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Ezequiel e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Ezekiel bible commentary

“Suponhamos que haja um justo que faz o que é certo e direito... com certeza ele viverá. Palavra do Soberano, o Senhor”. (Ezequiel 18.5-9)

Introdução a Ezequiel

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Viver com Deus não é apenas uma questão de adoração e devoção pessoal. Viver com Deus também é uma questão de viver uma vida de retidão, seja no mercado de trabalho, em casa, na igreja ou na sociedade. Isso não contradiz o ensino de que a salvação vem apenas pela graça, por meio da fé em Jesus Cristo (Rm 5.1), mas aponta que a vida com Deus começa com a fé em Cristo, mas é completada em uma vida justa em todas as esferas da vida.

O livro de Ezequiel fornece um relato convincente de como o povo judeu sofre uma vida severamente subjugada, com privação e opressão — e até morte — depois de ser conquistado e feito cativo pelo império da Babilônia. Quando eles questionam por que Deus permitiu que eles sofressem dessa maneira, Ezequiel dá a resposta de Deus: por causa de seu modo de vida injusto (Ez 18.1-17). Os caminhos injustos de Israel abrangiam todas as esferas da vida: casamento e sexualidade, adoração e idolatria, comércio e governo. Nosso foco está nas práticas no ambiente de trabalho, e Ezequiel tem muito a dizer sobre o ambiente de trabalho. Suas palavras abordam finanças e dívidas, desenvolvimento econômico, honestidade, alocação de capital, avaliações no ambiente de trabalho, retorno justo sobre o investimento, oportunismo econômico, sucesso e fracasso, denúncia de irregularidades, trabalho em equipe, remuneração de executivos e governança corporativa. Além disso, o dramático chamado de Ezequiel para se tornar profeta nos dá um exemplo de como Deus chama alguém para um tipo específico de trabalho.

O chamado de Ezequiel para ser profeta (Ezequiel 1—17)

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Comecemos, como faz o livro de Ezequiel, com o chamado de Deus a Ezequiel para se tornar um profeta. Quando encontramos Ezequiel, vemos que ele é descendente de Levi, filho de Jacó, e sacerdote por profissão (Ez 1.3). Como tal, seu trabalho diário antes consistia em abater, destrinchar e assar os animais recebidos para o sacrifício pelos adoradores no templo em Jerusalém. Como sacerdote, ele também serviu como guia moral e espiritual para o povo, ensinando-lhes a lei de Deus e julgando disputas (Lv 10.11; Dt 17.8-10; 33.10).

No entanto, seu sacerdócio foi violentamente interrompido quando ele foi levado como cativo para a Babilônia, na primeira deportação de judeus de Jerusalém, em 605 a.C. Na Babilônia, a comunidade judaica no exílio estava preocupada com duas perguntas: “Deus foi injusto conosco?” e “O que fizemos para merecer isso?” A desolação desses judeus exilados é bem captada em Salmos 137.1-4: “Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião. Ali, nos salgueiros, penduramos as nossas harpas; ali os nossos captores pediam-nos canções, os nossos opressores exigiam canções alegres, dizendo: ‘Cantem para nós uma das canções de Sião!’ Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?”

No exílio na Babilônia, Ezequiel recebe um chamado dramático de Deus. Como o chamado de Isaías (Is 6.1-8), o de Ezequiel começa com uma visão de Deus (Ez 1.4—2.8) e conclui com a ordem de Deus para se tornar um profeta. Chamados diretos para um tipo específico de trabalho são raros na Bíblia, e o de Ezequiel é um dos mais dramáticos. Embora a profissão original de Ezequiel fosse o sacerdócio, Deus o chamou para uma carreira profética que era principalmente política, não religiosa. É apropriado que a visão em que ele recebeu seu chamado inclua símbolos políticos, como rodas de carruagem (Ez 1.16), um exército (Ez 1.24), um trono (Ez 1.26) e uma sentinela (Ez 3.16), mas não símbolos religiosos. O chamado de Ezequiel deve dissipar qualquer noção de que os chamados de Deus geralmente são chamados para se afastar de profissões seculares e assumir o ministério da igreja. [1]

A carreira profética de Ezequiel começa no exílio na Babilônia, onze anos antes da destruição final de Jerusalém. A primeira incumbência que Deus lhe dá é refutar as promessas vazias dos falsos profetas, os quais asseguravam aos exilados que a Babilônia seria derrotada e que eles logo voltariam para casa. Nos capítulos iniciais do livro, Ezequiel tem uma série de visões que descrevem os horrores do cerco de Jerusalém e, em seguida, a matança na tomada da cidade.

A responsabilidade de Israel por sua situação (Ezequiel 18)

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A pergunta dos judeus exilados: “O que fizemos para merecer isso?” surge da crença equivocada de que eles estavam sendo punidos pelas ações de seus ancestrais, e não pelas próprias. Vemos isso no falso provérbio que eles citam: “Os pais comem uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotam” (Ez 18.2). Deus rejeita essa acusação. A questão em jogo é a recusa dos exilados em assumir a responsabilidade por sua situação, culpando os pecados das gerações anteriores. [1] Deus deixa claro, no entanto, que cada indivíduo será avaliado de acordo com suas próprias ações, sejam elas justas ou iníquas. A metáfora que envolve um homem justo (Ez 18.5-9), seu filho pecador (Ez 18.10-13) e seu neto justo (Ez 18.14-17) ilustra que as pessoas não são responsabilizadas pela moralidade de seus ancestrais. Deus responsabiliza cada “alma” individual. [2] No entanto, os estudiosos estão certos em observar que Ezequiel ainda tem um foco comunitário. [3]

A justiça é exigida individualmente, mas a restauração de Deus não ocorrerá até que toda a nação de indivíduos adote uma vida justa. Dessa forma, Deus exigia dos exilados como um todo uma vida justa e responsabilização, independentemente das gerações anteriores.

Ezequiel 18.5-9 observa uma série de ações cultuais e morais, tanto justas quanto iníquas. Essas ações se tornam os princípios pelos quais se diz que uma pessoa “vive” ou “morre”. Quatro dessas ações estão relacionadas ao trabalho: restaurar a promessa de um devedor, prover aos pobres, não cobrar juros excessivos e trabalhar com justiça. O fracasso em manter padrões justos e retos — ou, pior ainda, derramar o sangue de outra pessoa indiscriminadamente — incorrerá na “pena de morte” (Ez 18.13).

Ezequiel 18.5,7 — O justo não oprime, mas devolve ao devedor o que foi dado como garantia

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Esse princípio combina o pecado geral da opressão (hebr. daka) com o pecado específico de não devolver algo tomado como garantia (ăbōl) em um empréstimo. Para entender e aplicar esse princípio, começamos com uma visão da lei israelita sobre empréstimos, resumida no Dicionário Bíblico Anchor Yale desta forma:

A necessidade de empréstimos é reconhecida abertamente na Bíblia Hebraica, onde é feita uma tentativa de impedir a prática de cobrar juros dos devedores. Os juros de empréstimos no Antigo Oriente Próximo poderiam ser exorbitantes pelos padrões modernos (e poderiam ser cobrados antecipadamente, a partir do início do empréstimo). A tentativa de convencer os credores a renunciar ao lucro potencial baseava-se no cuidado com a comunidade, que Deus havia libertado da escravidão. Um irmão poderia ficar pobre e precisar de um empréstimo, mas os juros não deveriam ser cobrados, em nome do mesmo Senhor “que os tirou da terra do Egito” (Lv 25.35-38). O desejo por juros é visto como o perigo de Israel trocar uma forma de escravidão por outra — econômica — forma de opressão. É notável que todo o Levítico 25 diz respeito precisamente à questão de manter a integridade do que Deus havia redimido, em relação à libertação que ocorreria durante os anos do sábado e do jubileu (Lv 25.1-34), em relação a empréstimos (Lv 25.35-38) e em relação ao serviço contratado (Lv 25.39-55). O direito de um credor de receber uma garantia ao conceder empréstimo é implicitamente reconhecido dentro do requisito primitivo de não esperar juros, e liberdades abusivas com garantias recebidas são proibidas (cf. Êx 22.25-27; Dt 24.10-13). Mas certas garantias, tratadas corretamente, podem render seus próprios lucros, e os estrangeiros, em qualquer caso, podem pagar juros (cf. Dt 23.19-20); mesmo com uma interpretação estrita da Torá, um credor pode ganhar a vida. [1]

De acordo com a Lei mosaica, geralmente não era legal que um credor tomasse posse permanente de um bem dado como garantia de um empréstimo. As leis bancárias modernas geralmente permitem que os credores retenham (como em casas de penhores) ou recuperem (como em empréstimos para automóveis e hipotecas residenciais) itens dados em garantia. Se todo o sistema de fiança moderno é antibíblico, isso está além do escopo deste artigo. [2]

As leis modernas também estabelecem limites ou regulam o processo pelo qual um credor pode tomar posse da garantia. Em geral, é ilegal, por exemplo, que um credor ocupe uma casa hipotecada e force o devedor a sair enquanto o devedor estiver sob proteção judicial durante o processo de falência. Para um credor, fazer isso de qualquer maneira seria uma forma de opressão. Isso só poderia ocorrer se o credor tivesse o poder e a impunidade de operar fora da lei.

Em certo sentido, em Ezequiel 18.7, Deus está dizendo: “Não quebre a lei em busca do que pode parecer seu por direito, mesmo que você tenha o poder de se safar”. Nas práticas comerciais da vida real, a maioria dos credores (sem considerar os agiotas) não recupera garantias agindo à força e fora da lei. Então, talvez Ezequiel 18.7 não tem nada de desafiador para os leitores modernos quanto a empreendimentos legítimos.

Mas vamos com calma. Na base de toda a lei do Antigo Testamento sobre empréstimos está a presunção de que os empréstimos são feitos principalmente para o bem de quem pede o empréstimo, não do credor. A razão pela qual você empresta dinheiro a alguém tomando como garantia a capa deste, mesmo que possa ficar com a capa apenas até o pôr do sol, é que você tem dinheiro disponível e o devedor está passando por necessidades. Como credor, você tem o direito de ter a garantia de que receberá seu dinheiro de volta, mas somente se isso tiver beneficiado o mutuário o suficiente para que ele possa pagá-lo de volta. Você não deve fazer um empréstimo sabendo que é improvável que o mutuário consiga pagar, porque você não pode manter a garantia indefinidamente.

Isso tem aplicações óbvias na crise das hipotecas de 2008-2009. Os credores de crédito hipotecário fizeram empréstimos habitacionais sabendo que milhões de tomadores provavelmente não pagariam. Para recuperar seu investimento, os credores confiaram no aumento dos preços das casas, além de sua capacidade de forçar uma venda ou retomar a propriedade, na probabilidade de o mutuário se tornar inadimplente. Os empréstimos foram feitos sem levar em conta o benefício do mutuário, desde que beneficiassem os credores. Essa, pelo menos, era a intenção. Na realidade, o súbito aparecimento de centenas de milhares de propriedades hipotecadas no mercado derrubou os valores das propriedades de tal maneira, que os credores perderam dinheiro, mesmo depois de retomar a posse das propriedades. A declaração de Deus, por volta de 580 a.C., de que “ele será responsável por sua própria morte” (Ez 18.13; ou “o seu sangue será sobre ele”, ARC) acabou sendo verdadeira para o sistema bancário, por volta de 2000 d.C.

A denúncia de Deus sobre arranjos que não trazem nenhum benefício para os compradores não precisa se limitar a obrigações de dívida securitizada. Ezequiel 18.7 trata de empréstimos, mas o mesmo princípio se aplica a produtos de todos os tipos. Reter informações sobre falhas e riscos do produto, vender produtos mais caros do que o comprador precisa, não relacionar os benefícios do produto com as necessidades do comprador — todas essas práticas são semelhantes à opressão descrita em Ezequiel 18.7. Eles podem se infiltrar até em empresas bem-intencionadas, a menos que o vendedor faça do bem-estar do comprador uma meta inviolável da transação de venda. Cuidar do comprador é “viver”, na terminologia de Ezequiel.

Ezequiel 18.7b — O justo não furta, mas alimenta o faminto e veste o nu

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Isso pode parecer uma combinação estranha. Quem poderia argumentar contra a proibição do roubo? Mas como o roubo está ligado à obrigação de dar comida aos famintos e de fornecer roupas aos que estão nus? Assim como em Ezequiel 18.7a, a conexão é o requisito de se preocupar com o bem-estar econômico do outro. Nesse caso, entretanto, o “outro” não é a contraparte de uma transação comercial, mas simplesmente outra pessoa encontrada no curso da vida cotidiana. Se você conhece pessoas que possuem algo de que elas precisam e que você também deseja, isso não lhe dá permissão para roubar aquilo delas. Se você conhece pessoas que carecem de algo de que precisam e que você possui em excesso, é obrigado a dar a elas, ou pelo menos atender a necessidades tão básicas quanto comida e roupas.

Por trás dessa admoestação um tanto dissonante está a lei econômica de Deus: somos administradores, não proprietários, de tudo o que temos. Devemos ver a riqueza como um bem comum, porque tudo o que temos é um dom de Deus, com o propósito de que não haja pobres entre nós (Dt 6.10-15; 15.1-18). Isso fica claro nas leis que exigem o cancelamento de dívidas a cada sete anos e a redistribuição da riqueza acumulada no ano do jubileu (Levítico 25). Uma vez a cada cinquenta anos, o povo de Deus deveria reequilibrar a riqueza da terra como remédio para os males endêmicos da sociedade humana. Nos anos seguintes, eles deveriam viver como administradores de tudo o que possuíam:

  • “Não explorem um ao outro, mas temam o Deus de vocês. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. Pratiquem os meus decretos e obedeçam às minhas ordenanças, e vocês viverão com segurança na terra” (Lv 25.17-18).

  • “A terra não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês são apenas estrangeiros e imigrantes” (Lv 25.23).

  • “Se alguém do seu povo empobrecer e não puder sustentar-se, ajudem-no como se faz ao estrangeiro e ao residente temporário, para que possa continuar a viver entre vocês. Não cobrem dele juro algum, mas temam o seu Deus, para que o seu próximo continue a viver entre vocês. Vocês não poderão exigir dele juros nem emprestar-lhe mantimento visando a algum lucro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês, que os tirou da terra do Egito para dar a vocês a terra de Canaã e para ser o seu Deus” (Lv 25.35-38).

O decreto de Ezequiel em Ezequiel 18.7b não está diretamente relacionado à teologia do trabalho, porque tem pouco a ver com a produção real de coisas de valor. Em vez disso, é parte da teologia da riqueza, da administração e disposição das coisas de valor. Mas pode haver uma conexão. E se você trabalhasse com o propósito de atender às necessidades de outra pessoa, e não às suas próprias? Embora isso impeça o roubo, também o motivaria a trabalhar de forma a fornecer comida, roupas e outras necessidades para pessoas necessitadas. Um exemplo seria uma empresa farmacêutica que colocasse uma política de uso compassivo no planejamento de um novo medicamento. O mesmo aconteceria com uma empresa de varejo que faz da acessibilidade um elemento-chave de seu modelo de negócios. Por outro lado, esse princípio parece descartar um negócio que só pode ter sucesso cobrando preços altos por produtos que não atendem a necessidades reais, como uma empresa farmacêutica que produz reformulações triviais para estender os prazos de suas patentes.

Ezequiel 18.8a - O justo não recebe adiantamentos nem juros acumulados

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Estudiosos da Bíblia dedicaram muito tempo a pesquisar e especular sobre se a cobrança de juros é absolutamente proibida pela lei do Antigo Testamento. A tradução mais natural de Ezequiel 18.8a pode ser: “Ele não empresta dinheiro com juros, nem recebe demais”. Até bem depois da Reforma, os cristãos universalmente entendiam que a Bíblia proibia a cobrança de juros sobre empréstimos. É claro que isso prejudicaria severamente o emprego produtivo do capital, tanto nos tempos modernos quanto nos antigos, e os intérpretes contemporâneos parecem dispostos a suavizar a proibição de juros excessivos. Para justificar esse abrandamento ainda maior, alguns argumentaram que os descontos de originação (o que agora chamamos de “zero-coupon bonds”) eram permitidos no antigo Israel e que apenas juros adicionais eram proibidos, mesmo que o empréstimo não fosse pago em tempo hábil. [1] Assim como no tópico sobre garantia, acima, está além do escopo deste artigo avaliar a legitimidade de todo o sistema moderno de juros. [2] Em vez disso, analisemos o resultado em ambos os casos.

Se a interpretação mais estrita for válida, as pessoas com dinheiro enfrentarão a escolha de emprestar ou não dinheiro. Se elas não têm permissão para cobrar juros e nem mesmo para recuperar a garantia, então elas podem preferir não emprestar a ninguém. Mas essa resposta é proibida por Deus: “Tenham mão aberta e emprestem-lhe liberalmente o que ele precisar” (Dt 15.8). Jesus repete e até expande esse mandamento em Lucas 6.35: “Amem os seus inimigos, façam-lhes o bem e emprestem a eles, sem esperar receber nada de volta”. O empréstimo é principalmente para o benefício de quem toma emprestado, não do credor. O medo do credor de que não possa ser reembolsado deve ser uma preocupação menor. O credor em potencial tem o capital, e o mutuário em potencial precisa dele.

Por outro lado, se aceitarmos que o sistema moderno de juros é legítimo, esse princípio ainda se aplica. O capital deve ser investido de forma produtiva; ele não pode ser acumulado por causa do medo. Este é o significado literal da parábola dos talentos contada por Jesus (Mt 25.14-30). Deus prometeu a Israel, seu bem precioso, que proverá suas necessidades. Se os indivíduos se encontrarem com capital de sobra, devem isso ao Deus da provisão, a fim de empregá-lo — seja por investimento justo ou por doação — para a provisão dos necessitados. O desenvolvimento econômico não é proibido — muito pelo contrário, é necessário. Mas deve ser um benefício produtivo para aqueles que precisam de capital, e não apenas para o interesse próprio daqueles que possuem capital.

Ezequiel 18.8b - O justo não comete injustiça, mas julga com justiça entre as partes

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Como ele fez no início do livro, aqui Ezequiel apresenta a seus leitores uma regra geral (não fazer o que é errado) ligada a uma regra específica (julgar com justiça entre indivíduos). Mais uma vez, o princípio unificador é que a pessoa com mais poder deve se preocupar com a necessidade da pessoa com menos poder. Nesse caso, o poder envolvido é o poder de julgar entre as pessoas. Todos os dias, a maioria de nós enfrenta momentos em que temos o poder de julgar entre uma pessoa e outra. Pode ser tão simples quanto decidir quem tem voz na escolha de onde almoçar. Pode ser tão grande quanto decidir em quem acreditar em uma acusação de conduta imprópria. Raramente percebemos que, cada vez que tomamos uma decisão como essa, exercemos o poder de julgar.

Muitos problemas sérios no trabalho surgem porque as pessoas sentem que são constantemente julgadas como menos importantes do que os outros ao seu redor. Isso pode resultar de julgamentos formais ou oficiais, como avaliações de desempenho, decisões de projetos, prêmios para funcionários ou promoções. Ou pode resultar de julgamentos informais, como quem presta atenção às ideias delas ou com que frequência elas são alvo de piadas. Em ambos os casos, o povo de Deus tem a obrigação de estar ciente desses tipos de julgamento e de ser justo na forma como participa deles. Pode ser interessante manter um registro de quantos julgamentos (grandes ou pequenos) participamos durante um único dia e, em seguida, perguntar como a pessoa justa em Ezequiel 18.8b agiria em cada um.

Ezequiel 18 é mais do que um conjunto de regras para viver no exílio; é uma resposta ao desespero que os exilados sentem, expresso no provérbio de Ezequiel 18.2: “Os pais comem uvas verdes e os dentes dos filhos se embotam”. [1] O argumento do capítulo 18 refuta o provérbio, mas não faz isso eliminando completamente a retribuição transgeracional. Em vez disso, a lição da responsabilidade moral pessoal responde ao desespero do exílio (ver Salmos 137) e a questões de teodiceia vistas no refrão: “O caminho do Senhor não é justo” (Ez 18.25,29). Em resposta à pergunta dos exilados — “Se somos povo de Deus, por que estamos no exílio?”; “Por que estamos sofrendo?”; “Deus se importa?” —, o Senhor não contesta com uma resposta, mas com um chamado para viver de forma justa.

No tempo entre a transgressão passada e a restauração futura, entre a promessa e o cumprimento, entre a pergunta e a resposta, os exilados devem viver com justiça. [2] É aqui que o significado, o propósito e a recompensa final podem ser encontrados. Deus não está simplesmente repetindo leis de bom e mau comportamento para os indivíduos seguirem. Em vez disso, ele está clamando por uma vida nacional de justiça, quando Israel finalmente será “meu povo” (Ez 11.20; 14.11; 36.28; 37.23,27). [3]

As marcas da justiça em Ezequiel 18 fornecem uma amostra representativa da vida na nova aliança, quando a comunidade é caracterizada pela ética “legal” (Ez18.5,19,21,27). O leitor é desafiado a viver a vida da nova aliança agora, como um meio de garantir esperança para o futuro. Em nossos dias, os cristãos são membros da nova aliança com o mesmo chamado em Mateus 5.17-20; 22.37-40. Dessa forma, Ezequiel 18 é surpreendentemente instrutivo e aplicável a nossa própria vida no ambiente de trabalho, não importa o local. [4] Viver essa retidão pessoal em nossas atividades profissionais acrescenta vida e significado às nossas circunstâncias atuais, porque pressupõe um amanhã melhor, introduz o futuro Reino de Deus no presente e fornece um vislumbre do que Deus espera de seu povo como inteiro. Deus recompensa tal comportamento, cujo tipo só é possível por meio de novos corações e espíritos (Ez 18.31-32; 2Co 3.2-6).

O colapso sistêmico de Israel (Ezequiel 22)

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Se os judeus exilados na Babilônia perderam o exemplo positivo do capítulo 18, Ezequiel 22 dá a eles uma imagem explícita de onde a nação se afastou dos caminhos estabelecidos por Deus. Jerusalém é o cenário em que o profeta olha para os fatores políticos, econômicos e religiosos que levaram à sua destruição final. De acordo com Robert Linthicum, o propósito do sistema político é estabelecer uma política de justiça e obediência a Deus (Dt 16.18-20; 17.8-18). O sistema econômico é chamado a manter uma economia de administração e generosidade (Dt 6.10-15; 15.1-18). O religioso é o principal responsável por trazer as pessoas a um relacionamento com Deus e fundamentar os sistemas político e econômico em Deus (Dt 10.12; 11.28). A religião fornece as cercas para a comunidade e dá sentido à vida. O sistema político fornece o processo e o sistema econômico apoia a comunidade. Quando o sistema religioso fica fora de ordem, todo o resto fica em aberto. [1] De acordo com a lei de Deus, a disparidade entre ricos e pobres (riqueza e pobreza) é um indicador direto da distância que uma nação ou comunidade está de Deus.

Em Ezequiel 22, o profeta agora mostra aos judeus exilados por que o julgamento de Deus sobre sua nação deve vir: dos príncipes aos sacerdotes, passando pelos falsos profetas e todo o povo da terra, “vocês todos se tornaram escória” (Ez 22.19). A paciência de Deus chegou ao fim e o salário de toda forma de pecado “profissional” trará morte e destruição aos que o cometeram. O que está incluído neste catálogo de pecados? Usar o poder para derramar sangue (Ez 22.6); tratar os pais com desprezo, oprimir o estrangeiro e maltratar os órfãos e as viúvas (Ez 22.7); caluniar com o objetivo de derramar sangue (Ez 22.9); praticar pecados sexuais e assédio (Ez 22.11); cobrar juros e lucrar com os pobres, extorquindo lucro injusto (Ez 22.12); conspirar para devastar o povo, tomando tesouros e muitas coisas preciosas e fazendo muitos viúvas no processo (Ez 22.25); fazer violência à lei, profanando coisas sagradas, ensinando o erro e fechando os olhos para os sábados de Deus (Ez 22.8,26); oficiais como lobos que destroem sua presa por lucro injusto (Ez 22.27); profetas que encobrem essas ações com falsas visões e adivinhações mentirosas (Ez 22.28); e o povo da terra praticando extorsão e roubo, oprimindo o pobre e o necessitado, maltratando os estrangeiros e negando-lhes a justiça (Ez 22.29).

No final, Deus procurou apenas uma pessoa justa que ficaria na brecha, mas não havia ninguém. É esse total desrespeito aos relacionamentos justos que traz a ira e o castigo de Deus. O capítulo termina (Ez 22.31) com Deus removendo sua mão protetora do povo, enquanto eles se autodestroem. Como Deus traz juízo? Ele permite que os sistemas sigam seu curso natural sem intervir. A espiral descendente termina em destruição. Uma teologia do trabalho deve estabelecer as práticas honestas e misericordiosas que o povo de Deus deve seguir (capítulo 18). Desconsiderar isso é flertar com o desastre.

De onde vem o sucesso? (Ezequiel 26—28)

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Os oráculos contra Tiro em Ezequiel 26—28 dão mais um exemplo de viver de forma injusta. O povo de Tiro se regozija com a destruição de Jerusalém, antecipando o lucro que teriam com a ausência de um concorrente comercial (Ez 26.2). Deus promete que serão punidos e humilhados (Ez 26.7-21) por não ajudarem Judá em tempos de necessidade. “Tiro pode ser considerado como uma representação da busca — por meio da riqueza, da proeminência política e até da cultura — de uma segurança e autonomia que contradizem a natureza da realidade criada.” [1] Na realidade, nenhuma pessoa ou nação pode realmente garantir sua própria segurança e prosperidade. No entanto, Tiro se orgulha de seu sucesso comercial, perfeição e abundância (Ez 27.2-4). Essa potência marítima se tornou assim por fazer comércio com (ou tirar proveito de) uma infinidade de povos em todo o mundo mediterrâneo (Ez 27.5-25), apenas para afundar sob o peso de sua vasta carga. O excesso de confiança e as relações egoístas de Tiro terminam com um naufrágio que atrai o lamento dos mercadores das nações (Ez 27.26-36). Deus chama Tiro para prestar contas de sua arrogância e desejo material, culminando com um poema contra o rei de Tiro, no capítulo 28. O rei credita seu próprio status divino por ter a engenhosidade e a sabedoria para obter grande destaque e realizações materiais.

As lições dos capítulos 26 a 28 para trabalhar no mundo são significativas. Deus nos proíbe de imaginar que somos a principal fonte de sucesso no trabalho. Embora nosso trabalho árduo, habilidade, perseverança e outras virtudes contribuam para o sucesso no trabalho, eles não o causam. Subjacente mesmo à pessoa que se fez por si mesma mais bem-sucedida está um universo de oportunidades, circunstâncias fortuitas, o trabalho dos outros e o fato de que nossa própria existência vem de fora de nós mesmos.

Atribuir o sucesso apenas a nós mesmos leva a uma arrogância que rompe nosso relacionamento com Deus. Em vez de agradecer a Deus por nosso sucesso e confiar que ele continuará a nos prover, pensamos que fomos bem-sucedidos por nossos próprios méritos. Mas não temos o poder de controlar todas as circunstâncias, possibilidades, pessoas e acontecimentos dos quais nosso sucesso depende. Ao atribuir nosso sucesso a nós mesmos, nos forçamos a tentar controlar fatores incontroláveis, o que cria uma forte pressão para colocar a situação a nosso favor. Embora possamos ter sido bem-sucedidos no passado por meio de negócios honestos e legítimos, agora podemos tentar melhorar as chances ocultando a verdade a nosso favor, manipulando os lances nos bastidores, manipulando os outros para que façam nossa vontade ou comprando favores dos outros com alguns subornos bem aplicados. Mesmo que consigamos permanecer do lado certo da lei, podemos nos tornar implacáveis ​​e nos encher de “violência” (Ez 28.16) em nossa busca pelo comércio.

Os verdadeiramente sábios se comportam com retidão e, em seus pensamentos, não usurpam o lugar de Deus enquanto esperam que Deus cumpra suas promessas. Eles permanecem fiéis à sua aliança com Deus, que recompensará a vida fiel com os benefícios apropriados para cumprir a aliança (veja a esperança para Israel em Ezequiel 28.22-26). Deus finalmente separará os justos e os ímpios (Ez 34.17-22; cf. Mt 25.31-46). Isso dá grande esperança aos “exilados” que aguardam a consumação do Reino de Deus, quer vivam no mundo antigo ou no mundo moderno, especialmente quando fazem perguntas sobre justiça e desespero. [2]

O chamado para alertar os outros (Ezequiel 33)

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Os capítulos 18 e 33 de Ezequiel servem a funções temáticas e estruturais semelhantes no livro como um todo. [1] O chamado à justiça pessoal a fim de “viver” e o chamado ao arrependimento em meio a questões sobre a justiça de Deus, apresentadas pela primeira vez no capítulo 18, são revistas no capítulo 33 de maneira quase literal. [2] No entanto, o capítulo 33 introduz outra ideia não encontrada no capítulo 18: em Ezequiel 33.1-9, Deus revê o chamado de Ezequiel para ser uma sentinela ou atalaia para a nação, conforme estabelecido pela primeira vez no capítulo 3. [3] Como uma sentinela no portão da cidade, responsável por alertar os habitantes da cidade sobre a ameaça do inimigo, Ezequiel é pessoalmente responsável por proclamar o juízo iminente de Deus e encorajar o arrependimento, a fim de se livrar da culpa:

Filho do homem, eu fiz de você uma sentinela para a nação de Israel; por isso, ouça a minha palavra e advirta-os em meu nome. Quando eu disser ao ímpio que é certo que ele morrerá e você não falar para dissuadi-lo de seus caminhos, aquele ímpio morrerá por sua iniquidade, mas eu considerarei você responsável pela morte dele. Entretanto, se você de fato advertir o ímpio para que se desvie dos seus caminhos e ele não se desviar, ele morrerá por sua iniquidade, e você estará livre da sua responsabilidade (Ez 33.7-9).

Este é um acréscimo importante ao chamado à justiça introduzido em Ezequiel 18 e lembrado no capítulo 33, às vésperas da destruição de Jerusalém (Ez 33.21-22). Deus exige que a sentinela desempenhe um papel importante no apelo à justiça individual e coletiva, assumindo a responsabilidade pessoal e a propriedade do arrependimento dos exilados.

Devemos nos identificar não apenas com o público de Ezequiel (Ez 18), mas também com o próprio Ezequiel. Aceitamos a tarefa dada por Deus de chamar outros a viver com justiça e retornar a um relacionamento correto com Deus. No Antigo Testamento, alguns indivíduos foram chamados para ser profetas com o mandato de levar a palavra de Deus ao seu povo. Mas, como membros da nova aliança, todos os cristãos são chamados para o trabalho profético. O profeta Joel previu isso quando falou a palavra de Deus da seguinte forma: “Derramarei do meu Espírito sobre todos os povos. Os seus filhos e as suas filhas profetizarão, os velhos terão sonhos, os jovens terão visões” (Jl 2.28). O apóstolo Pedro anunciou isso como uma realidade presente no dia de Pentecoste (At 2.33). [4]

A responsabilidade profética de todos os cristãos produz várias lições para uma teologia do trabalho e influencia nosso testemunho no ambiente de trabalho. Deus chama cada um de nós a assumir responsabilidade pessoal pelo destino dos outros. Devemos ser sentinelas por direito próprio, pois nos responsabilizamos pelas pessoas ao nosso redor. Não apenas a vida delas está em jogo; a nossas também (Ez 33.9).

Isso não nos ocorre naturalmente, em uma época e cultura que valorizam o individualismo. Mas Deus realmente nos responsabilizará pela vida justa dos outros. Em termos de ambiente de trabalho, isso significa que os cristãos têm a responsabilidade pessoal de trabalhar pela justiça em seus ambientes de trabalho. Isso levanta algumas perguntas que podemos fazer a nós mesmos sobre essa responsabilidade. Por exemplo:

  • Estamos falando as palavras de Deus às pessoas com quem trabalhamos? Os cristãos, em todos os ambientes de trabalho, observam — e se sentem pressionados a participar — de coisas que sabemos que não são compatíveis com a Palavra de Deus. Colocamos a verdade de Deus acima do aparente conforto de se sentir parte do grupo? Não se trata de um apelo para fazer julgamentos agudos no trabalho, mas pode significar defender a pessoa que está sendo usada como bode expiatório pelo fracasso do departamento ou ser a primeira a votar a favor do abandono de uma campanha publicitária enganosa. Pode significar admitir seu próprio papel na perpetuação de um conflito no escritório ou expressar a confiança de que escrever uma avaliação de desempenho honesta valerá a pena a dor que parece incorrer. Essas são maneiras de falar as palavras de Deus aos outros no trabalho.

  • Nossa vida é uma ilustração da mensagem de Deus? Nós nos comunicamos não apenas em palavras, mas em ações. Ao longo de seu ministério, Ezequiel foi literalmente uma ilustração visual e ambulante das promessas e dos juízos de Deus. Uma CFO do Vale do Silício foi convidada por seu CEO a “encontrar” US$ 2 milhões de lucro adicional para adicionar ao relatório trimestral que deveria ser entregue em uma semana. A CFO sabia que seria necessário categorizar incorretamente certas despesas como investimentos, e certos investimentos, como receitas. Durante a semana, ela tinha sua reunião mensal com outros CFOs cristãos. Eles deram a ela a coragem de enfrentar seu CEO. No dia em que o relatório deveria ser entregue, ela disse ao CEO: “Aqui está o relatório com os US$ 2 milhões adicionais de lucro, conforme solicitado. Pode até ser legal, mas não reflete exatamente a realidade. Não posso assiná-lo, então sei que você terá de me demitir.” A resposta de seu CEO? “Se você não assinar, eu também não assinarei. Conto com você para saber o que está fazendo. Traga-me o relatório original e exato e nós o emitiremos e tomaremos nossas providências por não ter atingido a lucratividade prevista.” [5] Em suas palavras e ações, essa CFO ilustrou o viver de acordo com a palavra de Deus, e isso influenciou o CEO a fazer o mesmo.

Ezequiel 33 demonstra que, embora cada indivíduo seja chamado à justiça pessoal, os profetas também são responsáveis ​​por alertar outros exilados a agirem corretamente. A metáfora da sentinela em Ezequiel 33 reflete a expectativa de Deus quanto ao nosso interesse na vida dos outros em nosso mundo de trabalho. Isso prepara o terreno para uma ideia semelhante no próximo capítulo, onde a metáfora muda.

O fracasso da liderança de Israel (Ezequiel 34)

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Os líderes de Israel são indiciados por sua falha em cuidar da nação. Ezequiel 34 usa a metáfora do pastoreio para ilustrar como os líderes de Israel (pastores) oprimiram o povo (rebanho) dentro do Reino de Deus. Os pastores olhavam apenas para seus próprios interesses, vestindo-se e alimentando-se às custas das necessidades do rebanho (Ez 34.2,3,8). Em vez de fortalecer e curar as ovelhas em seu momento de necessidade, ou ir atrás delas quando perdidas, os pastores as dominavam ferozmente (Ez 34.4). Isso deixou as ovelhas vulneráveis ​​às feras (nações hostis) e as espalhou por todo o mundo (Ez 34.5-6,8). Assim, Deus promete salvar as ovelhas da “boca” dos pastores (os governantes de Israel), procurar e cuidar de suas ovelhas e trazê-las de volta dos lugares para onde foram espalhadas (Ez 34.9-12). Ele as levará de volta à sua própria terra, dará alimento e fará que se deitem em segurança, em boas pastagens (Ez 34.13-14). Em última análise, Deus julgará entre as ovelhas gordas (que se beneficiaram e participaram da opressão) e as ovelhas magras (as fracas e oprimidas, Ez 34.15-22). Essa libertação culmina com a futura nomeação do pastor final, um segundo Davi, que apascentará e cuidará do rebanho de Deus como um príncipe deve fazer sob o reinado de Deus (Ez 34.23-24). [1] Isso marcará um momento em que Deus fará uma aliança de paz com suas ovelhas (povo), que garantirá as bênçãos divinas de proteção, fecundidade e liberdade na terra (Ez 34.25-31). Por meio disso, todos saberão que Deus está com seu povo e é o verdadeiro Deus (Ez 34.30-31).

A metáfora do pastoreio envia uma mensagem que promete julgamento sobre os governantes iníquos de Israel e esperança para os oprimidos e desfavorecidos da nação. Essa mensagem de liderança, extraída do pastoreio, é aplicável a outras ocupações. Bons líderes buscam o interesse dos outros antes de “alimentar-se”. Uma liderança que imita o “bom pastor” de João 10.11,14 é fundamentalmente um ofício de servidão que requer cuidado genuíno com o bem-estar dos subordinados. Gerenciar pessoas não significa demonstrar poder ou exercer a autoridade sobre os outros. Em vez disso, supervisores piedosos e justos procuram garantir que as pessoas sob seus cuidados prosperem. Isso é consistente com as melhores práticas de gestão ensinadas nas escolas de negócios e empregadas em muitas empresas. Mas pessoas piedosas fazem isso por fidelidade a Deus, não porque é uma prática aceita em suas organizações.

Andrew Mein afirma que a maioria dos leitores “presta muito pouca atenção à maneira como as realidades econômicas podem informar qualquer uso específico de uma metáfora, com o resultado de que todas as imagens bíblicas de pastoreio colapsam em uma imagem bastante monocromática de generosidade atenciosa”. [2] Embora Ezequiel 34 reflita o cuidado de Deus por suas ovelhas (assim como outras passagens de pastoreio, por exemplo, Jeremias 23, Salmos 23, João 10), o capítulo reflete especificamente mais sobre a economia do antigo pastoreio de ovelhas e, portanto, se aplica mais especificamente à vida de um líder. Os pastores violaram o aspecto econômico de suas obrigações ao “não conseguirem produzir o retorno necessário sobre um investimento e apropriarem-se indevidamente da propriedade do proprietário”. [3] Deus os considera responsáveis, enquanto reivindica seu rebanho. É muito pouco dizer simplesmente que os pastores de Israel falharam em cuidar dos interesses das ovelhas. Em vez disso, os pastores não trabalharam pelos interesses do dono das ovelhas que os contratou e que espera um retorno valioso de seu investimento. Esse entendimento poderia ser aplicado hoje a questões de remuneração de executivos e governança corporativa. Ezequiel não faz um pronunciamento geral sobre essas questões, mas fornece critérios pelos quais as práticas de cada corporação podem ser avaliadas.

Assim, Ezequiel 34 é um texto rico para uma teologia do trabalho. Os líderes devem cuidar das necessidades e dos interesses daqueles que estão sob sua liderança (Fp 2.3-4). Além disso, eles são responsáveis ​​por cumprir a tarefa econômica para a qual foram contratados. Devemos trabalhar para o lucro e o bem-estar daqueles que estão nos degraus acima e abaixo de nós na escada corporativa (Ef 6.5-9; Cl 3.22-24). Em última análise, todos devem trabalhar pela honra a que Deus tem direito.

Sob essa luz, o lucro ou a produtividade econômica é visto como uma busca piedosa. As igrejas muitas vezes parecem esquecer isso, como se o lucro fosse um subproduto neutro ou quase tolerável do trabalho cristão. Mas Ezequiel 34 implica que o trabalhador que produz uma perda econômica ou o gerente que não consegue que a equipe realize o trabalho não é melhor do que aqueles que maltratam colegas de trabalho ou subordinados. Tanto as pessoas quanto o trabalho são importantes. Quando, séculos depois, Paulo escreve: “Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens” (Cl 3.23), ele assume o lugar de Ezequiel. Faça o trabalho para o qual é pago (o que inclui obter lucro como um componente inalienável) como se estivesse trabalhando para o Senhor. Se você trabalha em uma empresa com fins lucrativos, é responsável perante Deus por ajudar a obter lucro.

Mas, se o lucro é uma obrigação para com Deus, então o cristão é obrigado a buscar apenas lucros piedosos. Como seguidores de Jesus, devemos à nossa empresa um bom dia de trabalho — um plano de vendas devidamente executado, um trabalho de estrutura robusto ou qualquer que seja o produto do nosso trabalho. Os empregadores devem aprender a esperar isso de nós. Além disso, como seguidores de Jesus, nunca podemos fornecer à nossa empresa uma declaração ambiental falsa, nunca enganar os funcionários ou tirar vantagem de sua ignorância e nunca encobrir um problema de controle de qualidade. Os empregadores também devem esperar isso de nós. O que nos torna trabalhadores bons e produtivos, leais às nossas empresas, também nos torna trabalhadores honestos e compassivos, comprometidos com nosso Senhor.

A esperança da aliança (Ezequiel 35—48)

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A teologia do trabalho de Ezequiel seria incompleta se não fosse colocada no contexto pleno da restauração futura, a que aludimos em todo o livro. A aliança entre Deus e Israel parece quebrada pelo fracasso de Israel em cumprir suas obrigações. Mas Deus restaurará Israel e cumprirá suas promessas quando Israel retornar a ele. Esse cumprimento é expresso tendo seu clímax nos oráculos de restauração e na seção do livro que trata do novo templo (capítulos 35—48). Aqui, o leitor vê uma imagem mais completa do futuro que o fiel exilado deve anunciar no presente por meio de uma vida justa e da responsabilidade corporativa.

A promessa de um pastor davídico na era futura da restauração é inerente à “aliança de paz” de Deus com Israel (Ez 34.25) e é chamada de “aliança eterna” (Ez 37.24-26). Ezequiel aguarda com ansiedade o dia em que esse rei-pastor dará início à bênção prometida por Deus para Israel e, mais importante, a levará a cumprir seu chamado como “povo de Deus”. [1] Ezequiel deixa claro que Deus concede isso, dando-lhes um coração não dividido e um novo espírito para cumprir suas leis, como ele ordenou em Ezequiel 18.31 (veja também Ez 11.19-20; 36.26-28; 37.14; 39.29). O povo de Deus será totalmente equipado para fazer sua vontade e será santificado pela presença de Deus no novo santuário em seu meio (Ez 37.28). Ezequiel passa nove capítulos mapeando este novo templo para o dia da restauração e a adoração necessária (Ez 40—48). À luz dos paralelos próximos entre Ezequiel 38—48 e Apocalipse 20—22, podemos nos perguntar se a visão de Ezequiel antecipa uma restauração literal do templo, ou se isso aponta para a realidade maior da Nova Jerusalém, na qual não há templo, “pois o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo” (Ap 21.22).

Como cristãos, depositamos nossa confiança no pastoreio final de Cristo. Foi ele quem não apenas cumpriu a justiça individual, mas também assumiu total responsabilidade corporativa pela humanidade, derramando seu próprio sangue em nosso favor. Pela morte e ressurreição de Jesus, o dia do cumprimento da aliança de Ezequiel raiou para o cristão. Mas o dia ainda não terminou, e a aliança ainda não está totalmente consumada. Ezequiel nos ensina que, quando somos chamados para o ambiente de trabalho, somos chamados para atividades justas no exílio, ao abraçarmos os desafios inerentes à espera da consumação do Reino de Deus. Deus requer um estilo de vida de justiça individual e responsabilidade corporativa que indicam o futuro cumprimento da aliança. Seguindo os passos de Jesus, podemos começar a viver a futura restauração de Deus no ambiente de trabalho hoje.