O Espírito e o obreiro (At 6.1-7)
Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do TrabalhoTemas do relato de Ananias e Safira estão presentes em Atos 6.1-7, e marca a primeira disputa interna da comunidade cristã. Os judeus de fala grega (“helenistas” ou “gregos” em outras versões) provavelmente retornaram a Jerusalém vindos de uma das muitas comunidades da diáspora do Império Romano. Os judeus de fala hebraica (ou “hebreus”) são provavelmente judeus da terra histórica de Israel (Palestina) que falam principalmente aramaico e/ou hebraico. Não é preciso muita imaginação social para entender o que está acontecendo nessa situação. Em uma comunidade que se vê como o cumprimento da aliança de Israel com Deus, os membros que se consideram israelitas típicos estão recebendo mais recursos do grupo do que os demais. Esse tipo de situação acontece regularmente em nosso mundo. Aqueles que mais se assemelham aos líderes de um movimento quanto à formação, cultura, ao status e assim por diante, muitas vezes se beneficiam de sua identidade em detrimento daqueles que de alguma forma são diferentes.
O Ministério da Palavra e o servir as mesas são igualmente valiosos (At 6.2-4)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUma das maiores contribuições de Atos à teologia do trabalho está na resposta dos apóstolos à injustiça intracomunitária de Atos 6.1-7. O trabalho de exercer justiça — neste caso, supervisionando a distribuição de alimentos — é tão importante quanto o trabalho de pregar a Palavra. Isso pode não ficar claro a princípio por causa de uma tradução de certo modo confusa na NVI e outras:
Não é certo negligenciarmos o ministério da palavra de Deus, a fim de servir às mesas. (At 6.2, NVI )
O termo “servir às mesas” (At 6.2) pode soar um pouco condescendente comparativamente com dedicar-se “ao ministério da palavra” (At 6.4). Os Doze estariam dizendo que cuidar da necessidade de alimento das pessoas é menos importante do que pregar a palavra? Uma maneira de interpretar essa passagem diz que servir às mesas é “trivialidade” [1] , uma “tarefa humilde” [2] ou uma das “tarefas inferiores” [3] na comunidade. Essa linha de interpretação vê a pregação subsequente de Estêvão como o propósito “real” por trás da influência do Espírito em Atos 6.3. [4] De acordo com essa visão, não haveria necessidade de o Espírito Santo se envolver na tarefa servil de gerenciar a alocação de recursos.
Mas isso reflete um viés na tradução que não é encontrado no grego original. Quando as traduções em português mencionam “servir às mesas” (At 6.2), em contraste com “ministério da palavra” (At 6.4), elas lançam mão de termos diferentes — “servir” e “ministrar” — para traduzir a mesma palavra grega, diakaneo, que é a original em Atos 6.2 e 6.4, e que significa “servir”. Portanto, uma tradução mais literal seria “servir às mesas” e “servir a palavra”. Ambos são diakaneo, serviço. Não há razão para usar uma palavra mais leve para servir às mesas.
Assim, o original grego dá a importante noção de que o trabalho de servir os necessitados está em pé de igualdade com o trabalho apostólico de oração e pregação. Os apóstolos servem a palavra, e os diáconos (como passaram a ser chamados) servem os necessitados. Seu serviço é qualitativamente o mesmo, embora as tarefas e habilidades específicas sejam diferentes. Ambos são essenciais para a formação do povo de Deus e para seu testemunho no mundo. A vida da comunidade depende dessas formas de serviço, e Lucas não nos passa a sensação de que uma é mais poderosa ou mais espiritual que a outra.
Apesar de tudo isso, seria possível argumentar que a condescendência em relação a servir às mesas é não apenas uma questão de tradução, mas sim algo realmente presente nas próprias palavras dos discípulos? Os próprios apóstolos poderiam ter imaginado que foram escolhidos para servir a palavra porque são mais talentosos do que aqueles que foram escolhidos para servir às mesas? É isso que eles querem dizer quando afirmam que não seria certo negligenciar o serviço da palavra para servir às mesas? Nesse caso, eles estariam voltando para algo semelhante ao sistema de clientelismo romano, colocando-se numa posição alta demais para se macularem ao servir às mesas. Eles estariam substituindo a antiga fonte de status romana (o clientelismo) por uma nova fonte de status (os dons do Espírito Santo). O evangelho de Deus vai mais fundo do que isso! Não há fonte de status na comunidade cristã. Um entendimento mais consistente seria que, se você é chamado a servir a palavra de Deus, não deve negligenciar o serviço à palavra para fazer outra coisa. Da mesma forma, se você é chamado para servir às mesas, não deve negligenciar o serviço às mesas para fazer outra coisa. As pessoas podem ser chamadas para tarefas diferentes, mas não há razão bíblica para considerar alguns chamados mais elevados do que outros.
Ironicamente, um dos que servem às mesas, Estêvão, acaba sendo ainda mais talentoso como pregador do que a maioria dos apóstolos (At 6.8—7.60). No entanto, apesar de seu dom de pregação, ele é designado para o serviço de distribuição de recursos. Naquele momento, pelo menos, era mais importante para os propósitos de Deus que ele atuasse como servidor junto às mesas do que como servidor da palavra. Para ele, nenhuma fome persistente de status o impede de aceitar esse chamado para servir às mesas.
Isso tem fortes ressonâncias no mundo de hoje. Com muita frequência, trabalhadores em ocupações de serviços de alimentação — o equivalente moderno de "servir às mesas" — encontram-se em empregos de status inferior, com remuneração inadequada, baixos benefícios, alta rotatividade e condições de trabalho difíceis ou até mesmo abusivas. Essa passagem do livro de Atos fala diretamente sobre essa situação. Aos olhos de Deus, o trabalho no setor de alimentação — ou em qualquer outro— não é insignificante ou degradante, mas uma forma de serviço semelhante à dos apóstolos. O que os cristãos podem fazer para transformar essa visão em realidade nos locais de trabalho, hoje?
A obra da liderança comunitária é uma obra do Espírito Santo (At 6.3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs obreiros mais adequados para sanar a divisão étnica na comunidade de Atos 6 são qualificados porque são “cheios do Espírito e de sabedoria”. Como aqueles qualificados para a oração e a pregação, a habilidade dos que servem à mesa é resultado de poder espiritual. Nada menos do que o poder do Espírito possibilita a realização de um trabalho significativo, de construção de comunidade e de pacificação entre os cristãos. Essa passagem nos ajuda a ver que todo trabalho que edifica a comunidade — ou, mais amplamente, que promove justiça, bondade e beleza — é, em um sentido profundo, serviço (ou ministério) ao mundo.
Será que, em nossas igrejas, reconhecemos como iguais o ministério do pastor que prega a palavra, da mãe e do pai que provêm um lar amoroso para os filhos e do contador que faz uma declaração justa e honesta das despesas de seu empregador? Entendemos que todos eles dependem do Espírito para fazer seu trabalho pelo bem da comunidade? Pelo poder do Espírito, todo tipo de boa obra pode ser um meio de participação na renovação do mundo realizada por Deus.