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Os descendentes de Noé e a torre de Babel (Gênesis 10.1—11.32)

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
1970835

No capítulo chamado de Origem dos Povos, Gênesis 10 traça primeiro os descendentes de Jafé (Gn 10.2-5), depois os descendentes de Cam (Gn 10.6-20) e, finalmente, os descendentes de Sem (Gn 10.21-31). Entre eles, o neto de Cam, Ninrode, se destaca por sua importância para a teologia do trabalho. Ninrode funda um império de pura agressão com base na Babilônia. Ele é um tirano, um poderoso caçador a ser temido e, o que é mais significativo, um construtor de cidades (Gn 10.8-12).

Com Ninrode, o tirânico construtor de cidades, ainda presente em nossa memória, chegamos à construção da torre de Babel (Gn 11.1-9). Babel, como muitas cidades no antigo Oriente Próximo, foi projetada como uma área murada de um grande templo ou zigurate, uma torre de tijolos de barro em forma de escada, projetada para alcançar o reino dos deuses. Com tal torre, as pessoas poderiam ascender aos deuses, e os deuses poderiam descer à terra. Embora Deus não condene esse desejo de alcançar os céus, vemos nele a ambição de autoexaltação e o pecado crescente do orgulho que leva essas pessoas a começarem a construir uma torre tão poderosa. “Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra” (Gn 11.4). O que eles queriam? Fama. O que eles temiam? Ser dispersos sem a segurança de um grande grupo. A torre que eles imaginaram construir parecia enorme para eles, mas o narrador de Gênesis sorri enquanto nos diz que era tão insignificante que Deus “desceu para ver a cidade e a torre” (Gn 11.5). Quão diferente da cidade de paz, ordem e virtude, que são os propósitos de Deus para o mundo. [1]

A objeção de Deus à torre é que ela dará às pessoas a expectativa de que “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6). Assim como Adão e Eva antes deles, eles pretendem usar o poder criativo que possuem como portadores da imagem de Deus para agir contra os propósitos de Deus. Nesse caso, eles planejam fazer o contrário do que Deus ordenou no mandato cultural. Em vez de encher a terra, eles pretendem se concentrar aqui em um único local. Em vez de explorar a plenitude do nome que Deus lhes deu — Adão, “humanidade” (Gn 5.2) —, eles decidem fazer um nome para si mesmos. Deus vê que sua arrogância e ambição estão fora dos limites e diz: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros” (Gn 11.7). Então, “o Senhor os espalhou dali por toda a face de toda a terra, e eles pararam de construir a cidade. Por isso, foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de toda a terra; e dali o Senhor os dispersou por toda a face de toda a terra” (Gn 11.8-9).

Podemos ser tentados a concluir, a partir deste estudo, que as cidades são inerentemente ruins, mas não é bem assim. Deus deu a Israel uma capital, Jerusalém, e a morada final do povo de Deus é a cidade santa de Deus que desce do céu (Ap 21.2). O conceito de “cidade” não é mau, mas o orgulho que podemos vir a atribuir às cidades é o que desagrada a Deus (Gn 19.12-14). Pecamos quando olhamos para o triunfo cívico e a cultura, e não para Deus, como nossa fonte de significado e direção. Bruce Waltke conclui sua análise de Gênesis 11 nestas palavras:

A sociedade sem Deus é totalmente instável. Por um lado, as pessoas buscam sinceramente significado existencial e segurança em sua unidade coletiva. Por outro lado, elas têm um apetite insaciável para consumir o que os outros possuem... No coração da cidade do homem está o amor a si mesmo e o ódio a Deus. A cidade revela que o espírito humano não se deterá em nada menos que usurpar o trono de Deus no céu. [2]

Embora possa parecer que o fato de Deus ter dispersado as pessoas é uma punição, na verdade, é também um meio de redenção. Desde o início, Deus pretendia que as pessoas se dispersassem pelo mundo. “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra” (Gn 1.28). Ao dispersar as pessoas após a queda da torre, Deus as colocou de volta no caminho de encher a terra, o que resultou na bela variedade de povos e culturas que a povoam hoje. Se as pessoas tivessem completado a torre sob uma singularidade de intenções maliciosas e tirania social, com o resultado de que “nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6), só podemos imaginar os horrores que teriam enfrentado em seu orgulho e força do pecado. A amplitude do mal operado pela humanidade nos séculos 20 e 21 dá um mero vislumbre do que as pessoas poderiam fazer se todas as coisas fossem possíveis sem depender de Deus. Como Dostoievski disse: “Sem Deus e a vida futura, isso significa que tudo é permitido”. [3] Às vezes, Deus não nos deixa seguir nosso caminho porque sua misericórdia para conosco é grande demais.

O que podemos aprender com o incidente da torre de Babel para nosso trabalho hoje? A ofensa específica que os construtores cometeram foi desobedecer à ordem de Deus de se espalhar e encher a terra. Eles centralizaram não apenas suas moradias geográficas, mas também sua cultura, sua língua e suas instituições. Em sua ambição de fazer uma grande coisa (“nosso nome será famoso”; Gn 11.4), eles reprimiram a amplitude do esforço que deveria vir com a variedade de dons, serviços, atividades e funções com os quais Deus dota as pessoas (1Co 12.4-11). Embora Deus queira que as pessoas trabalhem juntas para o bem comum (Gn 2.18 ; 1Co. 12.7), ele não nos criou para realizá-lo por meio da centralização e do acúmulo de poder. Ele advertiu o povo de Israel contra os perigos de concentrar o poder em um rei (1Sm 8.10-18). Deus preparou para nós um rei divino, Cristo, nosso Senhor, e sob ele não há lugar para grande concentração de poder em indivíduos, instituições ou governos humanos.

Portanto, podemos esperar que lideranças e instituições cristãs tenham o cuidado de dispersar a autoridade e favorecer a coordenação, objetivos e valores comuns e a tomada de decisões democráticas, em vez da concentração de poder. Mas, em muitos casos, os cristãos buscaram algo diferente, o mesmo tipo de concentração de poder que tiranos e autoritários buscam, embora com objetivos mais benevolentes. Dessa forma, os legisladores cristãos buscam o mesmo controle sobre a população, embora com o objetivo de impor a piedade ou a moralidade. Dessa forma, os empresários cristãos buscam o oligopólio tanto quanto os outros, embora com o objetivo de melhorar a qualidade, o atendimento ao cliente ou o comportamento ético. Dessa forma, os educadores cristãos buscam tão pouca liberdade de pensamento quanto os educadores autoritários, embora com a intenção de impor a expressão moral, a bondade e a sã doutrina.

Por mais louváveis ​​que sejam todos esses objetivos, os acontecimentos da torre de Babel sugerem que eles são muitas vezes perigosamente equivocados (mais tarde, a advertência de Deus a Israel sobre os perigos de ter um rei ecoa essa sugestão; veja 1Sm 8.10-18). Em um mundo em que mesmo aqueles que estão em Cristo ainda lutam contra o pecado, a ideia de Deus sobre o bom domínio (da parte de seres humanos) parece ser dispersar pessoas, poder, autoridade e capacidades, em vez de concentrá-los em uma pessoa, instituição, partido ou movimento. É claro que algumas situações exigem o exercício decisivo do poder por uma pessoa ou um pequeno grupo. Um piloto seria tolo se aceitasse o voto de um passageiro para escolher em qual pista pousar. Mas será que, com mais frequência do que imaginamos, quando estamos em posições de poder, Deus está nos chamando para dispersar, delegar, autorizar e treinar outros, em vez de exercer o poder sozinhos? Agir assim pode ser confuso, ineficiente, difícil de medir, arriscado e levar à ansiedade. Mas pode ser exatamente o que Deus espera que os líderes cristãos façam em muitas situações.