amós reclama que essa disposição está sendo violada. Os agricultores não estão disponibilizando os grãos caídos em seus campos a fim de que os pobres os recolham (Mq 7.1-2). Em vez disso, eles se oferecem para vender palha — os resíduos deixados após a debulha — aos pobres por um preço absurdo. “Vocês que pisam os pobres e arruínam os necessitados da terra”, Amós os acusa, “vendendo até palha com o trigo” (Am 8.4,6). Amós os acusa pela espera ansiosa pelo fim do sábado para que possam continuar vendendo esse alimento barato e adulterado àqueles que não têm outra escolha (Am 8.5). Mais que isso, estão enganando até mesmo os que podem comprar grãos puros, como fica evidente no uso de balanças manipuladas no mercado. “Para que comercializemos o trigo, diminuindo a medida”, gabam-se eles. Miqueias proclama o juízo de Deus contra o comércio injusto. “Poderia alguém ser puro com balanças desonestas e pesos falsos?”, pergunta o Senhor (Mq 6.11). Isso nos diz claramente que a justiça não é apenas uma questão de direito penal e expressão política, mas também de oportunidade econômica. A oportunidade de trabalhar para atender às necessidades individuais e familiares é essencial para o papel do indivíduo que faz parte da aliança. A justiça econômica é um componente essencial da famosa e sonora proclamação de Miqueias feita apenas três versículos antes: “Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus” (Mq 6.8). Deus exige de seu povo — como uma questão diária de sua caminhada com ele — que ame a bondade e seja justo individual e coletivamente, em todos os aspectos do trabalho e da vida financeira.

Trabalho e adoração (Miqueias 6.6-8; Amós 5.21-24; Oseias 4.1-10)

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Os profetas entendem que a justiça não é apenas uma questão laica. O apelo de Miqueias por justiça em Miqueias 6.8 decorre da observação de que a justiça é melhor que sacrifícios religiosos extravagantes (Mq 6.6-7). Oseias e Amós expandem esse ponto. Amós se opõe à desconexão entre a observância religiosa e a ação ética.

Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes. Mesmo que vocês me tragam holocaustos e ofertas de cereal, isso não me agradará. Mesmo que me tragam as melhores ofertas de comunhão, não darei a menor atenção a elas. Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras. Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene! (Am 5.21-24)

Oseias aprofunda ainda mais a relação entre estar espiritualmente fundamentado e fazer um bom trabalho. As boas obras emergem diretamente da fidelidade à aliança de Deus, enquanto, em contrapartida, as más obras nos afastam da presença de Deus.

Israelitas, ouçam a palavra do Senhor, porque o Senhor tem uma acusação contra vocês que vivem nesta terra: “A fidelidade e o amor desapareceram desta terra, como também o conhecimento de Deus. Só se veem maldição, mentira e assassinatos, roubo e mais roubo, adultério e mais adultério; ultrapassam todos os limites! E o derramamento de sangue é constante. Por isso a terra pranteia, e todos os seus habitantes desfalecem; os animais do campo, as aves do céu e os peixes do mar estão morrendo. [...] Meu povo foi destruído por falta de conhecimento. Uma vez que vocês rejeitaram o conhecimento, eu também os rejeito como meus sacerdotes; uma vez que vocês ignoraram a lei do seu Deus, eu também ignorarei seus filhos”. (Os 4.1-3,6)

Esse é um lembrete de que o mundo do trabalho não existe em um vácuo, separado do resto da vida. Se não fundamentarmos valores e prioridades na aliança de Deus, a vida e o trabalho serão ética e espiritualmente incoerentes. Se não agradarmos a Deus no trabalho, não poderemos agradá-lo na adoração.

Apatia devido à riqueza (Amós 3.9-15; 6.1-7)

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Os profetas criticam aqueles cuja riqueza os leva a abandonar o trabalho que conduz ao bem comum e a abandonar qualquer senso de responsabilidade pelo próximo. Amós relaciona riqueza indolente com opressão ao acusar os ricos ociosos de transgressão, violência e roubo (Am 3.10). Deus dará um fim rápido à riqueza dessas pessoas. Deus derrubará “a casa de inverno junto com a casa de verão; as casas enfeitadas de marfim serão destruídas” (Am 3.15). Amós lança uma explosão contundente contra os luxos dos “que vivem tranquilos em Sião” (Am 6.1). Eles são os primeiros em devassidão, ele observa, enquanto “se espreguiçam em seus sofás” (Am 6.4) e “improvisam em instrumentos musicais” (Am 6.5). Quando Deus punir Israel, eles “estarão entre os primeiros a ir para o exílio” (Am 6.7).

Surpreendentemente, queixas semelhantes podem ser ouvidas hoje contra aqueles que possuem riqueza mas não a empregam para nenhum bom propósito. Isso se aplica a indivíduos e a corporações, governos e outras instituições que usam sua riqueza para explorar as vulnerabilidades alheias, em vez de criar algo útil proporcionalmente a sua riqueza. Muitos cristãos — talvez a maioria no Ocidente — têm alguma capacidade de mudar essas coisas, pelo menos em seu ambiente de trabalho. As palavras dos profetas servem como um desafio e um incentivo contínuos para que nos preocupemos profundamente em como o trabalho e a riqueza servem — ou deixam de servir — às pessoas ao nosso redor.