Bootstrap

Lucas e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
Luke bible commentary

Introdução a Lucas

Voltar ao índice Voltar ao índice

O evangelho de Lucas proclama Jesus como o rei que vem ao mundo. Designado por Deus, seu governo corrigirá tudo o que deu errado após a rebelião e a queda da humanidade que começaram com Adão e Eva. Atualmente, grande parte do mundo é governada por pessoas rebeldes à autoridade de Deus. No entanto, este mundo é o reino de Deus, e as coisas da vida cotidiana — incluindo o trabalho — são as do reino de Deus. Ele se preocupa profundamente com a governança, a produtividade, a justiça e a cultura de seu mundo.

Jesus é o rei e o modelo para todos aqueles que detêm autoridade inferior. Embora os cristãos estejam habituados a se referir a Jesus como “rei”, de alguma forma, para muitos de nós, esse título passou a ter uma conotação principalmente religiosa, em vez de se referir a um reino de fato. Dizemos que Jesus é o rei, mas muitas vezes queremos dizer que ele é o rei dos sacerdotes. Pensamos nele como o fundador de uma religião, mas Lucas demonstra que ele é o refundador de um reino — o reino de Deus na terra. Quando Jesus está pessoalmente presente, até mesmo Satanás e seus aliados reconhecem seu governo (por exemplo, Lc 8.32) e seu poder é incontestável. Depois de retornar temporariamente ao céu, seu modelo mostra aos cidadãos de seu reino como exercer autoridade e poder em seu lugar.

A liderança de Jesus se estende a todos os aspectos da vida, incluindo o trabalho. Não é surpresa, então, que o Evangelho de Lucas tenha ampla aplicação no trabalho. Lucas presta muita atenção a tópicos relacionados ao trabalho, como riqueza e poder, economia, governo, conflito, liderança, produtividade e provisão, e investimento, como discutiremos. Prosseguiremos mais ou menos na ordem do texto de Lucas, embora ocasionalmente utilizemos passagens fora de sequência, para que possamos considerá-las como unidade relativamente a outras passagens que compartilham o mesmo tema. Não tentaremos discutir as passagens que pouco contribuem para a compreensão do trabalho, dos trabalhadores e dos locais de trabalho. Talvez seja uma surpresa constatar quanto do Evangelho de Lucas está relacionado ao trabalho.

Deus em ação (Lc 1,2,4)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O surpreendente dia de trabalho de Zacarias (Lc 1.8-25)

O evangelho de Lucas começa em um local de trabalho. Isso dá continuidade à longa história de Yahweh de aparecer nos locais de trabalho (por exemplo, Gn 2.19-20; Êx 3.1-5). Zacarias é visitado pelo anjo Gabriel no dia de trabalho mais importante de sua vida: o dia em que foi escolhido para ministrar no lugar santo do templo de Jerusalém (Lc 1.8). Embora talvez não estejamos acostumados a pensar no templo como um local de trabalho, os sacerdotes e levitas ali estavam envolvidos em abate (os animais usados nos sacrifícios não se matavam sozinhos), cozinhavam, faziam trabalhos de zeladoria, cuidavam da contabilidade e realizavam várias outras atividades. O templo não era simplesmente um centro religioso, mas o centro da vida econômica e social judaica. Zacarias é profundamente impactado por seu encontro com o Senhor — ele fica incapacitado de falar até que tenha dado testemunho da verdade da palavra de Deus.

O bom pastor aparece entre os pastores (Lc 2.8-20)

O próximo encontro num local de trabalho ocorre a alguns quilômetros do templo. Um grupo de pastores que cuidava de seus rebanhos à noite é visitado por uma hoste angelical que anuncia o nascimento de Jesus (Lc 2.9). De modo geral, os pastores eram considerados desonestos, e as pessoas os desprezavam. Mas Deus olha para eles com favor. Como Zacarias, o sacerdote, os pastores têm seu dia de trabalho interrompido por Deus de maneira surpreendente. Lucas descreve uma realidade em que o encontro com o Senhor não é reservado para domingos, retiros ou viagens missionárias. Em vez disso, cada momento aparece como uma ocasião potencial em que Deus pode se revelar. A rotina diária pode levar ao entorpecimento de nossos sentidos espirituais, como foi com as pessoas da geração de Ló, que estavam “comendo e bebendo, comprando e vendendo, plantando e construindo” e, assim, ficaram cegas em relação ao juízo vindouro sobre sua cidade (Lc 17.28-30). [1] Mas Deus é capaz de irromper no meio da vida cotidiana com sua bondade e sua glória.

Descrição de trabalho de Jesus: Rei (Lc 1.26-56, 4.14-22)

Se parece estranho Deus anunciar seu plano para salvar o mundo bem no meio de dois locais de trabalho, pode parecer ainda mais estranho que ele apresente Jesus com uma descrição de trabalho. Mas ele o faz, quando o anjo Gabriel diz a Maria que ela dará à luz um filho. “Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim” (Lc 1.32-33).

Embora talvez não estejamos acostumados a pensar em “rei de Israel” como o cargo de Jesus, esse é definitivamente o trabalho dele, de acordo com o Evangelho de Lucas. Detalhes de seu trabalho como rei são apresentados: realizar poderosos feitos, dispersar os soberbos, derrubar governantes de seu trono, exaltar os humildes, encher os famintos de coisas boas, despedir de mãos vazias os ricos, ajudar Israel e mostrar misericórdia aos descendentes de Abraão (Lc 1.51-55). Esses versículos tão conhecidos, frequentemente chamados de Magnificat, retratam Jesus como um rei que exerce poder econômico, político e talvez até militar. Ao contrário dos reis corruptos do mundo caído, ele emprega seu poder para beneficiar seus súditos mais vulneráveis. Ele não bajula os poderosos e bem relacionados a fim de fortalecer sua dinastia. Ele não oprime seu povo nem o sobrecarrega para sustentar hábitos luxuosos. Ele estabelece um reino adequadamente governado, onde a terra produz coisas boas para todas as pessoas, segurança para o povo de Deus e misericórdia para aqueles que se arrependem do mal. Ele é o rei que Israel nunca teve.

Mais tarde, Jesus confirma essa descrição de trabalho quando aplica Isaías 61.1-2 para si mesmo. “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas-novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4.18-19). Essas são tarefas políticas e governamentais. Assim, pelo menos em Lucas, a ocupação de Jesus está mais intimamente relacionada ao trabalho político atual do que às profissões pastorais ou religiosas de hoje. [2] Jesus tem profundo respeito pelos sacerdotes e seu papel especial na ordem de Deus, mas ele não se identifica primariamente como um deles (Lc 5.14; 17.14).

As tarefas que Jesus reivindica para si beneficiam as pessoas necessitadas. Ao contrário dos governantes do mundo decaído, ele governa em nome dos pobres, dos prisioneiros, dos cegos, dos oprimidos e dos endividados (cujas terras lhes são devolvidas durante o ano da graça do Senhor; ver Lv 25.8-13). Sua preocupação não é apenas com as pessoas em necessidade profunda. Ele cuida das pessoas em qualquer estado e condição, como veremos. Mas sua preocupação com os pobres, os sofredores e os impotentes o distingue nitidamente dos governantes que ele veio substituir.

João Batista ensina ética no local de trabalho (Lc 3.8-14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Grande parte do Evangelho de Lucas consiste no ensino de Jesus. Na realidade, o primeiro ensinamento em Lucas é diretamente sobre trabalho, embora venha de João Batista, e não de Jesus. João exorta seu público a dar “frutos que mostrem o arrependimento” (Lc 3.8), para que não enfrente o julgamento. Quando eles perguntam especificamente “o que devemos fazer então?” (Lc 3.10, 12, 14), João dá respostas de teor econômico, não religioso. Primeiro, ele diz àqueles que têm muitos bens (duas túnicas ou comida suficiente) que compartilhem com aqueles que nada têm (Lc 3.10). Ele, então, dá instruções a cobradores de impostos e soldados, relacionandas diretamente com o trabalho deles. Os cobradores de impostos devem coletar apenas o que são obrigados a fazer, em vez de inflacionar a conta de impostos e embolsar a diferença. Os soldados não devem usar seu poder para extorquir dinheiro e acusar falsamente as pessoas. Eles devem se contentar com seu salário (Lc 3.13-14).

Quando diz aos cobradores de impostos “Não cobrem nada além do que foi estipulado” (Lc 3.13), João usava termos radicais para uma profissão marcada por uma injustiça sistêmica e arraigada. Os impostos em toda a Palestina eram recolhidos por meio de um sistema de “criação de impostos”, no qual governadores e outros funcionários de alto escalão terceirizavam o direito de coletar impostos em suas jurisdições. [1] A fim de ganhar um contrato, um potencial coletor de impostos teria de concordar em dar ao funcionário uma certa quantia além do imposto romano real. Da mesma forma, os lucros dos cobradores de impostos vinham dos valores que cobravam acima do que repassavam aos funcionários do governo. Como o povo não tinha como saber qual era o imposto romano real, tinham de pagar o valor que o coletor de impostos cobrava. Seria difícil resistir à tentação do autoenriquecimento, e quase impossível ganhar licitações sem oferecer grandes lucros aos funcionários do governo.

Observe que João não lhes oferece a opção de deixarem de ser coletores de impostos. A situação é semelhante para aqueles que Lucas chama de “soldados”. Esses provavelmente não eram soldados romanos disciplinados, mas funcionários de Herodes, que na época governava a Galileia como rei cliente de Roma. Os soldados de Herodes podiam usar (e usaram) sua autoridade para intimidar, extorquir e garantir o ganho próprio. A instrução de João a esses trabalhadores é trazer justiça a um sistema profundamente marcado pela injustiça. Não devemos subestimar a dificuldade disso. Manter a cidadania no reino de Deus enquanto se vive sob o domínio dos reis do mundo caído pode ser perigoso e difícil.

Observe também que cobradores de impostos e soldados respondem ao anúncio de João sobre o julgamento de Deus perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”. Eles fazem essa pergunta como grupos (“nós”) que compartilham a mesma ocupação. Os grupos profissionais de hoje poderiam fazer o mesmo?

  • Professores de escola perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

  • Executivos de negócios perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

  • Balconistas de supermercado perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

  • Trabalhadores de escritório perguntando: “E nós, o que devemos fazer?”

O texto nos convida a entender a intenção de Deus para nosso trabalho específico, não apenas para o trabalho em geral. Como podemos responder ao chamado do Evangelho em nossa ocupação atual?

Na passagem, um líder religioso — o profeta João Batista — desenvolve tamanha credibilidade entre grupos de trabalhadores — coletores de impostos e soldados — que eles se dispõem a pedir-lhe orientação sobre a ética no trabalho que eles desenvolvem. É possível que grupos de trabalhadores de hoje obtenham ajuda de líderes religiosos — ou de pessoas com capacidade bíblica/teológica entre eles — para discernir mutuamente o que Deus deseja deles em suas próprias ocupações? O próprio Jesus promete guiar aqueles que se reúnem em busca de orientação, afirmando que “onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio deles” (Mt 18.20).

O artigo “A igreja que capacita” explora como as igrejas podem ajudar os trabalhadores em ocupações comuns a reconhecerem e agirem de acordo com o desejo de Deus para seu trabalho.

Jesus é tentado a abandonar o serviço a Deus (Lc 4.1-13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Pouco antes de Jesus começar seu trabalho como rei, Satanás o tenta a abandonar sua lealdade a Deus. Jesus vai ao deserto, onde jejua por quarenta dias (Lc 4.2). Então, enfrenta as mesmas tentações que o povo de Israel enfrentou no deserto do Sinai. (As respostas que Jesus dá a Satanás são todas citações de Deuteronômio 6—8, que conta a história de Israel no deserto.) Primeiro, ele é tentado a confiar em seu próprio poder para satisfazer suas necessidades, em vez de confiar na provisão de Deus (Lc 4.1-3; Dt 8.3, 17-20). “Se és o Filho de Deus, manda esta pedra transformar-se em pão” (Lc 4.3). Segundo, ele é tentado a entregar sua lealdade a alguém (Satanás) que o lisonjeia com atalhos para o poder e a glória (Lc 4.5-8; Dt 6.13; 7.1-26). “Se me adorares, tudo será teu”. Terceiro, ele é tentado a questionar se Deus realmente está com ele e, portanto, a tentar forçar a mão de Deus, em desespero (Lc 4.9-12; Dt 6.16-25). “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui [do templo] para baixo”. Ao contrário de Israel, Jesus resiste a essas tentações confiando na palavra de Deus. Ele é o homem que o povo de Israel — bem como Adão e Eva antes deles — deveria ser, mas nunca foi.

Como paralelos às tentações de Israel em Deuteronômio 6—8, essas tentações não são exclusivas de Jesus. Ele as experimenta tanto quanto todos nós. “Pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, porém, sem pecado” (Hb 4.15). Como Israel, e como Jesus, podemos esperar ser tentados também, tanto no trabalho como em todos os aspectos da vida.

A tentação de trabalhar apenas para atender a nossas necessidades é muito grande. O trabalho destina-se a atender a nossas necessidades (2Ts 3.10), mas não apenas a elas. Nosso trabalho também deve servir aos outros. Ao contrário de Jesus, não temos a opção de servir a nós mesmos por meio de milagres. Mas podemos ser tentados a trabalhar apenas o suficiente para receber o salário, a desistir quando as coisas ficam difíceis, a evitar nossa parte da carga ou a ignorar o fardo que nossos maus hábitos de trabalho forçam os outros a carregarem. A tentação de tomar atalhos também é grande no trabalho.

A tentação de questionar a presença e o poder de Deus no trabalho pode ser a maior delas. Jesus foi tentado a testar Deus, forçando sua mão. Fazemos o mesmo quando nos tornamos preguiçosos ou agimos tolamente esperando que Deus cuide de nós. Ocasionalmente, isso acontece quando alguém decide que Deus o chamou para alguma profissão ou cargo e depois fica sentado esperando que Deus faça isso acontecer. Mas é mais provável que sejamos tentados a desistir da presença e do poder de Deus no trabalho. Podemos pensar que o trabalho não significa nada para Deus, ou que ele se importa apenas com a vida da igreja, ou que não podemos orar pedindo sua ajuda para as atividades diárias do trabalho. Jesus esperava a participação de Deus em seu trabalho todos os dias, mas não exigiu que Deus fizesse o trabalho por ele.

Todo o episódio começa com o Espírito de Deus levando Jesus ao deserto para jejuar por quarenta dias. Naquela época, como agora, jejuar e fazer um retiro era uma maneira de se aproximar de Deus antes de embarcar em uma grande mudança de vida. Jesus estava prestes a começar seu trabalho como rei e queria receber o poder, a sabedoria e a presença de Deus antes de começar. Isso de fato aconteceu. Quando Satanás o tentou, Jesus havia passado quarenta dias no espírito de Deus. Ele estava totalmente preparado para resistir. No entanto, seu jejum também tornou a tentação mais visceral. Jesus “teve fome” (Lc 4.2). A tentação muitas vezes vem sobre nós muito mais cedo do que esperamos, mesmo no início de nossa vida profissional. Podemos ser tentados a nos inscrever em um esquema de enriquecimento rápido, em vez de começar no primeiro degrau da escada de uma profissão genuinamente produtiva. Podemos ficar cara a cara com nossas fraquezas pela primeira vez e ser tentados a compensar com trapaças, intimidações ou enganos. Podemos pensar que não conseguiremos o emprego que queremos com as habilidades que temos, de modo que somos tentados a nos apresentar de maneira falsa ou fabricar qualificações. Podemos assumir uma posição financeiramente atraente, mas insatisfatória, “apenas por alguns anos, até que eu esteja estabelecido”, na fantasia de que mais tarde faremos algo mais alinhado com nosso chamado.

A preparação é a chave para a vitória sobre a tentação. As tentações geralmente vêm sem aviso prévio. Você pode ser obrigado a enviar um relatório falso. Você pode receber informações confidenciais hoje que serão de conhecimento público amanhã. Uma porta destrancada pode oferecer uma oportunidade repentina de pegar algo que não é seu. A pressão para participar de fofocas sobre um colega de trabalho pode surgir repentinamente durante o horário de almoço. A melhor preparação é imaginar possíveis cenários com antecedência e, em oração, planejar como responder a eles, talvez até anotá-los junto com as respostas que você entrega a Deus. Outra proteção é ter um grupo de pessoas que o conheçam intimamente, a quem você possa ligar imediatamente para discutir sua tentação. Se você puder informá-los antes de agir, eles poderão ajudá-lo a superar a tentação. Jesus, estando em comunhão com seu Pai no poder do Espírito Santo, enfrentou suas tentações com o apoio de sua comunidade de colegas — se assim pudermos descrever a Trindade.
Nossas tentações não são idênticas às de Jesus, ainda que tenham grandes semelhanças. Todos temos as próprias tentações, grandes e pequenas, dependendo de quem somos, de nossas circunstâncias e da natureza de nosso trabalho. Nenhum de nós é o Filho de Deus, mas a resposta que damos à tentação traz consequências capazes de transformar a vida. Imagine as consequências se Jesus tivesse se afastado de seu chamado como rei de Deus e passado a vida criando luxos para si mesmo, ou cumprindo as ordens do mestre do mal, ou permanecendo deitado à espera de que o Pai fizesse seu trabalho por ele.

Jesus chama pessoas para trabalhar (Lc 5.1-11; 27-32)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Por duas vezes, Jesus se dirige ao local de trabalho das pessoas para chamá-las a segui-lo. A primeira é quando Jesus pede que alguns pescadores interrompam seu trabalho e o deixem usar o barco deles como pódio. Então, ele lhes dá excelentes dicas de pesca e, de repente, os chama para se tornarem seus primeiros discípulos (Lc 5.1-11). A segunda é quando ele chama Levi, que está em seu trabalho de coleta de impostos (Lc 5.27-32). Essas pessoas são chamadas a seguir Jesus e deixar sua profissão. Tendemos a pensar nelas como obreiros em tempo integral, mas “embaixadores” em tempo integral (2Co 5.20) seria uma descrição mais precisa. Embora esses indivíduos sejam chamados para um tipo específico de trabalho no reino de Jesus, Lucas não está dizendo que alguns chamados (por exemplo, pregar) são mais elevados que outros (por exemplo, pescar). Alguns dos seguidores de Jesus — como Pedro, João e Levi — seguem Jesus deixando o emprego que tinham (Lc 5.11). Em breve conheceremos outros — como Maria e Marta (Lc 10.38-41), outro cobrador de impostos chamado Zaqueu (Lc 19.1-10) e um oficial militar romano (Lc 1-10) — que seguem Jesus vivendo vidas transformadas nas ocupações atuais. Em um caso (Lc 8.26-39 ), Jesus ordenou que uma pessoa não deixasse sua casa nem viajasse com ele.

Aqueles que viajam com Jesus aparentemente encerram o trabalho assalariado e dependem de doações para se alimentarem (Lc 9.1-6; 10.1-24). Mas isso não é sinal de que a forma mais elevada de discipulado seja deixar o emprego. É um chamado específico para esses indivíduos e um lembrete de que toda nossa provisão vem de Deus, mesmo que ele normalmente nos sustente por meio de um emprego convencional. Existem muitos modelos para seguir a Cristo em nossas várias ocupações.

Além de aparecer nos locais de trabalho, Jesus também apresenta muitas de suas parábolas nos locais de trabalho, incluindo as parábolas das vasilhas de couro novas ou dos odres novos (Lc 5.36-39), do construtor prudente e o insensato (Lc 6.46-49), do semeador (Lc 8.4-15), dos servos vigilantes (Lc 12.35-41), do servo mau (Lc 12.42-47), do grão de mostarda (Lc 13.18-19), do fermento (Lc 13. 20-21), da ovelha perdida (Lc 15.1-7), da moeda perdida (Lc 15.8-10), o filho perdido ou pródigo (Lc 15.11-32) e dos lavradores perversos (Lc 20.9-19). É para os locais de trabalho que Jesus se volta quando quer dizer “o reino de Deus é como…”. Essas passagens geralmente não se destinam a ensinar sobre os locais de trabalho onde se passam, embora às vezes forneçam um pouco de orientação sobre o local de trabalho onde estão ambientadas. Em vez disso, Jesus usa aspectos familiares dos locais de trabalho principalmente para destacar pontos sobre o reino de Deus que transcendem o contexto específico das parábolas. Isso sugere que o trabalho comum tem grande significado e valor aos olhos de Jesus. Caso contrário, não faria sentido ilustrar o reino de Deus em termos de ambiente de trabalho.

Para saber mais sobre o chamado de Jesus aos discípulos, consulte Marcos 1.16-20 em Marcos e o trabalho e Mateus 3—4 em Mateus e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org. Para saber mais sobre o chamado em geral, consulte o artigo Visão geral do chamado e da vocação em www.teologiadotrabalho.org.

Cura no livro de Lucas

Voltar ao índice Voltar ao índice

Nos dias de Jesus, assim como agora, o trabalho de cura e saúde era essencial. Jesus cura pessoas em treze episódios do Evangelho de Lucas: 4.31-37; 4.38-44; 5.12-16; 5.17-26; 7.1-10; 7.11-17; 7.21; 8.26-39; 8.40-56; 9.37-45; 13.10-17; 17.11-19 e 18.35-43. Ao fazer isso, ele traz bem-estar às pessoas que sofrem, como anunciou que faria quando colocou sobre si o manto de rei. Além disso, as curas são atualizações do vindouro reino de Deus, no qual não haverá males (Ap 21.4). Deus não apenas ordena pessoas a trabalharem para o benefício dos outros, como as capacita a fazê-lo. O poder de Deus não se restringe ao próprio Jesus, pois, em duas passagens, Jesus capacita seus seguidores a curarem pessoas (Lc 9.1-6, 10.9). No entanto, todas as curas dependem do poder de Deus. O teólogo Jürgen Moltmann resume isso lindamente: “As curas de Jesus não são milagres sobrenaturais em um mundo natural. Eles são a única coisa verdadeiramente ‘natural’ em um mundo que é antinatural, demonizado e ferido”. [1] Elas são um sinal tangível de que Deus está retornando o mundo ao normal.

As curas relatadas nos evangelhos são geralmente milagrosas. Mas os esforços não milagrosos dos cristãos para restaurar corpos humanos também podem ser vistos como extensões do ministério vivificante de Jesus. Seria um erro não notar como a cura é importante para a obra redentora do reino de Deus. Esse trabalho é realizado diariamente por médicos, enfermeiros, tecnólogos, analistas de sinistros, atendentes de estacionamento de hospitais e inúmeras outras pessoas cujo trabalho possibilita a cura. O próprio Lucas era médico (Cl 4.14), e podemos imaginar seu interesse particular pela cura. No entanto, seria um erro inferir que as profissões de cura são chamados inerentemente mais elevados do que outras profissões.

Sábado e trabalho (Lc 6.1-11; 13.10-17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O sábado é uma parte essencial da compreensão bíblica do trabalho, e Jesus ensina sobre o sábado no evangelho de Lucas. Trabalho e descanso não são forças opostas, mas elementos de um ritmo que torna possível o bom trabalho e a verdadeira recreação. Idealmente, esse ritmo atende às necessidades das pessoas de provisão e saúde, mas em um mundo caído há momentos em que isso não acontece.

Senhor do sábado (Lc 6.1-11)

Em Lucas 6.1-5, é sábado, e Jesus e seus discípulos estão com fome. Eles colhem espigas em um campo, esfregam-nas nas mãos e comem os grãos. Alguns fariseus reclamam que isso constitui debulha e, portanto, é trabalhar no sábado. Jesus responde que Davi e seus companheiros também quebraram as regras sagradas quando estavam com fome, entrando na casa de Deus e comendo o pão consagrado que somente os sacerdotes tinham permissão de comer. Podemos imaginar que a conexão entre esses dois episódios é a fome. Quando se está com fome, é permitido trabalhar para se alimentar, mesmo que isso signifique trabalhar no sábado. Mas Jesus tira uma conclusão um pouco diferente. “O Filho do homem é Senhor do sábado” (Lc 6.5). Isso sugere que guardar o sábado se baseia na compreensão do coração de Deus, em vez de no desenvolvimento de regras e exceções cada vez mais detalhadas.

Libertos no sábado (Lc 13.10-17)

Outras curas que Jesus realiza no sábado são descritas em Lucas 6.9 e 14.5. No entanto, seria difícil desenvolver uma teologia do sábado apenas a partir dos eventos narrados em Lucas. Mas podemos observar que Jesus ancora sua compreensão do sábado nas necessidades das pessoas. As necessidades humanas vêm antes da guarda do sábado, embora guardar o sábado seja um dos Dez Mandamentos. No entanto, ao atender às necessidades humanas no sábado, o mandamento é cumprido, não abolido. A cura da mulher aleijada no sábado fornece um exemplo particularmente rico disso. “Há seis dias em que se deve trabalhar”, repreende a multidão, indignado, o chefe da sinagoga. “Venham para ser curados nesses dias, e não no sábado” (Lc 13.14). A resposta de Jesus começa com a lei. Se as pessoas davam de beber a seus animais no sábado, como era lícito, “esta mulher, uma filha de Abraão a quem Satanás mantinha presa por dezoito longos anos, não deveria no dia de sábado ser libertada daquilo que a prendia?” (Lc 13.16).

Discussões adicionais sobre o sábado — em alguns casos, com uma perspectiva diferente — podem ser encontradas em Marcos 1.21-45 e Marcos 2.23—3.6 em Marcos e o trabalho e no artigo Descanso e trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

A ética do conflito (Lc 6.27-36; 17.3-4)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Faça o bem aos que o odeiam (Lc 6.27-36)

Todos os locais de trabalho experimentam conflitos. Em Lucas 6.27-36, Jesus aborda situações de conflito. “Amem os seus inimigos, façam o bem aos que os odeiam, abençoem os que os amaldiçoam, orem por aqueles que os maltratam” (Lc 6.27-28). Lucas não deixa dúvidas de que esse é um ensinamento para o mundo financeiro, pois ele o relaciona especificamente com emprestar dinheiro. “Emprestem [aos seus inimigos], sem esperar receber nada de volta” (Lc 6.35). Essa não parece uma estratégia viável de empréstimo comercial, mas talvez possamos entendê-la de forma mais abstrata. Os cristãos não devem usar seu poder para esmagar pessoas com quem estão em conflito. Em vez disso, devem trabalhar ativamente para o bem delas. Isso pode se aplicar ao local de trabalho em dois níveis.

No nível individual, significa que devemos trabalhar para o bem daqueles com quem estamos em conflito. Isso não significa evitar conflitos ou afastar-se da competição. Mas que, se você está competindo com um colega de trabalho por uma promoção, por exemplo, deve ajudá-lo a realizar o trabalho dele da melhor maneira possível, enquanto tenta fazer o seu ainda melhor.

No nível corporativo, significa não esmagar sua concorrência, fornecedores ou clientes, especialmente com ações injustas ou improdutivas, como ações judiciais frívolas, monopolização, rumores falsos, manipulação de ações e coisas do gênero. Cada ocupação tem suas próprias circunstâncias, e seria tolice extrair uma aplicação universal dessa passagem de Lucas. Competir arduamente nos negócios por meio de fraude intencional pode ser diferente de competir arduamente no basquete por meio de uma falta intencional. Portanto, um elemento essencial da participação dos crentes em uma ocupação é tentar descobrir quais são os modos adequados de conflito e competição à luz dos ensinamentos de Jesus.

Repreender — Arrepender-se — Perdoar (Lc 17.3-4)

Mais adiante, Jesus aborda novamente o conflito interpessoal. “Se o seu irmão pecar, repreenda-o e, se ele se arrepender, perdoe-lhe” (Lc 17.3). Não devemos tomar isso apenas como terapia familiar, porque Jesus aplica o termo “irmão” a todos aqueles que o seguem (Mc 3.35). É um bom comportamento organizacional confrontar as pessoas diretamente e restaurar bons relacionamentos quando o conflito for resolvido. Mas o versículo seguinte quebra os limites do senso comum. “Se pecar contra você sete vezes no dia, e sete vezes voltar a você e disser: ‘Estou arrependido’, perdoe-lhe” (Lc 17.4). Na verdade, Jesus não apenas ordena o perdão, mas, em primeiro lugar, a ausência de julgamento. “Não julguem e vocês não serão julgados. Não condenem e não serão condenados” (Lc 6.37). “Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho?” (Lc 6.41).

Seria sábio ser tão imparcial no trabalho? O bom senso não é um requisito para uma boa governança e desempenho organizacional? Talvez Jesus esteja falando sobre desistir não do bom senso, mas do julgamento e da condenação — a atitude hipócrita que acredita que os problemas ao redor são inteiramente culpa de outra pessoa. Talvez Jesus não queira tanto dizer “ignore repetidos lapsos morais ou incompetência”, mas sim “pergunte a si mesmo como suas ações podem ter contribuído para o problema”. Talvez ele não queira dizer “não avalie o desempenho dos outros”, mas sim “descubra o que você pode fazer para ajudar as pessoas ao seu redor a terem sucesso”. Talvez o ponto de Jesus não seja clemência, mas misericórdia. “Como vocês querem que os outros lhes façam, façam também vocês a eles” (Lc 6.31).

A provisão de Deus (Lc 9.10-17; 12.4-7; 12.22-31)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Por todo o Evangelho de Lucas, Jesus ensina que viver no reino de Deus significa olhar para Deus, e não para o esforço humano, como a fonte última das coisas de que precisamos para a vida. Nosso trabalho não é opcional, mas também não é absoluto. Nosso trabalho é sempre uma participação na graça da provisão de Deus.

Jesus alimenta cinco mil (Lc 9.10-17)

Jesus demonstra isso em ações antes de ensiná-lo em palavras. Ao alimentar os cinco mil (Lc 9.10-17), Deus, na pessoa de Jesus, assume a responsabilidade de satisfazer a necessidade de comida da multidão. Faz isso porque eles estão com fome. Não está exatamente declarada a maneira como Jesus opera esse milagre. Ele faz uso de alimentos comuns — os cinco pães e os dois peixes — e, pelo poder de Deus, um pouco de comida se torna suficiente para alimentar tantas pessoas. Alguns dos discípulos de Jesus (os pescadores) trabalhavam no ramo de alimentação, e outros (por exemplo, Levi, o cobrador de impostos) estavam no serviço público. Jesus aproveita o trabalho costumeiro deles, enquanto eles organizam a multidão e servem o pão e o peixe. Em vez de substituir os meios humanos comuns de fornecer alimento, Jesus os incorpora, e os resultados são milagrosamente bem-sucedidos. O trabalho humano é capaz de fazer o bem ou o mal. Quando fazemos o que Jesus orienta, nosso trabalho é bom. Como tantas vezes vemos no Evangelho de Lucas, Deus extrai resultados milagrosos do trabalho comum — neste caso, o trabalho de suprir as necessidades da vida.

Jesus ensina sobre a provisão de Deus (Lc 12.4-7; 12.22-31)

Mais tarde, Jesus ensina sobre a provisão de Deus. “Portanto eu digo a vocês: Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir... Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida?” (Lc 12.22-31). Jesus oferece isso como puro bom senso. Visto que a preocupação não pode acrescentar nem uma hora sequer à sua vida, por que se preocupar? Jesus não diz que não trabalhemos, apenas que não nos preocupemos se nosso trabalho fornecerá o suficiente para atender às necessidades.

Em uma economia de abundância, este é um excelente conselho. Por causa da preocupação, muitos de nós são movidos a trabalhar em empregos de que não gostamos, cumprindo horas que prejudicam nosso prazer de viver, negligenciando as necessidades dos que nos rodeiam. Para nós, o objetivo não parece ser “mais” dinheiro, mas sim “dinheiro suficiente”, o suficiente para nos sentirmos seguros. No entanto, raramente nos sentimos seguros, por mais dinheiro que ganhemos. Na verdade, muitas vezes é verdade que, quanto mais bem-sucedidos somos em ganhar mais dinheiro, menos seguros nos sentimos, porque agora temos mais a perder. É quase como se estivéssemos em melhor situação se tivéssemos algo genuíno com que nos preocupar, assim como os pobres (“Bem-aventurados vocês que agora têm fome, pois serão satisfeitos” Lc 6.21). Para sair dessa rotina, Jesus orienta a buscar “o Reino de Deus, e essas coisas serão acrescentadas a vocês” (Lc 12.31). Por quê? Porque, se seu objetivo final é o reino de Deus, então você tem a certeza de que seu objetivo final será alcançado. E, sentindo essa segurança, você é capaz de reconhecer que o dinheiro que ganha é de fato suficiente, que Deus está suprindo suas necessidades. Ganhar um milhão de dólares e ter medo de perdê-lo é como ter uma dívida de um milhão de dólares. Ganhar mil dólares e saber que, no fim das contas, você ficará bem é como receber um presente de mil dólares.

Mas e se você não tiver mil dólares? Cerca de um terço da população mundial subsiste com menos de mil dólares por ano. [1] Essas pessoas podem ter o suficiente para viver hoje, mas enfrentam a ameaça de fome ou coisa pior a qualquer momento, sejam elas crentes ou não. É difícil conciliar o duro fato da pobreza e da fome com a promessa de provisão de Deus. Jesus não ignora essa situação. “Vendam o que têm e deem esmolas”, diz ele (Lc 12.33, NVI), pois sabe que algumas pessoas são desesperadamente pobres. É por isso que devemos dar a elas. Talvez, se todos os seguidores de Jesus usassem seu trabalho e suas riquezas para aliviar e prevenir a pobreza, nos tornaríamos os meios de provisão de Deus para os desesperadamente pobres. Mas, como os cristãos não o fizeram, não fingiremos falar aqui em nome de pessoas que são tão pobres que sua provisão é duvidosa. Em vez disso, perguntemos se nossa própria provisão está atualmente em risco. Nossa preocupação é proporcional a qualquer perigo genuíno de não ter o que realmente precisamos? As coisas com as quais nos preocupamos são necessidades genuínas? As coisas com as quais nos preocupamos são remotamente comparáveis ​​às coisas de que os pobres precisam desesperadamente, e que não fazemos nada para lhes proporcionar? Caso contrário, qualquer coisa que não seja o conselho de Jesus de não se preocupar com as necessidades da vida seria imprudente.

O bom samaritano em ação — amando o próximo como a si mesmo (Lc 10.25-37)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O tema da provisão de Deus por meio do trabalho humano continua na parábola do bom samaritano. Nessa parábola, a provisão de Deus para a vítima de um crime vem por meio da compaixão de um viajante estrangeiro, que evidentemente tem riqueza suficiente para pagar os cuidados médicos a um estranho. Essa pode ser a mais conhecida de todas as parábolas de Jesus, embora ocorra apenas no Evangelho de Lucas. Segue-se imediatamente após o relato de Lucas sobre o Grande Mandamento. Nos evangelhos de Mateus e Marcos, Jesus diz que o maior mandamento de toda a Escritura é “amar a Deus” e “amar o próximo”. Em Lucas 10.25-37 a discussão do maior mandamento continua diretamente na parábola do bom samaritano. Para as implicações do Grande Mandamento no local de trabalho, consulte “ O Grande Mandamento é uma Grande Estrutura (Mateus 22.34-40)” e “Nossa obra cumpre o grande mandamento (Mc 12.28-34)”.

No relato de Lucas, o perito na lei começa perguntando a Jesus o que ele deve fazer para herdar a vida eterna. Jesus pede ao perito que ele próprio resuma o que está escrito na lei, e o perito responde com o Grande Mandamento: “Ame o Senhor, o seu Deus [...] e ame o seu próximo como a si mesmo”. E Jesus reafirma ser que essa, de fato, a chave para a vida.

O perito então faz a seguinte pergunta a Jesus: “E quem é o meu próximo?”. Jesus responde contando uma história que foi chamada de “A parábola do bom samaritano”. Essa história é tão convincente que penetrou no conhecimento popular muito além dos círculos cristãos. As pessoas que nunca pegaram uma Bíblia ainda reconhecerão o significado do termo “bom samaritano” como alguém que cuida de um estranho em necessidade.

Dada a ideia cultural de um “bom samaritano” como alguém com um talento extraordinário para a compaixão, podemos ser tentados a ignorar o verdadeiro samaritano da história de Jesus. E, no entanto, é importante para a compreensão de nosso próprio trabalho examinar por que o samaritano que Jesus descreve era um homem de negócios bem-sucedido.

O samaritano da história de Jesus se depara com um judeu ferido por ladrões ao longo de uma conhecida rota comercial. O samaritano provavelmente viajava por essa rota com frequência, como fica evidente pelo fato de ser conhecido em uma pousada próxima e considerado confiável o suficiente pelo dono da pousada para exigir uma extensão dos serviços a crédito. Seja qual for a natureza de seu negócio, o samaritano era bem-sucedido o suficiente para poder comprar azeite e vinho para fins medicinais e fornecer hospedagem em uma estalagem para um completo estranho. Ele está disposto a gastar seu dinheiro, assim como seu tempo, com o estranho. O samaritano suspende seus outros negócios para atender às necessidades do estrangeiro ferido.

A parábola do bom samaritano pode, portanto, ser interpretada como uma história sobre como usar o sucesso material em benefício de outros. O herói da parábola gasta seu dinheiro com um estranho sem nenhuma obrigação direta de fazê-lo. Eles não mantêm nenhuma relação de parentesco e nem mesmo de fé. De fato, os samaritanos e os judeus eram frequentemente antagônicos. E, no entanto, na mente de Jesus, amar a Deus é transformar qualquer pessoa que precise de nossa ajuda em nosso “próximo”. Jesus enfatiza esse ponto invertendo o foco da pergunta original do perito na lei. O perito pergunta “quem é meu próximo?”, uma pergunta que começa com o eu e depois pergunta a quem o eu é obrigado a ajudar. Jesus inverte a pergunta: “Qual destes três você acha que foi o próximo do homem?”, uma pergunta que se concentra no homem necessitado e pergunta quem é obrigado a ajudá-lo. Se começarmos pensando na pessoa necessitada, e não em nós mesmos, será que teremos uma perspectiva diferente sobre se Deus nos chama para ajudar?

Isso não significa que somos chamados à disponibilidade absoluta e infinita. Ninguém é chamado a atender a todas as necessidades do mundo. Está além de nossa capacidade. O samaritano não larga o emprego para procurar todos os viajantes feridos no Império Romano. Mas, quando ele cruza — literalmente — com alguém que precisa da ajuda que ele pode dar, ele age. “Um próximo”, diz o pregador Haddon Robinson, “é alguém cujas necessidades você tem a capacidade de atender”.

O samaritano não ajuda o homem ferido apenas jogando algumas moedas em seu caminho. Em vez disso, ele garante que todas suas necessidades sejam atendidas, tanto no que se refere às questões médicas imediatas quanto à de um espaço para se recuperar. O samaritano, portanto, cuida do homem como cuidaria de si mesmo. Isso cumpre Levítico 19.18: “Ame cada um o seu próximo como a si mesmo”. O samaritano assume um grau extraordinário de risco para ajudar esse estranho. Ele corre o risco de ser atacado pelos mesmos bandidos quando se abaixa para ver o que aconteceu com o homem. Corre o risco de ser enganado pelo hospedeiro. Corre o risco de ficar sobrecarregado pelas despesas e pelo peso emocional de cuidar de alguém em situação grave de saúde. Mas ele assume esses riscos porque age como se se tratasse de sua própria vida. Esse é o melhor exemplo de Jesus do que significa ser alguém que ama “seu próximo como a si mesmo”.

Outra característica da história que teria surpreendido os ouvintes de Jesus é a etnia do herói, um samaritano. Os judeus, o povo de Jesus, consideravam os samaritanos étnica e religiosamente inferiores. No entanto, o samaritano está mais sintonizado com a Lei de Moisés do que os líderes religiosos judeus que passam do outro lado da estrada. Sua presença em território judeu não é um perigo a ser temido, mas uma graça salvadora bem-vinda.

No trabalho, temos muitas chances de, muito além de divisões étnicas ou culturais, ser próximos de colegas de trabalho, clientes e outras pessoas. Ser um bom samaritano no local de trabalho significa cultivar uma consciência específica das necessidades do outro. Existem pessoas em seu local de trabalho que estão sendo roubadas de alguma forma? Muitas vezes, grupos étnicos específicos são privados de reconhecimento ou promoção. Um cristão consciencioso deve ser aquele que diz: “Estamos dando uma chance justa a essa pessoa?”.

Assim como havia crescido a inimizade entre judeus e samaritanos, a administração e os funcionários muitas vezes se veem como duas tribos distintas. Mas não precisa ser assim. Uma empresa não via as coisas dessa forma. Arthur Demoulas, CEO da rede de supermercados Market Basket, fazia questão de tratar seus funcionários excepcionalmente bem. Ele lhes pagava bem acima do salário-mínimo e se recusou a abandonar o plano de participação nos lucros da empresa mesmo com a perda financeira oriunda de uma crise econômica. Estabeleceu conexões diretas com seus funcionários, aprendendo o nome do maior número possível de funcionários. Isso não era pouca coisa em uma empresa de 25 mil funcionários. Quando o conselho de administração da Market Basket demitiu Arthur Demoulas, em 2014, em grande parte devido a suas práticas generosas, os funcionários da rede de supermercados entraram em greve. Os trabalhadores se recusaram a reabastecer as prateleiras até que Arthur Demoulas recuperasse o controle da empresa. Talvez tenha sido a primeira vez que trabalhadores do escalão inferir de uma grande empresa se organizaram para escolher seu próprio CEO, e isso foi impulsionado pela generosidade abnegada de Arthur Demoulas.

Nesse caso, ser um bom samaritano realmente impulsionou o sucesso de Arthur Demoulas. Talvez Jesus tenha dado não apenas um bom conselho espiritual, mas um bom conselho de negócios quando diz “vá e faça o mesmo”.

O administrador astuto e o filho pródigo (Lc 16.1-13; 15.11-32)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A parábola do administrador astuto (Lc 16.1-13)

A chave para a segurança em relação às coisas de que precisamos não é ganhar e economizar com ansiedade, mas servir e gastar de forma digna de confiança. Se Deus puder confiar em nós para gastarmos o dinheiro em atender às necessidades dos outros, então o dinheiro de que precisamos também será fornecido. Essa é a ideia da parábola do administrador desonesto. Nela, um gerente desperdiça os bens de seu senhor e, como resultado, é notificado de que será demitido. Ele usa seus últimos dias no trabalho para desfalcar ainda mais seu mestre, mas há uma estranha reviravolta em como ele faz isso. Ele não tenta roubar de seu mestre. Talvez ele saiba que será impossível levar qualquer coisa consigo ao deixar a propriedade. Em vez disso, ele reduz fraudulentamente as dívidas dos devedores de seus patrões, esperando que eles retribuam o favor e o sustentem quando estiver desempregado.

Como o gerente desonesto, não podemos levar nada conosco quando partirmos desta vida. Mesmo durante esta vida, nossas economias podem ser destruídas por hiperinflação, quebra de mercado, roubo, confisco, ações judiciais, guerra e desastres naturais. Portanto, acumular grandes quantias não oferece segurança real. Em vez disso, devemos gastar nossa riqueza para prover o sustento de outras pessoas e depender delas para fazer o mesmo por nós quando surgir a necessidade. “Usem a riqueza deste mundo ímpio para ganhar amigos, de forma que, quando ela acabar, estes os recebam nas moradas eternas” (Lc 16.9). Ao ajudar os devedores de seu senhor, o mordomo desonesto está criando amizades. A fraude mútua provavelmente não é a melhor maneira de construir relacionamentos. Mas, aparentemente, é melhor do que não construir relacionamentos. Construir relacionamentos é muito mais eficaz para obter segurança do que construir riqueza. A palavra “eternas” significa que bons relacionamentos nos ajudam em tempos de dificuldade, e eles também permanecerão na vida eterna.

Um exemplo extremo desse princípio ocorre sempre que guerras, ações terroristas ou desastres destroem e estrutura econômica da sociedade. Em um campo de refugiados, em uma prisão ou em uma economia hiperinflacionada, a riqueza que você talvez tenha acumulado não é capaz de ajudá-lo a conseguir nem mesmo um pedaço de pão. Mas, se você cuidou dos outros, pode ser que eles cuidem de você nos momentos mais difíceis. Observe que aqueles a quem o gerente desonesto ajuda não são ricos. Eles são devedores. O gerente desonesto não depende da riqueza deles, mas do relacionamento de dependência mútua que construiu com eles.

No entanto, Jesus não está dizendo que dependa dos sentimentos inconstantes das pessoas que você pode ter ajudado ao longo dos anos. `

A medida que avança, a história passa rapidamente dos devedores para o mestre (Lc 16.8), e Jesus endossa a máxima do mestre: “Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito” (Lc 16.10). Isso aponta para Deus como aquele que garante que usar o dinheiro em relacionamentos levará a uma segurança duradoura. Quando você constrói bons relacionamentos com as pessoas, passa a ter um bom relacionamento com Deus. Jesus não diz o que é mais importante para Deus, se a generosidade com os pobres ou o bom relacionamento com as pessoas. Talvez sejam ambos. “Assim, se vocês não forem dignos de confiança em lidar com as riquezas deste mundo ímpio, quem confiará as verdadeiras riquezas a vocês?” (Lc 16.11). As verdadeiras riquezas são os bons relacionamentos, baseados em nossa adoção mútua como filhos de Deus, e um bom relacionamento com Deus, que se concretiza por meio da generosidade com os pobres. Bons relacionamentos produzem bons frutos, o que nos dá maior capacidade de construir bons relacionamentos e ser generosos com os outros. Se Deus puder confiar em você como alguém generoso com pouco dinheiro e usá-lo para construir bons relacionamentos, ele poderá lhe confiar mais recursos.

Isso sugere que, se você não economizou o suficiente para se sentir seguro, a resposta não é tentar economizar mais. Em vez disso, gaste o pouco que tem exercendo generosidade ou hospitalidade. As reações das pessoas a sua generosidade e hospitalidade podem proporcionar mais segurança do que o ato de economizar mais dinheiro. É desnecessário dizer que isso deve ser feito com sabedoria, de maneira que realmente beneficie os outros, e não apenas para aliviar sua consciência ou lisonjear as pessoas que serão escolhidas como futuras beneficiárias. De qualquer forma, sua segurança máxima está na generosidade e na hospitalidade de Deus.

Ecos do Filho Pródigo (Lc 15.11-32)

Este pode ser um conselho financeiro surpreendente: não poupe, mas gaste o que tiver para se aproximar de pessoas. Observe, no entanto, que o conselho aparece imediatamente após a história do filho pródigo, ou filho perdido (Lc 15.11-32). Nessa história, o filho mais novo desperdiça toda sua fortuna, enquanto o filho mais velho economiza seu dinheiro com uma atitude tão frugal que nem consegue entreter seus amigos mais próximos (Lc 15.29). A devassidão do filho mais novo o leva à ruína. No entanto, o desperdício de sua riqueza o leva a recorrer ao pai em total dependência. A alegria do pai por tê-lo de volta elimina quaisquer sentimentos negativos que ele tenha sobre o filho que lhe custou metade da fortuna. Em contraste, o firme apego do filho mais velho àquilo que resta da riqueza da família o afasta de um relacionamento próximo com o pai.

Nas histórias do administrador desonesto e do filho pródigo, Jesus não diz que a riqueza é inerentemente ruim. Em vez disso, ele diz que o uso adequado da riqueza é gastá-la, de preferência nos propósitos de Deus — mas, se não for nisso, então que seja usada em coisas que aumentarão nossa dependência de Deus.

Jesus e a riqueza no livro de Lucas

Voltar ao índice Voltar ao índice

As duas últimas passagens passaram do tópico da provisão para o tópico da riqueza. Embora Jesus não tenha nada contra a riqueza, ele a vê com desconfiança. A economia de mercado baseia-se na geração, troca e acúmulo de riqueza de propriedade privada. Essa realidade está tão profundamente enraizada em muitas sociedades que a busca e o acúmulo de riqueza pessoal se tornaram, para muitos, fins em si mesmos. Mas, como vimos, Jesus não vê o acúmulo de riqueza como um fim adequado em si mesmo. Assim como o trabalho de alguém (modelado na vida de Jesus) deve exibir uma profunda preocupação pelos outros e uma relutância em usar o poder ou a autoridade relacionados ao trabalho apenas para ganho próprio, a riqueza também deve ser usada com uma profunda preocupação com o próximo. Embora o segundo volume de Lucas, Atos (ver Atos e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org), tenha mais material relacionado à riqueza, seu Evangelho também apresenta desafios significativos às suposições dominantes sobre riqueza.

Preocupação com os ricos (Lc 6.25; 12.13-21; 18.18-30)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O primeiro problema de Jesus com a riqueza é que ela tende a substituir Deus na vida das pessoas ricas. “Pois, onde estiver o seu tesouro, ali também estará o seu coração” (Lc 12.34). Jesus quer que as pessoas reconheçam que sua vida é definida não pelo que elas têm, mas pelo amor de Deus por elas e seu chamado para sua vida. Lucas espera que nós — bem como o trabalho que realizamos — sejamos fundamentalmente transformados por nossos encontros com Jesus.

Mas ter riqueza parece nos tornar teimosamente resistentes a qualquer transformação de vida. Ela nos proporciona os meios para manter o status quo, para nos tornarmos independentes, para fazer as coisas do nosso jeito. A vida verdadeira, a eterna, é uma vida de relacionamento com Deus (e com as pessoas), e a riqueza que substitui Deus leva, em última análise, à morte eterna. Como Jesus disse, “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro e perder-se ou destruir a si mesmo?” (Lc 9.25). Os ricos podem ser atraídos para longe da vida com Deus por sua própria riqueza, um destino do qual os pobres escapam. “Bem-aventurados vocês os pobres, pois a vocês pertence o Reino de Deus”, diz Jesus (Lc 6.20). Esta não é uma promessa de recompensa futura, mas uma declaração da realidade presente. Os pobres não têm riquezas que os impeçam de amar a Deus. Mas “ai de vocês que agora têm fartura, porque passarão fome” (Lc 6.25). “Passar fome” parece um eufemismo para “perder a vida eterna, colocando Deus fora de sua órbita de interesse”, mas essa é claramente a implicação. No entanto, talvez haja esperança até mesmo para os miseravelmente ricos.

A parábola do rico insensato (Lc 12.13-21)

A parábola do rico insensato (Lc 12.13-21) aborda esse tema de forma dramática. “A terra de certo homem rico produziu muito”, demais para caber nos seus celeiros. “O que vou fazer?”, preocupa-se ele, e decide derrubar seus celeiros e construir outros maiores. Ele está entre aqueles que acreditam que mais riqueza levará a menos preocupação com dinheiro. Mas antes de descobrir quão vazia é sua preocupante riqueza, ele encontra um destino ainda mais difícil: a morte. Enquanto ele se prepara para morrer, a pergunta zombeteira de Deus é uma espada de dois gumes: “Então, quem ficará com o que você preparou?” (Lc 12.20). Um dos gumes é a resposta: “não será você”, pois a riqueza com a qual ele contou para satisfazê-lo por muitos anos passará instantaneamente para outra pessoa. O outro gume corta ainda mais profundo, e é a resposta: “você”. Você — o rico insensato — de fato terá o que preparou para si mesmo, uma vida após a morte sem Deus, a verdadeira morte. Sua riqueza o impediu de desenvolver um relacionamento com Deus, o que é evidenciado por seu fracasso em sequer pensar em usar sua safra abundante para prover aos necessitados. “Assim acontece com quem guarda para si riquezas, mas não é rico para com Deus” (Lc 12.21).

A amizade com Deus é vista aqui em termos econômicos. Os amigos de Deus que são ricos proveem aos amigos de Deus que são pobres. O problema do rico insensato é que ele acumula coisas para si mesmo, sem produzir empregos ou prosperidade para os outros. Isso significa que ele ama as riquezas em vez de Deus e que não é generoso com os pobres. Podemos imaginar uma pessoa rica que realmente ama a Deus e que mantém a riqueza com leveza, alguém que dá liberalmente aos necessitados, ou melhor ainda que investe dinheiro na produção de bens e serviços genuínos, emprega uma força de trabalho crescente e trata as pessoas com justiça e equidade no trabalho. De fato, podemos encontrar muitas pessoas assim na Bíblia (por exemplo, José de Arimateia, Lc 23.50) e no mundo que nos rodeia. Essas pessoas são abençoadas tanto na vida quanto depois. No entanto, não queremos remover o aguilhão da parábola: se é possível crescer (economicamente e de outra forma) com graça, também é possível crescer apenas com ganância; a prestação de contas final é com Deus.

O homem rico (Lc 18.18-30)

O encontro de Jesus com o homem rico (Lc 18.18-30) aponta para a possibilidade de redenção das garras da riqueza. Esse homem não permitiu que a riqueza substituísse inteiramente seu desejo por Deus. Ele começa perguntando a Jesus: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?”. Em resposta, Jesus resume os Dez Mandamentos. “A tudo isso tenho obedecido desde a adolescência”, responde o homem (Lc 18.21), e Jesus acredita no que ele diz. Mesmo assim, Jesus enxerga a influência corruptível que a riqueza está exercendo sobre o homem. Então, ele lhe oferece uma maneira de acabar com essa influência perniciosa. “Venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois venha e siga-me” (Lc 18.22). Qualquer pessoa que tenha o mais profundo desejo por Deus certamente aceitaria o convite para uma intimidade diária e pessoal com o Filho de Deus. Mas é tarde demais para o homem rico — seu amor pela riqueza já excede seu amor por Deus. “Ouvindo isso, ele ficou triste, porque era muito rico” (Lc 18.23). Jesus reconhece os sintomas e diz: “Como é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus! De fato, é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Lc 18.24-25).

Em contraste, os pobres muitas vezes mostram uma incrível generosidade. A viúva pobre é capaz de dar tudo o que tem por amor a Deus (Lc 21.1-4). Não se trata de um julgamento sumário de Deus contra pessoas ricas, mas uma observação do forte poder de sedução da riqueza. As pessoas próximas de Jesus e do homem também reconhecem o problema e se desesperam diante da quase impossibilidade de resistir à atração da riqueza, embora eles mesmos tenham deixado tudo para seguir Jesus (Lc 18.28). Jesus, no entanto, não se desespera, pois “o que é impossível para os homens é possível para Deus” (Lc 18.27). O próprio Deus é a fonte de força para o desejo de amá-lo mais que às riquezas.

Talvez o efeito mais insidioso da riqueza seja que ela pode nos impedir de desejar um futuro melhor. Se você é rico, as coisas estão bem agora. A mudança se torna uma ameaça, e não uma oportunidade. No caso do homem rico, isso o cega para a possibilidade de que a vida com Jesus possa ser incomparavelmente maravilhosa. Jesus oferece ao homem rico um novo senso de identidade e segurança. Se ele pudesse imaginar como isso mais do que compensaria a perda de sua riqueza, talvez pudesse ter aceitado o convite. A moral da história vem com a fala dos discípulos de sua desistência de tudo diante da promessa de Jesus de alcançarem riquezas transbordantes por pertencerem ao reino de Deus. Mesmo nesta era, Jesus diz, eles receberão “muitas vezes mais” em recursos e relacionamentos, e “na era futura, a vida eterna” (Lc 18.29-30). É isso o que o homem rico está tragicamente perdendo. Ele só consegue enxergar o que perderá, não o que ganhará.

A história do homem rico é discutida em mais detalhes em Marcos 10.17-31 em Marcos e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Preocupação com os pobres (Lc 6.17-26; 16.19-31)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O bem-estar dos ricos não é a única preocupação de Jesus com relação à riqueza. Ele também se preocupa com o bem-estar dos pobres. “Vendam o que têm”, diz ele, “e deem esmolas [aos pobres]. Façam para vocês bolsas que não se gastem com o tempo, um tesouro nos céus que não se acabe, onde ladrão algum chega perto e nenhuma traça destrói" (Lc 12.33). Se o acúmulo de riqueza está prejudicando os ricos, quanto mais prejudicará os pobres?

A preocupação persistente de Deus pelos pobres e impotentes é inerente ao Magnificat (Lc 1.46-56) e ao Sermão da Planície (Lc 6.17-26) e, de fato, a todo o Evangelho de Lucas. Mas Jesus leva isso ao ápice na parábola do rico e Lázaro (Lc 16.19-31). Esse homem rico se veste com roupas majestosas e vive no luxo, sem preocupar-se com ajudar a aliviar a situação de Lázaro, que está morrendo devido à fome e à doença. Lázaro morre, mas também, é claro, o homem rico, o que nos lembra que, afinal, a riqueza não tem grande poder. Os anjos carregam Lázaro para o céu, aparentemente sem nenhuma razão além de sua pobreza (Lc 16.22), exceto, talvez, por um amor a Deus que nunca fora substituído pela riqueza. O rico vai para o Hades (palavra que também pode ser traduzida como “inferno”), aparentemente sem nenhuma razão além de sua riqueza (Lc 16.23), exceto, talvez, por um amor à riqueza que não deixou espaço para Deus ou para outras pessoas. A implicação do dever do homem rico por cuidar das necessidades de Lázaro enquanto podia é forte (Lc 16.25). Talvez, se o fizesse, poderia ter reencontrado espaço em si mesmo para um relacionamento correto com Deus, e assim evitado seu fim miserável. Além disso, como muitos ricos, ele se importava com sua família, ao querer avisá-los sobre o julgamento que estava por vir, mas o cuidado com a família mais ampla de Deus, como revelado na lei e nos profetas, estava tristemente ausente, e nem mesmo alguém que voltasse dos mortos poderia remediar isso.

Investindo na obra de Jesus (Lc 8.3; 10.7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A parábola do administrador astuto (Lc 16.1-13) ensina a importância de usar o dinheiro com sabedoria. Lucas fornece exemplos por meio daqueles que investem seu dinheiro na obra de Jesus: Maria Madalena, Joana e Susana são citadas ao lado dos doze discípulos em razão de seu apoio financeiro à obra de Jesus. É surpreendente como as mulheres figuram com destaque nessa lista, porque poucas delas no mundo antigo possuíam riqueza. No entanto, “essas mulheres ajudavam a sustentá-los com os seus bens” (Lc 8.3). Mais tarde, quando Jesus envia evangelistas, ele lhes diz que devem depender da generosidade das pessoas entre as quais servem, “pois o trabalhador merece o seu salário” (Lc 10.7).

O que pode parecer surpreendente é que esses dois comentários um tanto informais ​​são tudo o que Lucas diz sobre doar para o que hoje reconheceríamos como a igreja. Comparado com a preocupação incessante que Jesus mostra em dar aos pobres, ele não dá muita importância à contribuição à igreja. Em nenhum lugar, por exemplo, ele interpreta o dízimo do Antigo Testamento como algo pertencente à igreja. Isso não quer dizer que Jesus opõe a generosidade aos pobres à generosidade à igreja. Trata-se apenas de uma questão de ênfase. Devemos observar que dar dinheiro não é o único meio de exercer a generosidade. As pessoas também participam da obra redentora de Deus quando empregam criativamente suas habilidades, paixões, relacionamentos e orações.

Maria e Marta (Lc 10.38-42)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A história de Marta e Maria (Lc 10.38-42) também coloca a generosidade no contexto do amor por Deus. Marta trabalha para preparar o jantar, enquanto Maria se senta e ouve Jesus. Marta pede a Jesus que repreenda sua irmã por não ajudar, mas, em vez disso, Jesus elogia Maria. Lamentavelmente, essa história muitas vezes sofreu interpretações duvidosas, com Marta se tornando a garota-propaganda de tudo o que há de errado com a vida de ocupações e distrações, ou o que a Igreja Medieval chamava de vida ativa ou profissional de Marta, que embora era permitida era inferior à vida perfeita de contemplação ou à do mosteiro. Mas a história deve ser lida tendo como pano de fundo o Evangelho de Lucas como um todo, em que a obra da hospitalidade (uma forma vital de generosidade no antigo Oriente Próximo) é um dos principais sinais da irrupção do reino de Deus. [1]

Maria e Marta não são inimigas, mas irmãs. Duas irmãs que brigam sobre os deveres domésticos não podem ser razoavelmente interpretadas como uma batalha de modo de vida incompatível. O serviço generoso de Marta não é minimizado por Jesus, mas as preocupações dela mostram que seu serviço precisa ser fundamentado no tipo de amor de Maria pelo Senhor. Juntas, as irmãs encarnam a verdade de que generosidade e amor a Deus são realidades entrelaçadas. Marta realiza o tipo de generosidade que Jesus recomenda em Lucas 14.12-14, pois ele é alguém que não pode retribuir na mesma moeda. Ao sentar-se aos pés de Jesus, Maria mostra que todo o nosso serviço deve ser fundamentado em um relacionamento pessoal vívido com ele. Seguir a Cristo significa tornar-se como Marta e Maria. Seja generoso e ame a Deus. Isso se reforça mutuamente, assim como o relacionamento das duas irmãs.

Generosidade: O segredo para romper as garras da riqueza (Lc 10.38-42; 14.12-14; 24.13-15)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Isso sugere que a arma secreta de Deus é a generosidade. Se pelo poder de Deus você pode ser generoso, a riqueza começa a perder domínio sobre você. Já vimos como a generosidade agia profundamente no coração da viúva pobre. É muito mais difícil para os ricos serem generosos, mas Jesus ensina como a generosidade também pode ser possível para eles. Um caminho crucial para a generosidade é doar a pessoas pobres demais para retribuírem.

Jesus disse também àquele que o havia convidado: “Quando você der um banquete ou jantar, não convide seus amigos, irmãos ou parentes, nem seus vizinhos ricos; se o fizer, eles poderão também, por sua vez, convidá-lo, e assim você será recompensado. Mas, quando der um banquete, convide os pobres, os aleijados, os mancos e os cegos. Feliz será você, porque estes não têm como retribuir. A sua recompensa virá na ressurreição dos justos” (Lc 14.12-14).

A generosidade que recebe favores em troca não é generosidade, mas compra de favores. A verdadeira generosidade é dar quando não há retorno possível, e é isso que é recompensado na eternidade. É claro que a recompensa no céu poderia ser vista como uma espécie de gratificação adiada, e não como verdadeira generosidade: você dá porque espera ser recompensado na ressurreição, e não durante a vida terrena. Esse parece ser um tipo mais sábio de compra de favores, mas, mesmo assim, ainda é compra de favores. As palavras de Jesus não excluem a interpretação da generosidade como compra de favores eternos, mas há uma interpretação mais profunda e satisfatória. A verdadeira generosidade — do tipo que não espera ser recompensada nesta vida ou na próxima — rompe o domínio da riqueza que substitui Deus. O dinheiro, quando doado, só perde domínio sobre você se colocado permanentemente fora de seu alcance. É uma realidade psicológica, mas também material e espiritual. A generosidade permite que Deus seja seu Deus novamente, e isso leva à verdadeira recompensa da ressurreição: a vida eterna com Deus.

Poder e liderança em Lucas

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como rei, Jesus é o líder do reino de Deus. Ele emprega seu poder de muitas maneiras registradas no Evangelho de Lucas. No entanto, os cristãos muitas vezes relutam em exercer liderança ou poder, como se os dois fossem inerentemente maus. Jesus ensina o contrário. Os cristãos são chamados para liderar e exercer poder, mas, diferentemente dos poderes do mundo caído, devem usá-lo para os propósitos de Deus, e não para seus próprios interesses.

Persistência: A Parábola da Viúva Persistente (Lc 18.1-8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Na parábola da viúva persistente (Lc 18.1-8), uma pessoa pobre e impotente (a viúva) persiste em incomodar uma pessoa corrupta e poderosa (o juiz) para que faça justiça por ela. A parábola presume o ensino de João Batista de que ocupar uma posição de poder e liderança obriga a pessoa a trabalhar com justiça, especialmente em favor dos pobres e fracos. Mas Jesus enfoca a parábola em um ponto diferente, que devemos “orar sempre e nunca desanimar” (Lc 18.1). Ele identifica os ouvintes — nós — com a mulher, e a pessoa a quem se ora — Deus — com o juiz corrupto, uma combinação estranha. Assumindo que Jesus não quer dizer que Deus é corrupto, o ponto deve ser que, se a persistência compensa com um humano corrupto de poder limitado, quanto mais valerá com um Deus justo de poder infinito.

O propósito da parábola é encorajar os cristãos a perseverarem na fé, apesar de todas as adversidades. Mas também tem duas aplicações para quem trabalha em cargos de liderança. Primeiro, a justaposição de um juiz corrupto com um Deus justo implica que a vontade de Deus atua, mesmo em um mundo corrupto. O trabalho do juiz é fazer justiça e, por Deus, ele fará justiça quando a viúva terminar. Em outros pontos, a Bíblia ensina que as autoridades civis servem com a autorização de Deus, quer reconheçam quer não (Jo 19.11; Rm 13.1; 1Pe 2.13). Portanto, há esperança de que, mesmo em meio à injustiça sistêmica, a justiça possa ser feita. O trabalho de um líder cristão deve focar-se o tempo todo nessa esperança. Embora não possamos corrigir todos os erros do mundo, nunca devemos perder a esperança nem deixar de trabalhar por um bem maior [1] em meio aos sistemas imperfeitos. Os legisladores, por exemplo, raramente têm a opção de votar em um projeto de lei bom ou em um projeto de lei ruim. Normalmente, o melhor que podem fazer é votar em projetos de lei que fazem mais bem do que mal. Apesar disso, eles devem procurar continuamente oportunidades para levar à votação de projetos de lei que causem ainda menos danos e ainda mais benefícios.

O segundo ponto é que somente Deus pode trazer justiça em um mundo corrupto. É por isso que devemos orar e não desistir de nosso trabalho. Deus pode trazer justiça milagrosa em um mundo corrupto, assim como pode trazer cura milagrosa em um mundo doente. De repente, o muro de Berlim se abre, o regime do apartheid desmorona, a paz irrompe. Na parábola da viúva persistente, Deus não intervém. Só a persistência da viúva leva o juiz a agir com justiça. Mas Jesus indica que Deus é o ator invisível. “Acaso Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que clamam a ele dia e noite?” (Lc 18.7).

Risco: A Parábola das Dez Minas (Lc 19.11-27)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A parábola das dez minas se passa no ambiente de trabalho das altas finanças. Um nobre rico — e iminentemente poderoso — faz uma longa viagem para ser coroado rei. A maioria de seu povo o odeia e manda avisar que se opõe a essa coroação (Lc 19.14). Em sua ausência, ele designa três de seus servos para investir seu dinheiro. Dois deles assumem o risco de investir o dinheiro de seu mestre. Eles obtêm retornos consideráveis. Um terceiro servo tem medo de correr riscos, então coloca o dinheiro em um lugar seguro. Não obtém retorno. Quando volta, o mestre se torna rei de todo o território. Ele recompensa os dois servos que ganharam dinheiro para ele, promovendo-os a altos cargos, e pune o servo que manteve o dinheiro seguro, mas improdutivo. Em seguida, ordena que todos os que se opõem a ele sejam mortos em sua presença.

Jesus conta essa parábola imediatamente antes de ir a Jerusalém, onde será coroado rei (“Bendito é o rei que vem em nome do Senhor”, Lc 19.38), mas logo é rejeitado por seu povo. Isso identifica Jesus com o nobre da parábola, e a multidão que grita “crucifica-o!” (Lc 23.21) com as pessoas da parábola que se opõem à coroação do nobre. Por meio disso, sabemos que o povo julgou profundamente mal seu futuro rei, exceto os dois servos que trabalharam diligentemente em sua ausência. Nesse contexto, a parábola nos adverte que devemos decidir se Jesus é de fato o rei designado por Deus e estar preparados para suportar as consequências de nossa decisão de servi-lo ou de nos opormos a ele. [1]

Essa parábola deixa explícito que os cidadãos do reino de Deus são responsáveis ​​por trabalhar com foco nos objetivos e propósitos de Deus. O rei diz diretamente a seus servos o que ele espera que eles façam, ou seja, que invistam seu dinheiro. Esse chamado ou mandamento específico deixa claro que pregar, curar e evangelizar (os chamados dos apóstolos) não são as únicas coisas que Deus chama as pessoas a fazerem. É claro que nem todos no reino de Deus são chamados para ser investidores. Nessa parábola, apenas três dos residentes do país são chamados para esse fim. O ponto é que, independentemente de sua área de atuação, reconhecer Jesus como rei requer trabalhar com foco nos propósitos dele.

Vista sob essa ótica, a parábola sugere que, se escolhermos aceitar Jesus como rei, devemos esperar levar uma vida arriscada. Os servos que investiram o dinheiro do senhor corriam o risco de serem atacados por aqueles ao redor que rejeitavam a autoridade do senhor. E corriam o risco de decepcionar seu mestre, fazendo investimentos que poderiam resultar em perda de dinheiro. Mesmo o sucesso os expõe a riscos. Agora que experimentaram o sucesso e foram promovidos, correm o risco de se tornarem gananciosos ou loucos por poder. Eles enfrentam o risco de que seus próximos investimentos — que envolverão somas muito maiores — fracassem e os exponham a consequências muito mais graves. Na prática anglo-americana de negócios (e esportes), CEOs (e treinadores) são em geral demitidos por resultados medíocres, enquanto aqueles que ocupam cargos de nível inferior são demitidos apenas por desempenho excepcionalmente ruim. Nem o fracasso nem o sucesso são seguros nessa parábola, tal como no ambiente de trabalho de hoje. É tentador se esconder e procurar uma maneira segura de se acomodar ao sistema enquanto se espera que as coisas melhorem. Mas abaixar-se para se proteger é a única ação que Jesus condena na parábola. O servo que tenta evitar riscos é apontado como infiel. Não nos é dito o que teria acontecido se os outros dois servos tivessem perdido dinheiro em seus investimentos, mas a implicação é que todos os investimentos feitos no serviço fiel a Deus lhe são agradáveis, independentemente de alcançarem ou não o retorno pretendido.

Para uma discussão sobre a parábola dos talentos, bastante similar, ver Mateus 25.14-30 em Mateus e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Serviço humilde (Lc 9.46-50, 14.7-11, 22.24-30)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Jesus declara que a liderança requer um serviço humilde aos outros, como vemos em três passagens adicionais. Na primeira (Lc 9.46-50), os discípulos de Jesus começam a discutir qual deles será o maior. Jesus responde que o maior é aquele que recebe uma criança em seu nome. “Aquele que entre vocês for o menor, este será o maior.” Observe que o modelo não é a criança, mas a pessoa que a acolhe. Servir aqueles que todos os outros consideram indignos de seu tempo é o que torna um líder excelente.

A segunda passagem (Lc 14.7-11) é a resposta de Jesus à postura social que ele vê em um banquete. Não é apenas uma perda de tempo, diz Jesus, mas na verdade é contraproducente. “Todo o que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado.” Aplicado à liderança, isso significa que, se você tentar levar o crédito por tudo, as pessoas desejarão parar de segui-lo ou se distrairão do trabalho delas, tentando fazer você parecer mau. Mas, se você der crédito aos outros, as pessoas desejarão segui-lo e isso levará ao verdadeiro reconhecimento.

A terceira passagem (Lc 22.24-30) retorna à questão de quem é o maior entre os discípulos. Desta vez, Jesus se torna o modelo de liderança por meio do serviço. “Eu estou entre vocês como quem serve.” Nas três histórias, os conceitos de serviço e humildade estão interligados. A liderança eficaz requer — ou é — serviço. Servir exige que você aja como se fosse menos importante do que pensa ser.

Veja * Liderança (CONTEÚDO AINDA NÃO DISPONÍVEL) em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.

Questões tributárias (Lc 19.1-10; 20.20-26)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O tempo todo, Lucas identifica Jesus como aquele que está trazendo o governo de Deus à Terra. No capítulo 19, o povo de Jerusalém finalmente o reconhece como rei. Enquanto ele entra na cidade montado em um jumentinho, multidões se alinham na estrada e cantam louvores. “Bendito é o rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas alturas!” (Lc 19.38) Como sabemos, o reino de Deus abrange toda a vida, e as questões que Jesus escolhe discutir imediatamente antes e depois de sua entrada em Jerusalém dizem respeito a impostos e investimentos.

Zaqueu, o Publicano (Lc 19.1-10)

Ao passar por Jericó a caminho de Jerusalém, Jesus encontra um publicano — ou cobrador de impostos — chamado Zaqueu, que está sentado em uma árvore para ter uma visão melhor de Jesus. “Zaqueu, desça depressa. Quero ficar em sua casa hoje”, diz Jesus (Lc 19.5). O encontro com Jesus muda profundamente a maneira de Zaqueu trabalhar. Como todos os cobradores de impostos nos estados clientes romanos, Zaqueu ganhava dinheiro cobrando das pessoas um valor acima dos impostos devidos. Embora isso fosse o que hoje poderíamos chamar de “prática padrão do setor”, dependia de fraude, intimidação e corrupção. Uma vez que entra no reino de Deus, Zaqueu não pode mais trabalhar dessa maneira. “Zaqueu levantou-se e disse ao Senhor: ‘Olha, Senhor! Estou dando a metade dos meus bens aos pobres; e se de alguém extorqui alguma coisa, devolverei quatro vezes mais’” (Lc 19.8). Exatamente como — ou se — ele continuará a ganhar a vida, ele não diz, pois não vem ao caso. Como cidadão do reino de Deus, ele não pode se envolver em práticas comerciais contrárias aos caminhos de Deus.

Deem a Deus o que é de Deus (Lc 20.20-26)

Depois que Jesus é recebido como rei em Jerusalém, há uma passagem em Lucas que muitas vezes tem sido usada erroneamente para separar o mundo do trabalho do reino de Deus: o pronunciamento de Jesus sobre os impostos. Os mestres da lei e os principais sacerdotes tentam “apanhar Jesus em alguma coisa que ele dissesse, de forma que o pudessem entregar ao poder e à autoridade do governador” (Lc 20.20). Eles perguntam se é certo pagar imposto a César. Em resposta, Jesus pede que eles lhe mostrem uma moeda e, imediatamente, exibem um denário. Ele pergunta de quem é a imagem na moeda, e eles respondem: “De César”. Jesus diz: “Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lc 20.25).

Essa resposta às vezes tem sido interpretada como uma separação entre o material e o espiritual, o político e o religioso, o terreno e o celestial. Na igreja (o reino de Deus), devemos ser honestos e generosos, e cuidar dos bens de nossos irmãos e irmãs. No trabalho (o reino de César), devemos ocultar a verdade, ser movidos pela preocupação com o dinheiro e cuidar de nós mesmos acima de tudo. Mas isso é uma compreensão errônea da ironia aguda presente na resposta de Jesus. Quando diz “deem a César o que é de César”, Jesus não está sancionando uma separação entre o material e o espiritual. A premissa de que o mundo de César e o mundo de Deus não se sobrepõem não faz sentido à luz do que Jesus vem dizendo em todo o Evangelho de Lucas. O que é de Deus? Tudo! A vinda de Jesus ao mundo como rei é a afirmação de Deus de que o mundo inteiro é de Deus. Tudo o que pode pertencer a César também pertence a Deus. O mundo dos impostos, do governo, da produção, da distribuição e de todos os outros tipos de trabalho é aquele que o reino de Deus está invadindo. Os cristãos são chamados a se envolverem com esse mundo, não a abandoná-lo. Essa passagem se opõe à justificativa de separar o mundo do trabalho do mundo cristão. Dê a César o que é de César (impostos) e a Deus o que é de Deus (tudo, impostos incluídos). Para uma discussão mais completa sobre esse incidente, consulte a seção sobre Mateus 17.24-27 e 22.15-22 em Mateus e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

A Paixão de Jesus (Lc 22.47—24.53)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A obra de Jesus culmina em seu sacrifício voluntário na cruz, quando, em seu último suspiro, ele exala confiança em Deus: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Pelo autossacrifício de Jesus e pelo poderoso ato de ressurreição do Pai, Jesus assume plenamente a posição de rei eterno preconizada em seu nascimento. “O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim” (Lc 1.32-33). Esse é verdadeiramente o Filho amado de Deus, fiel até a morte à medida que trabalha em favor de todos os que caíram na pobreza do pecado e da morte e que necessitam de uma redenção que não podemos fornecer a nós mesmos. Sob essa ótica, vemos que o cuidado de Jesus pelos pobres e impotentes é tanto um fim em si mesmo quanto um sinal de seu amor por todos os que o seguirão. Somos todos pobres e impotentes diante de nosso pecado e do quebrantamento do mundo. Em sua ressurreição, somos transformados em todos os aspectos da vida, à medida que somos apanhados nesse amor extravagante de Deus.

O Caminho de Emaús (Lc 24.13-35)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O episódio no caminho de Emaús é um exemplo adequado de generosidade para todos os seguidores de Jesus. A princípio, parece que a morte de Jesus é tratada de maneira muito leve, ou estamos errados em ver algo bem-humorado nos dois discípulos que atualizam Jesus sobre as últimas notícias? “Você é o único visitante em Jerusalém que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?”, eles perguntam (Lc 24.18). Quase se pode imaginar Cleopas acrescentando: “Onde você esteve?”. Jesus leva o assunto com calma e os deixa falar, mas depois muda a maré e os faz ouvir. Gradualmente, começa a raiar sobre eles a luz de que talvez a história das mulheres sobre a ressurreição milagrosa do Messias não fosse tão louca quanto pensaram inicialmente.

Se isso fosse tudo o que havia na história, não aprenderíamos nada além de que muitas vezes “[custamos] a entender e ... [demoramos] a crer” (Lc 24.25) em tudo o que Deus escreveu. Mas os discípulos fazem uma coisa certa nessa história — algo tão aparentemente insignificante que seria fácil passar despercebido. Eles oferecem hospitalidade a Jesus. “Fique conosco, pois a noite já vem; o dia já está quase findando” (Lc 24.29). Jesus abençoa esse pequeno ato de generosidade com a revelação de sua presença. Ao partir o pão, eles finalmente o reconhecem (Lc 24.32). Quando oferecemos hospitalidade, Deus a usa não apenas como um meio de servir aos que precisam de descanso, mas também como um convite para que experimentemos a presença de Jesus.

Conclusão para Lucas

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Evangelho de Lucas é a história do surgimento do reino de Deus na terra na pessoa de Jesus Cristo. Como o verdadeiro rei do mundo, Cristo é o governante a quem devemos nossa lealdade e o modelo para exercer qualquer autoridade que nos seja dada na vida.

Como nosso governante, ele nos dá um grande mandamento em duas partes. “‘Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o seu entendimento’ e ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’ [...]. Faça isso e viverá” (Lc 10.27-28). Em certo sentido, esse mandamento não é nada novo. É simplesmente um resumo da Lei de Moisés. O novo é que o reino baseado nessa lei foi inaugurado pela encarnação de Deus na pessoa de Jesus. Desde o início, era intenção de Deus que a humanidade vivesse nesse reino. Mas, desde o pecado de Adão e Eva, as pessoas têm vivido no reino das trevas e do mal. Jesus veio para reivindicar a terra como o reino de Deus e para criar uma comunidade do povo de Deus que viva sob seu domínio, mesmo enquanto o reino das trevas detém grande parte de seu controle. A resposta essencial daqueles que chegam à cidadania no reino de Cristo é que vivam toda sua vida — incluindo o trabalho — em busca dos propósitos e de acordo com os caminhos de seu reino.

Como nosso modelo, Jesus nos ensina esses propósitos e caminhos. Ele nos chama para trabalhar em tarefas como cura, proclamação, justiça, poder, liderança, produtividade e provisão, investimento, governo, generosidade e hospitalidade. Ele envia o espírito de Deus para nos dar tudo o que precisamos para cumprir nosso chamado específico. Ele nos promete provisão. Ele nos ordena a prover para os outros e, assim, sugere que sua provisão para nós geralmente virá na forma de outras pessoas trabalhando em nosso favor. Ele nos adverte sobre a armadilha de buscar a autossuficiência por meio da riqueza e nos ensina que a melhor maneira de evitar a armadilha é usar a riqueza para promover o relacionamento com Deus e com as pessoas. Quando surgem conflitos de relacionamentos, ele nos ensina a resolvê-los para que cheguemos à justiça e à reconciliação. Acima de tudo, ele ensina que a cidadania no reino de Deus significa trabalhar como servo de Deus e das pessoas. Seu autossacrifício na cruz serve como o modelo final de liderança servil. Sua ressurreição ao trono do reino de Deus confirma e estabelece para sempre o amor ativo ao próximo, como o caminho da vida eterna.