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Código de santidade (Levítico 17—27)

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
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Algumas das instruções do código de santidade parecem relevantes apenas no mundo antigo de Israel, enquanto outras parecem atemporais. Por um lado, Levítico diz aos homens para não estragar as pontas de suas barbas (Lv 19.27), mas, por outro lado, os juízes não devem proferir julgamentos injustos no tribunal, devendo mostrar justiça a todos (Lv 19.15). Como sabemos quais se aplicam diretamente hoje? Mary Douglas explica de maneira útil como uma compreensão clara da santidade como ordem moral tanto coloca o fundamento dessas instruções em Deus como dá sentido à sua variedade.

Desenvolver a ideia de santidade como ordem, não confusão, defende a retidão e a integridade como algo sagrado, tendo a contradição e a dubiedade como algo contrário à santidade. Roubo, mentira, falso testemunho, trapaça em pesos e medidas, todo tipo de dissimulação, como falar mal dos surdos (enquanto finge sorrir diante deles), odiar seu irmão em seu coração (enquanto aparenta falar com ele gentilmente), são claramente contradições entre o que parece e o que é. [1]

Alguns aspectos do que leva à boa ordem (por exemplo, aparar a barba) podem ser importantes em um contexto, mas não em outro. Outros são essenciais em todas as situações. Podemos identificá-los perguntando o que contribui para a boa ordem em nossos contextos específicos. Aqui, exploraremos passagens que tocam diretamente em questões de trabalho e economia.


Colheita e respiga (Levítico 19.9-10)

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Embora os métodos antigos de colheita não fossem tão eficientes quanto hoje, Levítico 19.9-10 instrui os israelitas a torná-los ainda menos eficientes. Primeiro, eles deveriam deixar as margens de seus campos de grãos sem colheita. A largura dessa margem parece ser uma decisão do proprietário. Em segundo lugar, eles não deveriam recolher qualquer produto que caísse no chão. Isso se aplicaria quando um ceifeiro pegasse um feixe de caules e os cortasse com a foice, bem como quando as uvas caíssem de um cacho recém-cortado da videira. Terceiro, eles deveriam colher seus vinhedos apenas uma vez, presumivelmente pegando apenas as uvas maduras, de modo a deixar as uvas ainda não maduras para os pobres e os imigrantes que viviam entre eles. [1] Essas duas categorias de pessoas — os pobres e os estrangeiros — estavam unidas pela falta de propriedade de terras e, portanto, dependiam de seu próprio trabalho manual para se alimentar. As leis que beneficiavam os pobres eram comuns no antigo Oriente Próximo, mas apenas os regulamentos de Israel estendiam esse tratamento ao estrangeiro residente. Essa era mais uma maneira pela qual o povo de Deus deveria ser distinto das nações vizinhas. Outros textos especificam a viúva e o órfão como membros dessa categoria. (Outras referências bíblicas à respiga incluem Êx 22.21-27; Dt 24.19-21; Jz 8.2; Rt 2.17-23; Jó 24.6; Is 17.5-6; 24.13; Jr 6.9; 49.9; Ob 1.5; Mq 7.1.)

Podemos classificar a respiga como uma expressão de compaixão ou justiça, mas, de acordo com Levítico, permitir que outros façam isso em nossa propriedade é fruto da santidade. Fazemos isso porque Deus diz: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.10). Isso destaca a distinção entre caridade e respiga. Na caridade, as pessoas doam voluntariamente a outros que estão em necessidade. Isso é uma coisa boa e nobre de se fazer, mas não é disso que Levítico está falando. A respiga é um processo no qual os proprietários de terras têm a obrigação de fornecer às pessoas pobres e marginalizadas acesso aos meios de produção (em Levítico, a terra) e de eles mesmos trabalharem. Ao contrário da caridade, ela não depende da generosidade dos proprietários de terras. Nesse sentido, era muito mais um imposto do que uma oferta de caridade. Além disso, diferentemente da caridade, ela não foi dada aos pobres como pagamento de transferência. Por meio da respiga, os pobres ganhavam a vida da mesma forma que os proprietários de terras, trabalhando nos campos com seu próprio trabalho. Era simplesmente uma ordem mostrando que todos tinham o direito de acessar os meios de provisão criados por Deus.

Nas sociedades contemporâneas, pode não ser fácil discernir como aplicar os princípios da respiga. Em muitos países, a reforma agrária é certamente necessária para que a terra esteja disponível com segurança para os agricultores, em vez de ser controlada por funcionários caprichosos do governo ou proprietários de terras que a obtiveram de forma corrupta. Em economias mais industrializadas e baseadas no conhecimento, a terra não é o principal fator de produção. O acesso à educação, ao capital, aos mercados de trabalho e de produtos, aos sistemas de transporte e a leis e regulamentos não discriminatórios pode ser o que as pessoas pobres precisam para serem produtivas. Como os cristãos podem não ser mais capazes do que qualquer outra pessoa de determinar com precisão quais soluções serão mais eficazes, as soluções precisam vir de toda a sociedade. Certamente, Levítico não contém um sistema pronto para as economias de hoje. Mas o sistema de respiga em Levítico impõe aos proprietários de ativos produtivos a obrigação de garantir que as pessoas marginalizadas tenham a oportunidade de trabalhar para ganhar a vida. Nenhum proprietário individual pode fornecer oportunidades para todos os trabalhadores desempregados ou subempregados, é claro, assim como nenhum agricultor no antigo Israel poderia garantir a respiga para todo o distrito. Mas os proprietários são chamados a ser as pessoas mais importantes na criação de oportunidades de trabalho. Talvez os cristãos em geral também sejam chamados a apreciar o serviço que os empresários prestam em seu papel de criadores de empregos em suas comunidades.

(Para mais informações sobre respiga na Bíblia, veja “Êxodo 22.21-27”em Êxodo e o Trabalho e “Rute 2.17-23”em Rute e o Trabalho em www.teologiadotrabalho.org.)

Agir com honestidade (Levítico 19.11-12)

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Os mandamentos em Levítico contra o roubo, a falsidade, a mentira e a violação do nome de Deus por meio de juramentos falsos encontram expressão mais familiar entre os Dez Mandamentos de Êxodo 20. (Para mais informações sobre honestidade, veja “Dizer a verdade na Bíblia” e “Pode haver exceções à verdade no local de trabalho”, no artigo Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org.) Exclusiva de Levítico, no entanto, é a expressão hebraica por trás de “Não enganem uns aos outros” (Lv 19.11; grifo nosso). Literalmente, ele diz que “uma pessoa não deve mentir para seu amit”, que significa “companheiro”, “amigo” ou “próximo”. Isso certamente inclui membros da comunidade de Israel; mas com base em Levítico 24.19 no contexto de Levítico 24.17-22, também parece incluir o estrangeiro que vivia entre eles. A ética e a moralidade de Israel deveriam ser distintamente melhores do que as das nações ao seu redor, a ponto de tratar os imigrantes de outras nações da mesma maneira que tratavam os cidadãos nativos.

De qualquer forma, o ponto aqui é o aspecto relacional de dizer a verdade em vez de mentir. Uma mentira não é apenas uma distorção de um fato, mas também uma traição a um companheiro, amigo ou vizinho. O que dizemos uns aos outros deve realmente fluir da santidade de Deus em nós, não apenas de uma análise técnica para evitar mentiras descaradas. Quando o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, disse: “Eu não tive relações sexuais com aquela mulher”, ele pode ter tido alguma lógica tortuosa em mente, segundo a qual a declaração não era tecnicamente uma mentira. Mas seus concidadãos sentiram, com razão, que ele havia quebrado a confiança deles, e mais tarde ele reconheceu e aceitou essa avaliação. Ele havia violado o dever de não mentir aos outros.

Em muitos ambientes de trabalho, é necessário promover os aspectos positivos ou negativos de um produto, serviço, pessoa, organização ou situação. Os cristãos não precisam se recusar a se comunicar vigorosamente para defender um ponto de vista. Mas eles não devem se comunicar de tal maneira que aquilo que transmitem aos outros seja falso. Se palavras tecnicamente verdadeiras se somam a uma falsa impressão na mente de outros, então o dever de dizer a verdade é quebrado. Na prática, sempre que uma discussão sobre veracidade desce para um debate técnico sobre terminologia, é aconselhável nos perguntar se o debate é sobre se devemos mentir aos outros neste sentido.

Tratar os trabalhadores com justiça (Levítico 19.13)

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“Não oprimam nem roubem o seu próximo. Não retenham até a manhã do dia seguinte o pagamento de um diarista” (Lv 19.13). Os diaristas eram geralmente pessoas mais pobres, que não tinham terra para cultivar. Eles dependiam especialmente do pagamento imediato por seu trabalho e, portanto, precisavam ser pagos no final de cada dia (cf. Dt 24.14-15). Em nosso mundo, uma situação comparável ocorre quando os empregadores têm o poder de ditar termos e condições de trabalho que tiram proveito das vulnerabilidades dos trabalhadores. Isso ocorre, por exemplo, quando os funcionários são pressionados a contribuir com os candidatos políticos favoritos de seus chefes ou quando se espera que continuem trabalhando de graça após o horário de expediente. Essas práticas são ilegais na maioria dos lugares, mas, infelizmente, continuam sendo comuns.

Uma situação mais controversa diz respeito aos diaristas que não possuem documentação para um emprego formal. Essa situação ocorre em todo o mundo, aplicando-se a refugiados, migrantes, pessoas que mudam do campo para a cidade, imigrantes ilegais, menores de idade e outros. Essas pessoas geralmente trabalham na agricultura, paisagismo, trabalhos braçais, serviços de alimentação e pequenos projetos, além de ocupações ilegais. Visto que tanto empregadores quanto funcionários estão trabalhando fora da lei, esses trabalhadores raramente recebem a proteção de contratos de trabalho e regulamentos governamentais. Os empregadores podem tirar proveito de sua situação pagando menos do que é pago aos trabalhadores legais, negando benefícios e oferecendo condições de trabalho precárias ou perigosas. Tais funcionários podem estar sujeitos a abuso e assédio sexual. Em muitos casos, ficam completamente à mercê do empregador. É legítimo que os empregadores os tratem dessa maneira? Certamente não.

Mas e se as pessoas em tais situações se oferecerem para empregos abaixo do padrão, aparentemente de boa vontade? Em muitos lugares, trabalhadores não registrados estão disponíveis do lado de fora de lojas de jardinagem e materiais de construção, em mercados agrícolas e outros locais de encontro. É correto empregá-los? Em caso afirmativo, será que é responsabilidade dos empregadores fornecer os benefícios que os trabalhadores legais têm garantido por direito, como salário mínimo, auxílio-saúde, planos de aposentadoria, fundo de garantia e indenização por demissão? Como cristãos, devemos ser rigorosos sobre a legalidade de tal emprego, ou devemos ser flexíveis, com base no fato de que a legislação ainda não alcançou a realidade? Cristãos ponderados inevitavelmente vão diferir em suas conclusões a respeito disso e, portanto, é difícil justificar uma solução do tipo “tamanho único”. Seja como for que um cristão enxergue essas questões, Levítico nos lembra que a santidade (e não a conveniência prática) deve estar no centro de nosso pensamento. E a santidade em questões trabalhistas surge da preocupação com as necessidades dos trabalhadores mais vulneráveis.

Direitos das pessoas com deficiência (Levítico 19.14)

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“Não amaldiçoem o surdo nem ponham pedra de tropeço à frente do cego, mas temam o seu Deus. Eu sou o Senhor” (Lv 19.14). Esses mandamentos pintam um quadro vívido do tratamento cruel dado a pessoas com deficiência. Um surdo não poderia ouvir se fosse amaldiçoado, nem um cego poderia ver a pedra. Por essas razões, Levítico 19.14 lembra os israelitas a “temer o seu Deus”, que ouve e vê como cada um é tratado no ambiente de trabalho. Por exemplo, os trabalhadores com deficiência não precisam necessariamente dos mesmos móveis e equipamentos de escritório que aqueles sem deficiência. Mas eles precisam sim ter a oportunidade de emprego em todo o âmbito de sua produtividade, assim como todos os outros. Em muitos casos, o que uma pessoa com deficiência mais precisa é não ser impedida de trabalhar numa função em que ela é capaz. Novamente, a ordem em Levítico não é que o povo de Deus deva ser caridoso para com os outros, mas que a santidade de Deus dá a todas as pessoas criadas à sua imagem o direito a oportunidades adequadas de trabalho.

Fazer justiça (Levítico 19.15-16)

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“Não cometam injustiça num julgamento; não favoreçam os pobres, nem procurem agradar os grandes, mas julguem o seu próximo com justiça. Não espalhem calúnias entre o seu povo. Não se levantem contra a vida do seu próximo. Eu sou o Senhor”. (Lv 19.15-16)

Esta breve seção defende o conhecido valor bíblico da justiça e, em seguida, amplia consideravelmente o tema. O trecho começa com uma solicitação para juízes, mas termina com uma solicitação para todos. Não julgue processos judiciais com parcialidade e não julgue seu próximo injustamente. A redação do hebraico destaca a tentação de julgar a aparência externa de uma pessoa ou problema. Traduzido ao pé da letra, Levítico 19.15 diz: “Não cometam injustiça no julgamento. Não levantem o rosto do pobre e não honrem o rosto do grande. Com justiça julguem o seu próximo”. Os juízes não devem se deixar levar por seus preconceitos (o “rosto” que percebem) para tratar da questão de forma imparcial. O mesmo vale para nossos relacionamentos sociais no trabalho, na escola e na vida cívica. Em todos os contextos, algumas pessoas são privilegiadas e outras oprimidas por causa de preconceitos sociais de todo tipo. Imagine a diferença que nós cristãos poderíamos fazer se simplesmente esperássemos para emitir julgamentos apenas depois de conhecer pessoas e situações em profundidade. E se dedicássemos um tempo para conhecer melhor a pessoa irritante em nossa equipe antes de reclamar dela pelas costas? E se ousássemos passar um tempo com pessoas fora de nossa zona de conforto na escola, na universidade ou na vida social? E se procurássemos jornais, TV e mídias que oferecessem uma perspectiva diferente daquela com a qual nos sentimos confortáveis? Escavar abaixo da superfície nos daria mais sabedoria para fazer nosso trabalho bem e com justiça?

A última parte de Levítico 19.16 nos lembra que o preconceito social não é uma questão simples. Literalmente, o hebraico diz: “Não se coloque contra o sangue do seu próximo”. Na linguagem do tribunal, no trecho anterior, o testemunho tendencioso (“calúnia”) põe em risco a vida (“sangue”) do acusado. Nesse caso, não apenas seria errado falar palavras tendenciosas, mas seria errado até ficar de braços cruzados, sem se oferecer para testemunhar em favor dos falsamente acusados.

Os líderes nos ambientes de trabalho devem frequentemente agir como árbitros. Os trabalhadores podem testemunhar uma injustiça no ambiente de trabalho e legitimamente questionar se é ou não apropriado se envolver. Levítico afirma que permanecer proativamente a favor dos maltratados é um elemento essencial para pertencer ao povo santo de Deus.

Em um nível mais amplo, Levítico traz sua visão teológica de santidade para toda a comunidade. A saúde da comunidade e a economia que compartilhamos está em jogo. Hans Kung aponta a inter-relação necessária entre negócios, política e religião:

Não se deve esquecer que o pensamento e as ações econômicas também não são isentos ou neutros em termos de valores... Assim como a responsabilidade social e ecológica das empresas não pode ser simplesmente imposta aos políticos, a responsabilidade moral e ética não pode ser simplesmente imposta para a religião... Não, a ação ética não deve ser apenas um acréscimo particular aos planos de marketing, estratégias de vendas, contabilidade ecológica e balanços sociais, mas deve formar a estrutura natural para a ação social humana. [1]

Todo tipo de ambiente de trabalho — doméstico, empresarial, governamental, acadêmico, médico, agrícola e todo o resto — tem um papel distinto a desempenhar. No entanto, todos são chamados a ser santos. Em Levítico 19.15-16, a santidade começa por ver os outros com uma profundidade de percepção que vai além do valor aparente.

Amar o próximo como a si mesmo (Levítico 19.17-18)

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O versículo mais famoso de Levítico pode ser o mandamento: “Ame cama um o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19.18). Esse imperativo é tão abrangente que tanto Jesus quanto os rabinos o consideravam um dos dois “grandes” mandamentos, sendo o outro “Ouve, ó Israel, o Senhor, o nosso Deus, o Senhor é o único Senhor” (Mc 12.29-31; cf. Dt 6.4). Ao citar Levítico 19.18, o apóstolo Paulo escreveu que “o amor é o cumprimento da lei” (Rm 13.10).

Trabalhar pelos outros tanto quanto por nós mesmos

O cerne da ordem está nas palavras “como a si mesmo”. Pelo menos até certo ponto, a maioria de nós trabalha para se sustentar. Há um forte elemento de interesse próprio no trabalho. Sabemos que, se não trabalharmos, não comeremos. As Escrituras elogiam essa motivação (2Ts 3.10), mas o aspecto “como a si mesmo” de Levítico 19.18 sugere que devemos estar igualmente motivados a servir aos outros por meio de nosso trabalho. Esse é um chamado muito importante: trabalhar tanto para servir aos outros quanto para atender às nossas próprias necessidades. Se tivéssemos de trabalhar o dobro para conseguir isso — digamos, um turno por dia para nós mesmos e outro para o próximo — seria quase impossível.

Providencialmente, é possível amar a nós mesmos e ao próximo por meio do mesmo trabalho, pelo menos na medida em que nosso trabalho forneça algo de valor a clientes, cidadãos, estudantes, familiares e outros consumidores. Um professor recebe um salário que paga as contas e, ao mesmo tempo, transmite aos alunos conhecimentos e habilidades que serão igualmente valiosos para eles. Uma camareira de hotel recebe seu salário enquanto oferece aos hóspedes um quarto limpo e saudável. Na maioria dos empregos, não ficaríamos empregados por muito tempo se não oferecêssemos aos outros um valor pelo menos igual ao que recebemos de salário. Mas e se nos encontrarmos em uma situação em que possamos distorcer os benefícios a nosso favor? Algumas pessoas podem ter poder suficiente para exigir salários e bônus que excedam o valor que realmente fornecem. Pessoas com conexões políticas ou envolvida em corrupção podem conseguir grandes recompensas para si mesmos na forma de contratos, subsídios, bônus e empregos temporários, enquanto fornecem pouco valor para os outros. Quase todos nós temos momentos em que podemos fugir de nossos deveres e, ainda assim, ser pagos.

Pensando de forma mais ampla, se temos uma ampla gama de opções em nosso trabalho, qual é o papel de servir aos outros em nossas decisões de trabalho, em comparação com fazer o máximo para nós mesmos? Quase todo tipo de trabalho pode servir aos outros e agradar a Deus. Mas isso não significa que todo emprego ou oportunidade de trabalho seja igualmente útil para os outros. Amamos a nós mesmos quando fazemos escolhas de trabalho que nos trazem altos salários, prestígio, segurança, conforto e trabalho fácil. Amamos os outros quando escolhemos um trabalho que forneça bens e serviços necessários, oportunidades para pessoas marginalizadas, proteção para a criação de Deus, justiça e democracia, verdade, paz e beleza. Levítico 19.18 sugere que os últimos devem ser tão importante para nós quanto os primeiros.

Ser legal?

Em vez de nos esforçarmos para cumprir esse alto chamado, é fácil transformar nosso entendimento de “amar ao próximo como a si mesmo” em algo banal como “ser legal”. Mas ser legal muitas vezes nada mais é do que uma fachada e uma desculpa para nos desconectarmos das pessoas ao nosso redor. Levítico 19.17 nos ordena fazer o oposto. “Repreendam com franqueza o seu próximo para que, por causa dele, não sofram as consequências de um pecado” (Lv 19.17). Esses dois mandamentos — tanto amar quanto repreender o próximo — parecem improváveis, mas são reunidos no provérbio: “Melhor é a repreensão feita abertamente do que o amor oculto” (Pv 27.5).

Lamentavelmente, muitas vezes a lição que aprendemos na igreja é sempre sermos legais. Se isso se tornar nossa regra no ambiente de trabalho, os efeitos pessoais e profissionais podem ser desastrosos. A gentileza pode induzir os cristãos a permitirem que agressores e predadores manipulem e abusem deles — e que façam o mesmo com outros. Para ser legal, um gerente cristão pode encobrir as deficiências dos trabalhadores nas avaliações de desempenho, privando-os de um motivo para aprimorar suas habilidades e manter seus empregos a longo prazo. Ao querer ser legal, qualquer pessoa pode guardar ressentimento, alimentar rancor ou buscar vingança. Levítico nos diz que amar as pessoas às vezes significa repreender honestamente. Esta não é uma licença para a insensibilidade. Quando repreendemos, precisamos fazê-lo com compaixão e humildade — afinal, também podemos precisar ser repreendidos na situação.

Para uma discussão mais completa sobre o que significa amar ao próximo como a si mesmo no ambiente de trabalho, veja “A abordagem de comando na prática” e “A abordagem do caráter” em Visão geral da ética no trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Quem é meu próximo? (Levítico 19.33-34)

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Levítico ensina que os israelitas não devem maltratar (ou oprimir) os estrangeiros que viviam entre eles (Lv 19.33). (O mesmo verbo hebraico aparece em Lv 25.17, “Não explorem um ao outro.”) A ordem continua: “O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.34). Esse versículo é um exemplo particularmente forte da conexão inquebrável em Levítico entre a força moral da lei (amar o estrangeiro “como a si mesmos”) e o próprio ser de Deus: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês”. Você não oprime estrangeiros pois pertence a um Deus que é santo.

Estrangeiros residentes, junto com viúvas e pobres (veja Lv 19.9-10 acima), tipificam os forasteiros sem poder. Nos ambientes de trabalho de hoje, as diferenças de poder surgem não apenas das diferenças de nacionalidade e gênero, mas também de uma variedade de outros fatores. Seja qual for a causa, a maioria dos ambientes de trabalho desenvolve uma hierarquia de poder que é bem conhecida por todos, independentemente de ser abertamente reconhecida. Com Levítico 19.33-34, podemos concluir que os cristãos devem tratar outras pessoas com justiça nos negócios, como uma expressão de adoração genuína a Deus.

Negociar com justiça (Levítico 19.35-36)

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Essa passagem proíbe trapaças nos negócios, usando medidas enganosas de comprimento, peso ou quantidade, e isso se torna ainda mais específica ao mencionar balanças e pesos, equipamentos comuns do comércio. As várias medidas mencionadas indicam que essa regra se aplicaria a um amplo espectro, desde vastas extensões de terra até a menor quantidade de mercadorias secas e úmidas. A palavra hebraica tsedeq (“honesto”) que aparece quatro vezes em Levítico 19.36 denota um caráter que é certo em termos de integridade e de irrepreensibilidade. Todos os pesos e medidas devem ser precisos. Em suma, os compradores devem receber aquilo pelo que pagaram.

Os vendedores possuem inúmeras e variadas maneiras de entregar menos do que os compradores pensam que estão recebendo. Essas medidas não se limitam a medidas falsificadas de peso, área e volume. Afirmações exageradas, estatísticas enganosas, comparações irrelevantes, promessas que não podem ser cumpridas, propaganda enganosa e termos e condições ocultos são apenas a ponta do iceberg. (Para aplicações em vários ambientes de trabalho, veja “Apreciação da verdade no ambiente de trabalho” em www.teologiadotrabalho.org.)

Uma mulher que trabalha para uma grande emissora de cartões de crédito conta uma história perturbadora:

Nosso negócio é fornecer cartões de crédito a pessoas pobres com histórico de crédito ruim. Embora cobremos altas taxas de juros, a taxa de inadimplência de nossos clientes é tão alta que não podemos lucrar simplesmente cobrando juros. Temos de encontrar uma maneira de cobrar encargos.
Um desafio é que a maioria de nossos clientes tem medo de se endividar ainda mais e, por isso, paga o saldo mensal em dia. Assim, não há encargos para cobrarmos. Portanto, temos um truque para pegá-los desprevenidos. Nos primeiros seis meses, enviamos uma conta no dia 15 do mês, com vencimento no dia 15 do seguinte. Eles aprendem o padrão e diligentemente fazem o pagamento no dia 14 todos os meses. No sétimo mês, enviamos a fatura no dia 12, com vencimento para o dia 12 do mês seguinte. Eles não percebem a mudança e fazem o pagamento no dia 14, como de costume. Agora nós os pegamos. Cobramos uma taxa de serviço de US$ 30 pelo atraso no pagamento. Além disso, como eles estão inadimplentes, podemos aumentar sua taxa de juros. No mês seguinte, eles já estão em atraso e em um ciclo que gera encargos para nós, mês após mês.[1]

É difícil ver como qualquer comércio ou negócio que dependa de mentir ou enganar as pessoas para obter lucro possa ser uma linha de trabalho adequada para aqueles que são chamados a seguir um Deus santo.