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Deus cria o mundo (Gênesis 1.1—2.3)

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
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A primeira coisa que a Bíblia nos diz é que Deus é um criador. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). Deus fala e surgem coisas que não existiam antes, começando pelo próprio universo. A criação é totalmente um ato de Deus. Não é um acidente, um erro ou o produto de uma divindade inferior, mas a autoexpressão de Deus.

Deus traz à existência o mundo material (Gênesis 1.1-2)

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Gênesis continua enfatizando a materialidade do mundo. “Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gn 1.2). A criação nascente, embora ainda “sem forma”, tem as dimensões materiais do espaço (o “abismo”) e da matéria (“águas”), e Deus está totalmente envolvido com essa materialidade (“o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”). Mais tarde, no capítulo 2, vemos até Deus trabalhando com o pó de sua criação. “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra” (Gn 2.7). Ao longo dos capítulos 1 e 2, vemos Deus envolvido na fisicalidade de sua criação.

Qualquer teologia do trabalho deve começar com uma teologia da criação. Consideramos o mundo material, as coisas com as quais trabalhamos, como sendo coisas de primeira qualidade pertencentes a Deus e imbuídas de valor duradouro? Ou o descartamos como um ambiente de trabalho temporário, uma área de testes, um navio afundando de onde devemos escapar para chegar à verdadeira localização de Deus em um “céu” imaterial? Gênesis argumenta contra qualquer noção de que o mundo material é menos importante para Deus do que o mundo espiritual. Ou, para ser mais exato, em Gênesis não há uma distinção nítida entre o material e o espiritual. O ruah de Deus em Gênesis 1.2 é simultaneamente “sopro”, “vento” e “espírito”. “Os céus e a terra” (Gn 1.1; 2.1) não são dois reinos separados, mas uma figura de linguagem hebraica que significa “o universo”.[1]

Mais significativamente, a Bíblia termina onde começa — na terra. A humanidade não parte da terra para se juntar a Deus no céu. Em vez disso, Deus aperfeiçoa seu Reino na terra e cria “a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus” (Ap 21.2). A habitação de Deus com a humanidade está aqui, na criação renovada. “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens” (Ap 21.3). É por isso que Jesus disse a seus discípulos que orassem usando as palavras: “Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Durante o tempo entre Gênesis 2 e Apocalipse 21, a terra está corrompida, destruída, fora de ordem e cheia de pessoas e forças que trabalham contra os propósitos de Deus (veja mais sobre isso em Gênesis 3 e adiante). Nem tudo no mundo vai de acordo com o desígnio de Deus. Mas o mundo ainda é algo criado por Deus, ao que ele chama de “bom”. (Para mais informações sobre o novo céu e nova terra, veja “Apocalipse 17-22” in Apocalipse e o trabalho.)

Muitos cristãos, que trabalham principalmente com objetos materiais, dizem que parece que seu trabalho importa menos para a igreja — e até para Deus — do que um trabalho centrado em pessoas, ideias ou religião. É mais provável que um sermão elogiando o bom trabalho use o exemplo de um missionário, um assistente social ou um professor do que o de um pedreiro, um mecânico de automóveis ou um químico. Os irmãos cristãos são mais propensos a reconhecer um chamado para se tornar um pastor ou médico do que um chamado para se tornar um estoquista ou um escultor. Mas isso tem alguma base bíblica? Deixando de lado o fato de que trabalhar com pessoas é trabalhar com objetos materiais, é sábio lembrar que Deus deu às pessoas tarefas de trabalhar tanto com pessoas (Gn 2.18) quanto com coisas (Gn 2.15). De fato, Deus parece levar a criação muito a sério.

A criação de Deus dá trabalho (Gênesis 1.3-25; 2.7)

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Criar um mundo é trabalho. Em Gênesis 1, o poder da obra de Deus é inegável. Deus traz mundos à existência e, passo a passo, vemos o exemplo primordial do uso correto do poder. Observe a ordem de criação. Os três primeiros atos criativos de Deus separam o caos sem forma em reinos de céus (ou céu), água e terra. No primeiro dia, Deus cria a luz e a separa das trevas, formando o dia e a noite (Gn 1.3-5). No segundo dia, ele separa as águas e cria o céu (Gn 1.6-8). Na primeira parte do terceiro dia, ele separa a terra seca do mar (Gn 1.9-10). Todos são essenciais para a sobrevivência do que se segue. Em seguida, Deus começa a preencher os reinos que ele criou. No restante do terceiro dia, ele cria a vida vegetal (Gn 1.11-13). No quarto dia, ele cria o sol, a lua e as estrelas (Gn 1.14-19) no céu. Os termos “luminar maior” e “luminar menor” são usados ​​em vez dos nomes “sol” e “lua”, desencorajando assim a adoração desses objetos criados e nos lembrando de que ainda corremos o risco de adorar a criação em vez do Criador. As luzes são belas em si mesmas e também essenciais para a vida das plantas, com sua necessidade de sol, noite e estações do ano. No quinto dia, Deus enche a água e o céu com peixes e pássaros que não poderiam ter sobrevivido sem a vida vegetal criada anteriormente (Gn 1.20-23). Finalmente, no sexto dia, ele cria os animais (Gn 1.24-25) e, como o ápice da criação, cria a humanidade para povoar a terra (Gn 1.26-31). [1]

No capítulo 1, Deus realiza toda a sua obra falando. “Disse Deus...” e tudo aconteceu. Isso nos permite saber que o poder de Deus é mais do que suficiente para criar e manter a criação. Não precisamos nos preocupar com o fato de Deus estar ficando cansado ou de que a criação esteja em um estado precário de existência. A criação de Deus é robusta, sua existência é segura. Deus não precisa da ajuda de ninguém nem de nada para criar ou manter o mundo. Nenhuma batalha com as forças do caos ameaça desfazer a criação. Mais tarde, quando Deus escolhe compartilhar a responsabilidade criativa com os seres humanos, sabemos que essa é uma escolha de Deus, não uma necessidade. O que quer que as pessoas façam para estragar a criação ou tornar a Terra imprópria para a plenitude da vida, Deus tem um poder infinitamente maior para redimir e restaurar.

A exibição do poder infinito de Deus no texto não significa que a criação de Deus não é trabalho, assim como é trabalho escrever um programa de computador ou atuar em uma peça de teatro. Mas se a majestade transcendente da obra de Deus em Gênesis 1 pode nos levar a pensar que aquilo não é realmente trabalho, Gênesis 2 não nos deixa dúvidas. Deus trabalha imanentemente com suas mãos para esculpir corpos humanos (Gn 2.7,21), plantar um jardim (Gn 2.8), cultivar um pomar (Gn 2.9) e, um pouco mais tarde, costurar “roupas de pele” (Gn 3.21). Isso é apenas o começo da obra física de Deus em uma Bíblia cheia de trabalho divino. [2]

A criação é de Deus, mas não é idêntica a Deus (Gênesis 1.11)

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Deus é a fonte de tudo na criação. No entanto, a criação não é idêntica a Deus. Deus dá à sua criação o que Colin Gunton chama Selbständigkeit ou uma “autonomia”. Não se trata da independência absoluta imaginada pelos ateus ou deístas, mas sim a existência significativa da criação como algo distinto do próprio Deus. Isso é melhor capturado na descrição da criação das plantas por Deus: “Então disse Deus: ‘Cubra-se a terra de vegetação: plantas que deem sementes e árvores cujos frutos produzam sementes de acordo com as suas espécies’. E assim foi” (Gn 1.11). Deus cria todas as coisas, mas também literalmente lança a semente para a perpetuação da criação ao longo dos tempos. A criação é dependente de Deus para sempre — “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28) —, mas permanece distinta. Isso dá ao nosso trabalho uma beleza e um valor acima do valor de um relógio ou de um fantoche. Nosso trabalho tem sua fonte em Deus, mas também tem seu próprio peso e dignidade.

Deus vê que sua obra é boa (Gênesis 1.4,10, 12, 18, 21, 25, 31)

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Contra qualquer noção dualista de que o céu é bom e a terra é má, Gênesis declara, a cada dia da criação, que “Deus viu que ficou bom” (Gn 1.4, 10, 12, 18, 21,25). No sexto dia, com a criação da humanidade, Deus viu que “tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.31). Com os seres humanos — os agentes por meio dos quais o pecado em breve entraria na criação de Deus — tudo, no entanto, ficou “muito bom”. Simplesmente não há apoio em Gênesis para a noção, que de alguma forma entrou na imaginação cristã, de que o mundo é irremediavelmente mau e que a única salvação é uma fuga para um mundo espiritual imaterial, muito menos para a noção de que, enquanto estivermos na terra, devemos gastar nosso tempo em tarefas “espirituais” em vez de tarefas “materiais”. Não há divórcio entre o espiritual e o material no bom mundo de Deus.

Deus opera de modo relacional (Gênesis 1.26a)

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Mesmo antes de Deus criar as pessoas, ele fala no plural: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26; grifo nosso). Embora haja divergência entre os estudiosos sobre se essa forma plural se refere a uma assembleia divina de seres angelicais ou a uma singular pluralidade na unidade de Deus, qualquer uma das visões implica que Deus é inerentemente relacional. [1]

É difícil ter certeza de como os antigos israelitas teriam entendido o significado do plural aqui. Para nossos propósitos, parece melhor seguir a interpretação cristã tradicional de que se refere à Trindade. De qualquer forma, sabemos pelo Novo Testamento que Deus está realmente em relacionamento consigo mesmo — e com sua criação — em uma Trindade de amor. No evangelho de João, aprendemos que o Filho — “a Palavra [que] tornou-se carne” (Jo 1.14) — está presente e ativo na criação desde o princípio.

No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito. Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. (João 1.1-4)

Assim, os cristãos reconhecem nosso Deus Trino, o único que é três Pessoas em um ser — Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo —, todos pessoalmente ativos na criação.

Deus limita seu trabalho, descansando no sétimo dia (Gênesis 2.1-3)

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Ao final de seis dias, a criação do mundo por Deus está terminada. Isso não significa que Deus deixa de trabalhar, pois, como Jesus disse: “Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando” (Jo 5.17). Também não significa que a criação está completa, pois, como veremos, Deus deixa muito trabalho para as pessoas fazerem para levar a criação adiante. Mas o caos havia se transformado em um ambiente habitável, agora sustentando plantas, peixes, pássaros, animais e seres humanos.

E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia. Assim foram concluídos os céus e a terra, e tudo o que neles há. No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou. (Gn 1.31—2.2; grifo nosso)

Deus coroa seus seis dias de trabalho com um dia de descanso. Embora a criação da humanidade tenha sido o clímax da obra criadora de Deus, descansar no sétimo dia foi o clímax da semana criadora de Deus. Por que Deus descansa? A majestade da criação de Deus somente pela palavra, no capítulo 1, deixa claro que Deus não está cansado. Ele não precisa descansar. Mas ele escolhe limitar sua criação no tempo e no espaço. O universo não é infinito. Tem um começo, atestado pelo Gênesis, que a ciência aprendeu a observar à luz da teoria do Big Bang. Se ele tem um fim no tempo, não é inequivocamente claro, seja na Bíblia ou na ciência, mas Deus dá ao tempo um limite dentro do mundo como o conhecemos. Enquanto o tempo está correndo, Deus abençoa seis dias para o trabalho e um para o descanso. Esse é um limite que o próprio Deus observa e, mais tarde, se torna seu mandamento também para as pessoas (Êx 20.8-11).