Bootstrap

Teologia do trabalho comentário bíblico: Antigo Testamento

Comentário Bíblico /
Test 08

Introdução a Gênesis 1-11

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Gênesis é o fundamento para a teologia do trabalho. Qualquer discussão sobre trabalho na perspectiva bíblica encontra-se baseada em passagens deste livro. Gênesis é incomparavelmente importante para a teologia do trabalho, porque conta a história da obra da criação de Deus, a primeira de todas e o protótipo de toda a obra que se segue. Deus não está sonhando uma ilusão, mas criando uma realidade. Assim, o universo criado que Deus traz à existência fornece o material do trabalho humano — espaço, tempo, matéria e energia. Dentro do universo criado, Deus está presente no relacionamento com suas criaturas e, especialmente, com as pessoas. Agindo à imagem de Deus, trabalhamos em criação, sobre criação, com criação e — se trabalharmos como Deus espera — para criação.

Em Gênesis, vemos Deus em ação e aprendemos como Deus espera que trabalhemos. Tanto obedecemos quanto desobedecemos a Deus em nosso trabalho, e descobrimos que Deus está trabalhando em nossa obediência e em nossa desobediência. Os outros sessenta e cinco livros da Bíblia têm, cada um, suas contribuições únicas para acrescentar à teologia do trabalho. No entanto, todas elas brotam da fonte encontrada aqui em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia.

Deus cria o mundo (Gênesis 1.1—2.3)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A primeira coisa que a Bíblia nos diz é que Deus é um criador. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). Deus fala e surgem coisas que não existiam antes, começando pelo próprio universo. A criação é totalmente um ato de Deus. Não é um acidente, um erro ou o produto de uma divindade inferior, mas a autoexpressão de Deus.

Deus traz à existência o mundo material (Gênesis 1.1-2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Gênesis continua enfatizando a materialidade do mundo. “Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gn 1.2). A criação nascente, embora ainda “sem forma”, tem as dimensões materiais do espaço (o “abismo”) e da matéria (“águas”), e Deus está totalmente envolvido com essa materialidade (“o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”). Mais tarde, no capítulo 2, vemos até Deus trabalhando com o pó de sua criação. “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra” (Gn 2.7). Ao longo dos capítulos 1 e 2, vemos Deus envolvido na fisicalidade de sua criação.

Qualquer teologia do trabalho deve começar com uma teologia da criação. Consideramos o mundo material, as coisas com as quais trabalhamos, como sendo coisas de primeira qualidade pertencentes a Deus e imbuídas de valor duradouro? Ou o descartamos como um ambiente de trabalho temporário, uma área de testes, um navio afundando de onde devemos escapar para chegar à verdadeira localização de Deus em um “céu” imaterial? Gênesis argumenta contra qualquer noção de que o mundo material é menos importante para Deus do que o mundo espiritual. Ou, para ser mais exato, em Gênesis não há uma distinção nítida entre o material e o espiritual. O ruah de Deus em Gênesis 1.2 é simultaneamente “sopro”, “vento” e “espírito”. “Os céus e a terra” (Gn 1.1; 2.1) não são dois reinos separados, mas uma figura de linguagem hebraica que significa “o universo”.[1]

Mais significativamente, a Bíblia termina onde começa — na terra. A humanidade não parte da terra para se juntar a Deus no céu. Em vez disso, Deus aperfeiçoa seu Reino na terra e cria “a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus” (Ap 21.2). A habitação de Deus com a humanidade está aqui, na criação renovada. “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens” (Ap 21.3). É por isso que Jesus disse a seus discípulos que orassem usando as palavras: “Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Durante o tempo entre Gênesis 2 e Apocalipse 21, a terra está corrompida, destruída, fora de ordem e cheia de pessoas e forças que trabalham contra os propósitos de Deus (veja mais sobre isso em Gênesis 3 e adiante). Nem tudo no mundo vai de acordo com o desígnio de Deus. Mas o mundo ainda é algo criado por Deus, ao que ele chama de “bom”. (Para mais informações sobre o novo céu e nova terra, veja “Apocalipse 17-22” in Apocalipse e o trabalho.)

Muitos cristãos, que trabalham principalmente com objetos materiais, dizem que parece que seu trabalho importa menos para a igreja — e até para Deus — do que um trabalho centrado em pessoas, ideias ou religião. É mais provável que um sermão elogiando o bom trabalho use o exemplo de um missionário, um assistente social ou um professor do que o de um pedreiro, um mecânico de automóveis ou um químico. Os irmãos cristãos são mais propensos a reconhecer um chamado para se tornar um pastor ou médico do que um chamado para se tornar um estoquista ou um escultor. Mas isso tem alguma base bíblica? Deixando de lado o fato de que trabalhar com pessoas é trabalhar com objetos materiais, é sábio lembrar que Deus deu às pessoas tarefas de trabalhar tanto com pessoas (Gn 2.18) quanto com coisas (Gn 2.15). De fato, Deus parece levar a criação muito a sério.

A criação de Deus dá trabalho (Gênesis 1.3-25; 2.7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Criar um mundo é trabalho. Em Gênesis 1, o poder da obra de Deus é inegável. Deus traz mundos à existência e, passo a passo, vemos o exemplo primordial do uso correto do poder. Observe a ordem de criação. Os três primeiros atos criativos de Deus separam o caos sem forma em reinos de céus (ou céu), água e terra. No primeiro dia, Deus cria a luz e a separa das trevas, formando o dia e a noite (Gn 1.3-5). No segundo dia, ele separa as águas e cria o céu (Gn 1.6-8). Na primeira parte do terceiro dia, ele separa a terra seca do mar (Gn 1.9-10). Todos são essenciais para a sobrevivência do que se segue. Em seguida, Deus começa a preencher os reinos que ele criou. No restante do terceiro dia, ele cria a vida vegetal (Gn 1.11-13). No quarto dia, ele cria o sol, a lua e as estrelas (Gn 1.14-19) no céu. Os termos “luminar maior” e “luminar menor” são usados ​​em vez dos nomes “sol” e “lua”, desencorajando assim a adoração desses objetos criados e nos lembrando de que ainda corremos o risco de adorar a criação em vez do Criador. As luzes são belas em si mesmas e também essenciais para a vida das plantas, com sua necessidade de sol, noite e estações do ano. No quinto dia, Deus enche a água e o céu com peixes e pássaros que não poderiam ter sobrevivido sem a vida vegetal criada anteriormente (Gn 1.20-23). Finalmente, no sexto dia, ele cria os animais (Gn 1.24-25) e, como o ápice da criação, cria a humanidade para povoar a terra (Gn 1.26-31). [1]

No capítulo 1, Deus realiza toda a sua obra falando. “Disse Deus...” e tudo aconteceu. Isso nos permite saber que o poder de Deus é mais do que suficiente para criar e manter a criação. Não precisamos nos preocupar com o fato de Deus estar ficando cansado ou de que a criação esteja em um estado precário de existência. A criação de Deus é robusta, sua existência é segura. Deus não precisa da ajuda de ninguém nem de nada para criar ou manter o mundo. Nenhuma batalha com as forças do caos ameaça desfazer a criação. Mais tarde, quando Deus escolhe compartilhar a responsabilidade criativa com os seres humanos, sabemos que essa é uma escolha de Deus, não uma necessidade. O que quer que as pessoas façam para estragar a criação ou tornar a Terra imprópria para a plenitude da vida, Deus tem um poder infinitamente maior para redimir e restaurar.

A exibição do poder infinito de Deus no texto não significa que a criação de Deus não é trabalho, assim como é trabalho escrever um programa de computador ou atuar em uma peça de teatro. Mas se a majestade transcendente da obra de Deus em Gênesis 1 pode nos levar a pensar que aquilo não é realmente trabalho, Gênesis 2 não nos deixa dúvidas. Deus trabalha imanentemente com suas mãos para esculpir corpos humanos (Gn 2.7,21), plantar um jardim (Gn 2.8), cultivar um pomar (Gn 2.9) e, um pouco mais tarde, costurar “roupas de pele” (Gn 3.21). Isso é apenas o começo da obra física de Deus em uma Bíblia cheia de trabalho divino. [2]

A criação é de Deus, mas não é idêntica a Deus (Gênesis 1.11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus é a fonte de tudo na criação. No entanto, a criação não é idêntica a Deus. Deus dá à sua criação o que Colin Gunton chama Selbständigkeit ou uma “autonomia”. Não se trata da independência absoluta imaginada pelos ateus ou deístas, mas sim a existência significativa da criação como algo distinto do próprio Deus. Isso é melhor capturado na descrição da criação das plantas por Deus: “Então disse Deus: ‘Cubra-se a terra de vegetação: plantas que deem sementes e árvores cujos frutos produzam sementes de acordo com as suas espécies’. E assim foi” (Gn 1.11). Deus cria todas as coisas, mas também literalmente lança a semente para a perpetuação da criação ao longo dos tempos. A criação é dependente de Deus para sempre — “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28) —, mas permanece distinta. Isso dá ao nosso trabalho uma beleza e um valor acima do valor de um relógio ou de um fantoche. Nosso trabalho tem sua fonte em Deus, mas também tem seu próprio peso e dignidade.

Deus vê que sua obra é boa (Gênesis 1.4,10, 12, 18, 21, 25, 31)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Contra qualquer noção dualista de que o céu é bom e a terra é má, Gênesis declara, a cada dia da criação, que “Deus viu que ficou bom” (Gn 1.4, 10, 12, 18, 21,25). No sexto dia, com a criação da humanidade, Deus viu que “tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.31). Com os seres humanos — os agentes por meio dos quais o pecado em breve entraria na criação de Deus — tudo, no entanto, ficou “muito bom”. Simplesmente não há apoio em Gênesis para a noção, que de alguma forma entrou na imaginação cristã, de que o mundo é irremediavelmente mau e que a única salvação é uma fuga para um mundo espiritual imaterial, muito menos para a noção de que, enquanto estivermos na terra, devemos gastar nosso tempo em tarefas “espirituais” em vez de tarefas “materiais”. Não há divórcio entre o espiritual e o material no bom mundo de Deus.

Deus opera de modo relacional (Gênesis 1.26a)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mesmo antes de Deus criar as pessoas, ele fala no plural: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26; grifo nosso). Embora haja divergência entre os estudiosos sobre se essa forma plural se refere a uma assembleia divina de seres angelicais ou a uma singular pluralidade na unidade de Deus, qualquer uma das visões implica que Deus é inerentemente relacional. [1]

É difícil ter certeza de como os antigos israelitas teriam entendido o significado do plural aqui. Para nossos propósitos, parece melhor seguir a interpretação cristã tradicional de que se refere à Trindade. De qualquer forma, sabemos pelo Novo Testamento que Deus está realmente em relacionamento consigo mesmo — e com sua criação — em uma Trindade de amor. No evangelho de João, aprendemos que o Filho — “a Palavra [que] tornou-se carne” (Jo 1.14) — está presente e ativo na criação desde o princípio.

No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito. Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. (João 1.1-4)

Assim, os cristãos reconhecem nosso Deus Trino, o único que é três Pessoas em um ser — Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo —, todos pessoalmente ativos na criação.

Deus limita seu trabalho, descansando no sétimo dia (Gênesis 2.1-3)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao final de seis dias, a criação do mundo por Deus está terminada. Isso não significa que Deus deixa de trabalhar, pois, como Jesus disse: “Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando” (Jo 5.17). Também não significa que a criação está completa, pois, como veremos, Deus deixa muito trabalho para as pessoas fazerem para levar a criação adiante. Mas o caos havia se transformado em um ambiente habitável, agora sustentando plantas, peixes, pássaros, animais e seres humanos.

E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia. Assim foram concluídos os céus e a terra, e tudo o que neles há. No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou. (Gn 1.31—2.2; grifo nosso)

Deus coroa seus seis dias de trabalho com um dia de descanso. Embora a criação da humanidade tenha sido o clímax da obra criadora de Deus, descansar no sétimo dia foi o clímax da semana criadora de Deus. Por que Deus descansa? A majestade da criação de Deus somente pela palavra, no capítulo 1, deixa claro que Deus não está cansado. Ele não precisa descansar. Mas ele escolhe limitar sua criação no tempo e no espaço. O universo não é infinito. Tem um começo, atestado pelo Gênesis, que a ciência aprendeu a observar à luz da teoria do Big Bang. Se ele tem um fim no tempo, não é inequivocamente claro, seja na Bíblia ou na ciência, mas Deus dá ao tempo um limite dentro do mundo como o conhecemos. Enquanto o tempo está correndo, Deus abençoa seis dias para o trabalho e um para o descanso. Esse é um limite que o próprio Deus observa e, mais tarde, se torna seu mandamento também para as pessoas (Êx 20.8-11).

As pessoas são criadas à imagem de Deus (Gênesis 1.26-27; 5.1)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Tendo contado a história da obra de Deus na criação, Gênesis passa a contar a história do trabalho humano. Tudo está fundamentado no fato de Deus ter criado as pessoas à sua própria imagem.

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. (Gn 1.26)
Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gn 1.27)
Quando Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. (Gn 5.1)

Toda a criação exibe o desígnio, o poder e a bondade de Deus, mas é dito que apenas os seres humanos foram feitos à imagem de Deus. Uma teologia completa da imagem de Deus está além do nosso escopo aqui; portanto, apenas observemos que algo em nós é singularmente semelhante a ele. Seria ridículo acreditar que somos exatamente como Deus. Não podemos criar mundos a partir do caos e não devemos tentar fazer tudo o que Deus faz. “Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor” (Rm 12.19). Mas a principal coisa a respeito de Deus que sabemos, na narrativa até agora, é que Deus é um criador que trabalha no mundo material, que trabalha em relacionamentos e cuja obra respeita limites. Temos a capacidade de fazer o mesmo.

O restante de Gênesis 1 e 2 desenvolve o trabalho humano em cinco categorias específicas: domínio, relacionamentos, frutificação/crescimento, provisão e limites. O desenvolvimento ocorre em dois ciclos, um em Gênesis 1.26—2.4 e o outro em Gênesis 2.4-25. A ordem das categorias não é exatamente a mesma nas duas ocasiões, mas todas as categorias estão presentes nos dois ciclos. O primeiro ciclo desenvolve o que significa trabalhar à imagem de Deus. O segundo ciclo descreve como Deus equipa Adão e Eva para seu trabalho ao começarem a vida no jardim do Éden.

A linguagem do primeiro ciclo é mais abstrata e, portanto, adequada para desenvolver os princípios do trabalho humano. A linguagem do segundo ciclo, mais terrena, mostra Deus formando coisas a partir do pó e de outros elementos e é bem adequada para a instrução prática de Adão e Eva em seu trabalho específico no jardim. Essa mudança de linguagem — com mudanças semelhantes nos quatro primeiros livros da Bíblia — tem atraído quantidades incontáveis de pesquisas, hipóteses, debates e até divisões entre os estudiosos. Qualquer comentário geral fornecerá muitos detalhes. A maioria desses debates, no entanto, tem pouco impacto sobre o que o livro de Gênesis contribui para a compreensão do trabalho, dos trabalhadores e dos ambientes de trabalho, e não tentaremos tomar uma posição a respeito disso aqui. O que é relevante para nossa discussão é que o capítulo 2 repete cinco temas desenvolvidos anteriormente — no âmbito de domínio, provisão, fecundidade/crescimento, limites e relacionamentos — descrevendo como Deus equipa as pessoas para cumprir a obra para a qual fomos criados à sua imagem. Para facilitar o acompanhamento desses temas, exploraremos Gênesis 1.26—2.25 categoria por categoria, em vez de versículo por versículo. A tabela a seguir fornece um índice prático (com links) para os interessados ​​em explorar um versículo específico imediatamente.

Passagem (clique para ir para passagem)

Categoria (clique para ir para a categoria)

Ciclo

Gênesis 1.26—2.4

Domínio

1

Gênesis 1.27

Relacionamentos

1

Gênesis 1.28

Frutificação/Crescimento

1

Gênesis 1.29-30

Provisão

1

Gênesis 2.3

Limites

1

Gênesis 2.5

Domínio

2

Gênesis 2.8-14

Provisão

2

Gênesis 2.15; 2.19-20

Frutificação/Crescimento

2

Gênesis 2.17

Limites

2

Gênesis 2.18; 2.21-25

Relacionamentos

2


Domínio (Gênesis 1.26; 2.5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Trabalhar à imagem de Deus é exercer domínio (Gênesis 1.26)

Em Gênesis, vemos uma consequência de sermos criados à imagem de Deus: devemos exercer domínio: “Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão” (Gn 1.26). Como Ian Hart coloca: “Exercer domínio real sobre a terra como representante de Deus é o propósito básico para o qual Deus criou o homem... O homem é nomeado rei sobre a criação, responsável perante Deus, o rei de fato, e como tal espera-se que ele gerencie, desenvolva e cuide da criação, tarefa esta que inclui o trabalho físico real”. [1] Nosso trabalho à imagem de Deus começa com sermos uma representação fiel de Deus.

Ao exercermos domínio sobre o mundo criado, fazemos isso sabendo que espelhamos Deus. Não somos os originais, mas as imagens, e nosso dever é usar o original — Deus — como nosso padrão, não nós mesmos. Nosso trabalho deve servir aos propósitos de Deus mais do que aos nossos, o que nos impede de dominar tudo o que Deus colocou sob nosso controle.

Pense nas implicações disso em nosso ambiente de trabalho. Como Deus faria nosso trabalho? Que valores Deus traria? Que produtos Deus faria? A quais pessoas Deus serviria? Que organizações Deus construiria? Que padrões Deus usaria? Como portadores da imagem de Deus, de que maneiras nosso trabalho deve mostrar o Deus que representamos? Quando concluímos um trabalho, os resultados são tais que podemos dizer: “Obrigado, Deus, por me usar para fazer isso?”

Deus prepara as pessoas para a obra de domínio (Gênesis 2.5)

O ciclo começa novamente com o domínio, embora isso talvez não seja fácil de perceber imediatamente. “Ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo” (Gn 2.5; grifo do autor). A frase-chave é “não havia homem para cultivar o solo”. Deus escolheu não encerrar sua criação até que ele criasse pessoas para trabalhar com (ou sob) ele. Meredith Kline coloca desta forma: “O modo de Deus fazer o mundo era como um rei plantando uma fazenda, um parque ou um pomar, no qual Deus coloca a humanidade para ‘servir’ o solo e para ‘servir’ e ‘cuidar’ da propriedade.” [2]

Assim, o trabalho de exercer domínio começa com o cultivo do solo. A partir disso, vemos que o uso que Deus faz das palavras subjugar [3] e domínio no capítulo 1 não nos dá permissão para menosprezar qualquer parte de sua criação. Muito pelo contrário. Devemos agir como se tivéssemos o mesmo relacionamento de amor que Deus tem com suas criaturas. Subjugar a terra inclui tanto aproveitar seus vários recursos quanto protegê-los. O domínio sobre todas as criaturas vivas não é uma licença para abusar delas, mas um mandato de Deus para cuidar delas. Devemos servir aos melhores interesses de todos aqueles cujas vidas tocam a nossa; nossos empregadores, nossos clientes, nossos companheiros ou colegas de trabalho, ou ainda aqueles que trabalham para nós ou que conhecemos, mesmo que casualmente. Isso não significa que permitiremos que as pessoas passem por cima de nós, mas significa que não permitiremos que nosso interesse próprio, nossa autoestima ou nossa autoexaltação nos deem a licença para passar por cima dos outros. A história que se desenrola mais tarde, em Gênesis, concentra a atenção exatamente nessa tentação e em suas consequências.

Hoje, nos tornamos especialmente conscientes de como a busca humana por interesse próprio ameaça o ambiente natural. Deveríamos cuidar e preservar o jardim (Gn 2.15). A criação é destinada ao nosso uso, mas não apenas para nosso uso. Recordar que o ar, a água, a terra, as plantas e os animais são bons (Gn 1.4-31) nos lembra que devemos sustentar e preservar o meio ambiente. Nosso trabalho pode preservar ou destruir o ar puro, a água e a terra, a biodiversidade, os ecossistemas e os biomas e até o clima com o qual Deus abençoou sua criação. Domínio não é autoridade para trabalhar contra a criação de Deus, mas a capacidade de trabalhar para isso.

Relacionamentos e trabalho (Gênesis 1.27; 2.18, 21-25)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Trabalhar à imagem de Deus é trabalhar no relacionamento com os outros (Gênesis 1.27)

Trabalhar à imagem de Deus é trabalhar no relacionamento com os outros (Gênesis 1.27)Uma consequência que vemos em Gênesis de sermos criados à imagem de Deus é que trabalhamos em relacionamento com Deus e uns com os outros. Já vimos que Deus é inerentemente relacional (Gn 1.26); portanto, como imagens de um Deus relacional, somos inerentemente relacionais. A segunda parte de Gênesis 1.27 enfatiza isto novamente, pois fala de nós não individualmente, mas em pares: “homem e mulher os criou”. Estamos em relacionamento com nosso criador e com nossos semelhantes. Esses relacionamentos não são deixados como abstrações filosóficas em Gênesis. Vemos Deus falando e trabalhando com Adão ao dar nome aos animais (Gn 2.19). Vemos Deus visitando Adão e Eva no “jardim quando soprava a brisa do dia” (Gn 3.8).Como essa realidade nos afeta em nossos ambientes de trabalho? Acima de tudo, somos chamados a amar as pessoas com quem, entre as quais e para quem trabalhamos. O Deus de relacionamento é o Deus de amor (1Jo 4.7). Alguém poderia simplesmente dizer que “Deus ama”, mas as Escrituras vão mais fundo no próprio cerne do ser de Deus, que é Amor, um amor que flui entre o Pai, o Filho (Jo 17.24) e o Espírito Santo. Esse amor também flui do ser de Deus para nós, não fazendo nada que não seja para o nosso bem (o amor ágape em contraste com os amores humanos situados em nossas emoções).Francis Schaeffer explora ainda mais a ideia de que podemos ter um relacionamento pessoal com Deus, porque fomos feitos à imagem de Deus e porque Deus é pessoal. Ele observa que isso torna possível o amor genuíno, afirmando que as máquinas não podem amar. Como resultado, temos a responsabilidade de cuidar conscientemente de tudo o que Deus colocou sob nossos cuidados. Ser uma criatura relacional traz responsabilidade moral. [1]

Deus equipa as pessoas para o trabalho em relacionamento com os outros (Gênesis 2.18,21-25)

Visto que fomos criados à imagem de um Deus relacional, somos inerentemente relacionais. Fomos feitos para nos relacionar com o próprio Deus e também com outras pessoas. Deus diz: “Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda” (Gn 2.18). Todos os seus atos criativos foram chamados de “bons” ou “muito bons”, e esta é a primeira vez que Deus pronuncia algo que “não é bom”. Então, Deus faz uma mulher da carne e dos ossos do próprio Adão. Quando Eva chega, Adão fica cheio de alegria. “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (Gn 2.23). (Depois deste único caso, todas as novas pessoas continuarão a sair da carne de outros seres humanos, mas nascidas de mulheres, e não de homens.) Adão e Eva embarcam em um relacionamento tão próximo que se tornaram “uma só carne” (Gn 2.24). Embora isso possa soar como um assunto puramente erótico ou familiar, também é uma relação de trabalho. Eva é criada para auxiliar e ser parceira de Adão, de modo que ela se juntará a ele no trabalho do jardim do Éden. A noção de alguém que auxilie indica que, como Adão, ela cuidará do jardim. Prestar auxílio significa trabalhar. Alguém que não está trabalhando não está auxiliando. Ser parceiro significa trabalhar com alguém, em relacionamento.

Quando Deus chama Eva de “auxiliadora” (ARA), ele não está dizendo que ela será inferior a Adão ou que seu trabalho será menos importante, menos criativo, menos qualquer coisa que o dele. A palavra traduzida como “auxiliadora” (ARA; ezer em hebraico) é uma palavra usada em outras partes do Antigo Testamento para se referir ao próprio Deus. “Deus é o meu auxílio [ezer]” (Sl 54.4). “Senhor, sê tu o meu auxílio [ezer]” (Sl 30.10). Claramente, ezer não se refere a um subordinado. Além disso, Gênesis 2.18 descreve Eva não apenas como uma “auxiliadora”, mas também como uma “parceira”. Uma palavra muito usada hoje para alguém que é tanto um ajudante quanto um parceiro é “colaborador”. Este é, de fato, o sentido já dado em Gênesis 1.27, “homem e mulher os criou”, e não há distinção de prioridade ou dominância. A dominação das mulheres pelos homens — ou vice-versa — não está de acordo com a boa criação de Deus. É uma consequência trágica da queda (Gn 3.16).

Os relacionamentos não são incidentais no trabalho; eles são essenciais. O trabalho serve como um lugar de relacionamentos profundos e significativos, pelo menos sob as condições adequadas. Jesus descreveu nosso relacionamento consigo mesmo como uma espécie de trabalho: “Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas” (Mt 11.29). Um jugo é o que torna possível que dois bois trabalhem juntos. Em Cristo, as pessoas podem realmente trabalhar juntas, como Deus planejou quando criou a mulher e o homem como colaboradores. Enquanto nossa mente e nosso corpo trabalham em relacionamento com outras pessoas e com Deus, nossa alma “encontra descanso”. Quando não trabalhamos com os outros em direção a um objetivo comum, ficamos espiritualmente inquietos. Para saber mais sobre o jugo, consulte a seção sobre 2Coríntios 6.14-18 no Comentário Teologia do Trabalho.

Um aspecto crucial do relacionamento modelado pelo próprio Deus é a delegação de autoridade. Deus delegou a Adão a tarefa de dar nome aos animais, e a transferência de autoridade foi genuína: “o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome” (Gn 2.19). Ao delegar, como em qualquer outra forma de relacionamento, abrimos mão de alguma medida de nosso poder e independência e corremos o risco de deixar que o trabalho dos outros nos afete. Grande parte dos últimos cinquenta anos de desenvolvimento nos campos de liderança e gestão ocorreu na forma de delegação de autoridade, capacitação de trabalhadores e promoção do trabalho em equipe. O fundamento desse tipo de desenvolvimento sempre esteve em Gênesis, embora os cristãos nem sempre tenham notado isso.

Muitas pessoas formam seus relacionamentos mais próximos quando encontram um propósito e uma meta comuns em algum tipo de trabalho — seja remunerado ou não. Por sua vez, as relações de trabalho possibilitam a criação de uma vasta e complexa gama de bens e serviços além da capacidade de produção de qualquer indivíduo. Sem relacionamentos no trabalho não há automóveis, computadores, correios, legislaturas, lojas, escolas. E, sem o relacionamento íntimo entre um homem e uma mulher, não haverá pessoas no futuro para fazer a obra que Deus dá. Nosso trabalho e nossa comunidade são dons de Deus totalmente entrelaçados. Juntos, eles fornecem os meios para sermos frutíferos e nos multiplicarmos em todos os sentidos das palavras.

Frutificação/Crescimento (Gênesis 1.28; 2.15,19-20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Trabalhar à imagem de Deus é dar fruto e multiplicar-se (Gênesis 1.28)

Visto que fomos criados à imagem de Deus, devemos ser frutíferos ou fecundos. Isso é frequentemente chamado de “mandato da criação” ou “mandato cultural”. Deus fez uma criação sem falhas, um ambiente ideal, e depois criou a humanidade para continuar o projeto da criação. “Deus os abençoou, e lhes disse: ‘Sejam férteis e multipliquem-se!’” (Gn 1.28a). Deus poderia ter criado tudo o que se possa imaginar e preenchido a terra. Mas ele escolheu criar a humanidade para trabalhar ao seu lado na realização do potencial do universo, para participar da própria obra de Deus. É notável que Deus confie em nós para realizar essa incrível tarefa de edificar sobre a boa terra que ele nos deu. Por meio de nosso trabalho, Deus produz comida e bebida, produtos e serviços, conhecimento e beleza, organizações e comunidades, crescimento e saúde, louvor e glória para si mesmo.

Uma palavra sobre beleza está presente. A obra de Deus não é apenas produtiva, mas também é “atraente aos olhos” (Gn 3.6). Isso não causa surpresa, já que as pessoas, criadas à imagem de Deus, são inerentemente belas. Como qualquer outro bem, a beleza pode se tornar um ídolo, mas os cristãos muitas vezes se preocupam demais com os perigos da beleza e não apreciam muito o valor da beleza aos olhos de Deus. Inerentemente, a beleza não é um desperdício de recursos, algo que desvia de um trabalho mais importante ou uma flor fadada a murchar no final dos tempos. A beleza é uma obra à imagem de Deus, e o Reino de Deus está cheio de beleza como “uma joia muito preciosa” (Ap 21.11). As comunidades cristãs fazem bem em apreciar a beleza da música com palavras sobre Jesus. Talvez pudéssemos valorizar melhor todos os tipos de verdadeira beleza.

Uma boa pergunta a fazer a nós mesmos é se estamos trabalhando de forma mais produtiva e bonita. A história está repleta de exemplos de pessoas cuja fé cristã resultou em realizações surpreendentes. Se nosso trabalho parece infrutífero quando comparado ao deles, a resposta não está no autojulgamento, mas na esperança, na oração e no crescimento na companhia do povo de Deus. Independentemente das barreiras que enfrentamos — de dentro ou de fora —, pelo poder de Deus, podemos fazer mais bem do que jamais poderíamos imaginar.

Deus capacita as pessoas para darem frutos e se multiplicarem (Gênesis 2.15,19-20)

“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo” (Gn 2.15). Essas duas palavras em hebraico, avad (“cuidar”; lit. “cultivar”) e shamar (“cultivar”; lit. “guardar”), também são usados ​​para a adoração a Deus e a guarda de seus mandamentos, respectivamente. [1] O trabalho feito de acordo com o propósito de Deus tem uma santidade inconfundível.

Adão e Eva recebem dois tipos específicos de trabalho em Gênesis 2.15-20: cultivar o jardim (um tipo de trabalho físico) e dar nomes aos animais (um tipo de trabalho cultural/científico/intelectual). Ambos são empreendimentos criativos que fornecem atividades específicas a pessoas criadas à imagem do Criador. Ao cultivar coisas e desenvolver cultura, somos de fato frutíferos. Trazemos os recursos necessários para sustentar uma população em crescimento e aumentar a produtividade da criação. Desenvolvemos os meios para encher a Terra, mas não demais. Não precisamos imaginar que cuidar do jardim e dar nome a animais são as únicas tarefas adequadas para os seres humanos. Em vez disso, a tarefa humana é estender a obra criadora de Deus de várias maneiras, sendo limitada apenas pelos dons divinos de imaginação e habilidade e pelos limites que Deus estabelece. O trabalho está para sempre enraizado no desígnio de Deus para a vida humana. É uma via para contribuir para o bem comum e é um meio de provisão para nós mesmos, para nossas famílias e para aqueles que podemos abençoar com nossa generosidade.

Um aspecto importante (embora às vezes esquecido) de Deus em ação na criação é a vasta imaginação que foi capaz de criar tudo, desde a exótica vida marinha até elefantes e rinocerontes. Embora os teólogos tenham criado listas variadas das características de Deus que nos foram dadas e que carregam a imagem divina, a imaginação é certamente um dom de Deus que vemos em ação ao nosso redor, em nosso ambiente de trabalho e em nossa casa.

Grande parte do trabalho que fazemos usa nossa imaginação de alguma forma. Apertamos os parafusos numa linha de montagem de caminhões e imaginamos esse caminhão na estrada. Abrimos um documento em nosso computador e imaginamos a história que estamos prestes a escrever. Mozart imaginou uma sonata e Beethoven imaginou uma sinfonia. Picasso imaginou Guernica antes de pegar seus pincéis para trabalhar nessa pintura. Tesla e Edison imaginaram aproveitar a eletricidade, e hoje temos luz na escuridão e uma infinidade de eletrodomésticos, eletrônicos e equipamentos. Alguém em algum lugar imaginou praticamente tudo ao nosso redor. A maioria dos empregos que as pessoas ocupam existe porque alguém poderia imaginar um produto ou processo que criasse empregos no ambiente de trabalho.

No entanto, é preciso trabalho para que a imaginação seja realizada; e, depois da imaginação, vem o trabalho de trazer o produto à existência. Na verdade, na prática, a imaginação e a realização ocorrem frequentemente em processos entrelaçados. Picasso disse sobre sua Guernica: “Uma pintura não é pensada e preparada de antemão. Enquanto está sendo feita, ela muda à medida que os pensamentos mudam. E, quando terminada, continua mudando, de acordo com o estado de espírito de quem está olhando para ela.” [2] O trabalho de transformar a imaginação em realidade traz sua própria criatividade inevitável.

Provisão (Gênesis 1.29-30; 2.8-14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Trabalhar à imagem de Deus é receber a provisão de Deus (Gênesis 1.29-30)

Visto que fomos criados à imagem de Deus, Deus supre nossas necessidades. Essa é uma das maneiras pelas quais se nota que aqueles que foram feitos à imagem de Deus não são o próprio Deus. Deus não tem necessidades ou, se tivesse, teria o poder de atender a todas elas sozinho. Nós não. Portanto:

Disse Deus: “Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês. E dou todos os vegetais como alimento a tudo o que tem em si fôlego de vida: a todos os grandes animais da terra, a todas as aves do céu e a todas as criaturas que se movem rente ao chão”. E assim foi. (Gn 1.29-30)

Por um lado, reconhecer a provisão de Deus nos alerta para não cairmos em arrogância. Sem ele, nosso trabalho não é nada. Não podemos gerar a própria vida. Não podemos nem mesmo prover nossa própria manutenção. Precisamos da constante provisão divina de ar, água, terra, luz do sol e do crescimento milagroso de seres vivos para alimentar nosso corpo e nossa mente. Por outro lado, reconhecer a provisão de Deus nos dá confiança em nosso trabalho. Não precisamos depender de nossa própria capacidade ou dos caprichos das circunstâncias para atender às nossas necessidades. O poder de Deus torna nosso trabalho frutífero.

Deus equipa as pessoas com provisão para suas necessidades (Gênesis 2.8-14)


O segundo ciclo do relato da criação nos mostra algo de como Deus provê nossas necessidades. Ele prepara a Terra para ser produtiva quando aplicamos nosso trabalho a ela. “O Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara” (Gn 2.8). Nós até podemos cultivar, mas Deus é o plantador original. Além do alimento, Deus criou a terra com recursos para sustentar tudo o que precisamos para sermos frutíferos e nos multiplicar. Ele nos dá uma multidão de rios que fornecem água, minérios que fornecem materiais de pedra e metal e precursores dos meios de troca econômica (Gn 2.10-14). “O ouro daquela terra é excelente” (Gn 2.12). Mesmo quando sintetizamos novos elementos e moléculas, ou quando reorganizamos o DNA entre os organismos ou criamos células artificiais, estamos trabalhando com a matéria e a energia que Deus criou para nós.

Deus estabelece limites (Gênesis 2.3; 2.17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Trabalhar à imagem de Deus é ser abençoado pelos limites que Deus estabelece (Gênesis 2.3)

Visto que fomos criados à imagem de Deus, devemos obedecer a certos limites em nosso trabalho. “Abençoou Deus o sétimo dia e o santificou, porque nele descansou de toda a obra que realizara na criação” (Gn 2.3). Deus descansou porque estava exausto ou descansou para oferecer a nós, portadores de sua imagem, um ciclo modelo de trabalho e descanso? O quarto dos Dez Mandamentos nos diz que o descanso de Deus deve ser um exemplo a seguir.

“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou. (Êx 20.8-11)

Enquanto as pessoas religiosas, ao longo dos séculos, tendiam a acumular regras definindo o que constituía a guarda do sábado, Jesus disse claramente que Deus fez o sábado para nós — para nosso benefício (Mc 2.27). O que devemos aprender com isso?

Quando, assim como Deus, paramos de trabalhar no sétimo dia, reconhecemos que nossa vida não é definida apenas pelo trabalho ou pela produtividade. Walter Brueggemann colocou desta forma: “O sábado fornece um testemunho visível de que Deus está no centro da vida — que a produção e o consumo humanos ocorrem em um mundo ordenado, abençoado e restringido pelo Deus de toda a criação”. [1] Em certo sentido, renunciamos a parte de nossa autonomia, assumindo nossa dependência de Deus, nosso Criador. Caso contrário, vivemos com a ilusão de que a vida está completamente sob controle humano. Em certo sentido, tornar o sábado uma parte regular de nossa vida profissional é reconhecer que Deus está, em última análise, no centro da vida. (Mais discussões sobre sábado, descanso e trabalho podem ser encontradas nas seções sobre “Marcos 1.21-45”, “Marcos 2.23—3.6”, “Lucas 6.1-11”, e “Lucas 13.10-17” no Comentário da Teologia do Trabalho.)

Deus equipa as pessoas para trabalharem dentro de limites (Gênesis 2.17)

Tendo abençoado os seres humanos com seu próprio exemplo de observar os dias de trabalho e os sábados, Deus fornece a Adão e Eva instruções específicas sobre os limites de seu trabalho. No meio do jardim do Éden, Deus planta duas árvores, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.9). A última árvore está fora dos limites. Deus diz a Adão: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá” (Gn 2.16-17).

Os teólogos têm especulado longamente sobre por que Deus colocaria uma árvore no jardim do Éden que ele não queria que os habitantes usassem. Várias hipóteses são encontradas nos comentários, e não precisamos estabelecer uma resposta aqui. Para nossos propósitos, basta observar que nem tudo o que pode ser feito deve ser feito. A imaginação e a habilidade humanas podem trabalhar com os recursos da criação de Deus de maneiras hostis às intenções, propósitos e mandamentos de Deus. Se quisermos trabalhar com Deus, e não contra ele, devemos escolher observar os limites que Deus estabelece, em vez de realizar tudo o que é possível na criação.

Francis Schaeffer salientou que Deus não deu a Adão e Eva a escolha entre uma árvore boa e uma árvore má, mas a escolha entre adquirir ou não o conhecimento do mal (eles já conheciam o bem, é claro). Ao fazer essa árvore, Deus abriu a possibilidade do mal, mas, ao fazê-lo, validou a escolha. Todo amor está ligado à escolha; sem escolha, a palavra amor é sem sentido. [2] Adão e Eva poderiam amar e confiar em Deus o suficiente para obedecer ao seu mandamento sobre a árvore? Deus espera que aqueles que se relacionam com ele sejam capazes de respeitar os limites que trazem o bem à criação.

Nos ambientes de trabalho de hoje, alguns limites continuam a nos abençoar quando os observamos. A criatividade humana, por exemplo, surge tanto dos limites quanto das oportunidades. Os arquitetos encontram inspiração nos limites de tempo, dinheiro, espaço, materiais e propósito impostos pelo cliente. Os pintores encontram expressão criativa aceitando os limites da mídia com a qual escolhem trabalhar, começando com as limitações de representar o espaço tridimensional em uma tela bidimensional. Os escritores encontram brilhantismo quando enfrentam limites de páginas e palavras.

Todo bom trabalho respeita os limites de Deus. Existem limites para a Terra quanto à capacidade de extração de recursos, poluição, modificação de habitats e uso de plantas e animais para alimentação, vestuário e outros fins. O corpo humano tem grande força, resistência e capacidade de trabalho, mas tudo isso é limitado. Há limites para uma alimentação saudável e exercícios físicos. Há limites para distinguir a beleza da vulgaridade, a crítica do abuso, o lucro da ganância, a amizade da exploração, o serviço da escravidão, a liberdade da irresponsabilidade e a autoridade da ditadura. Na prática, pode ser difícil saber exatamente onde está a linha divisória, e deve-se admitir que os cristãos muitas vezes erraram ao agir com conformismo, legalismo, preconceito e uma monotonia sufocante, especialmente ao proclamar o que outras pessoas devem ou não fazer. No entanto, a arte de viver como portadores da imagem de Deus requer de nós que aprendamos a discernir onde as bênçãos podem ser encontradas ao observar os limites estabelecidos por Deus que são evidentes em sua criação.

A obra do “mandato da criação” (Gênesis 1.28, 2.15)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao descrever a criação da humanidade à imagem de Deus (Gn 1.1—2.3) e equipar a humanidade para viver de acordo com essa imagem (Gn 2.4-25), percebemos que Deus criou as pessoas para que exerçam domínio, para que sejam fecundos e se multipliquem, para que recebam a provisão de Deus, para que trabalhem nos relacionamentos e para que observem os limites da criação. Observamos que estes frequentemente têm sido chamados de “mandato da criação” ou “mandato cultural”, com destaque especial para Gênesis 1.28 e 2.15:

Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”. (Gn 1.28)
O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo. (Gn 2.15)

O uso dessa terminologia não é essencial, mas a ideia representada por ela parece clara em Gênesis 1 e 2. Desde o início, Deus planejou que os seres humanos fossem seus parceiros menores na obra de levar sua criação à plenitude. Não está em nossa natureza ficar satisfeitos com as coisas do jeito que estão, receber provisão para nossas necessidades sem trabalhar, suportar a ociosidade por muito tempo, labutar em um sistema de organização não criativa ou trabalhar em isolamento social. Para recapitular, fomos criados para trabalhar como subcriadores em relacionamento com outras pessoas e com Deus, dependendo da provisão de Deus para tornar nosso trabalho frutífero e respeitando os limites dados em sua Palavra e evidentes em sua criação.

As pessoas caem em pecado no trabalho (Gênesis 3.1-24)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Até este ponto, discutimos o trabalho em sua forma ideal, sob as condições perfeitas do jardim do Éden. Mas então chegamos a Gênesis 3.1-6.

Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: “Foi isto mesmo que Deus disse: ‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’?” Respondeu a mulher à serpente: “Podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas Deus disse: ‘Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem toquem nele; do contrário vocês morrerão’ ”. Disse a serpente à mulher: “Certamente não morrerão! Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como Deus, serão conhecedores do bem e do mal”. Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também. (grifo nosso)

A serpente representa o antideus, o adversário de Deus. Bruce Waltke observa que o adversário de Deus é maligno e mais sábio do que os seres humanos. Ele é perspicaz ao chamar a atenção para a vulnerabilidade de Adão e Eva, mesmo quando distorce o mandamento de Deus. Ele conduz Eva para o que parece ser uma discussão teológica sincera, mas a distorce ao enfatizar a proibição de Deus, em vez de sua provisão com o restante das árvores frutíferas do jardim. Em essência, ele quer que a palavra de Deus soe difícil e restritiva.

O plano da serpente é bem-sucedido e, primeiro, Eva, come do fruto da árvore proibida; depois Adão faz o mesmo. Ambos quebram os limites que Deus havia estabelecido para eles, em uma vã tentativa de se tornar “como Deus” de alguma forma além do que já tinham como portadores da imagem de Deus (Gn 3.5). Já conhecendo por experiência própria a bondade da criação de Deus, eles escolhem se tornar “sábios” nos caminhos do mal (Gn 3.4-6). Tanto Eva como Adão decidiram comer o fruto; são escolhas que favorecem seus próprios gostos pragmáticos, estéticos e sensuais em detrimento da palavra de Deus. O “bem” não está mais enraizado naquilo que Deus diz trazer melhoras para a vida, mas no que as pessoas pensam ser desejável para elevar a vida. Em suma, eles transformam o que é bom em mal. [1]

Ao escolher desobedecer a Deus, eles quebram os relacionamentos inerentes ao seu próprio ser. Primeiro, o relacionamento entre eles — “osso dos meus ossos e carne da minha carne”, como havia sido anteriormente (Gn 2.23) — é quebrado, pois eles se escondem um do outro cobrindo-se com folhas de figueira (Gn 3.7). O próximo passo é o relacionamento deles com Deus, pois não falam mais com ele na brisa do dia, mas se escondem de sua presença (Gn 3.8). Adão rompe ainda mais o relacionamento entre ele e Eva, culpando-a por sua decisão de comer do fruto e, ao mesmo tempo, criticando Deus. “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3.12). Da mesma forma, Eva rompe o relacionamento da humanidade com as criaturas da terra, culpando a serpente por sua própria decisão (Gn 3.13).

As decisões de Adão e Eva naquele dia tiveram resultados desastrosos que se estendem até o ambiente de trabalho moderno. Deus profere juízo contra o pecado deles e declara consequências que resultam em uma labuta difícil. A serpente terá de rastejar sobre o seu ventre todos os seus dias (Gn 3.14). A mulher enfrentará sofrimento ao dar à luz, e também sentirá conflito quanto a seu desejo pelo homem (Gn 3.16). O homem terá de labutar para obter o sustento do solo, e este produzirá “espinhos e ervas daninhas” às custas do grão desejado (Gn 3.17-18). Em suma, os seres humanos ainda farão o trabalho para o qual foram criados, e Deus ainda suprirá suas necessidades (Gn 3.17-19). Mas o trabalho se tornará mais difícil, desagradável e sujeito a falhas e consequências indesejadas.

É importante notar que, quando o trabalho se tornou esforço, não foi o começo do trabalho. Algumas pessoas veem a maldição como a origem do trabalho, mas Adão e Eva já haviam cultivado o jardim. O trabalho não é inerentemente uma maldição, mas a maldição afeta o trabalho. De fato, o trabalho se torna mais importante como resultado da Queda, e não menos, porque é necessário mais trabalho agora para produzir os resultados necessários. Além disso, os materiais originais dos quais Adão e Eva surgiram na liberdade e no prazer de Deus agora se tornam fontes de sujeição. Adão, feito da terra, agora lutará para cultivar o solo até que seu corpo retorne à terra quando morrer (Gn 3.19); Eva, feita de uma costela do lado de Adão, agora estará sujeita ao domínio de Adão, em vez de tomar seu lugar ao lado dele (Gn 3.16). A dominação de uma pessoa sobre outra no casamento e no trabalho não fazia parte do plano original de Deus, mas pessoas pecadoras fizeram disso uma nova maneira de se relacionar quando romperam os relacionamentos que Deus lhes tinha dado (Gn 3.12-13).

Duas formas de mal nos confrontam diariamente. O primeiro é o mal natural, as condições físicas na terra que são hostis à vida que Deus deseja para nós. Inundações e secas, terremotos, tsunamis, calor e frio excessivos, doenças, pragas e coisas semelhantes causam danos que não existiam no jardim. O segundo é o mal moral, quando as pessoas agem com vontades hostis às intenções de Deus. Ao agir de maneira maligna, prejudicamos a criação e nos distanciamos de Deus, e também prejudicamos os relacionamentos que mantemos com outras pessoas.

Vivemos em um mundo caído e quebrado e não podemos esperar uma vida sem esforço. Fomos feitos para o trabalho, mas, nesta vida, esse trabalho é manchado por tudo o que foi quebrado naquele dia no jardim do Éden. Isso também é muitas vezes o resultado de não respeitarmos os limites que Deus estabelece para nossos relacionamentos, sejam pessoais, corporativos ou sociais. A Queda criou alienação entre as pessoas e Deus, entre as pessoas e, ainda, entre as pessoas e a terra que deveria sustentá-las. A suspeita mútua substituiu a confiança e o amor. Nas gerações que se seguiram, a alienação alimentou ciúme, raiva e até assassinato. Todos os ambientes de trabalho hoje refletem essa alienação entre os trabalhadores — em maior ou menor grau — tornando nosso trabalho ainda mais penoso e menos produtivo.

Pessoas trabalham em meio a uma criação caída (Gênesis 4—8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Quando Deus expulsa Adão e Eva do Jardim do Éden (Gn 3.23-24), eles trazem consigo seus relacionamentos rompidos e seu trabalho árduo, esboçando uma existência em solo resistente. No entanto, Deus continua a prover-lhes o necessário, a ponto de costurar roupas para eles, quando eles mesmos não têm habilidade (Gn 3.21). A maldição não destruiu sua capacidade de se multiplicar (Gn 4.1-2) ou de alcançar certa medida de prosperidade (Gn 4.3-4).

O trabalho de Gênesis 1 e 2 continua. Ainda há terreno a ser cultivado e fenômenos da natureza a serem estudados, descritos e nomeados. Homens e mulheres ainda devem ser frutíferos, ainda devem se multiplicar, ainda devem governar. Mas agora, uma segunda camada de trabalho também deve ser realizada — a obra de curar, reparar e restaurar as coisas que dão errado e os males que são cometidos. Para colocar isto em um contexto contemporâneo, ainda é necessário o trabalho de agricultores, cientistas, parteiras, pais, líderes, e cada um em empreendimentos criativos. Mas o mesmo vale para o trabalho de policiais, médicos, agentes funerários, agentes penitenciários, auditores forenses e todos aqueles em profissões que restringem o mal, previnem desastres, reparam danos e restauram a saúde. Na verdade, o trabalho de todos é uma mistura de criação e reparo, encorajamento e frustração, sucesso e fracasso, alegria e tristeza. Grosso modo, há agora o dobro de trabalho a fazer do que havia no jardim. O trabalho não é menos importante para o plano de Deus, mas ainda é mais importante.

O primeiro assassinato (Gênesis 4.1-25)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Gênesis 4 detalha o primeiro assassinato, quando Caim mata seu irmão Abel em um ataque de ciúmes. Ambos os irmãos trazem o fruto de seu trabalho como oferta a Deus. Caim é agricultor e traz alguns frutos da terra, sem indicação no texto bíblico de que este seja o primeiro ou o melhor de seus produtos (Gn 4.3). Abel é pastor e traz as “primeiras crias”, os melhores, as “as partes gordas” de seu rebanho (Gn 4.4). Embora ambos estejam produzindo alimentos, eles não estão trabalhando nem adorando juntos. O trabalho não é mais um lugar de bons relacionamentos.

Deus olha com favor para a oferta de Abel, mas não para a de Caim. Nessa primeira menção à ira na Bíblia, Deus adverte Caim a não entrar em desespero, mas a dominar seu ressentimento e trabalhar por um resultado melhor no futuro. “Se você fizer o bem, não será aceito?”, o Senhor lhe pergunta (Gn 4.7). Mas Caim cede à sua ira e mata seu irmão (Gn 4.8; cf. 1Jo 3.12 ; Jd 11 ). Deus responde à ação com estas palavras:

“Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão. Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo”. (Gn 4.10-12)

O pecado de Adão não trouxe a maldição de Deus sobre as pessoas, mas apenas sobre a terra (Gn 3.17). O pecado de Caim traz a maldição da terra sobre o próprio Caim (Gn 4.11). Ele não pode mais cultivar o solo, e Caim, o lavrador, torna-se um fugitivo errante, finalmente se estabelecendo na terra de Node, a leste do Éden, onde constrói a primeira cidade mencionada na Bíblia (Gn 4.16-17). (Veja Gn 10—11 para saber mais sobre o tema das cidades.)

O restante do capítulo 4 segue os descendentes de Caim por sete gerações até Lameque, cujos atos tirânicos fazem seu ancestral Caim parecer inofensivo. Lameque nos mostra um endurecimento progressivo no pecado. Primeiro vem a poligamia (Gn 4.19), violando o propósito de Deus para o casamento em Gênesis 2.24 (cf. Mt 19.5-6). Depois, uma vingança o leva a matar alguém que apenas o golpeou (Gn 4.23-24). No entanto, em Lameque também vemos o início da civilização. A divisão do trabalho — que causou problemas entre Caim e Abel — traz aqui uma especialização que possibilita certos avanços. Alguns dos filhos de Lameque criam instrumentos musicais e usam ferramentas de bronze e ferro (Gn 4.21-22). A capacidade de criar música, de fabricar os instrumentos para tocá-la e de desenvolver avanços tecnológicos na metalurgia estão todos dentro do escopo dos criadores que fomos criados para ser à imagem de Deus. As artes e as ciências são um desdobramento digno do mandato da criação, mas o elogio de Lameque sobre seus atos cruéis aponta para os perigos que acompanham a tecnologia em uma cultura depravada e inclinada à violência. O primeiro poeta humano após a queda celebra o orgulho humano e o abuso de poder. No entanto, a harpa e a flauta podem ser redimidas e usadas no louvor a Deus (1Sm 16.23), assim como a metalurgia, que entrou na construção do tabernáculo hebraico (Êx 35.4-19,30-35).

À medida que as pessoas se multiplicam, elas começam a divergir. Por meio de Sete, Adão tinha esperança de uma semente piedosa, que incluía Enoque e Noé. Mas, com o tempo, surge um grupo de pessoas que se afastam dos caminhos de Deus.

Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas, e escolheram para si aquelas que lhes agradaram. Então disse o Senhor: “Por causa da perversidade do homem, meu Espírito não contenderá com ele para sempre; ele só viverá cento e vinte anos”. Naqueles dias, havia nefilins na terra, e também posteriormente, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas lhes deram filhos. Eles foram os heróis do passado, homens famosos. O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. (Gn 6.1-5)

O que a linhagem piedosa de Sete — por fim restrita apenas a Noé e sua família — poderia fazer contra uma cultura tão depravada que levaria Deus a tomar a decisão de destruí-la completamente?

Para muitos cristãos hoje, uma grande preocupação no ambiente de trabalho é como observar os princípios que acreditamos refletir a vontade e os propósitos de Deus para nós, como portadores ou representantes de sua imagem. Como podemos fazer isso nos casos em que nosso trabalho nos pressiona para o caminho da desonestidade, deslealdade, mão de obra de baixa qualidade, salários e condições de trabalho degradantes, exploração da vulnerabilidade de colegas de trabalho, clientes, fornecedores ​​ou da comunidade em geral? Pelo exemplo de Sete — e de muitos outros nas Escrituras —, sabemos que há espaço no mundo para as pessoas trabalharem de acordo com o desígnio e o mandato de Deus.

Quando outros podem cair no medo, na incerteza e na dúvida, ou sucumbir ao desejo ilimitado de poder, riqueza ou reconhecimento humano, o povo de Deus pode permanecer firme no trabalho ético, significativo e compassivo, porque confiamos em Deus para nos ajudar a superar as dificuldades que se mostram difíceis de lidar sem a graça de Deus. Quando as pessoas são abusadas ou prejudicadas pela ganância, injustiça, ódio ou negligência, podemos defendê-las, fazer justiça e curar feridas e divisões, porque temos acesso ao poder redentor de Cristo. Os cristãos, dentre todas as pessoas, podem se dispor a lutar contra o pecado que encontramos em nossos ambientes de trabalho, quer ele surja das ações de outras pessoas ou de nosso próprio coração. Deus anulou o projeto em Babel porque “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6); as pessoas não se referiam às nossas habilidades reais, mas à nossa arrogância. No entanto, pela graça de Deus, realmente temos o poder de realizar tudo o que Deus tem reservado para nós em Cristo, que declara que “nada lhes será impossível” (Mt 17.20) e “nada é impossível para Deus” (Lc 1.37).

Será que realmente trabalhamos como se acreditássemos no poder de Deus? Ou desperdiçamos as promessas de Deus simplesmente tentando sobreviver sem causar confusão?

Deus chama Noé e cria um novo mundo (Gênesis 6.9-8.19)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Algumas situações podem ser resgatáveis. Outras podem estar além da redenção. Em Gênesis 6.6-8, ouvimos o lamento de Deus sobre o estado do mundo e da cultura pré-diluvianos, bem como sua decisão de começar de novo:

Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e isso cortou-lhe o coração. Disse o Senhor: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, os homens e também os grandes animais e os pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito”. A Noé, porém, o Senhor mostrou benevolência.

De Adão até nós, Deus procura pessoas que possam se posicionar contra a cultura do pecado, quando necessário. Adão falhou no teste, mas gerou a linhagem de Noé, “homem justo, íntegro entre o povo da sua época; ele andava com Deus” (Gn 6.9). Noé é a primeira pessoa cuja obra é principalmente redentora. Ao contrário de outros, que estão ocupados tirando a vida do solo, Noé é chamado para salvar a humanidade e a natureza da destruição. Nele vemos o progenitor de sacerdotes, profetas e apóstolos, que são chamados à obra da reconciliação com Deus, e daqueles que cuidam do meio ambiente, que são chamados à obra da natureza redentora. Em maior ou menor grau, todos os trabalhadores, desde Noé, são chamados para a obra de redenção e reconciliação.

E que projeto de construção é a arca! Contrariando as chacotas dos vizinhos, Noé e seus filhos devem derrubar milhares de ciprestes e, com eles, fazer tábuas na quantidade suficiente para construir um zoológico flutuante. Essa embarcação de três andares precisa ter capacidade para transportar as várias espécies de animais e armazenar comida e água necessárias por um período indefinido. Apesar das dificuldades, o texto nos assegura que “Noé fez tudo exatamente como Deus lhe tinha ordenado” (Gn 6.13-22).

No mundo dos negócios, os empreendedores estão acostumados a correr riscos, trabalhando contra a sabedoria convencional para criar novos produtos ou processos. É necessária uma visão de longo prazo, em vez de atenção aos resultados de curto prazo. Noé enfrentou o que às vezes deve ter parecido uma tarefa impossível, e alguns estudiosos da Bíblia sugerem que a construção real da arca levou cem anos. Também é preciso fé, tenacidade e planejamento cuidadoso diante de céticos e críticos. Talvez devêssemos acrescentar o gerenciamento de projetos à lista de desenvolvimentos pioneiros de Noé. Hoje, inovadores, empreendedores e aqueles que desafiam as opiniões e os sistemas predominantes em nossos ambientes de trabalho ainda precisam de uma fonte de força interior e convicção. A resposta não é nos convencermos a correr riscos tolos, é claro, mas recorrer à oração e ao conselho dos sábios em Deus quando formos confrontados com oposição e desânimo. Talvez precisemos de um florescimento de cristãos talentosos e treinados para o trabalho de encorajar e ajudar a refinar a criatividade de inovadores nos negócios, na ciência, na academia, nas artes, no governo e em outras esferas de trabalho.

A história do dilúvio, encontrada em Gênesis 7.1—8.19, é bem conhecida. Por mais de meio ano, Noé, sua família e todos os animais saltitam dentro da arca, enquanto as inundações se alastram, fazendo a arca girar na água que cobria o topo das montanhas. Quando finalmente o dilúvio diminui, o solo está seco e uma nova vegetação está surgindo. Os ocupantes da arca mais uma vez pisam em terra firme. O texto ecoa Gênesis 1, enfatizando a continuidade da criação. Deus sopra um “vento” sobre “as profundezas” e “as águas” retrocedem (Gn 8.1-3). No entanto, em certo sentido, aquele era um mundo novo, remodelado pela força do dilúvio. Deus estava dando à cultura humana uma nova oportunidade de começar do zero e acertar. Para os cristãos, isso prenuncia o novo céu e a nova terra em Apocalipse 21—22, quando a vida e o trabalho humanos são levados à perfeição dentro do cosmos, curados dos efeitos da Queda, como discutimos em "Deus traz à existência o mundo material” (Gn 1.1-2).

O que pode ficar menos aparente é que este, o primeiro trabalho de engenharia em larga escala da humanidade, é um projeto ambiental. Apesar — ou talvez como resultado — do relacionamento rompido da humanidade com a serpente e todas as criaturas (Gn 3.15), Deus atribui a um ser humano a tarefa de salvar os animais e confia nele para fazê-lo fielmente. As pessoas não estavam isentas do chamado de Deus para dominar “sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.28). Deus está sempre trabalhando para restaurar o que foi perdido na Queda, e ele usa como seu principal instrumento a humanidade — caída sim, mas em restauração.

A aliança de Deus com Noé (Gênesis 9.1-19)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mais uma vez em terra firme, diante de um novo começo, o primeiro ato de Noé é construir um altar ao Senhor (Gn 8.20). Aqui ele oferece sacrifícios que agradam a Deus, e Deus resolve nunca mais destruir a humanidade: “Enquanto durar a terra, plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite jamais cessarão” (Gn 8.22). Deus estabelece uma aliança com Noé e seus descendentes, prometendo nunca mais destruir a terra por meio de um dilúvio (Gn 9.8-17). Deus coloca o arco-íris como um sinal de sua promessa. Embora a Terra tenha novamente mudado de maneira radical, os propósitos de Deus para o trabalho permanecem os mesmos. Ele repete sua bênção e seu mandato a Noé e seus filhos: “Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra” (Gn 9.1). Ele afirma sua promessa de provisão de alimento por meio do trabalho (Gn 9.3). Em troca, estabelece requisitos para a justiça entre os seres humanos e para a proteção de todas as criaturas (Gn 9.4-6).

A palavra hebraica traduzida como “arco-íris” refere-se simplesmente a um arco — uma ferramenta de batalha e caça. Waltke observa que, nas mitologias antigas do Oriente Próximo, estrelas em forma de arco eram associadas à raiva ou hostilidade do deus, mas que “aqui o arco do guerreiro está pendurado, apontado para longe da terra ”. [1] Meredith Kline observa que “o símbolo da belicosidade e da hostilidade divinas foi transformado em um símbolo de reconciliação entre Deus e o homem”. [2] O arco em posição de descanso se estende da terra ao céu, de horizonte a horizonte. Um instrumento de guerra tornou-se um símbolo de paz por meio da aliança de Deus com Noé.

A queda de Noé (Gênesis 9.20-29)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Depois de seu trabalho heróico em nome da humanidade, Noé cai em um incidente doméstico preocupante. Tudo começa — como muitas tragédias em casa e no ambiente de trabalho — com o abuso de substâncias, neste caso o álcool. (Adicione a produção de bebidas alcoólicas à lista de inovações de Noé; Gn 9.20.) Depois de ficar bêbado, Noé desmaia nu em sua tenda. Seu filho, Cam, entra ali e o vê nesse estado, mas seus outros filhos — alertados por Cam — entram na tenda de costas para a tenda e cobrem o pai sem olhar para a sua nudez. É difícil para a maioria dos leitores modernos entender exatamente o que há de tão vergonhoso ou imoral nessa situação, mas ele e seus filhos entendem claramente que é um desastre familiar. Quando Noé recupera a consciência e fica ciente do acontecido, sua resposta destrói permanentemente a tranquilidade da família. Noé amaldiçoa os descendentes de Cam por meio de Canaã e os torna escravos dos descendentes dos outros dois filhos. Isso prepara o terreno para milhares de anos de inimizade, guerra e atrocidades entre a família de Noé.

Noé pode ser a primeira pessoa de grande estatura a cair em desgraça, mas não foi a última. Algo na grandeza parece tornar as pessoas vulneráveis ​​ao fracasso moral — especialmente, ao que parece, na vida pessoal e familiar. Em um instante, todos nós poderíamos citar uma dúzia de exemplos no cenário mundial. O fenômeno é comum o suficiente para gerar provérbios, tanto bíblicos — “O orgulho vem antes da destruição; o espírito altivo, antes da queda” (Pv 16.18) — quanto coloquiais — “Quanto mais alto, maior é a queda”.

Noé sem dúvida, é uma das grandes figuras da Bíblia (Hb 11.7), portanto, nossa melhor resposta não é julgar Noé, mas pedir a graça de Deus para nós mesmos. Se nos encontrarmos buscando grandeza, é melhor buscar primeiro a humildade. Se nos tornamos grandes, é melhor implorar a Deus a graça de escapar do destino de Noé. Se caímos, assim como Noé, vamos confessar rapidamente e pedir às pessoas ao nosso redor que nos impeçam de transformar uma queda em um desastre por meio de nossas reações autojustificadas.

Os descendentes de Noé e a torre de Babel (Gênesis 10.1—11.32)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No capítulo chamado de Origem dos Povos, Gênesis 10 traça primeiro os descendentes de Jafé (Gn 10.2-5), depois os descendentes de Cam (Gn 10.6-20) e, finalmente, os descendentes de Sem (Gn 10.21-31). Entre eles, o neto de Cam, Ninrode, se destaca por sua importância para a teologia do trabalho. Ninrode funda um império de pura agressão com base na Babilônia. Ele é um tirano, um poderoso caçador a ser temido e, o que é mais significativo, um construtor de cidades (Gn 10.8-12).

Com Ninrode, o tirânico construtor de cidades, ainda presente em nossa memória, chegamos à construção da torre de Babel (Gn 11.1-9). Babel, como muitas cidades no antigo Oriente Próximo, foi projetada como uma área murada de um grande templo ou zigurate, uma torre de tijolos de barro em forma de escada, projetada para alcançar o reino dos deuses. Com tal torre, as pessoas poderiam ascender aos deuses, e os deuses poderiam descer à terra. Embora Deus não condene esse desejo de alcançar os céus, vemos nele a ambição de autoexaltação e o pecado crescente do orgulho que leva essas pessoas a começarem a construir uma torre tão poderosa. “Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra” (Gn 11.4). O que eles queriam? Fama. O que eles temiam? Ser dispersos sem a segurança de um grande grupo. A torre que eles imaginaram construir parecia enorme para eles, mas o narrador de Gênesis sorri enquanto nos diz que era tão insignificante que Deus “desceu para ver a cidade e a torre” (Gn 11.5). Quão diferente da cidade de paz, ordem e virtude, que são os propósitos de Deus para o mundo. [1]

A objeção de Deus à torre é que ela dará às pessoas a expectativa de que “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6). Assim como Adão e Eva antes deles, eles pretendem usar o poder criativo que possuem como portadores da imagem de Deus para agir contra os propósitos de Deus. Nesse caso, eles planejam fazer o contrário do que Deus ordenou no mandato cultural. Em vez de encher a terra, eles pretendem se concentrar aqui em um único local. Em vez de explorar a plenitude do nome que Deus lhes deu — Adão, “humanidade” (Gn 5.2) —, eles decidem fazer um nome para si mesmos. Deus vê que sua arrogância e ambição estão fora dos limites e diz: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros” (Gn 11.7). Então, “o Senhor os espalhou dali por toda a face de toda a terra, e eles pararam de construir a cidade. Por isso, foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de toda a terra; e dali o Senhor os dispersou por toda a face de toda a terra” (Gn 11.8-9).

Podemos ser tentados a concluir, a partir deste estudo, que as cidades são inerentemente ruins, mas não é bem assim. Deus deu a Israel uma capital, Jerusalém, e a morada final do povo de Deus é a cidade santa de Deus que desce do céu (Ap 21.2). O conceito de “cidade” não é mau, mas o orgulho que podemos vir a atribuir às cidades é o que desagrada a Deus (Gn 19.12-14). Pecamos quando olhamos para o triunfo cívico e a cultura, e não para Deus, como nossa fonte de significado e direção. Bruce Waltke conclui sua análise de Gênesis 11 nestas palavras:

A sociedade sem Deus é totalmente instável. Por um lado, as pessoas buscam sinceramente significado existencial e segurança em sua unidade coletiva. Por outro lado, elas têm um apetite insaciável para consumir o que os outros possuem... No coração da cidade do homem está o amor a si mesmo e o ódio a Deus. A cidade revela que o espírito humano não se deterá em nada menos que usurpar o trono de Deus no céu. [2]

Embora possa parecer que o fato de Deus ter dispersado as pessoas é uma punição, na verdade, é também um meio de redenção. Desde o início, Deus pretendia que as pessoas se dispersassem pelo mundo. “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra” (Gn 1.28). Ao dispersar as pessoas após a queda da torre, Deus as colocou de volta no caminho de encher a terra, o que resultou na bela variedade de povos e culturas que a povoam hoje. Se as pessoas tivessem completado a torre sob uma singularidade de intenções maliciosas e tirania social, com o resultado de que “nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6), só podemos imaginar os horrores que teriam enfrentado em seu orgulho e força do pecado. A amplitude do mal operado pela humanidade nos séculos 20 e 21 dá um mero vislumbre do que as pessoas poderiam fazer se todas as coisas fossem possíveis sem depender de Deus. Como Dostoievski disse: “Sem Deus e a vida futura, isso significa que tudo é permitido”. [3] Às vezes, Deus não nos deixa seguir nosso caminho porque sua misericórdia para conosco é grande demais.

O que podemos aprender com o incidente da torre de Babel para nosso trabalho hoje? A ofensa específica que os construtores cometeram foi desobedecer à ordem de Deus de se espalhar e encher a terra. Eles centralizaram não apenas suas moradias geográficas, mas também sua cultura, sua língua e suas instituições. Em sua ambição de fazer uma grande coisa (“nosso nome será famoso”; Gn 11.4), eles reprimiram a amplitude do esforço que deveria vir com a variedade de dons, serviços, atividades e funções com os quais Deus dota as pessoas (1Co 12.4-11). Embora Deus queira que as pessoas trabalhem juntas para o bem comum (Gn 2.18 ; 1Co. 12.7), ele não nos criou para realizá-lo por meio da centralização e do acúmulo de poder. Ele advertiu o povo de Israel contra os perigos de concentrar o poder em um rei (1Sm 8.10-18). Deus preparou para nós um rei divino, Cristo, nosso Senhor, e sob ele não há lugar para grande concentração de poder em indivíduos, instituições ou governos humanos.

Portanto, podemos esperar que lideranças e instituições cristãs tenham o cuidado de dispersar a autoridade e favorecer a coordenação, objetivos e valores comuns e a tomada de decisões democráticas, em vez da concentração de poder. Mas, em muitos casos, os cristãos buscaram algo diferente, o mesmo tipo de concentração de poder que tiranos e autoritários buscam, embora com objetivos mais benevolentes. Dessa forma, os legisladores cristãos buscam o mesmo controle sobre a população, embora com o objetivo de impor a piedade ou a moralidade. Dessa forma, os empresários cristãos buscam o oligopólio tanto quanto os outros, embora com o objetivo de melhorar a qualidade, o atendimento ao cliente ou o comportamento ético. Dessa forma, os educadores cristãos buscam tão pouca liberdade de pensamento quanto os educadores autoritários, embora com a intenção de impor a expressão moral, a bondade e a sã doutrina.

Por mais louváveis ​​que sejam todos esses objetivos, os acontecimentos da torre de Babel sugerem que eles são muitas vezes perigosamente equivocados (mais tarde, a advertência de Deus a Israel sobre os perigos de ter um rei ecoa essa sugestão; veja 1Sm 8.10-18). Em um mundo em que mesmo aqueles que estão em Cristo ainda lutam contra o pecado, a ideia de Deus sobre o bom domínio (da parte de seres humanos) parece ser dispersar pessoas, poder, autoridade e capacidades, em vez de concentrá-los em uma pessoa, instituição, partido ou movimento. É claro que algumas situações exigem o exercício decisivo do poder por uma pessoa ou um pequeno grupo. Um piloto seria tolo se aceitasse o voto de um passageiro para escolher em qual pista pousar. Mas será que, com mais frequência do que imaginamos, quando estamos em posições de poder, Deus está nos chamando para dispersar, delegar, autorizar e treinar outros, em vez de exercer o poder sozinhos? Agir assim pode ser confuso, ineficiente, difícil de medir, arriscado e levar à ansiedade. Mas pode ser exatamente o que Deus espera que os líderes cristãos façam em muitas situações.

Conclusões de Gênesis 1—11

Voltar ao índice Voltar ao índice

Nos capítulos iniciais da Bíblia, Deus cria o mundo e nos traz para nos juntarmos a ele em mais criatividade. Ele nos cria à sua imagem para exercer domínio, ser frutíferos e multiplicar, receber sua provisão, trabalhar em relacionamento com ele e com outras pessoas e observar os limites de sua criação. Ele nos equipa com recursos, habilidades e comunidades para cumprir essas tarefas, e nos dá o padrão de trabalhar por elas em seis dos sete dias da semana. Ele nos dá a liberdade de fazer essas coisas por amor a ele e à sua criação, o que também nos dá a liberdade de não fazer as coisas para as quais ele nos criou. Para nosso prejuízo duradouro, os primeiros seres humanos escolheram violar o mandato de Deus, e as pessoas continuam a escolher a desobediência — em maior ou menor grau — até os dias atuais. Como resultado, nosso trabalho tornou-se menos produtivo, mais penoso e menos satisfatório, e nossos relacionamentos e nosso trabalho diminuíram e, às vezes, até foram destrutivos.

No entanto, Deus continua a nos chamar para trabalhar, nos equipando e suprindo nossas necessidades. E muitas pessoas têm a oportunidade de fazer um trabalho bom, criativo e gratificante, que supra suas necessidades e contribua para uma comunidade próspera. A Queda tornou o trabalho que começou no jardim do Éden mais necessário, não menos. Embora os cristãos às vezes tenham entendido mal isso, Deus não respondeu à Queda se retirando do mundo material e confinando seus interesses ao espiritual, e não é possível divorciar o material e o espiritual. O trabalho, incluindo os relacionamentos que o permeiam e os limites que o abençoam, continua sendo um presente de Deus para nós, mesmo que seja severamente prejudicado pelas condições de existência após a Queda.

Ao mesmo tempo, Deus está sempre trabalhando para redimir sua criação dos efeitos da Queda. Gênesis 4—11 começa a história de como o poder de Deus está trabalhando para ordenar e reordenar o mundo e seus habitantes. Deus é soberano sobre o mundo criado e sobre toda criatura viva, humana ou não. Ele continua a cuidar de sua própria imagem na humanidade. Mas ele não tolera os esforços humanos para ser “como Deus” (Gn 3.5), a fim de adquirir poder excessivo ou substituir o relacionamento com Deus pela autossuficiência. Aqueles que, como Noé, recebem o trabalho como um dom de Deus e fazem o possível para trabalhar de acordo com sua direção encontram bênçãos e frutos em seu trabalho. Aqueles que, como os construtores da torre de Babel, tentam alcançar o poder e o sucesso em seus próprios termos encontram violência e frustração, especialmente quando seu trabalho se volta para prejudicar os outros. Como todos os personagens desses capítulos de Gênesis, enfrentamos a escolha de trabalhar com Deus ou em oposição a ele. Como a história da obra de Deus para redimir sua criação terminará é algo que não é contado no livro de Gênesis, mas sabemos que, em última análise, leva à restauração da criação — incluindo a obra das criaturas de Deus — como Deus planejou desde o início.

Para leitura adicional

Mark Biddle, Missing the Mark: Sin and Its Consequences in Biblical Theology (Nashville, TN: Abingdon Press, 2005).

Walter Brueggemann, Genesis (Atlanta: John Knox, 1982).

Victor Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (Grand Rapids: Eerdmans, 1990).

Walter Kaiser Jr., Toward Old Testament Ethics (Grand Rapids: Zondervan, 1983).

Thomas Keiser, Genesis 1-11: Its Literary Coherence and Theological Message (Eugene, OR: Wipf & Stock, 2013).

John Mason, “Biblical Teaching and Assisting the Poor,” Interpretation 4, no.2 (1987).

John Mason and Kurt Schaefer, “The Bible, the State, and the Economy: A Framework for Analysis,” Christian Scholar’s Review 20, no. 1 (1990).

Kenneth Mathews, The New American Commentary: Vol. 1A Genesis 1-11.26 (Nashville: Broadman and Holman, 1996).

Gerhard von Rad, Genesis rev. edn. (London: SCM, 1972).

Bruce Vawter, On Genesis: A New Reading (New York: Doubleday, 1977).

John Walton, The NIV Application Commentary: Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 2001).

Claus Westermann, Genesis 1-11 (Minneapolis: Augsburg, 1984).

Albert Wolters, Creation Regained (Grand Rapids: Eerdmans, 2005).

Christopher Wright, Old Testament Ethics for the People of God (Leicester: Inter-Varsity Press, 2004).

Introdução a Gênesis 12—50 e o trabalho

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os capítulos 12 a 50 de Gênesis falam sobre a vida e a obra de Abraão, Sara e seus descendentes. Deus chamou Abraão, Sara e sua família para deixar sua terra natal e ir para o novo país que Deus lhes mostraria. Ao longo do caminho, Deus prometeu transformá-los em um grande povo: “Por meio de você todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 12.3). Como descendentes espirituais de Abraão, abençoados por esta grande família e trazidos à fé por meio de seu descendente Jesus Cristo, somos chamados a seguir os passos da fé do pai e da mãe de todos os que verdadeiramente creem (Rm 4.11; Gl 3.7,29).

A história da família de Abraão e Sara é repleta de trabalho. Seu trabalho abrange quase todas as facetas do trabalho dos povos seminômades no antigo Oriente Próximo. Em todos os momentos, eles enfrentam questões cruciais sobre como viver e trabalhar observando fielmente a aliança de Deus. Eles lutam para ganhar a vida, suportar convulsões sociais, criar filhos em segurança e permanecer fiéis a Deus em meio a um mundo quebrantado, assim como acontece conosco hoje. Eles descobrem que Deus é fiel à sua promessa de abençoá-los em todas as circunstâncias, embora eles mesmos se mostrem infiéis repetidas vezes.

Mas o propósito da aliança de Deus não é apenas abençoar a família de Abraão em um mundo hostil. Em vez disso, ele pretende abençoar o mundo inteiro por meio dessas pessoas. Essa tarefa está além das habilidades da família de Abraão, que cai repetidas vezes no orgulho, no egocentrismo, na imprudência, na raiva e em todas as outras doenças a que as pessoas decaídas estão sujeitas. Também nos reconhecemos neles neste aspecto. No entanto, pela graça de Deus, eles mantêm um núcleo de fidelidade à aliança, e Deus trabalha por meio do trabalho dessas pessoas, cercadas de falhas, para trazer bênçãos inimagináveis ​​ao mundo. Da mesma maneira, nosso trabalho também traz bênçãos para aqueles ao nosso redor, porque participamos da obra de Deus no mundo.

Quando visto do começo ao fim, fica claro que Gênesis é uma única peça literária, mas se divide em duas partes distintas. A primeira parte (Gn 1—11) trata da criação do universo por Deus e, em seguida, traça o desenvolvimento da humanidade, desde o casal original no jardim do Éden até os três filhos de Noé e suas famílias, que se espalharam pelo mundo. Esta seção termina com uma nota negativa, quando pessoas de todo o mundo se reúnem para construir uma cidade e fazer um nome para si mesmas e, em vez disso, experimentam derrota, confusão e dispersão como julgamento de Deus. A segunda parte (Gn 12—50) começa com o chamado do Senhor a um homem em particular, Abraão. [1] Deus o chamou para deixar sua terra natal e sua família e partir para uma nova vida e uma nova terra, e foi isso o que ele fez. O restante do livro segue a vida desse homem e das três gerações seguintes, que começam a experimentar o cumprimento das promessas divinas feitas a Abraão, seu pai.

A fidelidade de Abraão em contraste com a falta de fé de Babel (Gênesis 12.1-3)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus chamou Abraão para uma aliança de serviço fiel, como é dito no início de Gênesis 12. Ao deixar o território de sua parentela descrente e seguir o chamado de Deus, Abraão se distinguiu fortemente de seus parentes distantes que permaneceram na Mesopotâmia e tentaram construir a torre de Babel, como foi contado no final de Gênesis 11. A comparação entre a família imediata de Abraão, no capítulo 12, e os outros descendentes de Noé, no capítulo 11, destaca cinco contrastes.

Primeiro, Abraão deposita sua confiança na orientação de Deus, e não em artifícios humanos. Em contraste, os construtores da torre acreditavam que, por sua própria habilidade e engenhosidade, poderiam conceber uma torre “que chegue até o céu” (Gn 11.4) e, ao fazê-lo, conseguir significado e segurança de uma forma que usurpasse a autoridade de Deus. [1]

Em segundo lugar, os construtores procuraram fazer um nome para si mesmos (Gn 11.4), mas Abraão confiou na promessa de Deus de que ele engrandeceria o nome de Abraão (Gn 12.2). A diferença não era o desejo de alcançar a grandeza em si, mas o desejo de buscar a fama em seus próprios termos. Deus realmente tornou Abraão famoso, não por si mesmo, mas pela promessa de que, por meio dele, “todas as famílias da terra serão abençoadas” (Gn 12.3). Os construtores da torre buscaram a fama por si mesmos, mas permanecem anônimos até hoje.

Terceiro, Abraão estava disposto a ir aonde quer que Deus o levasse, enquanto os construtores tentavam se amontoar em seu espaço habitual. Eles criaram seu projeto por medo de que fossem espalhados por toda a terra (Gn 11.4). Ao fazer isso, rejeitaram o propósito de Deus para a humanidade de encher a terra (Gn 1.28). Parece que estavam com medo de que ser espalhados em um mundo aparentemente hostil fosse muito difícil para eles. Mesmo sendo criativos e tecnologicamente inovadores (Gn 11.3), não estavam dispostos a abraçar plenamente o propósito de Deus: “sejam férteis e multipliquem-se” (Gn 1.28). Seu medo de se engajar na plenitude da criação coincidiu com sua decisão de substituir a orientação e a graça de Deus pela engenhosidade humana. Quando deixamos de aspirar por mais do que podemos alcançar por conta própria, nossas aspirações se tornam insignificantes.

Em contraste, Deus fez de Abraão o empreendedor original, sempre seguindo em frente para novos empreendimentos em novos locais. Deus o chamou para longe da cidade de Harã, em direção à terra de Canaã, onde Abraão nunca se estabeleceria em um endereço fixo. Ele ficou conhecido como um “arameu errante” (Dt 26.5). Esse estilo de vida era inerentemente mais centrado em Deus, pois Abraão teria de depender da palavra e da liderança de Deus para encontrar seu significado, segurança e sucesso. Como Hebreus 11.8 coloca, ele teve de partir, “embora não soubesse para onde estava indo”. No mundo do trabalho, os crentes devem perceber o contraste nessas duas orientações fundamentais. Todo trabalho envolve planejamento e construção. O trabalho ímpio decorre do desejo de não depender de ninguém além de nós mesmos, e se restringe estritamente a beneficiar apenas a nós mesmos e aos poucos que possam estar próximos de nós. A obra piedosa está disposta a depender da orientação e da autoridade de Deus e deseja crescer amplamente como uma bênção para todo o mundo.

Quarto, Abraão estava disposto a permitir que Deus o conduzisse a novos relacionamentos. Enquanto os construtores da torre procuravam se fechar em uma fortaleza vigiada, Abraão confiou na promessa de Deus de que sua família se tornaria um grande povo (Gn 12.2; 15.5). Embora vivessem entre estrangeiros na terra de Canaã (Gn 17.8), tinham bom relacionamento com aqueles com quem entravam em contato (Gn 21.22-34; 23.1-12). Esse é o dom da comunidade. Outro tema-chave emerge, portanto, para a teologia do trabalho: o desígnio de Deus é que as pessoas trabalhem em redes saudáveis ​​de relacionamento.

Por fim, Abraão foi abençoado com a paciência de ter uma visão de longo prazo. As promessas de Deus deveriam ser cumpridas no tempo da descendência de Abraão, não no tempo do próprio Abraão. O apóstolo Paulo interpretou a “descendência” como sendo Jesus (Gl 3.19), o que significa que a data da recompensa seria mais de mil anos no futuro. De fato, a promessa feita a Abraão não será cumprida completamente até o retorno de Cristo (Mt 24.30-31). Seu progresso não pode ser adequadamente medido por relatórios trimestrais! Os construtores das torres, em comparação, não pensaram em como seu projeto afetaria as gerações futuras, e Deus os criticou explicitamente por esse lapso (Gn 11.6).

Em suma, Deus prometeu a Abraão fama, descendência e bons relacionamentos, o que significava que ele e sua família abençoariam o mundo inteiro e, no devido tempo, seriam abençoados além da imaginação (Gn 22.17). Ao contrário de outros, Abraão percebeu que uma tentativa de entender essas coisas por conta própria seria inútil, ou pior. Em vez disso, ele confiou em Deus e dependeu todos os dias da orientação e provisão de Deus (Gn 22.8-14). Embora essas promessas não tenham sido totalmente cumpridas até o final de Gênesis, elas iniciaram a aliança entre Deus e o povo de Deus, por meio da qual a redenção do mundo será completada no dia de Cristo (Fp 1.10).

Deus prometeu uma nova terra à família de Abraão. Fazer uso da terra requer muitos tipos de trabalho; portanto, o fato de dar terras reitera que o trabalho é uma esfera essencial da preocupação de Deus. Trabalhar a terra exigiria habilidades ocupacionais de pastoreio, fabricação de tendas, proteção militar e produção de uma ampla gama de bens e serviços. Além disso, os descendentes de Abraão se tornariam uma nação populosa, cujos membros seriam tão inumeráveis ​​quanto as estrelas do céu. Isso exigiria o trabalho de desenvolver relacionamentos pessoais, paternidade, política, diplomacia e administração, educação, artes da cura e outras ocupações sociais. Para trazer tais bênçãos a toda a terra, Deus chamou Abraão e seus descendentes e disse: “ande segundo a minha vontade e seja íntegro” (Gn 17.1). Isso exigia o trabalho de adoração, expiação, discipulado e outras ocupações religiosas. O trabalho de José foi criar uma solução que respondesse ao impacto da fome e, às vezes, nosso trabalho é curar o quebrantamento. Todos esses tipos de trabalho, e os trabalhadores que se envolvem neles, estão sob a autoridade, a orientação e a provisão de Deus.

O estilo de vida pastoril de Abraão e sua família (Gênesis 12.4-7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Quando Abraão deixou sua casa em Harã e partiu para a terra de Canaã, sua família provavelmente já era bem grande para os padrões modernos. Sabemos que sua esposa Sara e seu sobrinho Ló foram com ele, assim como um número não especificado de pessoas e bens (Gn 12.5). Em breve, Abraão se tornaria muito rico, tendo adquirido servos e gado, bem como prata e ouro (Gn 12.16; 13.2). Ele ganhou pessoas e animais do faraó durante sua estadia no Egito, e os metais preciosos teriam sido resultado de transações comerciais, indicando o Senhor como responsável final por conceder bênçãos. [1] A evidência de que Abraão e Ló haviam se tornado bem-sucedidos está na briga que irrompeu entre os pastores de cada família sobre a incapacidade da terra para prover pasto que sustentasse tantos animais. Por fim, os dois tiveram de se separar para sustentar suas atividades comerciais (Gn 13.11).

Estudos antropológicos desse período e região sugerem que as famílias nessas narrativas praticavam uma mistura de pastoreio seminômade e criação de rebanhos (Gn 13.5-12; 21.25-34; 26.17-33; 29.1-10; 37.12-17). [2] Essas famílias precisavam de mobilidade sazonal e, portanto, viviam em tendas de couro, feltro e lã. Possuíam propriedades que podiam ser carregadas por burros ou, se alguém fosse rico o suficiente, também por camelos. Encontrar o equilíbrio entre a disponibilidade ideal de terra para pastagem e água exigia bom senso e conhecimento profundo do clima e da geografia. Os meses mais úmidos, de outubro a março, forneciam pastagens nas planícies mais baixas, enquanto nos meses mais quentes e secos, de abril a setembro, os pastores levavam seus rebanhos para maiores altitudes, em busca de nascentes e vegetação mais verde. [3] Como uma família não podia ser inteiramente sustentada pelo pastoreio, era necessário praticar a agricultura local e o comércio com aqueles que viviam em comunidades mais assentadas. [4]

Pastores nômades cuidavam de ovelhas e cabras para obter leite e carne (Gn 18.7-8; 27.9; 31.38), lã e outros produtos feitos de produtos animais, como couro. Jumentos carregavam cargas (Gn 42.26), e os camelos eram especialmente adequados para viagens mais longas (Gn 24.10,64; 31.17). As habilidades necessárias para manter esses rebanhos envolveriam pastorear e dar água, realizar partos, tratar os animais doentes e feridos e garantir proteção contra predadores e ladrões, além de buscar animais que se perdessem.

As variações no clima e o tamanho do crescimento da população dos rebanhos e manadas teriam afetado a economia da região. Grupos mais fracos de pastores poderiam facilmente ser deslocados ou assimilados por aqueles que precisavam de mais território para suas propriedades em expansão. [5] O lucro do pastoreio não era armazenado como poupança ou investimentos acumulados em nome dos proprietários e cuidadores, mas compartilhado por toda a família. Da mesma forma, os efeitos das dificuldades decorrentes das condições de fome teriam sido sentidos por todos. Embora os indivíduos certamente tivessem suas próprias responsabilidades e fossem responsáveis ​​por suas ações, a natureza comunitária dos negócios da família geralmente destoa de nossa cultura contemporânea, que foca na realização pessoal e na busca de lucros cada vez maiores. A responsabilidade social teria sido uma preocupação diária, não uma opção.

Nesse modo de vida, os valores compartilhados eram essenciais para a sobrevivência. A dependência mútua entre os membros de uma família ou tribo e a consciência de sua ancestralidade comum teriam resultado em grande solidariedade, bem como em hostilidade vingativa em relação a quem a perturbasse (Gn 34.25-31). [6] Os líderes precisavam saber como aproveitar a sabedoria do grupo para tomar decisões acertadas sobre para onde viajar, quanto tempo permanecer e como dividir os rebanhos. [7] Eles deviam ter alguma maneira de se comunicar com pastores que levavam os rebanhos a distâncias maiores (Gn 37.12-14). As habilidades de resolução de conflitos eram necessárias para resolver disputas inevitáveis ​​envolvendo terras de pastagem e direitos sobre a água de poços e nascentes (Gn 26.19-22). A alta mobilidade da vida no campo e a vulnerabilidade de alguém aos saqueadores tornavam a hospitalidade muito mais do que uma cortesia. Em geral, era considerada um requisito para pessoas decentes oferecer bebidas, comida e hospedagem. [8]


As narrativas patriarcais mencionam repetidamente a grande riqueza de Abraão, Isaque e Jacó (Gn 13.2; 26.13; 31.1). O pastoreio e a criação de animais eram áreas de trabalho honrosas e podiam ser lucrativas, e a família de Abraão tornou-se muito rica. Por exemplo, para abrandar a atitude de Esaú, seu irmão ofendido, antes do encontrá-lo depois de tantos anos, Jacó conseguiu selecionar de sua propriedade um presente de pelo menos 550 animais: 200 cabras com 20 machos, 200 ovelhas com 20 carneiros, 30 camelas com seus bezerros, 40 vacas com 10 touros e 20 jumentas com 10 machos (Gn 32.13-15). Portanto, é apropriado que, no final de sua vida, quando Jacó conferiu bênçãos a seus filhos, ele dê um belo testemunho sobre o Deus de seus pais: “o Deus que tem sido o meu pastor em toda a minha vida até o dia de hoje” (Gn 48.15). Embora muitas passagens na Bíblia avisem que a riqueza é muitas vezes inimiga da fidelidade (por exemplo, Jr 17.11, Hc 2.5, Mt 6.24), a experiência de Abraão mostra que a fidelidade de Deus também pode ser expressa em prosperidade. Como veremos, isso não é de forma alguma uma promessa de que o povo de Deus deva esperar prosperidade continuamente.

A jornada de Abraão começa com desastre no Egito (Gênesis 12.8—13.2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os resultados iniciais das viagens de Abraão não foram promissores. Havia uma disputa feroz pela terra (Gn 12.6), e Abraão passou muito tempo tentando encontrar um pedaço de terra para ocupar (Gn 12.8-9). Por fim, a deterioração das condições econômicas o obrigou a abandonar completamente o lugar e a levar sua família para o Egito, a centenas de quilômetros de distância da terra prometida por Deus (Gn 12.10).

Como migrante econômico para o Egito, a posição vulnerável de Abraão o deixou com medo. Ele temia que os egípcios pudessem assassiná-lo para ficar com sua bela esposa, Sara. Para evitar isso, Abraão pediu que Sara dissesse que era sua irmã, e não sua esposa. Como Abraão havia pensado, um dos egípcios — o próprio faraó — desejou Sara e ela “foi levada ao seu palácio” (Gn 12.15). Como resultado, “o Senhor puniu o faraó e sua corte com graves doenças” (Gn 12.17). Quando o faraó descobriu o motivo — que ele havia tomado a esposa de outro homem —,devolveu Sara a Abraão e imediatamente ordenou que ambos saíssem de seu país (Gn 12.18-19). No entanto, o faraó os enriqueceu com ovelhas e gado, jumentos e jumentas, servos e servas, bem como camelos (Gn 12.16), além de prata e ouro (Gn 13.2), uma indicação adicional de que a riqueza de Abraão (Gn 13.2) se devia aos presentes reais. [1]

Esse incidente indica dramaticamente os dilemas morais que se apresentam diante de grandes disparidades de riqueza e pobreza e os perigos de perder a fé diante de tais problemas. Abraão e Sara estavam fugindo da fome. Pode ser difícil de imaginar que alguém seja tão desesperadamente pobre ou tenha medo de que uma família sujeite suas mulheres a serviços sexuais para sobreviver economicamente, mas ainda hoje milhões de pessoas enfrentam essa escolha. Faraó repreende Abraão por agir dessa maneira, mas a resposta de Deus a um incidente posterior semelhante (Gn 20.7,17) mostra mais compaixão do que julgamento.

Por outro lado, Abraão havia recebido a promessa direta de Deus: “Farei de você um grande povo” (Gn 12.2). Sua fé em Deus para cumprir suas promessas falhou tão rapidamente? A sobrevivência realmente exigia que ele mentisse e permitisse que sua esposa se tornasse uma concubina, ou Deus teria providenciado outra maneira? Os temores de Abraão parecem tê-lo feito esquecer sua confiança na fidelidade de Deus. Da mesma forma, pessoas em situações difíceis geralmente se convencem de que não têm escolha a não ser fazer algo que consideram errado. No entanto, fazer escolhas desagradáveis, não importa nossos sentimentos em relação a elas, não é o mesmo que não ter escolha.

Abraão e Ló se separam: a generosidade de Abraão (Gênesis 13.3-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Quando Abraão e sua família entraram novamente em Canaã e chegaram à região ao redor de Betel, o atrito que eclodiu entre os pastores de Abraão e os de seu sobrinho Ló forçou Abraão a fazer uma escolha em relação à escassez de terra. Uma divisão precisava ser feita, e Abraão assumiu o risco de oferecer a Ló a chance de ser o primeiro a escolher a propriedade. A cordilheira central de terra em Canaã é rochosa e abriga muita vegetação para pastagem. Os olhos de Ló caíram para o leste e para a planície ao redor do rio Jordão, que ele considerava “como o jardim do Senhor”, então ele escolheu essa porção melhor para si (Gn 13.10). A confiança de Abraão em Deus o libertou da ansiedade de cuidar de si mesmo. Não importa como Abraão e Ló prosperassem no futuro, o fato de Abraão ter deixado Ló fazer a escolha demonstrou generosidade e estabeleceu confiança entre ele e Ló.

A generosidade é uma característica positiva nos relacionamentos pessoais e nos negócios. Talvez nada estabeleça confiança e bons relacionamentos com tanta solidez quanto a generosidade. Colegas, clientes, fornecedores e até adversários reagem fortemente à generosidade e se lembram dela por muito tempo. Quando Zaqueu, o cobrador de impostos, recebeu Jesus em sua casa e prometeu dar metade de seus bens aos pobres e retribuir quatro vezes aqueles a quem ele havia enganado, Jesus o chamou de “filho de Abraão” por sua generosidade e fruto do arrependimento (Lc 19.9). Zaqueu estava respondendo, é claro, à generosidade relacional de Jesus, que inesperadamente, e de forma incomum para o povo da época, abriu seu coração para um detestável cobrador de impostos.

A hospitalidade de Abraão e Sara (Gênesis 18.1-15)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A história da generosa hospitalidade de Abraão e Sara para com três visitantes que foram até eles, junto aos carvalhos de Manre, é contada em Gênesis 18. A vida seminômade no país costumava colocar pessoas de diferentes famílias em contato umas com as outras, e o caráter de Canaã como uma ligação natural por terra entre a Ásia e a África tornou-a uma rota comercial popular. Na ausência de uma indústria formal de hospitalidade, as pessoas que viviam em cidades e acampamentos tinham a obrigação social de acolher estranhos. A partir de descrições do Antigo Testamento e de outros textos antigos do Oriente Próximo, Matthews derivou sete códigos de conduta que definem o que é importante para a boa hospitalidade, que mantém a honra das pessoas, de seus lares e das comunidades, recebendo e oferecendo proteção a estranhos. [1] Em torno de um assentamento havia uma zona na qual os indivíduos e a cidade eram obrigados a mostrar hospitalidade.

1. Nessa zona, os moradores eram responsáveis ​​por oferecer hospitalidade a estranhos.

2. O estrangeiro deve ser transformado de uma potencial ameaça em um aliado, por meio da oferta de hospitalidade.

3. Somente o chefe de família do sexo masculino ou um cidadão do sexo masculino de uma cidade ou aldeia pode oferecer o convite de hospitalidade.

4. O convite pode incluir uma declaração sobre o período de hospitalidade, mas esta pode ser estendida, se ambas as partes concordarem, mediante novo convite do anfitrião.

5. O estrangeiro tem o direito de recusa, mas isso pode ser considerado uma afronta à honra do anfitrião e pode ser causa de hostilidades ou conflitos imediatos.

6. Uma vez que o convite é aceito, os papéis do anfitrião e do convidado são definidos pelas regras do costume. O hóspede não deve pedir nada. O anfitrião oferece o melhor que tem à disposição, mesmo que a oferta inicial de hospitalidade seja algo modesto. Espera-se que o hóspede retribua imediatamente com notícias, previsões de boa sorte ou expressões de gratidão pelo que recebeu, além de elogios à generosidade e à honra do anfitrião. O anfitrião não deve fazer perguntas pessoais ao hóspede. Esses assuntos só podem ser oferecidos voluntariamente pelo hóspede.

7. O hóspede permanece sob a proteção do anfitrião até que tenha deixado a zona de obrigação do anfitrião.

Esse episódio fornece o pano de fundo para o mandamento do Novo Testamento: “Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos” (Hb 13.2).

Hospitalidade e generosidade são frequentemente subestimadas nos círculos cristãos. No entanto, a Bíblia retrata o Reino dos Céus como um banquete generoso e até extravagante (Is 25.6-9; Mt 22.2-4). A hospitalidade promove bons relacionamentos, e a hospitalidade de Abraão e Sara fornece uma visão bíblica inicial de como os relacionamentos e o compartilhamento de uma refeição andam de mãos dadas. Esses estranhos obtiveram uma compreensão mais profunda um do outro compartilhando uma refeição e um encontro prolongado. Isso continua sendo verdade hoje. Quando as pessoas partem o pão juntas ou desfrutam de momentos de descontração ou entretenimento, geralmente passam a se entender e apreciar melhor. Melhores relações de trabalho e uma comunicação mais eficaz são frequentemente frutos da hospitalidade.

Na época de Abraão e Sara, a hospitalidade quase sempre era oferecida na casa do anfitrião. Hoje, isso nem sempre é possível, ou mesmo desejável, e a indústria da hospitalidade surgiu para facilitar e oferecer hospitalidade de várias maneiras. Se você deseja oferecer hospitalidade e sua casa é muito pequena ou suas habilidades culinárias são muito limitadas, você pode levar alguém a um restaurante ou hotel e, ainda assim, desfrutar da companhia e aprofundar relacionamentos. Os profissionais do setor o ajudariam a oferecer hospitalidade. Além disso, os trabalhadores do setor têm, eles próprios, a oportunidade de oferecer descanso às pessoas, criar bons relacionamentos, fornecer abrigo e servir aos outros, assim como Jesus fez quando transformou água em vinho (Jo 2.1-11) e lavou os pés dos discípulos (Jo 13.3-11). A indústria da hospitalidade responde por 9% do produto interno bruto mundial e emprega 98 milhões de pessoas, [2] incluindo muitos dos trabalhadores menos qualificados e imigrantes, que representam uma parcela em rápido crescimento da igreja cristã. Um número ainda maior de pessoas se envolve em hospitalidade não remunerada, oferecendo-a aos outros como um ato de amor, amizade, compaixão e engajamento social. O exemplo de Abraão e Sara mostra que esse trabalho pode ser profundamente importante como um serviço a Deus e à humanidade. Como poderíamos fazer mais para encorajar uns aos outros a ser generosos na hospitalidade, não importa quais sejam nossas profissões?

A disputa de Abraão com Abimeleque (Gênesis 20.1-16; 21.22-34)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Quando Abraão e Sara entraram no país do rei Abimeleque, este inadvertidamente violou as regras de hospitalidade e, como compensação, concedeu a Abraão direitos de pastagem gratuitos para qualquer terra que quisesse (Gn 20.1-16). Posteriormente, surgiu uma disputa sobre um certo poço de água que Abraão havia originalmente cavado, mas os servos de Abimeleque acabaram tomando posse (Gn 21.25). Aparentemente sem estar ciente da situação, quando Abimeleque ouviu a queixa, entrou em um acordo juramentado iniciado por Abraão, por meio do qual reconhecia publicamente o direito de Abraão ao poço e, portanto, o direito de continuar sua atividade comercial na região (Gn 21.27-31).

Em outros lugares, vimos Abraão abrir mão do que era seu por direito (Gn 14.22-24). Aqui, no entanto, Abraão protege obstinadamente o que é seu. O narrador não sugere que Abraão esteja novamente vacilando na fé, pois o relato termina com uma adoração (Gn 21.33). Em vez disso, ele é um modelo de pessoa sábia e trabalhadora, que conduz seus negócios abertamente e faz uso justo das proteções legais apropriadas. Por lidar com o pastoreio, o acesso à água era essencial. Sem isso, Abraão não poderia ter continuado a sustentar seus animais, empregados e família. Portanto, era importante que Abraão protegesse os direitos à água, bem como os meios pelos quais esses direitos lhe foram garantidos.

Como Abraão, as pessoas em todos os tipos de trabalho precisam discernir quando devem agir generosamente para beneficiar os outros e quando devem proteger recursos e direitos para o benefício de si mesmas ou de suas organizações. Não há um conjunto de regras e regulamentos que possam nos levar a uma resposta automática. Em todas as situações, somos mordomos dos recursos de Deus, embora nem sempre fique claro se os propósitos de Deus são melhores alcançados doando recursos ou protegendo-os. Mas o exemplo de Abraão destaca um aspecto que é fácil de esquecer. A decisão não é apenas uma questão de quem está certo, mas também de como a decisão afetará nosso relacionamento com as pessoas ao nosso redor. No caso anterior de dividir a terra com Ló, o fato de Abraão oferecer voluntariamente a primeira escolha a Ló lançou as bases para um bom relacionamento de trabalho de longo prazo. No presente caso, em que ele exigiu acesso ao poço de acordo com seus direitos no tratado, Abraão garantiu os recursos necessários para manter seu empreendimento funcionando. Além disso, parece que a determinação de Abraão realmente melhorou o relacionamento entre ele e Abimeleque. Lembre-se de que a disputa entre eles surgiu porque Abraão não afirmou sua posição ao encontrar Abimeleque pela primeira vez (Gn 20).

Um sepultamento para Sara (Gênesis 23.1-20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Quando Sara morreu, Abraão se envolveu em uma negociação exemplar para comprar um local para sepultá-la. Ele conduziu as negociações de forma aberta e honesta, na presença de testemunhas, tomando o devido cuidado com as próprias necessidades e as do vendedor (Gn 23.10-13,16,18). A propriedade em questão é claramente identificada (Gn 23.9), e o uso pretendido por Abraão como local de sepultamento é mencionado várias vezes (Gn 23.4,6,9,11,13,15,20). O diálogo da negociação é excepcionalmente claro, socialmente adequado e transparente. Acontece no portão da cidade, onde os negócios eram feitos em público. Abraão inicia o pedido de compra de uma propriedade. Os hititas locais oferecem gratuitamente uma tumba de sua escolha. Abraão hesita, pedindo-lhes que contatem o proprietário de um campo onde havia uma caverna apropriada para um local de sepultamento, para que ele pudesse comprá-la pelo “preço justo”. Efrom, o proprietário, ouviu o pedido e ofereceu o campo como presente. Como isso não resultaria em um direito permanente de Abraão, ele educadamente se ofereceu para pagar o valor de mercado por ele. Ao contrário da barganha encenada que era típica das transações comerciais (Pv 20.14), Abraão imediatamente concordou com o preço de Efrom e o pagou “de acordo com o peso corrente entre os mercadores” (Gn 23.16). Essa expressão significava que o negócio estava em conformidade com o padrão para prata usado em vendas de imóveis. [1] Abraão poderia ter sido tão rico a ponto de não precisar barganhar e/ou poderia estar desejando comprar uma medida de boa vontade junto com a terra. Além disso, ele poderia ter desejado evitar qualquer questionamento sobre a venda e seu direito à terra. No final, ele recebeu a escritura da propriedade com sua caverna e árvores (Gn 23.17-20). Aquele foi o importante local de sepultamento de Sara e, mais tarde, do próprio Abraão, bem como de Isaque e Rebeca e de Jacó e Lia.

Nesse assunto, as ações de Abraão modelaram valores fundamentais de integridade, transparência e perspicácia nos negócios. Ele honrou sua esposa lamentando e cuidando adequadamente de seus restos mortais. Ele compreendeu seu status na terra e tratou com respeito seus residentes de longa data. Negociou aberta e honestamente, fazendo isso na frente de testemunhas. Ele se comunicou com clareza. Foi sensível ao processo de negociação e evitou educadamente aceitar a terra como presente. Pagou rapidamente o valor combinado. Usou o local apenas para o propósito que declarou durante as negociações. Assim, ele manteve um bom relacionamento com todos os envolvidos.

Isaque (Gênesis 21.1-35.29)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Isaque era filho de um grande pai e pai de um grande filho, mas ele próprio deixou um registro misto. Em contraste com o grande destaque que Gênesis dá a Abraão, a vida de Isaque é dividida e contada como apêndices às histórias de Abraão e de Jacó. A caracterização da vida de Isaque se divide em duas partes: uma decididamente positiva e outra negativa. Lições sobre o trabalho podem ser extraídas de cada uma delas.

Do lado positivo, a vida de Isaque foi um presente de Deus. Abraão e Sara o valorizaram e lhe transmitiram sua fé e seus valores, e Deus reiterou a ele as promessas feitas a Abraão. A fé e a obediência de Isaque quando Abraão estava para oferecê-lo em sacrifício é exemplar, pois ele deve ter realmente acreditado no que seu pai lhe disse: “Deus mesmo há de prover o cordeiro para o holocausto, meu filho” (Gn 22.8). Durante a maior parte de sua vida, Isaque seguiu os passos de Abraão. Expressando a mesma fé, Isaque orou por sua esposa sem filhos (Gn 25.21). Assim como Abraão providenciou um sepultamento honroso a Sara, juntos Isaque e Ismael sepultaram seu pai (Gn 25.9). Isaque se tornou um fazendeiro e pastor tão bem-sucedido que a população local ficou com inveja e pediu que ele se mudasse (Gn 26.12-16). Ele reabriu os poços que haviam sido cavados durante o tempo de seu pai, o que novamente se tornou objeto de disputas com o povo de Gerar sobre os direitos da água (Gn 26.17-21). Como Abraão, Isaque fez um acordo juramentado com Abimeleque para ambos se tratassem com justiça (Gn 26.26-31). O escritor de Hebreus observou que, pela fé, Isaque viveu em tendas e abençoou tanto Jacó quanto Esaú (Hb 11.8-10,20). Em suma, Isaque havia herdado um grande negócio familiar e uma riqueza considerável. Como seu pai, ele não guardou para si, mas cumpriu o papel que Deus lhe confiou: transmitir a bênção que se estenderia a todos os povos.

Nesses acontecimentos positivos, Isaque foi um filho responsável, que aprendeu a liderar a família e administrar seus negócios de uma maneira que honrasse o exemplo de seu pai capaz e piedoso. A diligência de Abraão em preparar um sucessor e incutir valores duradouros trouxe bênçãos para seu empreendimento mais uma vez. Quando Isaque tinha cem anos, foi sua vez de designar seu sucessor, transmitindo a bênção da família. Embora ainda fosse viver mais oitenta anos, essa concessão da bênção foi a última coisa significativa sobre Isaque registrada no livro de Gênesis. Lamentavelmente, ele quase falhou nessa tarefa. De alguma forma, ele permaneceu alheio à revelação de Deus a sua esposa de que, ao contrário do costume normal, o filho mais novo, Jacó, deveria se tornar o chefe da família, em vez do mais velho (Gn 25.23). Foi necessária uma manobra inteligente de Rebeca e Jacó para colocar Isaque de volta nos trilhos a fim de cumprir os propósitos de Deus.

Para manter os negócios da família, a estrutura fundamental da família tinha de estar intacta. Era trabalho do pai garantir isso. Estranhos para a maioria de nós hoje, dois costumes relacionados eram importantes na família de Isaque: a primogenitura (Gn 25.31) e a bênção (Gn 27.4). A primogenitura conferia ao filho mais velho o direito de herdar uma parte maior da propriedade do pai, tanto em termos de bens quanto de terras. Embora às vezes o direito de primogenitura fosse transferido, normalmente era reservado para o filho primogênito. As leis específicas a respeito variavam, mas parece ter sido uma característica estável da cultura do antigo Oriente Próximo. A bênção era a invocação correspondente da prosperidade vinda de Deus e a sucessão da liderança na família. Esaú acreditou erroneamente que poderia renunciar à primogenitura e ainda assim receber a bênção (Hb 12.16-17). Jacó reconheceu que os dois elementos eram inseparáveis. Com ambos em sua posse, Jacó assumiria o direito de levar adiante a herança da família, econômica e socialmente, bem como em termos de fé. Elemento central para o desenvolvimento da trama de Gênesis, a bênção envolvia não apenas receber as promessas da aliança que Deus havia feito a Abraão, mas também transmiti-las à próxima geração.

A falha de Isaque em reconhecer que Jacó deveria receber a primogenitura e a bênção surgiu quando Isaque colocou seu conforto pessoal acima das necessidades da organização familiar. Ele preferia Esaú porque amava a caça selvagem que Esaú, o caçador, trazia para ele. Embora Esaú não valorizasse a primogenitura a ponto de trocá-la por única refeição — o que significa que ele não estava apto nem interessado na posição de liderar o empreendimento —, Isaque queria que Esaú a tivesse. As circunstâncias particulares sob as quais Isaque deu a bênção sugerem que ele sabia que tal ato atrairia críticas. O único aspecto positivo desse episódio é que a fé de Isaque o levou a reconhecer que a bênção divina que ele tinha dado por engano a Jacó era irrevogável. Genericamente, foi por isso que o escritor de Hebreus se lembrou dele. “Pela fé Isaque invocou bênçãos para o futuro sobre Jacó e Esaú” (Hb 11.20). Deus havia escolhido Isaque para perpetuar essa bênção e trabalhou tenazmente sua vontade por meio dele, apesar das intenções mal informadas de Isaque.

O exemplo de Isaque nos lembra que mergulhar profundamente em nossa perspectiva particular pode nos levar a sérios erros de julgamento. Cada um de nós é tentado por confortos pessoais, preconceitos e interesses pessoais a perder de vista a importância mais ampla de nosso trabalho. Nossa fraqueza pode ser por elogios, segurança financeira, prevenção de conflitos, relacionamentos inadequados, recompensas de curto prazo ou outros benefícios pessoais que possam estar em desacordo com o desempenho de nosso trabalho para cumprir os propósitos de Deus. Existem fatores individuais e sistêmicos envolvidos. No nível individual, o viés de Isaque em relação a Esaú se repete hoje, quando aqueles que estão no poder optam por ser parciais no momento de promover pessoas, estando conscientes disso ou não. No nível sistêmico, ainda existem muitas organizações que permitem que os líderes contratem, demitam e promovam pessoas por vontade própria, em vez de desenvolver sucessores e subordinados em um processo coordenado e responsável de longo prazo. Sejam os abusos individuais ou sistêmicos, simplesmente resolver fazer melhor ou mudar os processos organizacionais não é uma solução eficaz. Em vez disso, indivíduos e organizações precisam ser transformados pela graça de Deus para colocar o que é realmente importante à frente do que é pessoalmente benéfico.

Jacó (Gênesis 25.19—49.33)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os nomes Abraão, Isaque e Jacó aparecem frequentemente como um grupo, porque todos receberam promessas da aliança de Deus e compartilharam a mesma fé. Mas Jacó era muito diferente de seu avô, Abraão. Sempre astuto, Jacó viveu grande parte de sua vida de acordo com sua astúcia e inteligência engenhosa. Acostumado a conflitos, Jacó era movido pela paixão de conseguir o que queria para si mesmo. Essa luta era realmente um trabalho árduo e, por fim, o levou ao ponto mais marcante de sua existência: uma luta travada com um homem misterioso em quem Jacó viu Deus face a face (Gn 32.24,30). Por causa de sua fraqueza, Jacó clamou com fé pela bênção de Deus e foi transformado pela graça.

A vida ocupacional de Jacó como pastor é de interesse para a teologia do trabalho. Ele assume um significado adicional, no entanto, quando colocado no contexto mais amplo de sua vida, que se move em largas braçadas do afastamento para a reconciliação. Vimos com Abraão que o trabalho que ele fez era uma parte inseparável de seu senso de propósito, decorrente de seu relacionamento com Deus. O mesmo se aplica a Jacó, e a lição também vale para nós.

De forma antiética, Jacó adquire a primogenitura e a bênção de Esaú (Gênesis 25.19-34; 26.34—28.9)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Embora fosse o plano de Deus que Jacó fosse sucessor de Isaque (Gn 25.23), o uso de engano e roubo por parte de Rebeca e Jacó para conseguir isso pôs a família em sério perigo. O tratamento antiético que ela dispensou ao marido e Jacó ao irmão, a fim de garantir seu futuro às custas da confiança em Deus, resultou em um afastamento profundo e duradouro na esfera familiar.

As bênçãos da aliança de Deus eram dádivas a serem recebidas, não agarradas à força. Elas traziam consigo a responsabilidade de serem usadas em favor de outros, não guardadas para si. Isso passou despercebido para Jacó. Embora Jacó tivesse fé (diferentemente de seu irmão Esaú), ele confiou em suas próprias habilidades para garantir os direitos que valorizava. Jacó explorou o faminto Esaú para conseguir dele a primogenitura (Gn 25.29-34). É bom que Jacó tenha valorizado a primogenitura, mas deixou totalmente de lado sua fé a fim garantir isso para si mesmo, o que fica especialmente claro pela maneira como o fez. Seguindo o conselho de sua mãe Rebeca (que também buscava objetivos certos por meios errados), Jacó enganou seu pai. Sua vida como fugitivo da família atesta a natureza odiosa de seu comportamento.

Jacó começou um longo período de fé genuína nas promessas da aliança de Deus, mas falhou ao viver confiando no que Deus faria por ele. Pessoas maduras e piedosas que aprenderam a deixar sua fé transformar suas escolhas (e não o contrário) estão em condições de servir com base em suas forças. Decisões corajosas e astutas que resultam em sucesso podem ser elogiadas com razão por sua eficácia. Mas, quando o lucro vem às custas da exploração e do engano dos outros, algo está errado. Além do fato de que métodos antiéticos são errados em si mesmos, eles também podem revelar os medos fundamentais daqueles que os empregam. O impulso implacável de Jacó para obter benefícios para si mesmo revela como seus medos o tornaram resistente à graça transformadora de Deus. À medida que passarmos a acreditar nas promessas de Deus, estaremos menos inclinados a manipular as circunstâncias para nos beneficiarmos; sempre precisamos estar cientes da facilidade com que podemos nos enganar sobre a pureza de nossos motivos.

Jacó adquire sua fortuna (Gênesis 30-31)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao escapar de Esaú, Jacó acabou nas terras da família de Labão, irmão de sua mãe. Jacó trabalhou para Labão por vinte e um anos frustrantes, durante os quais Labão quebrou uma série de promessas que lhe havia feito. Apesar disso, Jacó conseguiu casar com duas das filhas de Labão e constituir família. Jacó queria voltar para casa, mas Labão o convenceu a ficar e trabalhar para ele, com a promessa de que ele poderia escolher o próprio salário (Gn 30.28). Claramente, Jacó havia sido um bom trabalhador, e Labão foi abençoado por sua associação com Jacó.

Durante esse tempo, Jacó havia aprendido o ofício de criar animais e usou essa habilidade para se vingar de Labão. Por meio de suas técnicas de reprodução, conseguiu ganhar muita riqueza às custas de Labão. Chegou ao ponto em que os filhos de Labão estavam reclamando: “Jacó tomou tudo que o nosso pai tinha e juntou toda a sua riqueza à custa do nosso pai” (Gn 31.1-2). Jacó percebeu que a atitude de Labão em relação a ele não era mais a mesma. No entanto, Jacó atribuiu seus ganhos à ação de Deus, dizendo: “Se o Deus de meu pai, o Deus de Abraão, o Temor de Isaque, não estivesse comigo, certamente você me despediria de mãos vazias” (Gn 31.42).

Jacó sentia que Labão o tratava mal. Sua resposta, por meio de seus esquemas, foi fazer mais um inimigo, semelhante ao modo como explorou Esaú. Esse é um padrão que se repete na vida de Jacó. Parece que em qualquer coisa estava sempre jogando limpo e, embora ele ostensivamente desse o crédito a Deus, está claro que ele fazia essas coisas dando um jeitinho. Não vemos muita integração de sua fé com seu trabalho neste momento, e é interessante que, quando Hebreus reconhece Jacó como um homem de fé, menciona apenas seus atos no final de sua vida (Hb 11.21).

A transformação e a reconciliação de Jacó com Esaú (Gênesis 32—33)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Depois de aumentar a tensão com o sogro e de uma separação nos negócios, na qual ambos agiram de forma menos que admirável, Jacó deixou Labão. Tendo obtido sua posição por meio do truque sujo de Labão, anos atrás, Jacó agora via uma oportunidade de legitimar sua posição, chegando a um acordo com seu irmão Esaú. Mas ele esperava que as negociações fossem tensas. Assolado pelo medo de que Esaú viesse ao encontro dele com seus quatrocentos homens armados, Jacó dividiu sua família e seus animais em dois grupos para ajudar a garantir alguma medida de sobrevivência. Ele orou por proteção e enviou uma enorme oferta de animais à sua frente para apaziguar Esaú antes do encontro. Mas, na noite anterior à sua chegada ao ponto de encontro, o trapaceiro Jacó foi visitado por uma figura sombria que o surpreendeu. O próprio Deus o atacou na forma de um homem forte, contra quem Jacó foi forçado a lutar a noite toda. Deus, ao que parece, não é apenas o Deus da adoração e da religião, mas o Deus do trabalho e dos empreendimentos familiares, e ele age na vida de um elemento sagaz como Jacó. Ele aproveitou sua vantagem a ponto de ferir permanentemente o quadril de Jacó, mas Jacó, em sua fraqueza, disse que não desistiria até que seu agressor o abençoasse.

Este se tornou o ponto de virada na vida de Jacó. Ele havia enfrentado anos de lutas com as pessoas, mas o tempo todo Jacó também vinha lutando em seu relacionamento com Deus. Aqui, ele finalmente conheceu Deus e recebeu sua bênção em meio à luta. Jacó recebeu um novo nome, Israel, e até renomeou o local para honrar o fato de que ali ele havia visto Deus face a face (Gn 32.30). O encontro com Esaú, que se esperava ser sinistro, aconteceu pela manhã e contradisse a expectativa temerosa de Jacó da maneira mais encantadora que se possa imaginar. Esaú correu até Jacó e o abraçou. Esaú graciosamente tentou recusar os presentes de Jacó, embora Jacó insistisse que ele os aceitasse. Jacó, transformado, disse a Esaú: “Ver a tua face é como contemplar a face de Deus” (Gn 33.10).

A identidade ambígua daquele que lutou com Jacó é uma característica deliberada da história. Ele destaca os elementos inseparáveis ​​da luta de Jacó tanto com Deus quanto com o homem. Jacó é um modelo para nós de uma verdade que está no centro de nossa fé: nossos relacionamentos com Deus e com as pessoas estão ligados. Nossa reconciliação com Deus torna possível nossa reconciliação com os outros. Da mesma forma, nessa reconciliação humana, passamos a ver e a conhecer melhor a Deus. O trabalho de reconciliação se aplica a famílias, amigos, igrejas, empresas e até grupos de pessoas e nações. Somente Cristo pode ser nossa paz, mas somos seus embaixadores para ela. Surgindo da promessa inicial de Deus a Abraão, essa é uma bênção que deve tocar o mundo inteiro.

José (Gênesis 37.2—50.26)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Lembre-se de que Deus acompanhou seu chamado a Abraão com promessas fundamentais (Gn 12.2-3). Primeiro, Deus multiplicaria seus descendentes em um grande povo. Segundo, Deus o abençoaria. Terceiro, Deus tornaria o nome de Abraão grande, o que significa que Abraão seria digno de seu renome. Quarto, Abraão seria uma bênção. Este último item diz respeito às gerações futuras da família de Abraão e, além delas, a todas as famílias da terra. Deus abençoaria aqueles que abençoassem Abraão e amaldiçoaria aqueles que o amaldiçoassem. O livro de Gênesis traça o cumprimento parcial dessas promessas por meio das linhagens escolhidas dos descendentes de Abraão, Isaque, Jacó e dos filhos de Jacó. Entre todos eles, é em José que Deus cumpre mais diretamente sua promessa de abençoar as nações por meio do povo de Abraão. De fato, pessoas “de toda a terra” foram sustentadas pelo sistema alimentar que José administrava (Gn 41.57). José entendeu essa missão e articulou o propósito de sua vida de acordo com a intenção de Deus: que “fosse preservada a vida de muitos” (Gn 50.20).

José rejeitado e vendido como escravo por seus irmãos (Gênesis 37.2-36)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Desde jovem, José acreditava que Deus o havia destinado para a grandeza. Em sonhos, Deus assegurou a José que ele alcançaria uma posição de liderança sobre seus pais e irmãos (Gn 37.5-11). Do ponto de vista de José, esses sonhos eram evidência da bênção divina, e não de sua própria ambição. Do ponto de vista de seus irmãos, no entanto, os sonhos foram outras manifestações do privilégio injusto que José desfrutou como filho favorito de seu pai, Jacó (Gn 37.3-4). Ter certeza de que estamos certos não nos absolve de ter empatia por outras pessoas que podem não compartilhar dessa mesma visão. Bons líderes se esforçam para promover a cooperação em vez da inveja. A falha de José em reconhecer isso o colocou em sérias desavenças com seus irmãos. Depois de inicialmente planejar um assassinato contra ele, seus irmãos decidiram vendê-lo a uma caravana de comerciantes que transportavam mercadorias de Canaã para o Egito. Os mercadores, por sua vez, venderam José a Potifar, que era “oficial do faraó e capitão da guarda” no Egito (Gn 37.36; 39.1).

As investidas da esposa de Potifar e a prisão de José (Gênesis 39.1-20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O período em que José esteve a serviço de Potifar deu a ele uma ampla gama de responsabilidades fiduciárias. A princípio, José estava apenas “na” casa de seu senhor. Não sabemos em que função ele serviu, mas, quando Potifar reconheceu a competência geral de José, ele o promoveu a seu mordomo pessoal e “e lhe confiou tudo o que possuía” (Gn 39.4).

Depois de um tempo, a esposa de Potifar se interessou sexualmente por José (Gn 39.7). A recusa de José aos avanços da esposa foi articulada e razoável. Ele a lembrou da ampla confiança que Potifar havia depositado nele e descreveu o relacionamento que ela buscava nos termos morais/religiosos como “algo perverso” e “pecado” (Gn 39.9). Ele era sensível tanto à dimensão social quanto a teológica. Além disso, ele ofereceu sua resistência verbal repetidamente e até evitou estar na presença dela. Quando assediado fisicamente, José optou por fugir seminu, em vez de se submeter.

O assédio sexual por parte dessa mulher ocorreu em uma relação de poder que desfavorecia José. Embora ela acreditasse que tinha o direito e o poder de usar José daquela maneira, suas palavras e suas investidas claramente não foram bem recebidas por ele. O trabalho de José exigia que ele estivesse em casa — onde ela ficava —, mas ele não podia chamar a atenção de Potifar para o assunto sem interferir em seu relacionamento conjugal. Mesmo após sua fuga e prisão por falsas acusações, José parece não ter tido nenhum recurso legal.

As facetas desse episódio tocam de perto nas questões do assédio sexual no ambiente de trabalho hoje. As pessoas têm padrões diferentes sobre o que conta como conversa e contato físico inadequados, mas os caprichos daqueles que estão no poder geralmente falam mais alto. Frequentemente, espera-se que os trabalhadores denunciem incidentes de assédio em potencial a seus superiores, mas muitas vezes relutam em fazê-lo, porque sabem do risco de ofuscação e retaliação. Para agravar isso, mesmo quando o assédio pode ser documentado, os trabalhadores podem sofrer por terem se apresentado. A piedade de José não o salvou de falsa acusação e prisão. Se nos encontrarmos em uma situação paralela, nossa piedade não é garantia de que escaparemos ilesos. Mas José deixou um testemunho educativo para a esposa de Potifar e, possivelmente, para outras pessoas da casa. Saber que pertencemos ao Senhor e que ele defende os fracos certamente nos ajudará a enfrentar situações difíceis sem desistir. Esta história é um reconhecimento realista de que enfrentar o assédio sexual no ambiente de trabalho pode ter consequências devastadoras. No entanto, é também uma história de esperança de que, pela graça de Deus, o bem possa enfim prevalecer na situação. José também fornece um modelo para nós para que, mesmo quando somos falsamente acusados ​​e tratados injustamente, continuamos com a obra que Deus nos deu, permitindo que Deus transforme o mal em bem no final.

José interpreta sonhos na prisão (Gênesis 39.20—40.23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O serviço de José na prisão foi marcado pela presença do Senhor, pelo favor do carcereiro e pela promoção de José à liderança (Gn 39.21-23). Na prisão, José conheceu dois oficiais do faraó que estavam encarcerados, o chefe dos copeiros e o chefe dos padeiros. Muitos textos egípcios mencionam o papel dos copeiros, que não apenas provavam o vinho para atestar a qualidade e para detectar veneno, mas também desfrutavam da proximidade com aqueles que detinham o poder político. Assim, frequentemente se tornavam confidentes e eram valorizados por seus conselhos (ver Ne 2.1-4). [1] Como os chefes dos copeiros, os chefes dos padeiros também eram funcionários de confiança que tinham livre acesso às pessoas dos mais altos escalões do governo e que podiam ter desempenhado funções que iam além da preparação de alimentos. [2] Na prisão, José fez o trabalho de interpretar sonhos para esses indivíduos com grandes conexões políticas.

Interpretar sonhos no mundo antigo era uma profissão sofisticada que envolvia “livros técnicos” sobre os sonhos, os quais listavam elementos dos sonhos e seus significados. Registros sobre a veracidade de sonhos passados ​​e suas interpretações forneciam evidências empíricas para apoiar as previsões do intérprete. [3] José, no entanto, não foi instruído nessa tradição e atribuiu a Deus o crédito por fornecer as interpretações que acabaram se mostrando verdadeiras (Gn 40.8). Nesse caso, o copeiro foi restaurado ao seu cargo anterior, onde prontamente se esqueceu de José.

A dinâmica presente nessa história ainda está presente nos dias de hoje. Podemos investir no sucesso de outra pessoa que está além de nosso alcance, apenas para sermos descartados quando não mais tivermos utilidade. Isso significa que nosso trabalho foi em vão e que seria melhor nos concentrarmos em nossa própria situação e promoção? Além disso, José não tinha como verificar de forma independente as histórias dos dois oficiais na prisão. “O primeiro a apresentar a sua causa parece ter razão, até que outro venha à frente e o questione” (Pv 18.17). Após a sentença, no entanto, qualquer prisioneiro pode afirmar sua própria inocência.

Podemos ter dúvidas sobre como nosso investimento em outras pessoas pode, enfim, beneficiar a nós ou a nossa organização. Podemos nos perguntar sobre o caráter e os motivos das pessoas que ajudamos. Podemos desaprovar o que eles fazem depois e como isso pode se refletir em nós. Essas questões podem ser variadas e complexas. Exigem oração e discernimento, mas devem nos paralisar? O apóstolo Paulo escreveu: “Enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gl 6.10). Se firmarmos o compromisso de trabalhar para Deus acima de todos os outros, será mais fácil seguir em frente, acreditando que “sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28).

José é promovido pelo faraó (Gênesis 41.1-45)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mais dois anos se passaram até José ganhar a oportunidade de ser libertado de seu sofrimento na prisão. O faraó estava tendo sonhos perturbadores, e o copeiro-mor lembrou-se da habilidade do jovem hebreu na prisão. Os sonhos do faraó com vacas e espigas de trigo confundiram seus conselheiros mais habilidosos. José testemunhou a capacidade de Deus de fornecer interpretações e seu próprio papel como mero mediador dessa revelação (Gn 41.16). Diante do faraó, José não usava o nome da aliança de Deus, exclusivo do seu próprio povo. Em vez disso, ele se referia a Deus regularmente usando o termo mais geral elohim. Ao fazer isso, José evitou cometer qualquer ofensa desnecessária, um ponto apoiado pelo fato de que o faraó creditou a Deus a revelação recebida por José com o significado de seus sonhos (Gn 41.39). No ambiente de trabalho, às vezes, os crentes podem dar crédito a Deus por seu sucesso de maneira superficial, o que acaba afastando as pessoas. A maneira de José fazer isso impressionou o faraó, mostrando que dar crédito a Deus publicamente pode ser feito de maneira crível.

A presença de Deus com José era tão óbvia que o faraó o promoveu a segundo em comando do Egito, especialmente para se encarregar dos preparativos para a fome que viria (Gn 41.37-45). A palavra de Deus a Abraão estava dando frutos: “Abençoarei os que o abençoarem... e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 12.3). Como José, quando confessamos nossa própria incapacidade de enfrentar os desafios que enfrentamos e encontramos maneiras apropriadas de atribuir o sucesso a Deus, forjamos uma defesa poderosa contra o orgulho que geralmente acompanha o reconhecimento público.

A promoção de José lhe trouxe acessórios significativos de liderança: um anel com o selo real e uma corrente de ouro, roupas finas apropriadas ao seu alto cargo, porte oficial, um novo nome egípcio e uma esposa egípcia de uma família de classe alta (Gn 41.41-45). Se alguma vez houve uma atração para deixar sua herança hebraica para trás, foi essa. Deus nos ajuda a lidar com o fracasso e a derrota, mas podemos precisar ainda mais de sua ajuda ao lidar com o sucesso. O texto apresenta várias indicações de como José lidou com sua promoção de maneira piedosa. Parte disso tinha a ver com a preparação de José antes de sua promoção.

De volta à casa de seu pai, os sonhos de liderança que Deus lhe deu convenceram José de que ele tinha um propósito e um destino divinamente ordenados, dos quais nunca se esqueceu. Sua natureza pessoal era basicamente confiar nas pessoas. Ele parece não ter rancor de seus irmãos ciumentos ou do esquecido copeiro. Antes de ser promovido pelo faraó, José sabia que o Senhor estava com ele e tinha evidências tangíveis para provar isso. Dar crédito repetidamente a Deus não era apenas a coisa certa a fazer, mas também lembrava o próprio José de que suas habilidades vinham do Senhor. José era cortês e humilde, e mostrou o desejo de fazer o que pudesse para ajudar o faraó e o povo egípcio. Mesmo quando os egípcios ficaram sem dinheiro e gado, José ganhou a confiança do povo egípcio e do próprio Faraó (Gn 41.55). Ao longo do resto de sua vida como administrador, José dedicou-se consistentemente a uma gestão eficaz para o bem dos outros.

A história de José até este ponto nos lembra que, em nosso mundo corrompido, a resposta de Deus às nossas orações não vem necessariamente de forma rápida. José tinha dezessete anos quando seus irmãos o venderam como escravo (Gn 37.2). Sua libertação final do cativeiro veio quando ele tinha trinta anos (Gn 41.46), treze longos anos depois.

José cria uma política e uma infraestrutura agrícola de longo prazo (Gênesis 41.46-57)

Voltar ao índice Voltar ao índice

José imediatamente começou a fazer o trabalho para o qual o faraó o havia designado. Seu principal interesse era fazer o trabalho para os outros, em vez de tirar vantagem pessoal de sua nova posição à frente da corte real. Ele manteve sua fé em Deus, dando a seus filhos nomes que creditavam a Deus a cura de sua dor emocional e o tornavam frutífero (Gn 41.51-52). Ele reconhecia que sua sabedoria e seu discernimento eram dons de Deus, mas, mesmo assim, ainda tinha muito a aprender sobre a terra do Egito, em particular sua indústria agrícola. Como administrador sênior, o trabalho de José abrangia quase todas as áreas práticas da vida da nação. Seu cargo teria exigido que ele aprendesse muito sobre legislação, comunicação, negociação, transporte, métodos seguros e eficientes de armazenamento de alimentos, construção, estratégias e previsões econômicas, manutenção de registros, folha de pagamento, manuseio de transações tanto por meio de moeda quanto por meio de troca, recursos humanos e aquisição de propriedades. Suas habilidades extraordinárias com relação a Deus e às pessoas não operavam em domínios separados. A genialidade do sucesso de José estava na integração eficaz de seus dons divinos e das competências adquiridas. Para José, tudo isso era um trabalho piedoso.

Faraó já havia caracterizado José como alguém “criterioso e sábio” (Gn 41.39), e essas características permitiram a José fazer o trabalho de planejamento estratégico e administração. As palavras hebraicas para sábio e sabedoria (hakham e hokhmah) denotam um alto nível de percepção mental, mas também são usados ​​para uma ampla gama de habilidades práticas, incluindo artesanato em madeira, pedras preciosas e metal (Êx 31.3-5; 35.31-33), alfaiataria (Êx 28.3; 35.26,35), bem como administração (Dt 34.9; 2Cr 1.10) e justiça legal (1Rs 3.28). Essas habilidades também são encontradas entre os incrédulos, mas os sábios da Bíblia desfrutam da bênção especial de Deus, que pretende que Israel mostre os caminhos de Deus às nações (Dt 4.6).

Como seu primeiro ato, José “foi percorrer todo o Egito” (Gn 41.46) em uma viagem de inspeção. Ele teria de se familiarizar com as pessoas que administravam a agricultura, a localização e as condições dos campos, as plantações, as estradas e os meios de transporte. É inconcebível que José pudesse ter feito tudo isso em um nível pessoal. Ele teria de estabelecer e supervisionar o treinamento do que equivalia a um Ministério da Agricultura. Durante os sete anos de colheita abundante, José guardou os grãos nas cidades (Gn 41.48-49). Durante os sete anos de vacas magras que se seguiram, José distribuiu grãos aos egípcios e a outras pessoas que foram afetadas pela fome generalizada. Criar e administrar tudo isso, enquanto sobrevivia à intriga política de uma monarquia absoluta, exigia um talento excepcional.

José alivia a pobreza do povo do Egito (Gênesis 47: 13-26)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Depois que o povo ficou sem dinheiro, José permitiu que eles trocassem seu gado por comida. Esse plano durou um ano, durante o qual José reuniu cavalos, ovelhas, cabras, gado e jumentos (Gn 47.15-17). Ele teria de determinar o valor desses animais e estabelecer um sistema equitativo de troca. Quando a comida é escassa, as pessoas ficam especialmente preocupadas com a sobrevivência de si mesmas e de seus entes queridos. Garantir acesso a pontos de distribuição de alimentos e tratar as pessoas com imparcialidade tornam-se questões administrativas extremamente importantes.

Quando todo o gado foi comercializado, as pessoas voluntariamente se venderam como escravos ao faraó e venderam a ele também a propriedade de suas terras (Gn 47.18-21). Da perspectiva da liderança, deve ter sido horrível testemunhar isso. José, no entanto, permitiu que o povo vendesse suas terras e se sujeitasse à servidão, mas não se aproveitou de sua impotência. José teria de cuidar para que essas propriedades fossem avaliadas corretamente em troca de sementes para plantar (Gn 47.23). Ele promulgou uma lei duradoura, determinando que as pessoas devolvessem 20% da colheita ao faraó. Isso implicou na criação de um sistema para monitorar e fazer cumprir a lei pelo povo e o estabelecimento de um departamento dedicado a administrar a receita. Em tudo isso, José isentou as famílias sacerdotais de vender suas terras, porque o faraó lhes forneceu uma porção fixa de alimentos para atender adequadamente às suas necessidades (Gn 47.22,26). Lidar com essa população especial implicaria ter um sistema de distribuição menor e distinto, feito sob medida para ela.

A pobreza e suas consequências são realidades econômicas. Nosso primeiro dever é ajudar a eliminá-las, mas não podemos esperar sucesso completo até que o Reino de Deus seja cumprido. Os crentes podem não ter o poder de eliminar as circunstâncias que exigem que as pessoas façam escolhas difíceis, mas podemos encontrar maneiras de apoiá-las enquanto elas — ou talvez nós mesmos — lidam com isso. Escolher o menor dos dois males pode ser uma decisão necessária e pode ser emocionalmente devastador. Em nosso trabalho, podemos experimentar tensão decorrente de sentir empatia pelos necessitados, mas ter a responsabilidade de fazer o que é bom para as pessoas e organizações para as quais trabalhamos. José experimentou a orientação de Deus nessas tarefas difíceis, e também recebemos a promessa de Deus: “Nunca o deixarei, nunca o abandonarei” (Hb 13.5).

Felizmente, ao aplicar a habilidade e a sabedoria que Deus lhe deu, José conseguiu fazer com que o Egito enfrentasse a catástrofe agrícola. Quando chegaram os sete anos de boas colheitas, José desenvolveu um sistema de armazenamento de grãos que seriam usados durante a seca que viria. Quando os sete anos de seca chegaram, “José mandou abrir os locais de armazenamento” (Gn 41.56) e forneceu comida suficiente para ajudar a nação a passar pelo momento de fome. Sua sábia estratégia e implementação eficaz do plano permitiram que o Egito fornecesse grãos para o resto do mundo durante a fome (Gn 41.57). Nesse caso, o cumprimento da promessa divina de que os descendentes de Abraão seriam uma bênção para o mundo ocorreu não apenas em benefício de nações estrangeiras, mas até mesmo por meio da atividade de uma nação estrangeira, o Egito.

De fato, a bênção de Deus para o povo de Israel veio somente depois e por meio de sua bênção aos estrangeiros. Deus não levantou um israelita na terra de Israel para prover alívio a Israel durante a fome. Em vez disso, Deus permitiu que José, trabalhando no governo egípcio e por meio dele, suprisse as necessidades do povo de Israel (Gn 47.11-12). No entanto, não devemos idealizar José. Como funcionário em uma sociedade às vezes repressiva, ele se tornou parte da estrutura de poder e impôs pessoalmente a escravidão a um número incontável de pessoas (Gn 47.21).

Aplicações da experiência de gestão de José (Gênesis 41.46-57; 47.13-26)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O interesse de Gênesis na gestão de José para a crise alimentar está mais em seu efeito sobre a família de Israel do que no desenvolvimento de princípios para uma gestão eficaz. No entanto, na medida em que a liderança extraordinária de José pode servir de exemplo para os líderes de hoje, podemos extrair algumas aplicações práticas de seu trabalho:

1. Familiarize-se o mais possível com a situação atual, no início de seu serviço.

2. Ore por discernimento em relação ao futuro, para que possa fazer planos sábios.

3. Comprometa-se primeiro com Deus e depois espere que ele dirija e estabeleça seus planos.

4. Reconheça com gratidão e de forma adequada os dons que Deus lhe deu.

5. Mesmo que os outros reconheçam a presença de Deus em sua vida e os talentos especiais que você tem, não use isso para se autopromover e ganhar respeito.

6. Busque conhecimento sobre como fazer seu trabalho e faça-o com excelência.

7. Busque o bem prático para os outros, sabendo que Deus o colocou onde você deve ser uma bênção.

8. Seja justo em todos os seus relacionamentos, especialmente quando as circunstâncias forem sombrias e profundamente problemáticas.

9. Embora seu serviço exemplar possa impulsioná-lo a uma posição de destaque, lembre-se de sua missão inicial como servo de Deus. Sua vida não consiste no que você ganha para si mesmo.

10. Valorize a piedade dos inúmeros tipos de trabalho honroso de que a sociedade precisa.

11. Estenda generosamente o fruto de seu trabalho o mais amplamente possível àqueles que realmente precisam, independentemente do que você pensa deles como indivíduos.

12. Aceite o fato de que Deus pode levá-lo a um campo específico de trabalho sob condições extremamente desafiadoras. Isso não significa que algo deu terrivelmente errado ou que você está fora da vontade de Deus.

13. Tenha coragem, pois Deus o capacitará para a tarefa.

14. Aceite o fato de que, às vezes, as pessoas precisam escolher o que consideram melhor entre duas situações muito desagradáveis, mas inevitáveis.

15. Acredite que o que você faz não apenas beneficiará aqueles que vê e conhece, mas também que seu trabalho tem o potencial de tocar vidas por muitas gerações. Deus é capaz de realizar muito mais do que podemos pedir ou imaginar (Ef 3.20).

José lida com seus irmãos (Gênesis 42—43)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em meio à crise no Egito, os irmãos de José chegaram de Canaã, procurando comprar comida, pois a fome também afetava severamente sua terra. Eles não reconheceram José, e ele também não se revelou a eles. Ele lidava com seus irmãos em grande parte por meio da linguagem do comércio. A palavra prata (kesef) aparece vinte vezes nos capítulos 42 a 45 e a palavra para grão (shever) aparece dezenove anos. O comércio dessa mercadoria forneceu a estrutura na qual a intrincada dinâmica pessoal se sustentou.

O comportamento de José nessa situação foi bastante perspicaz. Primeiro, ele ocultou sua identidade de seus irmãos, o que — embora necessariamente não tenha sido uma completa enganação (hebraico mirmah, como aconteceu com Jacó em Gn 27.35) — certamente ainda era menos do que franqueza. Em segundo lugar, ele falou duramente com seus irmãos, usando acusações que sabia serem infundadas (Gn 42.7.9,14,16; 44.3-5). Em resumo, José aproveitou-se de seu poder para lidar com um grupo que ele sabia não ser digno de confiança, por causa do tratamento anterior que tinham dado a ele. [1] Sua motivação era discernir o caráter atual das pessoas com quem estava lidando. Ele havia sofrido muito nas mãos deles mais de vinte anos antes e tinha todos os motivos para desconfiar de suas palavras, ações e compromisso com a família.

Os métodos de José beiravam a enganação. Ele reteve informações críticas e manipulou acontecimentos de várias maneiras. José atuou no papel de um investigador conduzindo um interrogatório difícil. Ele não poderia proceder com total transparência e esperar obter deles informações confiáveis. O conceito bíblico para essa tática é astúcia. A astúcia pode ser exercida para o bem ou para o mal. Por um lado, a serpente era “o mais astuto de todos os animais selvagens” (Gn 3.1) e empregou métodos astutos para propósitos desastrosamente malignos. A palavra hebraica para “astuto” (ormah e cognatos) também é traduzida como “prudente” ou “sábio” (Pv 12.23; 13.16; 14.8; 22.3; 27.12), indicando que podem ser necessárias perspicácia e habilidade para tornar possível o trabalho piedoso em contextos difíceis. O próprio Jesus aconselhou seus discípulos a serem “astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas” (Mt 10.16). A Bíblia frequentemente elogia a astúcia (ou prudência) na busca de propósitos nobres (Pv 1.4; 8.5,12).

A astúcia de José teve o efeito pretendido de testar a integridade de seus irmãos, e eles devolveram a prata que José havia secretamente colocado na bagagem (Gn 43.20-21). Quando ele os testou ainda mais, tratando o mais novo, Benjamim, com mais generosidade do que os outros, eles provaram que aprenderam a não entrar em animosidade entre si, como fizeram quando venderam José como escravo.

Seria superficial ler nas ações de José a afirmação de que pensar que você está do lado de Deus é sempre uma justificativa para o engano. Mas a longa carreira de serviço de José e o sofrimento como servo de Deus deram a ele uma compreensão mais profunda da situação do que seus irmãos. Aparentemente, a promessa de que Deus os transformaria em um grande povo estava em jogo. José sabia que não estava em seu poder humano salvá-los, mas aproveitou a autoridade e a sabedoria que Deus lhe deu para servir e ajudar. Dois fatores importantes diferenciam José ao tomar a decisão de usar meios que, de outra forma, não seriam louváveis. Primeiro, ele não ganhou nada com essas artimanhas para si mesmo. Ele havia recebido uma bênção de Deus e suas ações estavam exclusivamente a serviço de tornar-se uma bênção para os outros. Ele poderia ter explorado a situação desesperadora de seus irmãos e cobrado, com rancor, uma quantia maior de prata, sabendo que eles teriam dado qualquer coisa para sobreviver. Em vez disso, ele usou o conhecimento para salvá-los. Segundo, suas ações eram necessárias para que ele pudesse oferecer as bênçãos. Se ele tivesse lidado com seus irmãos mais abertamente, não poderia ter testado a confiabilidade deles no assunto.

A transformação de Judá em um homem de Deus (Gênesis 44.1—45.15)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No episódio final do teste de José para com seus irmãos, José acusou Benjamim de um crime imaginário e, como compensação, o sentenciou a ser escravo. Quando exigiu que os irmãos voltassem para casa, ao seu pai Jacó, sem Benjamim (Gn 44.17), Judá se levantou como porta-voz do grupo. O que lhe deu a posição para assumir esse papel? Ele havia se afastado de sua família ao casar com uma cananeia (Gn 38.2); havia criado filhos tão perversos que o Senhor matou dois deles (Gn 38.7,10); tratou sua nora como uma prostituta (Gn 38.24); e foi ele quem elaborou o plano de vender seu próprio irmão como escravo (Gn 37.27). Mas a história que Judá contou a José mostrou um homem transformado. Ele demonstrou uma compaixão inesperada ao contar sobre a dolorosa experiência de fome da família, sobre o amor eterno de seu pai por Benjamim e sobre a promessa que Judá fez a seu pai de que traria Benjamim de volta para casa, para que Jacó não morresse literalmente de tristeza. Então, em uma expressão máxima de compaixão, Judá se ofereceu para ficar no lugar de Benjamim! Ele propôs que ele mesmo fosse mantido no Egito pelo resto da vida como escravo do governador, se o governador permitisse que Benjamim voltasse para casa, para junto de seu pai (Gn 44.33-34).

Vendo a mudança em Judá, José foi capaz de abençoá-los como Deus pretendia. Ele lhes revelou toda a verdade: “Eu sou José!” (Gn 45.3). Parece que José finalmente viu que seus irmãos eram confiáveis. Em nossos próprios relacionamentos com aqueles que nos exploram e nos enganam, devemos andar com cuidado, para sermos astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas, como Jesus instruiu os discípulos (Mt 10.16). Como disse um escritor: “A confiança requer confiabilidade”. Todo o planejamento que José havia feito em suas discussões com seus irmãos atingiu esse ponto culminante, permitindo que ele entrasse em um relacionamento correto com eles. Ele acalmou seus irmãos aterrorizados, apontando para a obra de Deus, que foi responsável por colocar José no comando de todo o Egito (Gn 45.8). Waltke explica a importância da interação entre José e seus irmãos:

Essa cena expõe a anatomia da reconciliação. Trata-se de lealdade a um membro da família necessitado, mesmo quando este parece culpado; dando glória a Deus ao assumir o pecado e suas consequências; ignorando o favoritismo; oferecendo-se para salvar o outro; demonstrando amor verdadeiro por meio de atos concretos de sacrifício que criam um contexto de confiança; descartando o controle e o poder do conhecimento em favor da intimidade; abraçando profunda compaixão, sentimentos ternos, sensibilidade e perdão; e conversando entre si. Uma família disfuncional que permite que essas virtudes a adotem se tornará uma luz para o mundo. [1]

Deus é mais do que capaz de trazer suas bênçãos ao mundo por meio de pessoas profundamente falhas. Mas devemos estar dispostos a nos arrepender continuamente do mal que praticamos e nos voltar para Deus em busca de transformação, mesmo que nunca sejamos perfeitamente purificados de nossos erros, fraquezas e pecados nesta vida.

Ao contrário dos valores das sociedades ao redor de Israel, a disposição dos líderes de se oferecerem em sacrifício pelos pecados dos outros deveria ser um traço característico da liderança entre o povo de Deus. Moisés mostraria isso quando Israel pecou em relação ao bezerro de ouro. Ele orou: “Ah, que grande pecado cometeu este povo! Fizeram para si deuses de ouro. Mas agora, eu te rogo, perdoa-lhes o pecado; se não, risca-me do teu livro que escreveste” (Êx 32.31-32). Davi mostraria isso quando visse o anjo do Senhor ferindo o povo. Ele orou: “O que eles fizeram? Que o teu castigo caia sobre mim e sobre a minha família!” (2Sm 24.17). Jesus, o Leão da tribo de Judá, demonstrou isso quando disse: “Por isso é que meu Pai me ama, porque eu dou a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade” (Jo 10.17-18).

A mudança da família de Jacó para o Egito (Gênesis 45.16—47.12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

José e o faraó generosamente deram aos irmãos de José “o melhor de todo o Egito” (Gn 45.20) e providenciaram para eles o retorno a Canaã e o transporte da família. Esse final aparentemente feliz, no entanto, tem um lado sombrio. Deus havia prometido a Abraão e seus descendentes a terra de Canaã, não o Egito. Muito depois que José saiu de cena, o relacionamento do Egito com Israel passou de hospitalidade para hostilidade. Visto dessa maneira, como a benevolência de José para com a família pode se encaixar em seu papel como mediador das bênçãos de Deus para todas as famílias da terra (Gn 12.3)? José era um homem perspicaz, que planejava o futuro e cumpriu a porção da bênção de Deus que lhe havia sido designada. Mas Deus não lhe revelou o futuro surgimento de um “um novo rei, que nada sabia sobre José” (Êx 1.8). Cada geração precisa permanecer fiel a Deus e receber as bênçãos de Deus em seu próprio tempo. Lamentavelmente, os descendentes de José esqueceram as promessas de Deus e caíram na infidelidade. No entanto, Deus não se esqueceu de sua promessa a Abraão, Isaque, Jacó e seus descendentes. Entre seus descendentes, Deus levantaria novos homens e mulheres para transmitir as bênçãos prometidas por ele.

Deus fez tudo para o bem (Gênesis 50.15-21)

Voltar ao índice Voltar ao índice

As palavras penitentes dos irmãos levaram José a um dos melhores pontos teológicos de sua vida e, de fato, de grande parte de Gênesis. Ele lhes disse que não tivessem medo, pois ele não se vingaria por ter sido maltratado por eles. “Vocês planejaram o mal contra mim”, disse ele, “mas Deus o tornou em bem, para que hoje fosse preservada a vida de muitos. Por isso, não tenham medo. Eu sustentarei vocês e seus filhos” (Gn 50.20-21). A referência de José a “muitos” ecoa a promessa da aliança de Deus de abençoar “todos os povos da terra” (Gn 12.3). Do nosso ponto de vista de hoje, podemos ver que Deus enviou muito mais bênçãos do que José jamais poderia ter pedido ou imaginado (ver Ef 3.20).

A obra de Deus em José e por meio dele tinha um valor real, prático e sério — preservar vidas. Se tivermos a impressão de que Deus nos quer no ambiente de trabalho apenas para que possamos falar aos outros sobre ele, ou se tivermos a impressão de que a única parte de nosso trabalho que importa para Deus é construir relacionamentos, o trabalho de José diz o contrário. As coisas que fazemos em nosso trabalho são cruciais para Deus e para outras pessoas. Às vezes, isso é verdade porque nosso trabalho é parte de um todo maior e perdemos de vista o resultado do trabalho. José adotou uma perspectiva mais ampla de seu trabalho e não desanimou com seus inevitáveis ​​altos e baixos.

Isso não quer dizer que os relacionamentos no trabalho também não sejam da maior importância. Talvez os cristãos tenham o dom especial de oferecer perdão às pessoas no ambiente de trabalho. A garantia de José a seus irmãos é um modelo de perdão. Seguindo a instrução de seu pai, José perdoou seus irmãos e, assim, os libertou verbalmente da culpa. Mas seu perdão — como todo perdão verdadeiro — não foi apenas verbal. José usou os extensos recursos do Egito, que Deus havia colocado sob seu controle, para apoiá-los materialmente, a fim de que pudessem prosperar. Ele reconheceu que julgar não era seu papel. “Estaria eu no lugar de Deus?” (Gn 50.19). Ele não usurpou o papel de Deus como juiz, mas ajudou seus irmãos a se conectarem com Deus, que os salvou.

O relacionamento que José tinha com seus irmãos era tanto familiar quanto econômico. Não há limites claramente definidos entre essas áreas; o perdão é apropriado para ambos. Podemos ser tentados a pensar que nossos valores religiosos mais caros devem funcionar principalmente em esferas claramente religiosas, como a igreja local. É claro que grande parte de nossa vida profissional ocorre na esfera pública, e devemos respeitar o fato de que outras pessoas não compartilham nossa fé cristã. Mas a divisão clara da vida em compartimentos separados rotulados como “sagrado” e “secular” é algo estranho à cosmovisão das Escrituras. Não é sectário, então, afirmar que o perdão é uma prática sólida no ambiente de trabalho.

Sempre haverá muita mágoa e dor na vida. Nenhuma empresa ou organização está imune a isso. Seria ingênuo supor, em geral, que ninguém pretende deliberadamente causar danos com o que diz ou faz. Assim como José reconheceu que as pessoas realmente queriam prejudicá-lo, podemos fazer o mesmo. Mas, na mesma frase, reside a verdade maior sobre a intenção de Deus para o bem. Recordar aquele momento em que nos sentimos magoados nos ajuda a suportar a dor e a nos identificar com Cristo.

José se via como um agente de Deus que era um instrumento para efetuar a obra de Deus com seu povo. Ele conhecia o mal que as pessoas eram capazes de fazer e aceitava que, às vezes, as pessoas são seus piores inimigos. Ele conhecia as histórias familiares de fé misturada com dúvida, de serviço fiel misturado com autopreservação, de verdade e mentira. Ele também sabia das promessas que Deus fez a Abraão, do compromisso de Deus de abençoar essa família e da sabedoria de Deus ao trabalhar com seu povo, à medida que os refinava por meio do fogo da vida. Ele não disfarçou os pecados deles; em vez disso, ele os absorveu em sua consciência da grande obra de Deus. Nossa consciência do sucesso inevitável e providencial das promessas de Deus faz nosso trabalho valer a pena, não importa o custo para nós.

Das muitas lições sobre o trabalho no livro de Gênesis, esta em particular perdura e até explica a própria redenção — a crucificação do Senhor da glória (1Co 2.8-10). Nosso ambiente de trabalho fornece contextos nos quais nossos valores e nosso caráter são trazidos à luz, à medida que tomamos decisões que afetam a nós mesmos e às pessoas ao nosso redor. Em seu poder sábio, Deus é capaz de trabalhar com nossa fidelidade, consertar nossas fraquezas e forjar nossas falhas para realizar o que ele mesmo preparou para nós, que o amamos.

Conclusões de Gênesis 12—50

Voltar ao índice Voltar ao índice

Gênesis 12—50 conta a história das três primeiras gerações da família por meio da qual Deus escolheu trazer suas bênçãos ao mundo inteiro. Não tendo qualquer poder, posição, riqueza, fama, habilidade ou superioridade moral em particular, eles aceitaram seu chamado para confiar que Deus iria prover para eles e cumprir a grande visão que tinha para eles. Embora Deus tenha se mostrado fiel em todos os sentidos, a fidelidade deles era frequentemente irregular, tímida, tola e precária. Eles provaram ser tão disfuncionais quanto qualquer família, mas mantiveram a semente da fé que foi colocada neles — ou pelo menos continuaram retornando a ela. Funcionando em um mundo decaído, cercado por pessoas e poderes hostis, pela fé eles invocaram bênçãos “com respeito ao futuro deles” (Hb 11.20) e viveram de acordo com as promessas de Deus. “Por essa razão Deus não se envergonha de ser chamado o Deus deles, e lhes preparou uma cidade” (Hb 11.16), a mesma cidade em que também trabalhamos como seguidores de “Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1.1).

Versículos e temas-chave em Gênesis 12—50

Voltar ao índice Voltar ao índice

Versículo

Tema

Gênesis 12.1-4a Então o Senhor disse a Abrão: “Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção. Abençoarei os que o abençoarem e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados”. Partiu Abrão, como lhe ordenara o Senhor...

A bênção de Deus não se limita ao benefício próprio. Seu propósito é permitir que seu povo seja uma bênção para os outros.

Uma fé bíblica sólida não é um mero sentimento; é uma resposta ativa à palavra divina.

Gênesis 13.2 Abrão tinha enriquecido muito, tanto em gado como em prata e ouro.

A riqueza não é necessariamente uma prova do favor de Deus ou uma recompensa por nosso comportamento moral, mas, quando Deus dá riqueza, devemos considerar como ela pode ser usada para abençoar outros.

Gênesis 13.8-9 Então Abrão disse a Ló: “Não haja desavença entre mim e você, ou entre os seus pastores e os meus; afinal somos irmãos! Aí está a terra inteira diante de você. Vamos separar-nos. Se você for para a esquerda, irei para a direita; se for para a direita, irei para a esquerda”.

A generosidade pode ir além de dar algumas de nossas coisas. Dar aos outros um papel ativo na tomada de decisões mostra nosso respeito por eles, bem como nossa confiança no cuidado de Deus por nós.

Gênesis 14.22-23 Mas Abrão respondeu ao rei de Sodoma: “De mãos levantadas ao Senhor, o Deus Altíssimo, Criador dos céus e da terra, juro que não aceitarei nada do que lhe pertence, nem mesmo um cordão ou uma correia de sandália, para que você jamais venha a dizer: ‘Eu enriqueci Abrão’”.

A fim de anular uma reivindicação que outros possam pensar que têm sobre nós, os crentes podem voluntariamente renunciar ao que é seu por direito, em nome dos propósitos de Deus.

Gênesis 15.1 Depois dessas coisas o Senhor falou a Abrão numa visão: “Não tenha medo, Abrão! Eu sou o seu escudo; grande será a sua recompensa!”.

A confiança no compromisso da aliança de Deus conosco é um antídoto poderoso para o medo e a incerteza.

Gênesis 18.3-5 Disse ele: “Meu senhor, se mereço o seu favor, não passe pelo seu servo sem fazer uma parada. Mandarei buscar um pouco d’água para que lavem os pés e descansem debaixo desta árvore. Vou trazer-lhes também o que comer, para que recuperem as forças e prossigam pelo caminho, agora que já chegaram até este seu servo”.

A hospitalidade pode ter um custo pessoal, mas fornece um contexto para cultivar relacionamentos e acolhe a presença de Deus.

Gênesis 18.19 “Pois eu [O Senhor] o escolhi, para que ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe prometeu”.

Seguir o caminho de Deus exige uma fé pública, por meio da qual os crentes trabalham ativamente pelo que é certo e justo, tanto agora quanto para as gerações futuras.

Gênesis 23.16 Abraão concordou com Efrom e pesou-lhe o valor por ele estipulado diante dos hititas: quatrocentas peças de prata, de acordo com o peso corrente entre os mercadores.

Os crentes podem optar por honrar a Deus fazendo negócios de maneira contrária ao costume aceito (como no caso de uma barganha encenada).

Gênesis 24.12 Então orou: “Senhor, Deus do meu senhor Abraão, dá-me neste dia bom êxito e seja bondoso com o meu senhor Abraão”.

Os crentes com responsabilidades fiduciárias servem àqueles que os comissionam, dependendo do poder de Deus e trabalhando para a glória de Deus.

Gênesis 32.26 Jacó lhe respondeu: “Não te deixarei ir, a não ser que me abençoes”.

Em contraste com o uso de medidas desesperadas para alcançar o que queremos para nós mesmos, os crentes reconhecem que as bênçãos de Deus são dádivas da graça a serem recebidas.

Gênesis 33.10 Jacó insistiu: “Não! Se te agradaste de mim, aceita este presente de minha parte, porque ver a tua face é como contemplar a face de Deus; além disso, tu me recebeste tão bem!”

O trabalho de reconciliação pode ser mais difícil para aqueles de quem estamos mais próximos, mas, como Cristo é nossa paz, podemos promover a reconciliação em todo o mundo.

Gênesis 37.5 Certa vez, José teve um sonho e, quando o contou a seus irmãos, eles passaram a odiá-lo ainda mais.

Ciúme, inveja e acusações falsas são obstáculos terríveis, mas Deus chama seu povo para uma confiança paciente e ativa no que Deus disse que faria.

Gênesis 39.3-4 Quando este percebeu que o Senhor estava com ele e que o fazia prosperar em tudo o que realizava, agradou-se de José e tornou-o administrador de seus bens. Potifar deixou a seu cuidado a sua casa e lhe confiou tudo o que possuía.

Gênesis 41.39-40 Disse, pois, o faraó a José: “Uma vez que Deus lhe revelou todas essas coisas, não há ninguém tão criterioso e sábio como você. Você terá o comando de meu palácio, e todo o meu povo se sujeitará às suas ordens. Somente em relação ao trono serei maior que você”.

Saber que Deus colocou os crentes onde ele quer que eles estejam permite que estes sirvam fielmente, independentemente do destaque e da fama que possam vir com o trabalho.

Gênesis 39.8-9 Mas ele [José] se recusou e lhe disse: “Meu senhor não se preocupa com coisa alguma de sua casa, e tudo o que tem deixou aos meus cuidados. Ninguém desta casa está acima de mim. Ele nada me negou, a não ser a senhora, porque é a mulher dele. Como poderia eu, então, cometer algo tão perverso e pecar contra Deus?”

O povo de Deus tem uma dupla responsabilidade, pois trabalham diretamente para empregadores humanos e, em última análise, para o próprio Deus.

A piedade pessoal não garante necessariamente que os crentes sempre escaparão de tratamentos injustos.

Gênesis 41.16 Respondeu-lhe José: “Isso não depende de mim, mas Deus dará ao faraó uma resposta favorável”.

Os crentes devem dar crédito a Deus por suas habilidades, mas devem estar cientes de quais atitudes são apropriadas no ambiente de trabalho, onde as pessoas não compartilham a mesma fé.

Gênesis 44.32 “Além disso, teu servo garantiu a segurança do jovem a seu pai, dizendo-lhe: Se eu não o trouxer de volta, suportarei essa culpa diante de ti pelo resto da minha vida!”.

Em circunstâncias extremas, um líder piedoso pode precisar fazer caros sacrifícios pessoais para honrar suas promessas e proteger os fracos.

Gênesis 50.20 [José disse a seus irmãos:] “Vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, para que hoje fosse preservada a vida de muitos”.

Quando o perdão se torna um estilo de vida, é muito mais fácil olhar além das ofensas pessoais e apreciar o que Deus está fazendo a longo prazo.

Êxodo e o trabalho

Voltar ao índice Voltar ao índice

A teologia do trabalho não começa com nossa compreensão do que Deus quer que façamos ou mesmo como fazê-lo. Começa com o Deus que se revelou a nós como Criador e Redentor, e que nos mostra como segui-lo, sendo formados em seu caráter. Fazemos o que Deus quer que façamos, tornando-nos mais semelhantes a ele. Ao ler Êxodo, ouvimos Deus descrever seu próprio caráter e vemos esse Deus em particular formando ativamente seu povo. Como seu povo, nós cristãos não podemos nos contentar em fazer nosso trabalho de acordo com princípios piedosos, a menos que compreendamos essas verdades como algo exclusivamente enraizado neste certo Deus, que faz esse tipo específico de obra redentora, por meio da única pessoa de seu Filho, pelo poder de seu Espírito Santo. Em essência, aprendemos que o caráter de Deus é revelado em sua obra, e sua obra molda nosso trabalho. Seguir a Deus em nosso trabalho é, portanto, um tópico importante em Êxodo, embora o trabalho não seja o ponto principal do livro.

Encontramos muitos relatos em Êxodo que falam do trabalho diário. Mas são instruções e regras que ocorrem em um contexto de trabalho que existia há mais de três mil anos. O tempo não parou e os ambientes de trabalho mudaram. Algumas passagens, como “Não matarás” (Êx 20.13), parecem se encaixar tanto no contexto de hoje como no tempo de Moisés. Outros, como “Se o boi de alguém ferir o boi de outro e o matar, venderão o boi vivo e dividirão em partes iguais, tanto o valor do boi vivo como o animal morto” (Êx 21.35), parecem menos aplicáveis ​​diretamente à maioria dos ambientes de trabalho atuais. Como podemos honrar, obedecer e aplicar a palavra de Deus em Êxodo sem cair nas armadilhas do legalismo ou da aplicação incorreta?

Para responder a essas perguntas, partimos do entendimento de que este livro é uma narrativa. Assim como ajudou Israel a se localizar na história de Deus, também nos ajuda a descobrir como nos encaixamos na expressão mais plena da narrativa que é nossa Bíblia hoje. O propósito e a forma da obra de Deus não apenas moldam nossa identidade como seu povo, mas também direcionam a obra que Deus nos chamou para fazer.

Introdução a Êxodo

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Êxodo começa e termina com Israel em ação. No início, os israelitas estão trabalhando para os egípcios. No final do livro, eles terminaram a obra de construção do tabernáculo, de acordo com as instruções do Senhor (Êx 40.33). Deus não livrou Israel do trabalho. Ele libertou Israel para o trabalho. Deus os libertou do trabalho opressivo sob o ímpio rei do Egito e os levou a um novo tipo de trabalho sob seu reinado gracioso e santo. Embora o título do livro nas Bíblias cristãs, “Êxodo”, signifique “saída”, [1] a orientação voltada para o futuro de Êxodo poderia legitimamente nos levar a concluir que o livro fala realmente sobre entrada, pois relata a entrada de Israel na aliança mosaica que moldará sua existência, não apenas nas peregrinações no deserto ao redor da península do Sinai, mas também em sua vida estabelecida na terra prometida. O livro transmite como Israel deve entender seu Deus e como esta nação deve trabalhar e adorar em sua nova terra. Em todos os aspectos, Israel deve estar ciente de como sua vida sob Deus seria diferente e melhor do que a vida daqueles que seguiam os deuses de Canaã. Ainda hoje, o que fazemos no trabalho flui de por que nós fazemos isso e para quem, em última análise, estamos trabalhando. Normalmente, não precisamos ir muito longe na sociedade para encontrar exemplos de trabalho duro e opressivo. Certamente, Deus quer que encontremos maneiras melhores de conduzir nossos negócios e de tratar os outros. Mas o caminho para essa nova maneira de agir depende de nos vermos como destinatários da salvação de Deus, de sabermos qual é a obra de Deus e de nos treinarmos para seguir suas palavras.

O livro de Êxodo começa cerca de quatrocentos anos após o ponto em que Gênesis termina. Em Gênesis, o Egito tinha sido um lugar hospitaleiro, onde Deus providencialmente elevou José, para que ele pudesse salvar a vida dos descendentes de Abraão (Gn 50.20). Isso está de acordo com as promessas de Deus de transformar Abraão em uma grande nação, de abençoá-lo e torná-lo uma bênção para os outros, de engrandecer seu nome e de abençoar por meio dele todas as famílias da terra (Gn 12.2-3). No livro de Êxodo, no entanto, o Egito era um lugar opressivo, onde o crescimento de Israel levantava o espectro da morte. Os egípcios dificilmente viam Israel como uma bênção divina, embora não quisessem abandonar seu trabalho escravo. No final, a libertação de Israel no mar Vermelho custou muitas vidas ao faraó e ao seu povo. À luz das promessas de Deus à família escolhida de Abraão e das intenções de Deus de abençoar as nações, o povo de Deus no livro de Êxodo está em plena transição. A magnitude dos números de Israel indicava o favor de Deus, mas a geração seguinte de filhos do sexo masculino enfrentou a extinção imediata (Êx 1.15-16). A nação como um todo ainda não estava na terra que Deus lhes havia prometido.

Todo o Pentateuco ecoa esse tema do cumprimento parcial. As promessas de Deus para os descendentes de Abraão, o relacionamento privilegiado com Deus e uma terra para viver, tudo isso expressa as intenções de Deus, mas todas elas estão em algum estado de perigo ao longo da narrativa. [2] Entre os cinco livros do Pentateuco, Êxodo, em particular, aborda o elemento do relacionamento com Deus, tanto em termos da intervenção divina para libertar seu povo do Egito quanto do estabelecimento de sua aliança com eles no Sinai. [3] Isso é especialmente significativo para a forma como lemos o livro para obter perspectivas sobre nosso trabalho hoje. Valorizamos a forma e o conteúdo deste livro, pois lembramos que nosso relacionamento com Deus por meio de Jesus Cristo flui do que vemos aqui e orienta toda a nossa vida e trabalho em torno das intenções de Deus.

Para capturar o caráter de Israel como uma nação em transição, esboçamos o livro e avaliamos sua contribuição para a teologia do trabalho de acordo com os estágios geográficos de sua jornada, começando no Egito, depois no mar Vermelho, a caminho do Sinai e, finalmente, no próprio Sinai.

Israel no Egito (Êxodo 1.1—13.16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os maus tratos de Israel pelos egípcios fornecem o pano de fundo e a motivação para sua redenção. O faraó não permitiu que eles seguissem Moisés até o deserto para adorar ao Senhor e, assim, negou uma medida de sua liberdade religiosa. Mas sua opressão como trabalhadores do sistema econômico egípcio é o que realmente chama nossa atenção. Deus ouve o clamor de seu povo e faz algo a respeito. Mas devemos lembrar que o povo de Israel não geme por causa do trabalho em geral, mas por causa da dureza de seu trabalho. Em resposta, Deus não os entrega a uma vida de descanso total, mas a uma libertação do trabalho opressivo.

A dureza do trabalho escravo dos israelitas no Egito (Êxodo 1.8-14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O trabalho que os egípcios impuseram aos israelitas era de motivação maligna e de natureza cruel. A cena de abertura apresenta a terra cheia de israelitas que foram frutíferos e se multiplicaram. Isso ecoa a intenção criacional de Deus (Gn 1.28; 9.1), bem como sua promessa a Abraão e seus descendentes escolhidos (Gn 17.6; 35.11; 47.27). Como nação, eles estavam destinados a abençoar o mundo. Sob um governo anterior, os israelitas tinham permissão real para viver na terra e trabalhar nela. Mas agora, o novo rei do Egito sentiu que aquele grande povo representava uma ameaça à sua segurança nacional e, portanto, decidiu lidar com eles “com astúcia” (Êx 1.10). Não nos é dito se os israelitas eram ou não uma ameaça genuína. A ênfase recai sobre o medo destrutivo do faraó, que o levou primeiro a degradar seu ambiente de trabalho e, depois, a usar o infanticídio para conter o crescimento da população.

O trabalho pode ser física e mentalmente desgastante, mas isso não o torna errado. O que tornou a situação no Egito insuportável não foi apenas a escravidão, mas também sua extrema dureza. Os mestres egípcios tratavam os israelitas de forma “cruel” (befarekh, Êx 1.13,14) e tornaram a vida deles “amarga” (marar, Êx 1.14) com serviço “árduo” (qasheh, no sentido de “cruel”, Êx. 1.14; 6.9). Como resultado, Israel definhou em “opressão” e “sofrimento” (Êx 3.7) e em “angústia” (Êx 6.9). O trabalho, um dos principais propósitos e alegrias da existência humana (Gn 1.27-31; 2.15), foi transformado em miséria pela dureza da opressão.

O trabalho de parteira e da maternidade (Êxodo 1.15—2.10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em meio ao tratamento severo, os israelitas permaneceram fiéis à ordem de Deus de serem frutíferos e se multiplicarem (Gn 1.28). Isso envolvia ter filhos, o que, por sua vez, dependia do trabalho das parteiras. Além de sua presença na Bíblia, o trabalho de parteiras é bem atestado na antiga Mesopotâmia e no Egito. As parteiras ajudavam as mulheres a dar à luz, cortavam o cordão umbilical do bebê, lavavam o bebê e apresentavam a criança à mãe e ao pai.

As parteiras nesta narrativa possuem um temor de Deus que as levou a desobedecer à ordem real de matar todos os meninos nascidos das mulheres hebreias (Êx 1.15-17). De um modo geral, o “temor do Senhor” (e expressões relacionadas) na Bíblia se refere a um relacionamento saudável e obediente com o Deus de Israel (hebraico, YHWH), que faz alianças. Seu “temor a Deus” era mais forte do que qualquer medo que o faraó do Egito pudesse submetê-los. Além disso, talvez sua coragem tenha surgido de seu trabalho. Será que aquelas que pastoreiam uma nova vida todos os dias passam a valorizar tanto a vida que o assassinato se tornaria impensável, mesmo se ordenado por um rei?

A mãe de Moisés, Joquebede (Êx 6.20), foi outra mulher que enfrentou uma escolha aparentemente impossível e forjou uma solução criativa. Dificilmente se pode imaginar seu alívio por ter um filho homem em segredo e com sucesso, seguido por sua dor por ter de colocá-lo no rio — e isso de uma maneira que realmente pudesse salvar sua vida. Os paralelos com a arca de Noé — a palavra hebraica para “cesto” é usada apenas em outro lugar na Bíblia, a saber, para a “arca” de Noé — nos permitem saber que Deus estava agindo não apenas para salvar um menino, ou mesmo uma nação, mas também para redimir toda a criação por meio de Moisés e Israel. Paralelamente à sua recompensa para com as parteiras, Deus mostrou bondade para com a mãe de Moisés. Ela recuperou o filho e cuidou dele até que ele tivesse idade suficiente para ser adotado como filho da filha do faraó. O trabalho piedoso de gerar e criar filhos é bem conhecido por ser complexo, exigente e louvável (Pv 31.10-31). Em Êxodo, não lemos nada sobre as lutas internas vividas por Joquebede, a heroína desconhecida. Do ponto de vista narrativo, a vida de Moisés é a questão principal. Mas a Bíblia mais tarde elogiou Joquebede e Anrão, pai de Moisés, pela maneira como eles colocaram sua fé em ação (Hb 11.23).

Com muita frequência, o trabalho de dar à luz e criar filhos é negligenciado. As mães, especialmente, muitas vezes entendem que criar os filhos não é tão importante ou louvável quanto qualquer outro trabalho. No entanto, quando Êxodo conta a história de como seguir a Deus, a primeira coisa que ele tem a nos dizer é a incomparável importância de gerar, criar, proteger e ajudar os filhos. O primeiro ato de coragem, neste livro repleto de feitos corajosos, é a coragem de uma mãe, de sua família e de suas parteiras ao salvar seu filho.

O chamado de Deus a Moisés (Êxodo 2.11—3.22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Embora Moisés fosse hebreu, ele foi criado na família real do Egito como neto do faraó. Sua repulsa à injustiça explodiu em um ataque letal a um egípcio que ele encontrou espancando um trabalhador hebreu. Esse ato chamou a atenção do faraó, por isso Moisés fugiu em busca de segurança e tornou-se pastor em Midiã, uma região a várias centenas de quilômetros a leste do Egito, do outro lado da península do Sinai. Não sabemos exatamente quanto tempo ele viveu lá, mas durante esse tempo ele se casou e teve um filho. Além disso, duas coisas importantes aconteceram. O rei do Egito morreu, e o Senhor ouviu o clamor de seu povo oprimido e se lembrou de sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó (Êx 2.23-25). Esse ato de lembrar não significava que Deus havia se esquecido de seu povo. Sinalizou que ele estava prestes a agir em nome deles. [1] Para isso, ele chamaria Moisés.

O chamado de Deus a Moisés veio enquanto Moisés estava trabalhando. O relato de como isso aconteceu compreende seis elementos que formam um padrão evidente na vida de outros líderes e profetas na Bíblia. Portanto, é instrutivo examinar essa narrativa de chamado e considerar suas implicações para nós hoje, especialmente no contexto de nosso trabalho.

Primeiro, Deus confrontou Moisés e chamou sua atenção na cena da sarça em chamas (Êx 3.2-5). Um arbusto em chamas no semideserto não é nada de excepcional, mas Moisés ficou intrigado com a natureza daquele fogo em particular. Moisés ouviu seu nome ser chamado e respondeu: “Eis-me aqui”. (Êx 3.4). Esta é uma declaração de disponibilidade, não de localização. Em segundo lugar, o Senhor apresentou-se como o Deus dos patriarcas e comunicou sua intenção de resgatar seu povo do Egito e trazê-los para a terra que ele havia prometido a Abraão (Êx 3.6-9). Terceiro, Deus comissionou Moisés para ir ao faraó a fim de tirar o povo de Deus do Egito (Êx 3.10). Quarto, Moisés argumentou (Êx 3.11). Embora ele tivesse acabado de ouvir uma poderosa revelação sobre quem estava falando com ele naquele momento, sua preocupação imediata foi: “Quem sou eu?”. Em resposta a isso, Deus tranquilizou Moisés com a promessa de sua própria presença (Êx 3.12a). Finalmente, Deus falou de um sinal de confirmação (Êx 3.12b).

Esses mesmos elementos estão presentes em várias outras narrativas de chamados nas Escrituras — por exemplo, nos chamados de Gideão, Isaías, Jeremias, Ezequiel e alguns dos discípulos de Jesus. Essa não é uma fórmula rígida, pois muitas outras narrativas de chamados nas Escrituras seguem um padrão diferente. Mas sugere que o chamado de Deus geralmente vem por meio de uma série extensa de encontros que guiam uma pessoa no caminho de Deus ao longo do tempo.

O
juiz
Gideão

O
profeta
Isaías

O
profeta
Jeremias

O
profeta
Ezequiel

Discípulos
de Jesus
em Mateus

Confronto

6.11b-12a

6.1-2

1.4

1.1-28a

28.16-17

Introdução

6.12b-13

6.3-7

1.5a

1.28b—2.2

28.18

Comissionamento

6.14

6.8-10

1.5b

2.3-5

28.19-20a

Argumentação

6.15

6.11a

1.6

2.6,8

Garantia

6.16

6.11b-13

1.7-8

2.6-7

28.20b

Sinal de confirmação

6.17-21


1.9-10

2.9—3.2

Possivelmente o
livro de Atos

Observe que esses chamados não são principalmente para o trabalho sacerdotal ou religioso em uma congregação. Gideão era um líder militar; Isaías, Jeremias e Ezequiel eram críticos sociais; e Jesus era um rei (embora não no sentido tradicional). Em muitas igrejas hoje, o termo “chamado” é limitado a ocupações religiosas, mas isso não é verdade nas Escrituras e, certamente, não em Êxodo. O próprio Moisés não era um sacerdote ou líder religioso (esses eram os papéis de Arão e Miriã), mas um pastor, estadista e governador. A pergunta do Senhor a Moisés: “O que é isso em sua mão?” (Êx 4.2) redireciona a ferramenta comum de pastoreio de ovelhas usada por Moisés para usos que ele nunca imaginou serem possíveis (Êx 4.3-5).

A obra de redenção de Deus para Israel (Êxodo 5.1—6.28)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No livro de Êxodo, Deus é o obreiro essencial. A natureza e a intenção dessa obra divina definiram a agenda da obra de Moisés e, por meio dele, da obra do povo de Deus. O chamado inicial de Deus a Moisés incluía uma explicação da obra de Deus. Isso levou Moisés a falar em nome do Senhor a faraó, dizendo: “Deixe o meu povo ir” (Êx 5.1). A refutação do faraó não foi meramente verbal; ele oprimiu os israelitas com mais severidade do que antes. No final deste episódio, até os próprios israelitas se voltaram contra Moisés (Êx 5.20-21). É nesse ponto crucial que, em resposta ao questionamento de Moisés a Deus sobre todo o empreendimento, Deus esclareceu o projeto de sua obra. O que lemos aqui em Êxodo 6.2-8 não pertence apenas ao contexto imediato da opressão de Israel no Egito, mas estrutura uma agenda que abrange toda a obra de Deus na Bíblia. [1] É importante que todos os cristãos tenham clareza sobre o escopo da obra de Deus, porque isso nos ajuda a entender o que significa orar para que o Reino de Deus venha e para que sua vontade seja feita assim na terra como no céu (Mt 6.10). O cumprimento dessas intenções é tarefa de Deus. Para realizá-las, ele envolverá todo o seu povo, não apenas aqueles que fazem trabalho “religioso”. Chegar a uma compreensão mais clara da obra de Deus nos capacita a considerar melhor não apenas a natureza de nossa obra, mas a maneira pela qual Deus deseja que a façamos.

Para melhor apreciar esse texto-chave, faremos algumas breves observações sobre ele e, em seguida, mostraremos como ele é relevante para a teologia do trabalho. Depois de uma resposta inicialmente segura à pergunta acusatória de Moisés sobre a missão de Deus (Êx 5.22—6.1), Deus molda sua resposta mais extensa com as palavras “Eu sou o Senhor” no início e no fim (Êx 6.2,8). Essa frase-chave demarca o parágrafo e dá ao conteúdo uma prioridade especialmente alta. Os leitores devem ter o cuidado de observar que essa frase não comunica o que Deus é em termos de um título. Ela revela o próprio nome de Deus e, portanto, fala quem ele é. [2] Ele é o Deus que apareceu aos patriarcas, que faz alianças e cumpre promessas. A obra que Deus está prestes a fazer por seu povo está, portanto, fundamentada nas intenções que Deus expressou a eles. A saber, estes devem multiplicar os descendentes de Abraão, engrandecer seu nome e abençoá-lo para que, por meio de Abraão, Deus abençoe todas as famílias da terra (Gn 12.2-3).

A obra de Deus aparece então em quatro partes. Esses quatro propósitos redentores de Deus reaparecem de várias maneiras ao longo do Antigo Testamento e até dão forma ao clímax da obra redentora de Deus em Jesus Cristo. A primeira é a obra de libertação. “Eu os livrarei do trabalho imposto pelos egípcios. Eu os libertarei da escravidão e os resgatarei com braço forte e com poderosos atos de juízo” (Êx 6.6). Inerente a esse trabalho de libertação está a verdade franca de que o mundo é um lugar de opressão múltipla. Às vezes, usamos a palavra salvação para descrever essa atividade de Deus, mas devemos ter cuidado para evitar entendê-la em termos de resgate da terra para o céu (e certamente não da matéria para o espírito) ou como mero perdão de pecados. O Deus de Israel libertou seu povo entrando em seu mundo e efetuando uma mudança “no terreno”, por assim dizer. Êxodo não apenas mostra Deus efetuando a libertação de Israel do faraó no Egito, mas também prepara o terreno para o rei messiânico, Jesus, libertar seu povo de seus pecados e vencer o diabo, o tirano do mal (Mt 1.21; 12.28).

Segundo, o Senhor formará uma comunidade piedosa. “Eu os farei meu povo e serei o Deus de vocês” (Êx 6.7a). Deus não libertou seu povo para que eles pudessem viver como quisessem, nem os libertou como indivíduos isolados. Ele pretendia criar um tipo qualitativamente diferente de comunidade, na qual seu povo viveria com ele e uns com os outros em fidelidade à aliança. Toda nação nos tempos antigos tinha seus “deuses”, mas a identidade de Israel como povo de Deus envolvia um estilo de vida de obediência a todos os decretos, mandamentos e leis de Deus (Dt 26.17-18). À medida que esses valores e ações impregnassem seu modo de lidar com Deus e uns com os outros (e mesmo aqueles fora da aliança), Israel demonstraria cada vez mais o que genuinamente significa ser o povo de Deus. Novamente, isso forma o pano de fundo para Jesus, que construiria sua “igreja”, não como uma estrutura física de tijolo ou pedra, mas como uma nova comunidade com discípulos de todas as nações (Mt 16.18; 28.19).

Terceiro, o Senhor criará um relacionamento contínuo entre ele e seu povo. “Então vocês saberão que eu sou o Senhor, o seu Deus, que os livra do trabalho imposto pelos egípcios” (Êx 6.7b). Todas as outras declarações do propósito de Deus começam com a palavra eu, exceto esta. Aqui, o foco está em vocês. Deus deseja que seu povo tenha uma certa experiência de seu relacionamento com Deus, que graciosamente os resgatou. Para nós, o conhecimento parece praticamente equivalente à informação. O conceito bíblico de conhecimento abraça essa noção, mas também inclui a experiência interpessoal de conhecer os outros. Dizer que Deus não se fez “conhecido” como “Senhor” a Abraão não significa que Abraão desconhecia o nome divino “YHWH” (Gn 13.4; 21.33). Significa que Abraão e sua família ainda não haviam experimentado pessoalmente o significado desse nome como descritivo de seu Deus cumpridor de promessas, que lutaria em nome de seu povo para livrá-lo da escravidão em escala nacional. [3] Em última análise, isso é retomado por Jesus, cujo nome “Emanuel” significa Deus “conosco” em relacionamento (Mt 1.23).

Quarto, Deus pretende que seu povo experimente a boa vida. “E os farei entrar na terra que, com mão levantada, jurei que daria a Abraão, a Isaque e a Jacó” (Êx 6.8). Deus prometeu dar a Abraão a terra de Canaã, mas não é correto simplesmente equiparar essa “terra” ao nosso conceito de “região”. É uma terra de promessa e provisão. A descrição regular e positiva dela como terra “onde manam leite e mel” (Êx 3.8) destaca sua natureza simbólica como um lugar para viver com Deus e o povo de Deus em condições ideais, algo que entendemos como a “vida em abundância”. [4] Aqui, novamente, vemos que a obra de salvação de Deus é um ajuste correto de toda a sua criação — ambiente físico, pessoas, cultura, economia, tudo. Essa também é a missão de Jesus quando ele inicia o Reino de Deus vindo à terra, onde os mansos herdarão a terra e experimentarão a vida eterna (Mt 5.5; Jo 17.3). [9] Isso se completa na Nova Jerusalém de Apocalipse 21 e 22. Êxodo, portanto, estabelece o caminho para toda a Bíblia que se segue.

Considere como nosso trabalho hoje pode expressar esses quatro propósitos redentores. Primeiro, a vontade de Deus é livrar pessoas da opressão e das condições prejudiciais da vida. Parte desse trabalho resgata pessoas de perigos físicos; outro trabalho se concentra no alívio de traumas psicológicos e emocionais. O trabalho de cura toca as pessoas uma a uma; aqueles que elaboram soluções políticas para nossas necessidades podem abençoar sociedades e classes de pessoas inteiras. Os que trabalham na aplicação da lei e no sistema judicial devem ter como objetivo restringir e punir aqueles que fazem o mal, proteger as pessoas e cuidar das vítimas. Dada a extensão generalizada da opressão no mundo, sempre haverá múltiplas oportunidades e meios de trabalhar pela libertação.

O segundo e o terceiro propósitos (comunidade e relacionamento) estão intimamente relacionados entre si. O trabalho piedoso que promove a paz e a verdadeira harmonia no céu aumentará a misericórdia e a justiça na terra. Esta é a essência do discurso de Paulo aos coríntios: por meio de Cristo, Deus nos reconciliou consigo mesmo e, assim, nos deu a mensagem e o ministério da reconciliação (2Co 5.16-20). Os cristãos experimentaram essa reconciliação e, portanto, têm motivos e meios para fazer esse tipo de trabalho. O trabalho de evangelismo e desenvolvimento espiritual honra uma dimensão da área; o trabalho de paz e justiça honra a dimensão interpessoal. Em essência, os dois são inseparáveis ​​e aqueles que trabalham nesses campos fazem bem em lembrar a natureza holística do que Deus está fazendo. Jesus ensinou que, porque nós somos a luz do mundo, devemos deixar nossa luz brilhar diante dos outros (Mt 5.14-16).

Construir comunidade e relacionamentos pode ser o objeto do nosso trabalho, como no caso de líderes comunitários, pessoas que trabalham com jovens, assistentes sociais, organizadores de eventos, profissionais de mídia social, pais e familiares e muitos outros. Mas estes também podem ser elementos do nosso trabalho, seja qual for a nossa ocupação. Quando damos boas-vindas e ajudamos novos trabalhadores, perguntamos e ouvimos os outros falarem sobre assuntos importantes, estamos dispostos a conhecer alguém pessoalmente, enviamos uma nota de encorajamento, compartilhamos uma foto memorável, levamos boa comida para compartilhar, incluímos alguém em uma conversa ou uma infinidade de outros atos de camaradagem, estamos cumprindo esses dois propósitos do trabalho, dia após dia.

Finalmente, o trabalho piedoso promove a boa vida. Deus guiou seu povo para fora do Egito, a fim de fazê-los entrar na terra prometida, onde eles poderiam se estabelecer, viver e se desenvolver. No entanto, o que Israel experimentou lá foi muito menos do que o ideal de Deus. Da mesma forma, o que os cristãos experimentam no mundo também não é o ideal. A promessa de entrar no descanso de Deus ainda está em aberto (Hb 4.1). Ainda esperamos por um novo céu e uma nova terra. Mas muitas das leis da aliança que Deus deu por meio de Moisés têm a ver com o tratamento ético mútuo. É vital, então, que a bênção de Deus seja operada na maneira como vivemos e trabalhamos uns com os outros. Visto do lado negativo, como podemos razoavelmente esperar que todas as famílias da terra experimentem a bênção de Deus por meio de nós (o povo de Abraão, por meio da fé em Cristo), se nós mesmos ignoramos as instruções de Deus sobre como viver e fazer nosso trabalho? Como Christopher Wright observou: “O povo de Deus, em ambos os testamentos, é chamado para ser uma luz para as nações. Mas não pode haver luz para as nações se ela já não estiver brilhando na vida transformada de um povo santo”. [5] Assim, fica claro que o tipo de “vida boa” em vista aqui não tem nada a ver com uma prosperidade egoísta ou um consumo desenfreado, pois abrange o amplo espectro da vida como Deus espera que seja: cheia de amor, justiça e misericórdia.

Moisés e Arão anunciam o julgamento de Deus ao faraó (Êxodo 7.1—12.51)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus começou o primeiro passo — libertação — enviando Moisés e Aarão para dizer ao faraó que deixasse “os israelitas saírem do país” (Êx 7.2). Para essa tarefa, Deus fez uso da habilidade natural de Arão em falar em público (Êx 4.14; 7.1). Ele também equipou Arão com habilidade que supera a dos altos oficiais do Egito (Êx 7.10-12). Isso nos lembra que a missão de Deus requer palavra e ação.

O faraó se recusou a ouvir a ordem de Deus, por meio de Moisés, de libertar Israel da escravidão. Por sua vez, Moisés anunciou o juízo de Deus ao faraó por meio de uma série cada vez mais severa de desastres ecológicos (Êx 7.17—10.29). Esses desastres causaram miséria pessoal. Mais significativamente, eles prejudicaram drasticamente a capacidade produtiva da terra e do povo do Egito. As doenças causaram a morte do gado (Êx 9.6). As colheitas falharam e as florestas foram arruinadas (Êx 9.25). As pragas invadiram vários ecossistemas (Êx 8.6,24; 10.13-15). Em Êxodo, o desastre ecológico é a retribuição de Deus contra a tirania e a opressão do faraó. No mundo moderno, a opressão política e econômica é um fator importante na degradação ambiental e no desastre ecológico. Seríamos tolos em pensar que podemos assumir a autoridade de Moisés e declarar o julgamento de Deus em qualquer uma dessas coisas. Mas podemos ver que, assim como a economia, a política, a cultura e a sociedade precisam de redenção, o meio ambiente também precisa.

Cada uma dessas ações de advertência convenceu o faraó a libertar Israel, mas, à medida que cada uma delas passava, ele voltava atrás. Finalmente, Deus trouxe o desastre de matar todos os primogênitos entre o povo e os animais dos egípcios (Êx 12.29-30). O efeito terrível da escravidão é “endurecer” o coração contra a compaixão, a justiça e até a autopreservação, como o faraó logo descobriu (Êx 11.10). O faraó então aceitou a exigência de Deus de libertar Israel. Os israelitas que partiram “saquearam” as joias, a prata, o ouro e as roupas dos egípcios (Êx 12.35-36). Isso reverteu os efeitos da escravidão, que era a pilhagem legalizada de trabalhadores explorados. Quando Deus liberta as pessoas, ele restaura seu direito de trabalhar por frutos que elas mesmas possam usufruir (Is 65.21-22). O trabalho — e as condições em que ele é realizado — é assunto da maior preocupação de Deus.

Israel no mar Vermelho e no caminho para o Sinai (Êxodo 13.17—18.27)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A expressão fundamental da obra de Deus se concretizou de forma dramática quando Deus guiou decisivamente seu povo através do mar Vermelho, libertando-o do domínio tirânico do Egito. O Deus que separou as águas do caos e criou a terra seca, o Deus que levou a família de Noé através do dilúvio para a terra seca, “dividiu” as águas do mar Vermelho e conduziu Israel através de “terra seca” (Êx 14.21-22). A jornada de Israel do Egito ao Sinai é, portanto, a continuação da história da criação e redenção de Deus. Moisés, Arão e outros trabalham arduamente, mas Deus é o verdadeiro trabalhador.

A obra da justiça entre o povo de Israel (Êxodo 18.1-27)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Durante a viagem do Egito ao Sinai, Moisés se reconectou com seu sogro Jetro. Este, que antes era estrangeiro para os israelitas, ofereceu um conselho muito necessário a Moisés sobre justiça na comunidade. A obra de redenção de Deus para seu povo foi expandida para a obra da justiça entre seu povo. Israel já havia sofrido tratamento injusto nas mãos dos capatazes egípcios. Por conta própria, eles procuraram com razão respostas de Deus para suas próprias disputas. Walter Brueggemann observou que a fé bíblica não é apenas contar a história do que Deus fez. É também “sobre o trabalho árduo e contínuo de nutrir e praticar a paixão diária de curar e restaurar, e a rejeição diária de ganhos desonestos”. [1]

Uma das primeiras coisas que aprendemos sobre Moisés foi seu desejo de mediar entre aqueles que estavam envolvidos em uma disputa. Inicialmente, quando Moisés tentou intervir, ele foi repreendido com as palavras: “Quem o nomeou líder e juiz sobre nós?” (Êx 2.14). No episódio atual, vemos exatamente o oposto. Moisés está em tal demanda como líder e juiz que uma multidão de pessoas necessitadas de suas decisões se reuniu ao seu redor “desde a manhã até o cair da tarde” (Êx 18.14; veja também Dt 1.9-18). A obra de Moisés aparentemente tem dois aspectos. Primeiro, ele proferiu decisões legais para pessoas em disputa. Segundo, ele ensinou os estatutos e as instruções de Deus para aqueles que buscavam orientação moral e religiosa. [2] Jetro observou que Moisés era o único agente nessa nobre obra, mas considerou todo o processo insustentável. “O que você está fazendo não é bom” (Êx 18.17). Além disso, foi prejudicial para Moisés e insatisfatório para o povo que ele estava tentando ajudar. A solução de Jetro foi permitir que Moisés continuasse fazendo o que ele estava singularmente qualificado para fazer como representante de Deus: interceder junto a Deus pelo povo, instruí-lo e decidir os casos difíceis. Todos os outros casos deveriam ser delegados a juízes subordinados que atuariam em um sistema de administração judicial de quatro níveis.

A qualificação desses juízes é a chave para a sabedoria do plano, pois eles não foram selecionados de acordo com as divisões tribais do povo ou sua maturidade religiosa. Eles deviam atender a quatro qualificações (Êx 18.21). Primeiro, eles deviam ser “capazes”. A expressão hebraica “homens de hayil” denota habilidade, liderança, gerenciamento, desenvoltura e o devido respeito. [3] Segundo, eles deviam ser “tementes a Deus”. Assim como aconteceu com as parteiras no capítulo 2, essa provavelmente não é uma qualidade especificamente religiosa. Ele descreve pessoas que têm uma compreensão clara da moralidade comumente reconhecida, que se estende além das fronteiras culturais e religiosas. Terceiro, eles deviam ser “dignos de confiança”. A verdade é um conceito abstrato, bem como uma maneira de agir, por isso essas pessoas deviam ter um histórico público de caráter e conduta verdadeiros. Finalmente, eles deviam ser “inimigos de ganho desonesto”. Eles deviam saber como e por que a corrupção ocorre, desprezar a prática de suborno e todos os tipos de subversão e proteger ativamente o processo judicial dessas infecções.

A delegação é essencial para o trabalho da liderança. Embora Moisés fosse excepcionalmente talentoso como profeta, estadista e juiz, ele não era infinitamente talentoso. Qualquer pessoa que imagina que somente ela é capaz de fazer bem a obra de Deus esqueceu o que significa ser humano. Portanto, o dom da liderança é, em última análise, o dom de dar poder de forma adequada. O líder, como Moisés, deve discernir as qualidades necessárias, treinar aqueles que devem receber autoridade e desenvolver meios para responsabilizá-los. O líder também precisa ser responsabilizado. Jetro executou essa tarefa no caso de Moisés, e a passagem é notavelmente franca ao mostrar como até mesmo o maior de todos os profetas do Antigo Testamento teve de ser confrontado por alguém com o poder de responsabilizá-lo. A liderança sábia, decisiva e compassiva é um dom de Deus de que toda comunidade humana precisa. No entanto, Êxodo nos mostra que não é tanto uma questão de um líder talentoso assumir autoridade sobre as pessoas, mas sim o processo de Deus para uma comunidade desenvolver estruturas de liderança nas quais pessoas talentosas possam ter sucesso. A delegação é a única maneira de aumentar a capacidade de uma instituição ou comunidade, bem como de desenvolver futuros líderes.

O fato de Moisés ter aceitado esse conselho tão rápida e completamente pode ser uma evidência de como ele estava pessoalmente desesperado. Mas, em uma escala mais ampla, também podemos ver que Moisés estava completamente aberto à sabedoria de Deus, mediada a ele por alguém de fora do povo de Israel. Essa observação pode encorajar os cristãos a receber e respeitar contribuições de uma ampla gama de tradições e religiões, principalmente em questões de trabalho. Fazer isso não é necessariamente uma marca de deslealdade a Cristo, nem expõe a falta de confiança em nossa própria fé. Não é uma concessão indevida ao pluralismo religioso. Pelo contrário, pode até ser um testemunho ruim fazer uso de citações bíblicas de sabedoria com muita frequência, pois, ao fazê-lo, pessoas de fora podem nos considerar mesquinhos e até inseguros. Os cristãos fazem bem em ter discernimento sobre as especificidades do conselho que adotamos, quer venha de dentro ou de fora. Mas, em última análise, estamos confiantes de que “toda verdade é a verdade de Deus”. [4]

Israel no Monte Sinai (Êxodo 19.1—40.38)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No monte Sinai, Moisés recebeu os Dez Mandamentos do Senhor. Como diz a Bíblia de Estudo NVI: “Os Dez Mandamentos são tanto a base quanto o âmago do relacionamento entre Israel e o Senhor. É quase impossível exagerar seu efeito sobre a história subsequente. Constituem base dos princípios morais de todo o mundo ocidental, resumindo o que o Deus único e verdadeiro espera de seu povo quanto à fé, a adoração e à conduta”. [1] Como veremos, o papel da lei israelita para os cristãos é objeto de muita controvérsia. Por essas razões, estaremos atentos ao que o texto de Êxodo realmente diz, pois é isso que temos em comum. Ao mesmo tempo, esperamos estar cientes e respeitar a variedade de maneiras pelas quais os cristãos podem querer tirar lições dessa parte da Bíblia.

O significado da lei em Êxodo (Êxodo 19.1—24.18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Começamos reconhecendo que Êxodo é parte integrante de toda a Escritura, não um estatuto legal independente. Christopher Wright escreveu:

A opinião comum de que a Bíblia é um livro de códigos morais para os cristãos fica muito aquém, é claro, da plena realidade do que a Bíblia é e faz. A Bíblia é essencialmente a história de Deus, da terra e da humanidade; é a história do que deu errado, do que Deus fez para consertar as coisas e do que o futuro reserva sob o plano soberano de Deus. No entanto, dentro dessa grande narrativa, o ensino moral tem um lugar vital. A história da Bíblia é a história da missão de Deus. A exigência da Bíblia é a de que os seres humanos respondam apropriadamente. A missão de Deus exige e inclui uma resposta humana. E nossa missão certamente inclui a dimensão ética dessa resposta. [1]

A palavra lei é uma tradução tradicional, porém imprecisa, da palavra-chave hebraica Torá. Como esse termo é tão central para toda a discussão em questão, ele nos ajudará a esclarecer como essa palavra hebraica realmente funciona na Bíblia. A palavra Torá aparece uma vez no Gênesis no sentido de instruções de Deus que Abraão seguiu. Pode se referir a instruções de um ser humano para outro (Sl 78.1). Mas, como algo de Deus, a palavra Torá em todo o Pentateuco e no restante do Antigo Testamento designa um padrão de conduta para o povo de Deus relacionado a questões cerimoniais de adoração formal, bem como estatutos de conduta civil e social. [2] A noção bíblica de Torá transmite o sentido de “instrução divinamente autorizada”. Esse conceito está longe de nossas ideias modernas de direito como um corpo de códigos elaborados e promulgados por legisladores ou leis “naturais”. Para destacar a natureza rica e instrutiva da lei no Êxodo, às vezes vamos nos referir a ela como Torá, sem nenhuma tentativa de tradução.

Em Êxodo, fica claro que a Torá, no sentido de um conjunto de instruções específicas, faz parte da aliança e não o contrário. Em outras palavras, a aliança como um todo descreve a relação que Deus estabeleceu entre ele e seu povo em virtude de seu ato de libertação em favor deles (Êx 20.2). Como rei da aliança do povo, Deus especifica como ele deseja que Israel adore e se comporte. A promessa de Israel de obedecer é uma resposta ao presente divino da aliança (Êx 24.7). Isso é significativo para nossa compreensão da teologia do trabalho. A maneira como discernimos a vontade de Deus para nosso comportamento no trabalho e a maneira como a colocamos em prática no ambiente de trabalho são envoltos pelo relacionamento que Deus estabeleceu conosco. Em termos cristãos, amamos a Deus porque ele nos amou primeiro e demonstramos esse amor na forma como tratamos os outros (1Jo 4.19-21). A natureza categórica do mandamento de Deus para que amemos nosso próximo significa que Deus deseja que o apliquemos em todos os lugares, independentemente de nos encontrarmos em uma igreja, café, casa, local público ou ambiente de trabalho.

O papel da lei para os cristãos (Êxodo 20.1—24.18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Pode ser um desafio para um cristão extrair uma ideia de um versículo do livro de Êxodo ou, especialmente, de Levítico, e depois sugerir como essa lição deve ser aplicada hoje. Qualquer um que tente isso deve estar preparado para a resposta: “Claro, mas a Bíblia também permite a escravidão e diz que não podemos comer bacon ou camarão! Além disso, acho que Deus realmente não se importa se minhas roupas são de uma mistura de algodão e poliéster” (Êx 21.2-11; Lv 11.7,12; 19.19, respectivamente). Visto que isso acontece até mesmo dentro dos círculos cristãos, não devemos nos surpreender se encontrarmos dificuldades para aplicar a Bíblia ao tema do trabalho na esfera pública. Como podemos saber o que se aplica hoje e o que não se aplica? Como evitamos a acusação de inconsistência no modo como lidamos com a Bíblia? Mais importante ainda, como permitimos que a palavra de Deus realmente nos transforme em todas as áreas da vida? A diversidade de leis em Êxodo e no Pentateuco apresenta um tipo de desafio. Outro vem da variedade de maneiras pelas quais os cristãos entendem e aplicam a Torá e o Antigo Testamento em relação a Cristo e ao Novo Testamento. Ainda assim, a questão da Torá no cristianismo é crucial e deve ser abordada para que possamos extrair algo sobre o que essa parte da Bíblia diz sobre nosso trabalho. O breve tratamento a seguir pretende ser útil sem ser excessivamente estreito.

A relação do Novo Testamento com a lei é complexa. Inclui tanto a declaração de Jesus de que “de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço” (Mt 5.18) e a declaração de Paulo de que “fomos libertados da Lei, para que sirvamos conforme o novo modo do Espírito, e não segundo a velha forma da Lei escrita” (Rm 7.6). Essas não são duas declarações opostas, mas duas maneiras de dizer uma realidade comum — que a Torá continua a revelar o dom de justiça, sabedoria e transformação interior de Deus para aqueles que ele trouxe para uma nova vida em Cristo. Deus deu a Torá como expressão de sua natureza sagrada e como consequência de sua grande libertação. A leitura da Torá nos torna conscientes de nossa pecaminosidade inerente e de nossa necessidade de um remédio para vivermos em paz com Deus e uns com os outros. Deus espera que seu povo obedeça às suas instruções, aplicando-as a questões reais da vida, grandes e pequenas. A natureza específica de algumas leis não significa que Deus seja um perfeccionista irrealista. Essas leis nos ajudam a entender que nenhum problema que enfrentamos é pequeno ou insignificante demais para Deus. Mesmo assim, a Torá não se refere apenas ao comportamento exterior, pois aborda questões do coração, como a cobiça (Êx 20.17). Mais tarde, Jesus condenaria não apenas o assassinato e o adultério, mas também as raízes da ira e da luxúria (Mt 5.22,28).

No entanto, obedecer à Torá aplicando-a às questões reais da vida hoje não equivale a repetir as ações que Israel executou há milhares de anos. Já no Antigo Testamento vemos indícios de que algumas partes da lei não pretendiam ser permanentes. O tabernáculo certamente não era uma estrutura permanente e até o templo foi demolido pelas mãos dos inimigos de Israel (2Rs 25.9). No entanto, Jesus falou de sua própria morte e ressurreição sacrificial, quando disse que ergueria o “templo” destruído em três dias (Jo 2.19). Em um sentido importante, ele encarnava tudo o que o templo, seu sacerdócio e suas atividades representavam. A declaração de Jesus sobre a comida — que não é o que entra nas pessoas que as torna impuras — significava que as leis alimentares específicas da aliança mosaica não estavam mais em vigor (Mc 7.19). [1] Além disso, no Novo Testamento, o povo de Deus vive em vários países e culturas ao redor do mundo, onde não há autoridade legal para aplicar as sanções da Torá. Os apóstolos consideraram essas questões e, sob a orientação do Espírito Santo, decidiram que os detalhes da lei judaica não se aplicavam, em geral, aos cristãos gentios (At 15.28-29).

Quando perguntado sobre quais mandamentos eram mais importantes, a resposta de Jesus não foi controversa à luz da teologia de seu tempo. “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças” e “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Mc 12.30-31). [2]

Muito no Novo Testamento confirma a Torá, não apenas em seus mandamentos negativos contra adultério, assassinato, roubo e cobiça, mas também em seu mandamento positivo de amar uns aos outros (Rm 13.8-10; Gl 5.14). De acordo com Timothy Keller: “A vinda de Cristo mudou a forma como adoramos, mas não a forma como vivemos”. [3] Isso não causa surpresa, visto que, na nova aliança, Deus disse que colocaria sua lei dentro de seu povo e a escreveria em seu coração (Jr 31.33; Lc 22.20). A fidelidade de Israel às leis da aliança mosaica dependia de sua determinação em obedecer a elas. No final, somente Jesus poderia fazer isso. Por outro lado, os crentes da nova aliança não agem dessa maneira. De acordo com Paulo, nós servimos “conforme o novo modo do Espírito” (Rm 7.6).

Para nossos propósitos ao considerar a teologia do trabalho, a explicação anterior sugere vários pontos que podem nos ajudar a entender e aplicar as leis de Êxodo relacionadas ao ambiente de trabalho. As leis específicas que se referem ao tratamento adequado de trabalhadores, animais e propriedades expressam valores permanentes da própria natureza de Deus. Elas devem ser levadas a sério, mas não de forma servil. Por um lado, os itens dos Dez Mandamentos são redigidos em termos gerais e podem ser aplicados livremente em contextos variados. Por outro lado, leis específicas sobre servos, gado e danos pessoais exemplificam aplicações no contexto histórico e social específico do antigo Israel, especialmente em áreas que eram controversas na época. Essas leis são ilustrativas do comportamento correto, mas não esgotam todas as aplicações possíveis. Como cristãos, honramos a Deus e sua lei não apenas regulando nosso comportamento, mas também permitindo que o Espírito Santo transforme nossas atitudes, motivações e desejos (Rm 12.1-2). Fazer qualquer coisa menos do que isso equivaleria a evitar a obra e a vontade de nosso Senhor e Salvador. Os cristãos devem sempre buscar como o amor pode guiar nossas políticas e comportamentos.

Instruções sobre o trabalho (Êxodo 20.1-17 e 21.1—23.9)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O “Livro da Aliança” de Israel (Êx 24.7) incluía os Dez Mandamentos, também conhecidos como Decálogo (literalmente, as “palavras”, Êx. 20.1-17), e as ordenanças de Êxodo 21.1—23.19 . Os Dez Mandamentos são redigidos como mandamentos gerais para fazer ou não fazer algo. As ordenanças são uma coleção de jurisprudências, que aplicam os valores do Decálogo a situações específicas, usando um formato “Se... então...”. Essas leis se encaixam no mundo social e econômico do antigo Israel. Elas não são um código legal exaustivo, mas funcionam como exemplos, servindo para coibir os piores excessos e estabelecendo precedentes legais para lidar com casos difíceis. [1]

Os Dez Mandamentos (Êxodo 20.1-17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os Dez Mandamentos são a expressão suprema da vontade de Deus no Antigo Testamento e merecem nossa atenção. Eles devem ser considerados não como os dez mandamentos mais importantes entre centenas de outros, mas como um resumo de toda a Torá. O fundamento de toda a Torá repousa nos Dez Mandamentos, e em algum lugar dentro deles devemos ser capazes de encontrar toda a lei. Jesus expressou a unidade essencial dos Dez Mandamentos com o restante da lei, quando resumiu a lei nas famosas palavras: “‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.37-40). Toda a lei, assim como os profetas, é indicada sempre que os Dez Mandamentos são expressos.

A unidade essencial dos Dez Mandamentos com o restante da lei e sua continuidade com o Novo Testamento nos convida a aplicá-los ao trabalho de hoje de maneira ampla, à luz do restante das Escrituras. Ou seja, ao aplicar os Dez Mandamentos, levaremos em consideração passagens das Escrituras relacionadas, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.

“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3)
Voltar ao índice Voltar ao índice

O primeiro mandamento nos lembra que tudo na Torá flui do amor que temos por Deus, o que, por sua vez, é uma resposta ao amor que ele tem por nós. Este amor foi demonstrado pela de Israel operada por Deus “da terra da escravidão” no Egito (Êx 20.2). Nada na vida deve nos preocupar mais do que nosso desejo de amar e ser amado por Deus. Se nós tivermos alguma outra preocupação mais forte em relação a nós do que nosso amor por Deus, não significa tanto que estarmos quebrando as regras de Deus, mas sim que não estamos realmente em um relacionamento com Deus. A outra preocupação — seja dinheiro, poder, segurança, reconhecimento, sexo ou qualquer outra coisa — tornou-se nosso deus. Esse deus terá seus próprios mandamentos em desacordo com os de Deus, e inevitavelmente violaremos a Torá se cumprirmos as exigências desse deus. A observância dos Dez Mandamentos só é concebível para aqueles que começam não tendo outro deus além de Deus.

No campo do trabalho, isso significa que não devemos permitir que o trabalho ou seus requisitos e frutos substituam Deus como nossa preocupação mais importante na vida. “Nunca permita que alguém ou alguma coisa ameace o lugar central de Deus em sua vida”, como diz David Gill. [1] Como muitas pessoas trabalham principalmente para ganhar dinheiro, um desejo excessivo por dinheiro provavelmente seja o perigo mais comum do trabalho em relação ao primeiro mandamento. Jesus advertiu exatamente sobre esse perigo. “Ninguém pode servir a dois senhores... Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6.24). Mas quase tudo relacionado ao trabalho pode se tornar distorcido em nossos desejos, a ponto de interferir em nosso amor por Deus. Quantas carreiras chegam a um fim trágico porque os meios para realizar coisas pelo amor de Deus — como poder político, sustentabilidade financeira, compromisso com o trabalho, status entre colegas ou desempenho superior — tornam-se um fim em si mesmos? Quando, por exemplo, o reconhecimento no trabalho se torna mais importante do que o caráter no trabalho, não é um sinal de que a reputação está substituindo o amor de Deus como a preocupação principal?

Uma maneira prática de avaliação é perguntar se nosso amor a Deus é demonstrado pela maneira como tratamos as pessoas no trabalho. “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão’ (1Jo 4.20-21). Se colocarmos nossas preocupações individuais à frente de nossas preocupações com as pessoas com quem, para quem e entre quem trabalhamos, tornamos nossas preocupações individuais nosso deus. Em particular, se tratarmos as outras pessoas como coisas a serem manipuladas, obstáculos a serem superados, instrumentos para obter o que queremos ou simplesmente objetos neutros em nosso campo de visão, demonstraremos que não amamos a Deus de todo o nosso coração, alma e mente.

Nesse contexto, podemos começar a listar algumas ações relacionadas ao trabalho que têm alto potencial de interferir em nosso amor por Deus. Fazer um trabalho que viola nossa consciência. Trabalhar em uma organização em que temos de prejudicar os outros para ter sucesso. Trabalhar tantas horas que temos pouco tempo para orar, adorar, descansar e aprofundar nosso relacionamento com Deus. Trabalhar entre pessoas que nos desmoralizam ou nos seduzem para longe de nosso amor por Deus. Trabalhar onde o álcool, o abuso de drogas, a violência, o assédio sexual, a corrupção, o desrespeito, o racismo ou outros tratamentos desumanos arruínam a imagem de Deus em nós e nas pessoas que encontramos em nosso trabalho. Se pudermos encontrar maneiras de evitar esses perigos no trabalho — mesmo que isso signifique encontrar um novo emprego — seria sábio fazê-lo. Se isso não for possível, podemos pelo menos estar cientes de que precisamos de ajuda e apoio para manter nosso amor a Deus diante de nosso trabalho.

“Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4)
Voltar ao índice Voltar ao índice

O segundo mandamento levanta a questão da idolatria. Ídolos são deuses que nós mesmos criamos, deuses que nada têm em si próprios a não ser o que nós mesmos criamos, deuses sobre os quais pensamos ter controle. Nos tempos antigos, a idolatria muitas vezes assumia a forma de adoração a objetos físicos. Mas a questão é realmente de confiança e devoção. Em última análise, em que depositamos nossa esperança de bem-estar e sucesso? Qualquer coisa que não seja capaz de cumprir nossa esperança — ou seja, qualquer coisa que não seja Deus — é um ídolo, seja ou não um objeto físico. A história de uma família que forja um ídolo com a intenção de manipular Deus, bem como as desastrosas consequências pessoais, sociais e econômicas que se seguem, são memoravelmente contadas em Juízes 17—21.

No mundo do trabalho, é comum falar em dinheiro, fama e poder como ídolos em potencial, e com razão. Eles não são ídolos em si e, de fato, podem ser necessários para cumprirmos nossos papéis na obra criadora e redentora de Deus no mundo. No entanto, começamos a cair na idolatria quando imaginamos que temos total controle sobre eles, ou que, ao alcançá-los, nossa segurança e prosperidade serão garantidas. O mesmo pode ocorrer com praticamente todos os outros elementos do sucesso, incluindo preparação, trabalho árduo, criatividade, risco, riqueza e outros recursos e circunstâncias favoráveis. Como trabalhadores, temos de reconhecer o quanto isso é importante. Como povo de Deus, devemos reconhecer quando começamos a idolatrá-los. Pela graça de Deus, podemos vencer a tentação de adorar essas coisas no lugar de Deus. O desenvolvimento de sabedoria e habilidade genuinamente piedosas para qualquer tarefa é “para que você confie no Senhor” (Pv 22.19; grifo do autor).

O elemento distintivo da idolatria é a natureza humana do ídolo. No trabalho, surge o perigo de idolatria quando confundimos nosso poder, nosso conhecimento e nossas opiniões com a realidade. Quando paramos de nos responsabilizar pelos padrões que estabelecemos para os outros, deixamos de ouvir as ideias dos outros ou procuramos esmagar aqueles que discordam de nós, não estamos começando a nos tornar ídolos?

“Não tomarás em vão o nome do SENHOR, o teu Deus” (Êxodo 20.7)
Voltar ao índice Voltar ao índice

O terceiro mandamento literalmente proíbe o povo de Deus de tomar “em vão” o nome de Deus. Isso não precisa se restringir ao nome “YHWH” (Êx 3.15), mas inclui “Deus”, “Jesus”, “Cristo” e assim por diante. Mas o que significa tomar em vão? Isso inclui, é claro, o uso desrespeitoso para xingar, caluniar e blasfemar. Mas, mais significativamente, inclui atribuir falsamente desígnios humanos a Deus. Isso nos proíbe de reivindicar a autoridade de Deus para nossas próprias ações e decisões. Lamentavelmente, alguns cristãos parecem acreditar que seguir a Deus no trabalho consiste principalmente em falar por Deus com base em seu entendimento individual, em vez de trabalhar respeitosamente com os outros ou assumir a responsabilidade por suas ações. “A vontade de Deus é que…” ou “Deus está punindo você por…” são coisas muito perigosas de se dizer e quase nunca válidas quando ditas por um indivíduo sem o discernimento da comunidade de fé (1Ts 5.20-21). À luz disso, talvez a tradicional reticência dos judeus em proferir até mesmo o termo traduzido por “Deus” — sem falar do próprio nome divino — demonstre uma sabedoria que os cristãos muitas vezes carecem. Se fôssemos um pouco mais cuidadosos ao usar a palavra “Deus”, talvez fôssemos mais criteriosos ao afirmar que conhecemos a vontade de Deus, especialmente no que se refere a outras pessoas.

O terceiro mandamento também nos lembra que respeitar os nomes humanos é importante para Deus. O Bom Pastor “chama as ovelhas pelo nome” (Jo 10.3), enquanto nos adverte que, se você chamar outra pessoa de louco (ou “tolo”, NAA), então “corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.22). Tendo isso em mente, não devemos fazer uso indevido do nome de outras pessoas ou chamá-las por apelidos desrespeitosos. Usamos o nome das pessoas de forma errada quando o fazemos para amaldiçoar, humilhar, oprimir, excluir e fraudar. Usamos bem o nome das pessoas quando o fazemos para encorajar, agradecer, demonstrar solidariedade e acolher. Simplesmente aprender e dizer o nome de alguém é uma bênção, especialmente se essa pessoa é frequentemente tratada como alguém sem nome, invisível ou insignificante. Você sabe o nome da pessoa que esvazia sua lixeira, atende sua ligação telefônica ou dirige seu ônibus? Se esses exemplos não dizem respeito ao próprio nome do Senhor, eles dizem respeito ao nome daqueles que foram feitos à sua imagem.

“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias” (Êxodo 20.8-11)
Voltar ao índice Voltar ao índice

A questão do sábado é complexa, não apenas no livro de Êxodo e no Antigo Testamento, mas também na teologia e na prática cristãs. A primeira parte do mandamento exige que se pare de trabalhar um dia a cada sete. As outras referências em Êxodo ao sábado estão em Êxodo 16 (sobre colher maná), Êxodo 23.10-12 (o sétimo ano e a meta de descanso semanal), Êxodo 31.12-17 (pena por violação), Êxodo 34.21 e Êxodo 35.1-3. No contexto do mundo antigo, o sábado era exclusivo de Israel. Por um lado, esse foi um presente incomparável para o povo de Israel. Nenhum outro povo antigo teve o privilégio de descansar um dia em cada sete. Por outro lado, exigia uma confiança extraordinária na provisão de Deus. Seis dias de trabalho tinham de ser suficientes para plantar, colher, carregar água, fiar e tirar o sustento da criação. Enquanto Israel descansava um dia por semana, as nações ao redor continuaram a forjar espadas, preparar flechas e treinar soldados. Israel tinha de confiar em Deus para não deixar que um dia de descanso levasse a uma catástrofe econômica e militar.

Enfrentamos a mesma questão de confiança na provisão de Deus hoje. Se obedecermos ao mandamento de Deus de observar o próprio ciclo de trabalho e descanso de Deus, seremos capazes de competir na economia moderna? São necessários sete dias de trabalho para ter um emprego (ou dois ou três empregos), limpar a casa, preparar as refeições, cortar a grama, lavar o carro, pagar as contas, terminar os trabalhos da escola e comprar roupas? Ou podemos confiar em Deus para nos sustentar, mesmo que tiremos um dia de folga durante o curso de cada semana? Podemos reservar um tempo para adorar a Deus, orar e nos reunir com outras pessoas para estudo e encorajamento e, se o fizermos, isso nos tornará mais ou menos produtivos em geral? O quarto mandamento não explica como Deus fará com que tudo dê certo para nós. Ela simplesmente nos diz para descansar um dia a cada sete.

Os cristãos traduziram o dia de descanso como o Dia do Senhor (domingo, o dia da ressurreição de Cristo), mas a essência do sábado não é escolher um dia específico da semana em detrimento de outro (Rm 14.5-6). A polaridade que realmente está na base do sábado é trabalhar e descansar. Tanto o trabalho quanto o descanso estão incluídos no quarto mandamento. Os seis dias de trabalho fazem parte do mandamento tanto quanto o dia de descanso. Embora muitos cristãos corram o risco de permitir que o trabalho esmague o tempo reservado para o descanso, outros correm o risco de evitar o trabalho e tentar levar uma vida de lazer e dissolução. Isso é ainda pior do que negligenciar o sábado, pois “se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1Tm 5.8). O que precisamos é de um ritmo adequado de trabalho e descanso, que, juntos, sejam bons para nós, nossa família, nossos funcionários e nossos hóspedes. O ritmo pode ou não incluir vinte e quatro horas contínuas de descanso, caindo no domingo (ou sábado). As proporções podem mudar devido a necessidades temporárias (o equivalente moderno de tirar um boi do poço no sábado, veja Lc 14.5) ou a necessidades mutáveis ​​das fases da vida.

Se o excesso de trabalho é o nosso principal perigo, precisamos encontrar uma maneira de honrar o quarto mandamento sem instituir um novo e falso legalismo que oponha o espiritual (adoração no domingo) contra o secular (trabalho de segunda a sábado). Se evitar o trabalho é o nosso perigo, precisamos aprender a encontrar alegria e significado em trabalhar como um serviço a Deus e ao próximo (Ef 4.28).

“Honra teu pai e tua mãe” (Êxodo 20.12)
Voltar ao índice Voltar ao índice

Há muitas maneiras de honrar — ou desonrar — seu pai e sua mãe. Nos dias de Jesus, os fariseus queriam restringir isso a falar bem deles. Mas Jesus salientou que obedecer a esse mandamento inclui trabalhar para sustentar seus pais (Mc 7.9-13). Honramos as pessoas trabalhando para o bem delas.

Para muitas pessoas, um bom relacionamento com os pais é uma das alegrias da vida. Servir com amor a eles é um deleite, e obedecer a esse mandamento é fácil. Mas somos postos à prova por esse mandamento quando achamos difícil trabalhar em favor de nossos pais. Podemos ter sido maltratados ou negligenciados por eles. Eles podem ser controladores e intrometidos. Estar perto deles pode minar nosso senso de identidade, nosso compromisso com nosso cônjuge (incluindo nossas responsabilidades sob o terceiro mandamento) e até mesmo nosso relacionamento com Deus. Mesmo que tenhamos um bom relacionamento com nossos pais, pode chegar um momento em que cuidar deles seja um grande fardo, simplesmente por causa do tempo e do trabalho que isso exige. Se o envelhecimento ou a demência começarem a roubar sua memória, suas capacidades e sua boa índole, cuidar deles pode se tornar uma profunda tristeza.

No entanto, o quinto mandamento vem com uma promessa: “a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Êx 20.12). De alguma forma, honrar nosso pai e nossa mãe de maneira prática tem o benefício prático de nos dar uma vida mais longa (talvez no sentido de mais realização) no Reino de Deus. Não nos é dito como isso ocorrerá, mas somos instruídos a esperar por isso e, para tanto, devemos confiar em Deus (veja o primeiro mandamento).

Como essa é uma ordem para trabalhar em benefício dos pais, é inerentemente uma ordem do ambiente de trabalho. O ambiente de trabalho pode ser onde ganhamos recursos para sustentá-los ou pode ser onde os ajudamos nas tarefas da vida cotidiana. Ambos são trabalho. Quando aceitamos um emprego porque ele nos permite viver perto deles, enviamos dinheiro para eles, fazemos uso dos valores e dons que eles desenvolveram em nós ou ainda fazemos coisas que eles nos ensinaram como sendo importantes, então estamos honrando-os. Quando nós limitamos nossas carreiras para que possamos estar presentes com eles, limpar e cozinhar para eles, dar-lhes banho e abraçá-los, levá-los aos lugares de que gostam ou diminuir seus medos, estamos honrando-os.

Também devemos reconhecer que, em muitas culturas, o trabalho que as pessoas fazem é ditado pelas escolhas de seus pais e pelas necessidades de suas famílias, e não por suas próprias decisões e preferências. Às vezes, isso dá origem a sérios conflitos para os cristãos, que encontram as exigências do primeiro mandamento (seguir o chamado de Deus) e do quinto mandamento competindo entre si. Eles se veem forçados a fazer escolhas difíceis que os pais não entendem. Mesmo Jesus experimentou esse mal-entendido com os pais quando Maria e José não conseguiram entender por que ele permaneceu no templo enquanto sua família partia de Jerusalém (Lc 2.49).

Em nosso ambiente de trabalho, podemos ajudar outras pessoas a cumprir o quinto mandamento, assim como nós mesmos obedecemos. Podemos lembrar que funcionários, clientes, colegas de trabalho, chefes, fornecedores e outros também têm família e, então, podemos ajustar nossas expectativas para apoiá-los a honrar suas famílias. Quando outras pessoas compartilham ou reclamam sobre suas dificuldades com os pais, podemos ouvi-las com compaixão, apoiá-las de forma prática (por exemplo, oferecendo-se para fazer um turno no trabalho para que elas possam estar com os pais), talvez oferecer uma perspectiva piedosa para que considerem, ou simplesmente refletir a graça de Cristo para aqueles que sentem estar falhando em seus relacionamentos entre pais e filhos.

“Não matarás” (Êxodo 20.13)
Voltar ao índice Voltar ao índice

Infelizmente, o sexto mandamento tem uma aplicação muito prática no ambiente de trabalho moderno, onde 10% de todas as mortes relacionadas ao trabalho (nos Estados Unidos) são homicídios. [1] No entanto, admoestar os leitores deste artigo para que “não mate ninguém no trabalho”, provavelmente não mudará muito essa estatística.

Mas o assassinato não é a única forma de violência no ambiente de trabalho, apenas a mais extrema. Jesus disse que até mesmo a ira é uma violação do sexto mandamento (Mt 5.21-22). Como Paulo observou, podemos não ser capazes de evitar o sentimento de raiva, mas podemos aprender a lidar com ele. “Quando vocês ficarem irados, não pequem. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha” (Ef 4.26). A implicação mais significativa do sexto mandamento para o trabalho, então, pode ser: “Se você ficar com raiva no trabalho, procure ajuda para controlar a raiva”. Muitos empregadores, igrejas, entidades governamentais e organizações sem fins lucrativos oferecem aulas e aconselhamento sobre controle da raiva, e aproveitá-las pode ser uma maneira altamente eficaz de obedecer ao sexto mandamento.

Assassinato é homicídio intencional, mas a jurisprudência que decorre do sexto mandamento mostra que também temos o dever de evitar mortes não intencionais. Um caso que serve de ilustração é quando um boi (um animal de trabalho) chifra um homem ou uma mulher até a morte (Êx 21.28-29). Se o evento era previsível, o dono do boi deve ser tratado como um assassino. Em outras palavras, os proprietários/gerentes são responsáveis ​​por garantir a segurança no ambiente de trabalho dentro do razoável. Esse princípio está bem estabelecido na lei na maioria dos países, e a segurança no ambiente de trabalho é objeto de atenção significativa do governo, da autorregulamentação do setor e de políticas e práticas organizacionais. No entanto, ambientes de trabalho de todos os tipos continuam a exigir ou permitir que as pessoas trabalhem em condições desnecessariamente inseguras. Os cristãos que de alguma maneira ajudam a estabelecer as condições de trabalho, supervisionar os trabalhadores ou modelar as práticas no ambiente de trabalho são lembrados pelo sexto mandamento de que condições seguras de trabalho estão entre suas maiores responsabilidades no mundo do trabalho.

“Não adulterarás” (Êxodo 20.14)
Voltar ao índice Voltar ao índice

O ambiente de trabalho é um dos ambientes mais comuns de adultério, não necessariamente porque o adultério ocorre no próprio ambiente de trabalho, mas porque surge das condições de trabalho e do relacionamento com colegas de trabalho. A primeira aplicação ao ambiente de trabalho, então, é literal. As pessoas casadas não devem fazer sexo com pessoas que não sejam seus cônjuges, no trabalho ou por causa de seu trabalho. Obviamente, isso exclui profissões ligadas ao sexo, como prostituição, pornografia e barriga de aluguel, pelo menos na maioria dos casos, na medida em que os trabalhadores tenham escolha. Mas qualquer tipo de trabalho que corroa os laços do casamento infringe o sétimo mandamento. Existem muitas maneiras pelas quais isso pode ocorrer. Um trabalho que incentiva fortes laços afetivos entre colegas de trabalho, sem apoiar adequadamente seus compromissos com os cônjuges, como pode acontecer em hospitais, empreendimentos, instituições acadêmicas e igrejas, entre outros lugares. Condições de trabalho que colocam as pessoas em contato físico próximo por períodos prolongados ou que não incentivam limites razoáveis ​​para encontros fora do expediente, como pode acontecer em tarefas de campo prolongadas. O trabalho pode sujeitar as pessoas a assédio sexual e a pressão para fazer sexo com aqueles que detêm poder sobre elas. O trabalho pode inflar o ego das pessoas ou expô-las à bajulação, como pode ocorrer com celebridades, atletas famosos, gurus dos negócios, altos funcionários do governo e os super-ricos. O trabalho pode exigir tanto tempo longe — física, mental ou emocionalmente — que desgasta os laços entre os cônjuges. Tudo isso pode representar perigos que os cristãos fariam bem em reconhecer e evitar, melhorar ou resguardar-se. No entanto, a seriedade do sétimo mandamento surge não tanto porque o adultério é sexo ilícito, mas porque quebra uma aliança ordenada por Deus. Deus criou marido e mulher para se tornarem “uma só carne” (Gn 2.24), e o comentário de Jesus sobre o sétimo mandamento destaca o papel de Deus na aliança matrimonial. “O que Deus uniu, ninguém separe” (Mt 19.6). Cometer adultério, portanto, não é apenas fazer sexo com alguém que você não deveria, mas também quebrar uma aliança com o Senhor Deus. De fato, o Antigo Testamento frequentemente usa a palavra adultério e as imagens que o cercam para se referir não ao pecado sexual, mas à idolatria. Os profetas frequentemente se referem à infidelidade de Israel à sua aliança de adorar somente a Deus como “adultério” ou “prostituição”, como se vê em Isaías 57.3, Jeremias 3.8, Ezequiel 16.38 e Oseias 2.2, entre muitos outros. Portanto, qualquer quebra de fé com o Deus de Israel é figurativamente adultério, quer envolva sexo ilícito ou não. Esse uso do termo “adultério” une o primeiro, o segundo e o sétimo mandamentos e nos lembra que os Dez Mandamentos são expressões de uma única aliança com Deus, e não algum tipo de lista das dez principais regras.

Portanto, o trabalho que exige ou nos leva à idolatria ou à adoração de outros deuses deve ser evitado. É difícil imaginar como um cristão poderia trabalhar como tarólogo, criador de arte ou música idólatra ou editor de livros blasfemos. Atores cristãos podem achar difícil desempenhar papéis profanos, irreligiosos ou espiritualmente desmoralizantes. Tudo o que fazemos na vida, incluindo o trabalho, tende, em algum grau, a melhorar ou diminuir nosso relacionamento com Deus. Ao longo da vida, o estresse constante do trabalho, que nos diminui espiritualmente, pode ser devastador. É um fator que faríamos bem em incluir em nossas decisões de carreira, na medida em que tivermos escolhas.

O aspecto distintivo das alianças violadas pelo adultério é que elas são alianças com Deus. Mas toda promessa ou acordo feito por um cristão não é implicitamente uma aliança com Deus? Paulo nos exorta: “Tudo o que fizerem, seja em palavra ou em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus” (Cl 3.17). Contratos, promessas e acordos são certamente coisas que fazemos em palavras ou atos, ou ambos. Se fizermos todas elas em nome do Senhor Jesus, isso não significa que algumas promessas devam ser honradas porque são alianças com Deus, enquanto outras podem ser quebradas porque são apenas humanas. Devemos honrar todos os nossos acordos e evitar induzir outras pessoas a quebrá-los. Se isso está contido em Êxodo 20.14 em si mesmo ou se está exposto nos ensinamentos do Antigo e do Novo Testamento que dela derivam, a afirmação “Guarde as suas promessas e ajude os outros a cumprir as deles” pode servir como uma excelente derivação do sétimo mandamento no mundo do trabalho.

“Não furtarás” (Êxodo 20.15)
Voltar ao índice Voltar ao índice

O oitavo mandamento é outro que tem o trabalho como seu assunto principal. Roubar é uma violação do trabalho adequado, porque priva a vítima dos frutos de seu trabalho. Também é uma violação do mandamento de trabalhar seis dias por semana, já que, na maioria dos casos, o roubo é um atalho para o trabalho honesto, o que mostra novamente a inter-relação dos Dez Mandamentos. Portanto, podemos tomar como palavra de Deus que não devemos roubar daqueles para quem, com quem ou entre quem trabalhamos.

O furto ocorre de muitas formas, além do roubo propriamente dito. Sempre que nos apossamos de algo de valor sem consentimento de seu legítimo dono, estamos cometendo um roubo. Apropriar-se indevidamente de recursos ou fundos para uso pessoal é roubar. Usar o engano para fazer vendas, ganhar participação no mercado ou aumentar os preços é roubar, porque o engano significa que o que o comprador consente não é a situação real. (Veja a seção sobre “Exagero” em Verdade e Engano em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.) Da mesma forma, lucrar tirando vantagem do medo, vulnerabilidade, impotência ou desespero das pessoas é uma forma de roubo, porque seu consentimento não é verdadeiramente voluntário. Violar patentes, direitos autorais e outras leis de propriedade intelectual é roubar porque priva os proprietários da capacidade de lucrar com sua criação, nos termos da lei civil.

Lamentavelmente, muitos trabalhos parecem incluir um elemento de aproveitar-se da ignorância dos outros ou da falta de alternativas para forçá-los a fazer transações com as quais, de outra forma, não concordariam. Empresas, governos, indivíduos, sindicatos e outros podem usar seu poder para coagir outras pessoas a pagar salários, preços, termos financeiros, condições de trabalho, horários ou outros fatores injustos. Podemos até não estar roubando bancos, roubando de nossos empregadores ou furtando lojas, mas muito provavelmente podemos estar participando de práticas injustas ou antiéticas que privam outras pessoas de certos direitos que deveriam ser delas. Resistir a essas práticas pode ser difícil e até mesmo trazer consequências para nossa carreira, mas, mesmo assim, somos chamados a agir assim.

“Não darás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20.16)
Voltar ao índice Voltar ao índice

O nono mandamento honra o direito à própria reputação. [1] Ele encontra aplicação direta em processos judiciais em que o que as pessoas dizem retrata a realidade e determina o curso da vida. Decisões judiciais e outros processos legais exercem grande poder. Manipulá-los mina o tecido ético da sociedade e, portanto, constitui uma ofensa muito grave. Walter Brueggemann diz que esse mandamento reconhece “que a vida em comunidade não é possível, a menos que haja uma arena na qual haja confiança pública de que a realidade social será descrita e relatada de forma confiável”. [2]

Embora afirmado na linguagem do tribunal, o nono mandamento também se aplica a uma ampla gama de situações que afetam praticamente todos os aspectos da vida. Nunca devemos dizer ou fazer algo que desvirtue outra pessoa. Brueggemann novamente fornece uma visão:

Os políticos procuram destruir uns aos outros em campanhas negativas; colunistas de fofocas se alimentam de calúnias; e nas salas de estar cristãs, reputações são manchadas ou destruídas enquanto o café é servido em porcelana fina com a sobremesa. Esses tribunais informais são conduzidos sem o devido processo legal. Acusações são feitas; boatos são permitidos; difamações, perjúrios e comentários caluniosos são proferidos sem objeção. Sem provas, sem defesa. Como cristãos, devemos nos recusar a participar ou a tolerar qualquer conversa em que uma pessoa esteja sendo difamada ou acusada sem que a pessoa esteja presente para se defender. É errado transmitir boatos de qualquer forma, mesmo como pedidos de oração ou preocupações pastorais. Mais do que simplesmente não participar, cabe aos cristãos impedir os rumores e aqueles que os espalham. [3]

Isso sugere ainda que a fofoca no ambiente de trabalho é uma ofensa grave. Parte disso diz respeito a assuntos pessoais e externos, o que é bastante maligno. E quanto aos casos em que um funcionário mancha a reputação de um colega de trabalho? A verdade pode realmente ser dita quando aqueles de quem se fala não estão lá para falar por si mesmos? E as avaliações de desempenho? Que medidas devem ser adotadas para garantir que os relatórios sejam justos e precisos? Em larga escala, o negócio de marketing e propaganda opera no espaço público entre organizações e indivíduos. No interesse de apresentar os próprios produtos e serviços da melhor maneira possível, até que ponto se pode apontar as falhas e fraquezas da concorrência, sem incorporar sua perspectiva? É possível que os direitos do seu “próximo” incluam os direitos de outras empresas? O escopo de nossa economia global sugere que esse mandamento pode ter uma aplicação muito ampla. Em um mundo em que a percepção muitas vezes conta para a realidade, a retórica da persuasão eficaz pode ou não ter muito a ver com a verdade genuína. A origem divina desse mandamento nos lembra de que as pessoas podem não ser capazes de detectar quando nossa representação dos outros é precisa ou não, mas Deus não pode ser enganado. É bom fazer a coisa certa quando ninguém está olhando. Com este mandamento, entendemos que devemos dizer a coisa certa quando qualquer um está ouvindo.

(Veja Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org para uma discussão muito mais completa desse tópico, incluindo se a proibição de “falso testemunho contra o próximo” inclui todas as formas de mentira e engano.)

“Não cobiçarás a casa do teu próximo [...] nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20.17)
Voltar ao índice Voltar ao índice

A inveja e a ganância podem surgir em qualquer lugar da vida, inclusive no trabalho, onde status, salário e poder são fatores rotineiros em nossos relacionamentos com as pessoas com quem passamos muito tempo. Podemos ter muitos bons motivos para desejar realizações, promoções ou recompensas no trabalho. Mas a inveja não é um deles, assim como não um bom motivo é trabalhar obsessivamente por inveja da posição social que isso pode possibilitar.

Em particular, enfrentamos no trabalho a tentação de inflar falsamente nossas realizações às custas dos outros. O antídoto é simples, embora às vezes difícil de fazer. Torne uma prática consistente reconhecer as realizações dos outros e dar a eles todo o crédito que merecem. Se pudermos aprender a nos alegrar com — ou pelo menos reconhecer — os sucessos dos outros, cortaremos a força vital da inveja e da cobiça em ação. Melhor ainda, se pudermos aprender a trabalhar para que nosso sucesso ande de mãos dadas com o sucesso dos outros, a cobiça será substituída pela colaboração e a inveja, pela unidade.

Leith Anderson, ex-pastor da Wooddale Church, em Eden Prairie, Minnesota, diz: “Como pastor titular, é como se eu tivesse um suprimento ilimitado de moedas no bolso. Sempre que dou crédito a um membro da equipe por uma boa ideia, elogio o trabalho de um voluntário ou agradeço a alguém, é como se estivesse enfiando uma moeda do meu bolso no dele. Esse é o meu trabalho como líder, passar moedas do meu bolso para o bolso dos outros, para aumentar o apreço que outras pessoas têm por elas.” [1]

Veja “De uma atitude de descontentamento ao contentamento”, em Visão geral de provisão e riqueza em www.teologiadotrabalho.org.

Jurisprudências no livro da aliança (Êxodo 21.1—23.33)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Segue-se uma coleção de jurisprudências, decorrentes dos Dez Mandamentos. Em vez de desenvolver princípios detalhados, o texto dá exemplos de como aplicar a lei de Deus aos tipos de casos que comumente surgem na conduta da vida diária. Como casos, todos estão inseridos nas situações enfrentadas pelo povo de Israel. De fato, em todo o Pentateuco (a Torá), pode ser difícil separar o que são as leis específicas e o que é a narrativa e a exortação ao redor. Quatro seções da jurisprudência são particularmente aplicáveis ​​ao trabalho hoje.

Escravidão ou contrato de servidão (Êxodo 21.1-11)
Voltar ao índice Voltar ao índice

Embora Deus tenha libertado os hebreus da escravidão no Egito, a escravidão não é universalmente proibida na Bíblia. A escravidão era permitida em certas situações, desde que os escravos fossem considerados membros plenos da comunidade (Gn 17.12), recebessem os mesmos períodos de descanso e feriados que os não escravos (Êx 23.12; Dt 5.14-15; 12.12) e fossem tratados com humanidade (Êx 21.7,26-27). Mais importante ainda, a escravidão entre os hebreus não pretendia ser uma condição permanente, mas um refúgio voluntário e temporário para pessoas que sofriam o que, de outra forma, seria uma pobreza desesperada. “Se você comprar um escravo hebreu, ele o servirá por seis anos. Mas no sétimo ano será liberto, sem precisar pagar nada” (Êx 21.2). A crueldade por parte do proprietário resultava em liberdade imediata para o escravo (Êx 21.26-27). Isso tornava a escravidão hebraica masculina mais como um tipo de contrato de trabalho de longo prazo entre indivíduos do que o tipo de exploração permanente que caracterizou a escravidão nos tempos modernos.

A escravidão feminina hebraica era, em certo sentido, ainda mais protetora. O principal propósito contemplado para a compra de uma escrava era que ela pudesse se tornar esposa do comprador ou do filho do comprador (Êx 21.8-9). Como esposa, ela se tornava socialmente igual ao proprietário de escravos, e a compra funcionava muito como a doação de um dote. De fato, ela é até chamada de “esposa” pela lei (Êx 21.10). Além disso, se o comprador deixasse de tratar a escrava com todos os direitos devidos a uma esposa comum, ele era obrigado a libertá-la. “Ela poderá ir embora sem precisar pagar nada” (Êx 21.11). No entanto, em outro sentido, as mulheres tinham muito menos proteção do que os homens. Potencialmente, toda mulher solteira enfrentava a possibilidade de ser vendida para um casamento contra sua vontade. Embora isso a tornasse uma “esposa” em vez de uma “escrava”, será que o casamento forçado era menos questionável do que o trabalho forçado?

Além disso, uma brecha óbvia é que uma menina ou mulher poderia ser comprada como esposa para um escravo, e não para o proprietário do escravo ou o filho. Como resultado, ela seria escrava permanente do proprietário (Êx 21.4), mesmo quando o período de escravidão do marido terminasse. A mulher se tornava escrava permanente de um proprietário que não se tornou seu marido e que não se via obrigado a dar nenhuma das proteções devidas a uma esposa.

A proteção contra a escravidão permanente também não se aplicava a estrangeiros (Lv 25.44-46). Os homens capturados na guerra eram considerados espólio e se tornavam propriedade perpétua de seus donos. Mulheres e meninas capturadas na guerra — que aparentemente eram a grande maioria dos cativos (Nm 31.9-11,32-35; Dt 20.11-14) — enfrentavam a mesma situação que as escravas de origem hebraica (Dt 21.10-14), incluindo a escravidão permanente. Os escravos também podiam ser comprados de nações vizinhas (Ec 2.7), e nada os protegia contra a escravidão perpétua. As outras proteções concedidas aos escravos hebreus se aplicavam aos estrangeiros, mas isso deve ter sido um pequeno consolo para aqueles que enfrentaram uma vida inteira de trabalhos forçados.

Em contraste com a escravidão como se deu nos Estados Unidos, que geralmente proibia o casamento entre escravos, os regulamentos em Êxodo visam preservar as famílias intactas. “Se chegou solteiro, solteiro receberá liberdade; mas se chegou casado, sua mulher irá com ele” (Êx 21.3). No entanto, muitas vezes, como vimos, o resultado real dos regulamentos foi o casamento forçado.

Independentemente de quaisquer proteções oferecidas pela lei, a escravidão não era de forma alguma um modo de vida agradável. Os escravos eram uma propriedade, independentemente da duração de sua escravização. Quaisquer que fossem as regulamentações, na prática provavelmente havia pouca proteção contra maus-tratos, e abusos ocorriam. Como em grande parte da Bíblia, a palavra de Deus em Êxodo não aboliu a ordem social e econômica existente, mas instruiu o povo de Deus a viver com justiça e compaixão em suas circunstâncias atuais. Aos nossos olhos, os resultados parecem — e devem parecer — muito inquietantes.

De qualquer forma, antes de nos tornarmos presunçosos demais, devemos dar uma olhada nas condições de trabalho que prevalecem hoje entre as pessoas pobres em todos os cantos do mundo, incluindo os países desenvolvidos. Labor incessante para aqueles que trabalham em dois ou três empregos para sustentar as famílias, abuso e exercício arbitrário de poder por aqueles que estão no poder e apropriação indevida dos frutos do trabalho por operadores de negócios ilícitos, funcionários corruptos e chefes com conexões políticas. Milhões de pessoas trabalham hoje sem os regulamentos fornecidos pela Lei de Moisés. Se era a vontade de Deus proteger Israel da exploração, mesmo na escravidão, o que Deus espera que os seguidores de Cristo façam por aqueles que sofrem a mesma opressão, ou pior, hoje?

Restituição comercial e Lei do Talião (Êxodo 21.18—22.15)
Voltar ao índice Voltar ao índice

As leis casuísticas estabeleciam penalidades para infrações, incluindo muitas relacionadas diretamente ao comércio, especialmente no caso de responsabilidade por perdas ou danos. A chamada Lei do Talião, que também aparece em Levítico 24.17-21 e Deuteronômio 19.16-21, é central para o conceito de retribuição. [1] Literalmente, a lei diz para pagar “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida e contusão por contusão” (Êx 21.23-25). A lista é notavelmente específica. Quando os juízes de Israel faziam seu trabalho, devemos realmente acreditar que eles aplicavam punições dessa maneira? Será que um queixoso que foi queimado devido à negligência de alguém realmente ficaria satisfeito em ver o ofensor literalmente queimado no mesmo grau? Curiosamente, nesta mesma parte do Êxodo, não vemos a Lei do Talião sendo aplicada dessa maneira. Em vez disso, um homem que fere gravemente outro em uma briga deve pagar pelo tempo perdido da vítima e cobrir suas despesas médicas (Êx 21.18-19). O texto não diz que ele deve ficar parado para receber uma surra pública e comparável de sua ex-vítima. Parece que a Lei do Talião não determinou a penalidade padrão para crimes graves, mas estabeleceu um teto máximo para danos que poderiam ser reivindicados. Gordon Wenham observa: “Nos tempos do Antigo Testamento, não havia polícia ou ministério público, de modo que todo processo e punição tinham de ser realizados pela parte ofendida e sua família. Assim, seria bem possível que as partes lesadas não insistissem em seus plenos direitos sob a Lei do Talião, mas negociasse um acordo mais baixo ou até perdoasse o ofensor por completo”. [2] Essa lei pode ser percebida por alguns hoje como selvagem, mas Alec Motyer observou: “Quando a lei inglesa enforcava uma pessoa por roubar uma ovelha, não era porque o princípio de ‘olho por olho’ estava sendo praticado, mas porque tinha sido esquecido.” [3]

Essa questão de interpretar a Lei do Talião ilustra que pode haver uma diferença entre fazer o que a Bíblia diz literalmente e aplicar o que a Bíblia instrui. Obter uma solução bíblica para nossos problemas nem sempre será uma questão simples. Os cristãos devem usar maturidade e discernimento, especialmente à luz do ensinamento de Jesus, para renunciar à Lei do Talião e não resistir a um malfeitor (Mt 5.38-42). Ele estava falando de uma ética pessoal ou esperava que seus seguidores aplicassem esse princípio nos negócios? Funciona melhor para pequenas ofensas do que para grandes? Aqueles que fazem o mal criam vítimas que devemos defender e proteger (Pv 31.9).

As instruções específicas sobre restituição e penalidades para roubo atingiam dois objetivos. Primeiro, eles responsabilizavam o ladrão por devolver o roubo ao proprietário original ou por compensá-lo totalmente por sua perda. Em segundo lugar, eles puniam e educavam o ladrão, fazendo com que ele experimentasse toda a dor que havia causado à vítima. Esses objetivos podem formar uma base cristã para o trabalho do direito civil e criminal hoje. O trabalho judiciário atual opera de acordo com estatutos e diretrizes específicas estabelecidas pelo Estado. Mas, mesmo assim, os juízes têm certa liberdade para estabelecer sentenças e penalidades. Para disputas que são resolvidas fora dos tribunais, os advogados negociam para ajudar seus clientes a chegarem a um acordo conclusivo. Em tempos recentes, surgiu uma perspectiva chamada “justiça restaurativa”, com ênfase na punição que restaura a condição original da vítima e, na medida do possível, restaura o agressor como um membro produtivo da sociedade. Uma descrição e avaliação completas de tais abordagens estão além do nosso escopo aqui, mas queremos observar que as Escrituras têm muito a oferecer aos sistemas contemporâneos de justiça a esse respeito.

Nos negócios, os líderes às vezes precisam mediar entre funcionários que têm sérios problemas relacionados ao trabalho entre si. Decidir o que é certo e justo afeta não apenas os envolvidos na disputa, mas também pode afetar toda a atmosfera da organização e até servir para abrir precedentes sobre como os trabalhadores podem esperar que seja no futuro. Os riscos imediatos podem ser muito altos. Além disso, quando os cristãos devem tomar esse tipo de decisão, os espectadores tiram conclusões sobre nós como pessoas, bem como sobre a legitimidade da fé pela qual alegamos viver. Claramente, não podemos prever todas as situações (e o livro de Êxodo também não o faz). Mas sabemos que Deus espera que apliquemos suas instruções e podemos ter certeza de que perguntar a Deus como amar nosso próximo como a nós mesmos é o melhor ponto de partida.

Oportunidades produtivas para os pobres — respiga (Êxodo 22.21-27; 23.10-11)
Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus deseja fornecer oportunidades para os pobres, e isso é visto nos regulamentos que beneficiam estrangeiros, viúvas e órfãos (Êx 22.21-22). O que esses três grupos tinham em comum era que não possuíam terras para se sustentar. Muitas vezes, isso os deixava pobres, de modo que estrangeiros, viúvas e órfãos são os que primeiro vêm à mente sempre que “os pobres” são mencionados no Antigo Testamento. Em Deuteronômio, a preocupação de Deus por essa tríade de pessoas vulneráveis ​​exigia que Israel lhes fornecesse justiça (Dt 10.18; 27.19) e acesso à comida (Dt 24.19-22). A jurisprudência sobre o assunto também é desenvolvida em Isaías 1.17,23; 10.1-2; Jeremias 5.28; 7.5-7; 22.3; Ezequiel 22.6-7; Zacarias 7.8-10; e Malaquias 3.5 .

Um dos mais importantes desses regulamentos é a prática de permitir que os pobres colham, ou “recolham”, os grãos restantes dos campos ativos e colham todas as colheitas voluntárias em campos em repouso. A prática conhecida como respigar não era uma esmola, mas uma oportunidade para os pobres se sustentarem. Os proprietários de terras eram obrigados a deixar cada campo, vinha e pomar em repouso um ano a cada sete, e os pobres tinham permissão para colher qualquer coisa que pudesse crescer lá (Êx 23.10-11). Mesmo em campos ativos, os proprietários deveriam deixar parte do grão no campo para que os pobres colhessem, em vez de limpá-lo exaustivamente (Lv 19.9-10). Por exemplo, um olival ou uma vinha deveriam ser colhidos apenas uma vez a cada estação (Dt 24.20). Depois disso, os pobres tinham o direito de recolher o que sobrava, talvez o que fosse de menor qualidade ou que demorasse mais para amadurecer. Essa prática não era apenas uma expressão de bondade, mas também uma questão de justiça. O livro de Rute gira em torno dessa prática com efeitos encantadores (veja “Rute 2.17-23” em Rute e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org).

Hoje, há muitas maneiras pelas quais plantadores, produtores e distribuidores de alimentos compartilham com os pobres. Muitos deles doam para despensas e abrigos aquilo que sobra do dia, mas que ainda serve como alimento saudável. Outros trabalham para tornar os alimentos mais acessíveis, aumentando sua própria eficiência. Mas a maioria das pessoas, pelo menos nos países desenvolvidos, não se dedica mais à agricultura como meio de vida, e são necessárias oportunidades para os pobres em outros setores da sociedade. Nas sociedades industriais e tecnológicas de hoje, a utilização eficiente de recursos é a base do sucesso da produção. Não há nada para se colher no chão de uma bolsa de valores, de uma montadora ou de um laboratório de programação. Mas o princípio de fornecer trabalho produtivo para trabalhadores vulneráveis ​​ainda é relevante. As corporações podem empregar de forma produtiva pessoas com deficiências mentais e físicas, com ou sem assistência do governo. Com treinamento e apoio, pessoas de origens desfavorecidas, prisioneiros que retornam à sociedade e outros que têm dificuldade em encontrar um emprego convencional podem se tornar trabalhadores produtivos e ganhar a vida.

Outras pessoas economicamente vulneráveis ​​podem ter de depender de contribuições em dinheiro, em vez de receber oportunidades de trabalho. Aqui, novamente, a situação moderna é complexa demais para proclamarmos uma aplicação simplista da lei bíblica. Mas os valores subjacentes à lei podem oferecer uma contribuição significativa para o projeto e a execução de sistemas de bem-estar público, caridade pessoal e responsabilidade social corporativa. Muitos cristãos têm papéis significativos na contratação de trabalhadores ou na elaboração de políticas de emprego. Êxodo nos lembra que empregar trabalhadores vulneráveis ​​é uma parte essencial do que significa para um povo viver sob a aliança de Deus. Junto com o Israel da antiguidade, os cristãos também experimentaram a redenção de Deus, embora não necessariamente em termos idênticos. Mas nossa simples gratidão pela graça de Deus é certamente um motivo poderoso para encontrar maneiras criativas de servir aos necessitados ao nosso redor.

Empréstimos e garantias (Êxodo 22.25-27)
Voltar ao índice Voltar ao índice

Outro conjunto de leis regulamentava o dinheiro e as garantias (Êx 22.25-27). Duas situações estão em vista. A primeira se refere a um membro necessitado do povo de Deus que precisa de um empréstimo financeiro. Este empréstimo não deve ser feito de acordo com os padrões usuais de empréstimo de dinheiro. Deve ser feito sem “juros”. A palavra hebraica neshekh (que em alguns contextos significa “mordida”) atraiu muita atenção acadêmica. Será que neshek se referia à cobrança de juros excessivos e, portanto, injustos, além da quantia razoável de juros necessária para manter financeiramente viável a prática de emprestar dinheiro? Ou se referia a algum tipo de juros? O texto não tem detalhes suficientes para estabelecer isso de forma conclusiva, mas a última opção parece mais provável, porque, no Antigo Testamento, neshek sempre se refere a emprestar àqueles que estão em circunstâncias miseráveis ​​e vulneráveis, para quem pagar qualquer tipo de juros seria um fardo excessivo. [1] Colocar os pobres em um ciclo interminável de endividamento financeiro estimulará o compassivo Deus de Israel a agir. Se essa lei foi ou não boa para os negócios, não é isto que está em questão aqui. Walter Brueggemann observa: “A lei não discute sobre a viabilidade econômica de tal prática. Simplesmente requer a necessidade de cuidados de maneira concreta e espera que a comunidade resolva os detalhes práticos”. [2] A outra situação é a de um homem que coloca seu único casaco como garantia de um empréstimo. Este deve ser devolvido a ele à noite, para que ele possa dormir sem pôr em perigo sua saúde (Êx 22.26-27). Isso significa que o credor deve visitá-lo pela manhã para pegar o casaco do dia e continuar fazendo isso até que o empréstimo seja pago? No contexto de tão óbvia miséria, um credor piedoso poderia evitar o quase absurdo desse ciclo simplesmente não esperando que o tomador do empréstimo desse qualquer garantia. Essas regulamentações podem ter menos aplicação ao sistema bancário atual em geral do que aos sistemas atuais de proteção e assistência aos pobres. Por exemplo, o microcrédito em países menos desenvolvidos foi desenvolvido com taxas de juros e políticas de garantias sob medida para atender às necessidades das pessoas pobres que, de outra forma, não teriam acesso ao crédito. O objetivo — pelo menos nos primeiros anos, a partir da década de 1970 — não era maximizar o lucro para os credores, mas fornecer instituições de crédito sustentáveis ​​para ajudar os pobres a escapar da pobreza. Mesmo assim, o microfinanciamento luta para equilibrar a necessidade do credor por um retorno sustentável e taxas de inadimplência com a necessidade do devedor de taxas de juros acessíveis e termos de garantia não restritivos. [3]

A presença de regulamentos específicos seguindo os Dez Mandamentos significa que Deus quer que seu povo o honre, colocando em prática suas instruções para atender a necessidades reais. A preocupação emocional sem ação deliberada não dá aos pobres o tipo de ajuda de que precisam. Como disse o apóstolo Tiago: “A fé sem obras está morta” (Tg 2.26). Estudar as aplicações específicas dessas leis no antigo Israel nos ajuda a pensar sobre as maneiras específicas pelas quais podemos agir hoje. Mas lembramos que, mesmo naquela época, essas leis eram apenas ilustrações. Terence Fretheim conclui assim: “Há uma abertura para a aplicação da lei. O texto convida o ouvinte/leitor a estender essa passagem a todas as esferas da vida em que a injustiça possa ser encontrada. Em outras palavras, alguém é convidado pela lei a ir além da lei”. [4]

Uma leitura cuidadosa revela três razões pelas quais o povo de Deus deve guardar essas leis e aplicá-las a novas situações. [5] Primeiro, os próprios israelitas foram oprimidos como estrangeiros no Egito (Êx 22.21; 23.9). Ensaiar essa história não apenas mantém a redenção de Deus em vista, mas a memória se torna uma motivação para tratar os outros como gostaríamos de ser tratados (Mt 7.12). Segundo, Deus ouve o clamor dos oprimidos e faz algo a respeito, especialmente quando não o fazemos (Êx 22.22-24). Terceiro, devemos ser seu povo santo (Êx 22.31; Lv 19.2).

O tabernáculo (Êxodo 25.1—40.38)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O trabalho de construção do tabernáculo pode parecer estar fora do escopo do Projeto de Teologia do Trabalho por causa de seu foco litúrgico. Devemos observar, no entanto, que o livro de Êxodo não separa tão facilmente a vida de Israel nas categorias de sagrado e secular, tal como estamos tão acostumados. Mesmo se traçarmos uma linha entre as atividades litúrgicas e extralitúrgicas de Israel, nada em Êxodo sugere que uma seja mais importante que a outra. Além disso, o que realmente aconteceu no tabernáculo não pode ser equiparado com justiça ao “trabalho da igreja” hoje. Certamente, sua construção não tem paralelo próximo com a construção de prédios de igrejas. Os capítulos de Êxodo que tratam do tabernáculo são todos sobre o estabelecimento de uma instituição única. Embora o trabalho do tabernáculo continuasse de ano para ano e fosse subordinado ao templo, cada um desses edifícios era, por definição, central e único. Eles não eram exemplos a serem reproduzidos onde quer que os israelitas se estabelecessem para viver. De fato, a construção e a operação de santuários locais em todo o país provaram ser um enorme prejuízo para a saúde espiritual nacional de Israel. Finalmente, o propósito do tabernáculo não era dar a Israel um lugar autorizado para adoração. Era sobre a presença de Deus no meio deles. Isso fica claro desde o início nas palavras de Deus: “E farão um santuário para mim, e eu habitarei no meio deles” (Êx 25.8). Os cristãos de hoje entendem que Deus habitou entre nós na pessoa de seu Filho (Jo 1.14). Por meio de seu trabalho, toda a comunidade de crentes se tornou o templo de Deus no qual o Espírito de Deus vive (1Co 3.16). À luz dessas observações, consideraremos duas afirmações relacionadas ao trabalho. Primeiro, Deus é um arquiteto. Segundo, Deus capacita seu povo para fazer sua obra.

A grande seção em Êxodo sobre o tabernáculo é organizada de acordo com a ordem de Deus (Êx 25.1—31.11) e a resposta de Israel (Êx 35.4—40.33). Mas Deus fez mais do que dizer a Israel o que ele queria deles. Ele forneceu o projeto real para a obra. Isso fica claro em suas palavras a Moisés: “Segundo tudo o que eu mostrar a você como modelo do tabernáculo e como modelo de todos os seus móveis, assim mesmo vocês o farão” (Êx 25.9, NAA). [1] A palavra hebraica traduzida aqui como “modelo” (tavnit) se refere ao edifício e aos itens associados a ele. Os arquitetos de hoje usam plantas para direcionar a construção, mas pode ter sido que algum tipo de modelo arquetípico estivesse em vista. [2] Os templos eram frequentemente vistos como réplicas terrenas de santuários celestiais (Is 6.1-8). Pelo Espírito, o rei Davi recebeu esse modelo para o templo e o deu a seu filho Salomão, que organizou a construção do templo (1Cr 28.11-12,19). Pelas descrições que se seguem, fica claro que o projeto arquitetônico de Deus é requintado e engenhoso. O princípio de que o desígnio de Deus precede a edificação de Deus é verdade para os santuários de Israel, bem como para a comunidade mundial de cristãos do Novo Testamento (1Co 3.5-18). A futura Nova Jerusalém é uma cidade que só Deus poderia projetar (Ap 21.10-27). A obra de Deus como arquiteto confere dignidade a essa carreira em particular. Mas, em um sentido geral, o povo de Deus pode se envolver em seu trabalho (seja ele qual for) com a consciência de que Deus também tem um plano para ele. Como veremos a seguir, há muitos detalhes a serem trabalhados dentro dos contornos do plano de Deus, mas o Espírito Santo ajuda até mesmo nisso.

Os relatos de Bezalel, Aoliabe e de todos os obreiros qualificados do tabernáculo estão cheios de termos relacionados ao trabalho (Êx 31.1-11 ; 35.30—36.5). Bezalel e Aoliabe são importantes não apenas por seu trabalho no tabernáculo, mas também como modelos para Salomão e Hirão, que construíram o templo. [3] O conjunto abrangente de ofícios incluía trabalhos em metal em ouro, prata e bronze, bem como trabalhos em pedra e madeira. A fabricação de roupas exigiria obter lã, fiá-la, tingi-la, tecê-la, desenhar roupas, fabricá-las e costurá-las sob medida, além do trabalho de bordado. Os artesãos até prepararam óleo de unção e incenso aromático. O que une todas essas práticas é Deus enchendo os obreiros com seu Espírito. A palavra hebraica para “habilidade” nesses textos (hokhmah) é geralmente traduzido como “sabedoria”, o que nos leva a pensar sobre o uso das palavras e a tomada de decisões. Aqui, ele descreve um trabalho que é claramente prático, mas espiritual no sentido teológico mais completo (Êx 28.3; 31.3,6; 35.26,31,35; 36.1-2).

A ampla gama de atividades de construção nesta passagem ilustra, mas não esgota, o que a construção no antigo Oriente Médio envolvia. Visto que Deus os inspirou, podemos presumir com segurança que ele os desejou e os abençoou. Mas será que realmente precisamos de textos como esses para nos assegurar que Deus aprova esse tipo de trabalho? E quanto às habilidades relacionadas que não são mencionado? Fazendo uma brincadeira, se o tabernáculo precisasse de um sistema de ar-condicionado, presumimos que Deus teria dado planos para um bom sistema. Robert Banks recomenda sabiamente: “Nos escritos bíblicos, não devemos interpretar comparações com o processo [moderno] de construção de uma maneira muito estreita ou específica para cada trabalho. Ocasionalmente, isso pode ser justificado, mas geralmente não.” [4] O ponto aqui não é que Deus se importa mais com certos tipos de trabalho do que com outros. A Bíblia não precisa citar todas as profissões nobres para que as vejamos como algo piedoso a fazer. Assim como as pessoas não foram feitas para o sábado, mas o sábado para as pessoas (Mc 2.27), edifícios e cidades também foram feitos para as pessoas. A lei de que as casas antigas sejam construídas com um parapeito de proteção ao redor do telhado plano (Dt 22.8) ilustra a preocupação de Deus com uma construção responsável que realmente sirva e proteja as pessoas. O ponto sobre o Espírito capacitando os obreiros do tabernáculo é que Deus se importava com este particular projeto para esses particulares propósitos. Com base nessa verdade, a lição duradoura para nós em nosso trabalho hoje pode ser que, seja qual for a obra de Deus, ele não deixa sua grande obra em nossas mãos inábeis. As maneiras pelas quais ele nos equipa para seu trabalho podem ser tão variadas quanto essas muitas tarefas. Na fidelidade divina, os dons espirituais que Deus nos dá nos fortalecerão para fazer a obra de Deus até o fim (1Co 1.4-9). Ele nos fornece todas as bênçãos em abundância, para que possamos participar abundantemente de toda boa obra (2Co 9.8).

Conclusões de Êxodo

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em Êxodo, vemos Deus tirar seu povo do trabalho opressivo para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Não significa estar livres do trabalho, mas ser livres para amar e servir ao Senhor por meio do trabalho em todos os aspectos da vida. Deus fornece orientação para a vida e o trabalho que o glorificarão e abençoarão Israel. E ele fornece um lugar para sua presença, a fim de abençoar tudo o que eles fazem.

Introdução — Levítico tem algo a nos dizer sobre nosso trabalho?

Voltar ao índice Voltar ao índice

Levítico é uma ótima fonte para pessoas que buscam orientação sobre seu trabalho. O livro está repleto de instruções diretas e práticas, embora a ação ocorra em um ambiente de trabalho diferente do que a maioria de nós vivencia hoje. Além disso, Levítico é um dos lugares centrais onde Deus revela a si mesmo e seus objetivos para nossa vida e nosso trabalho. O livro está no centro físico do Pentateuco, o terceiro dos cinco livros de Moisés que formam a narrativa e o fundamento teológico do Antigo Testamento. O segundo livro, Êxodo, conta do que Deus tirou seu povo. Levítico diz para onde Deus guia seu povo, [1] uma vida cheia da própria presença de Deus. Em Levítico, o trabalho é uma das arenas mais importantes em que Deus está presente com Israel, e Deus ainda está presente conosco em nosso trabalho hoje.

Levítico também é central para o ensino de Jesus e para o restante do Novo Testamento. O Grande Mandamento que Jesus ensinou (Mc 12.28-31) vem diretamente de Levítico 19.18: “Ame cada um o seu próximo como a si mesmo”. O “ano sabático” ou “ano do jubileu” em Levítico 25 está no centro da declaração de missão de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para... proclamar o ano da graça [o Jubileu] do Senhor” (Lc 4.18-19). Quando Jesus disse que nem “a menor letra ou o menor traço” da lei passaria (Mt 5.18), muitas dessas letras e traços são encontrados em Levítico. Jesus ofereceu uma nova visão sobre a lei — que a maneira de cumprir a lei não é encontrada no cumprimento de regras, mas na cooperação com os propósitos para os quais Deus a criou. Devemos cumprir a lei “com dedicação” (1Co 12.31), de um modo que excede — não ignora — a letra da lei. Se desejamos cumprir o Espírito da lei, como Jesus fez, devemos começar aprendendo o que a lei realmente diz. Grande parte dela se encontra em Levítico, e grande parte se aplica ao trabalho.

Visto que Levítico é central para o ensino de Jesus sobre o trabalho, como seguidores de Jesus, estamos certos em recorrer ao livro em busca de orientação sobre a vontade de Deus para nosso trabalho. É claro que devemos ter em mente que os códigos de Levítico devem ser entendidos e aplicados às diferentes situações econômicas e sociais de hoje. A sociedade atual não está em um paralelo próximo com o antigo Israel, tanto em termos de nossa estrutura social como de nosso relacionamento de aliança. A maioria dos trabalhadores de hoje, por exemplo, tem pouca necessidade de saber o que fazer com um boi ou uma ovelha que foi dilacerada por animais selvagens (Lv 7.24). O sacerdócio levítico, a quem grande parte do livro é dirigido — sacerdotes que realizam sacrifícios de animais ao Deus de Israel — não existe mais. Além disso, em Cristo, entendemos que a lei é um instrumento da graça de Deus de uma maneira diferente de como o antigo Israel o fazia. Portanto, não podemos simplesmente citar Levítico como se nada tivesse mudado no mundo. Não podemos ler um versículo e proclamar “Assim diz o Senhor” como um juízo contra aqueles de quem discordamos. Em vez disso, temos de entender o significado, os propósitos e a mente de Deus revelados em Levítico e, em seguida, pedir a sabedoria de Deus para aplicar Levítico aos dias de hoje. Somente assim nossa vida refletirá sua santidade, honrará suas intenções e decretará o governo de seu Reino celestial na terra.

O conceito fundamental de santidade em Levítico

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Levítico está fundamentado na verdade de que Deus é santo. A palavra qodesh ocorre mais de cem vezes no texto hebraico de Levítico. Dizer que Deus é santo significa que ele está completamente separado de todo mal ou defeito. Ou, em outras palavras, Deus é completa e perfeitamente bom. O Senhor é digno de total lealdade, adoração exclusiva e obediência amorosa.

A identidade de Israel surge porque, pelas ações de Deus, o povo é santo, mas também porque o Senhor espera de Israel um agir santo de maneiras práticas. Israel é chamado para ser santo porque o próprio Senhor é santo (Lv 11.44-45; 19.2; 20.7; 21.8). As leis aparentemente distantes de Levítico, que lidam com os aspectos rituais, éticos, comerciais e penais da vida, todas se baseiam nessa noção central de santidade.

Alexander Hill, então, está seguindo o princípio central de Levítico quando fundamenta sua discussão sobre a ética empresarial cristã na santidade, na justiça e no amor de Deus. “Um ato comercial é ético se reflete o caráter santo e justo de Deus.” [1] Hill afirma que, nos negócios, os cristãos refletem a santidade divina quando têm zelo por Deus, que é sua prioridade final, e agem com pureza, responsabilidade e humildade. Em vez de tentar reproduzir o código comercial projetado para uma sociedade agrária, é isso o que significa colocar o Levítico em prática hoje. Não se trata de ignorar as especificidades da lei, mas de discernir como Deus está nos guiando para cumpri-la no contexto de hoje.

Santidade em Levítico não é separação pelo separatismo, mas para que haja uma comunidade próspera do povo de Deus e a reconciliação de cada pessoa com Deus. A santidade não se trata apenas do comportamento dos indivíduos de acordo com os regulamentos, mas sobre como aquilo que cada pessoa faz afeta todo o povo de Deus em sua vida conjunta e em seu trabalho como agentes do Reino de Deus. Sob essa luz, o chamado de Jesus para que seu povo seja “sal” e “luz” para os de fora (Mt 5.13-16) faz todo o sentido. Ser santo é ir além da lei para amar o próximo, amar até mesmo o inimigo e ser “perfeitos como perfeito é o Pai celestial” (Mt 5.48, ecoando Lv 19.2).

Em suma, o antigo Israel não obedecia a Levítico como um conjunto peculiar de regras, mas como uma expressão da presença de Deus em seu meio. Isso é tão relevante para o povo de Deus hoje quanto era então. Em Levítico, Deus está pegando um grupo de tribos nômades e moldando sua cultura como povo. Da mesma forma, hoje, quando o povo de Deus entra em seu ambiente de trabalho, por meio deles, Deus está moldando as culturas de suas unidades de trabalho, organizações e comunidades. O chamado de Deus para ser santo, assim como ele é santo, é um chamado para moldar nossas culturas para o bem.

O sistema sacrificial de Israel (Levítico 1—10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Levítico começa com regulamentos para o sistema sacrificial de Israel, transmitidos a partir de duas perspectivas. A primeira perspectiva é a dos leigos que trazem o sacrifício e participam de sua oferta (capítulos 1—5). A segunda perspectiva é a dos sacerdotes que ministram (capítulos 6—7). Depois disso, aprendemos como os sacerdotes foram ordenados e começaram seu ministério no tabernáculo (capítulos 8—9), seguidos por regulamentos adicionais para os sacerdotes, à luz de como Deus matou os sacerdotes Nadabe e Abiú por violarem o mandamento de Deus sobre suas responsabilidades rituais (capítulo 10). Não devemos presumir que esse material seja uma liturgia vazia e irrelevante para o mundo do trabalho moderno. Em vez disso, devemos examinar a maneira como o povo de Israel lidou com seus problemas, a fim de explorar como nós, como pessoas em Cristo, podemos lidar com os nossos — incluindo os desafios que enfrentamos nos negócios e no trabalho.

A habitação de Deus na comunidade (Levítico 1—10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O propósito do sacrifício não era apenas remediar lapsos ocasionais de pureza. O verbo hebraico para “oferecer” um sacrifício significa literalmente “aproximar”. Trazer um sacrifício para perto do santuário aproximava o adorador de Deus. O grau individual de mau comportamento do adorador não era a questão principal. A poluição causada pela impureza é a consequência de toda a comunidade, composta pelos poucos que cometeram pecados descarados ou inadvertidos junto com a maioria silenciosa que permitiu que os ímpios florescessem em seu meio. O povo como um todo carrega a responsabilidade coletiva de corromper a sociedade e, assim, dar a Deus uma razão legítima para deixar seu santuário, um evento que equivale à destruição da nação. [1] Aproximar-se de Deus ainda é o objetivo daqueles que chamam Jesus de “Emanuel” (“Deus conosco”). A habitação de Deus com seu povo é, de fato, um assunto sério.

Os cristãos em seu ambiente de trabalho devem olhar além, buscando dicas piedosas para encontrar o que o mundo define como “sucesso”. Estar ciente de que Deus é santo e que ele deseja habitar no centro de nossa vida muda nossa orientação do sucesso para a santidade, seja qual for a obra que Deus nos chamou para fazer. Isso não significa fazer atividades religiosas no trabalho, mas fazer todo o nosso trabalho como Deus deseja que o façamos. O trabalho não é principalmente uma maneira de aproveitar o fruto de nosso trabalho, mas uma maneira de experimentar a presença de Deus. Assim como os sacrifícios de Israel eram um “aroma agradável” ao Senhor (Lv 1.9 e dezesseis outros casos), Paulo chamou os cristãos a viverem “de maneira digna do Senhor e em tudo... agradá-lo” (Cl 1.10), “porque para Deus somos o aroma de Cristo” (2Co 2.15).

O que poderia resultar se caminhássemos por nosso ambiente de trabalho e fizéssemos a pergunta fundamental: “Como este poderia ser um lugar para a presença santa de Deus?” Nosso ambiente de trabalho incentiva as pessoas a expressarem o melhor que Deus lhes deu? É um lugar caracterizado pelo tratamento justo de todos? Protege os trabalhadores de danos? Produz bens e serviços que ajudam a comunidade a prosperar mais plenamente?

Todo o povo de Deus em ação (Levítico 1—10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Levítico reúne as perspectivas de dois grupos que muitas vezes estavam em conflito um com o outro: os sacerdotes e o povo. Seu propósito é reunir todo o povo de Deus, sem levar em conta distinções de status. No ambiente de trabalho hoje, como os cristãos devem lidar com desavenças entre pessoas, independentemente de suas posses ou posição na empresa? Toleramos abusos de poder quando o resultado parece conveniente para nossa carreira? Participamos do julgamento de colegas de trabalho por meio de fofocas e insinuações, ou insistimos em expor nossas queixas por meio de sistemas imparciais? Prestamos atenção aos danos que o bullying e o favoritismo causam no trabalho? Promovemos uma cultura positiva, fomentamos a diversidade e construímos uma organização saudável? Permitimos uma comunicação aberta e confiável, combatemos a politicagem clandestina e buscamos o melhor desempenho? Criamos uma atmosfera em que as ideias surgem e são avaliadas, e as melhores são postas em ação? Focamos no crescimento sustentável?

O sistema sacrificial de Israel atendia não apenas às necessidades religiosas do povo, mas também às psicológicas e emocionais, abrangendo assim toda a pessoa e toda a comunidade. Os cristãos entendem que as empresas têm objetivos que geralmente não são de natureza religiosa. No entanto, também sabemos que as pessoas não são equivalentes ao que fazem ou produzem. Isso não reduz nosso compromisso de trabalhar para sermos produtivos, mas nos lembra que, porque Deus nos abraçou com seu perdão, temos ainda mais razões do que outros para ser atenciosos, justos e amáveis para com todos (Lc 7.47; Ef 4.32; Cl 3.13).

O significado da oferta pela culpa (Levítico 6.1-7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Cada oferta no sistema sacrificial de Israel tem seu lugar, mas há uma característica especial da oferta pela culpa (também conhecida como oferta de reparação) que a torna particularmente relevante para o mundo do trabalho. A oferta pela culpa de Levítico é a semente da doutrina bíblica do arrependimento.[1] (Números 5.5-10 é diretamente paralelo.) De acordo com Levítico, Deus exigia ofertas sempre que uma pessoa enganava outra com relação a um depósito ou promessa, cometesse roubo ou fraude, mentisse sobre bens perdidos que haviam sido encontrados ou jurasse falsamente sobre um assunto (Lv 6.2-3). Não foi uma multa imposta por um tribunal, mas uma reparação oferecida pelos autores que escaparam impunes da ofensa, mas que se sentiram culpados mais tarde, quando “perceberam” sua culpa (Lv 6.4-5). O arrependimento do pecador, e não a perseguição pelas autoridades, é a base da oferta pela culpa.

Muitas vezes, esses pecados teriam sido cometidos no contexto do comércio ou de outro trabalho. A oferta pela culpa exige que o pecador arrependido devolva o que foi tomado indevidamente acrescido de 20% (Lv 6.4-5). Somente depois de resolver a questão em nível humano, o pecador pode receber o perdão de Deus, apresentando um animal ao sacerdote para sacrifício (Lv 6.6-7).

A oferta de culpa enfatiza de maneira exclusiva vários princípios sobre a cura de relacionamentos pessoais que foram danificados por abuso financeiro.

1. O mero pedido de desculpas não é suficiente para corrigir o erro, nem a restauração completa do que foi tirado. Além disso, algo semelhante ao conceito atual de danos punitivos foi adicionado. Mas, com ofertas de culpa — ao contrário de indenizações punitivas ordenadas pelo tribunal —, os infratores voluntariamente assumem uma parte do dano, compartilhando assim o sofrimento que causaram à vítima.

2. Fazer todo o necessário para corrigir um erro contra outra pessoa não é apenas justo para o ofendido, mas também é bom para o ofensor. A oferta pela culpa reconhece o tormento que assola a consciência daqueles que reconhecem seu crime e seus efeitos danosos. Em seguida, fornece uma maneira de os culpados lidarem com o assunto de forma mais completa, trazendo um certo encerramento e paz. Essa oferta expressa a misericórdia de Deus, na medida em que a dor e a mágoa são neutralizadas, de modo a não inflamar e explodir em violência ou ofensas mais graves. Também extingue a necessidade de a vítima (ou sua família) resolver o problema com as próprias mãos para exigir a restituição.

3. Nada na obra expiatória de Jesus na cruz libera o povo de Deus hoje da necessidade de fazer restituição. Jesus ensinou a seus discípulos: “Portanto, se você estiver apresentando sua oferta diante do altar e ali se lembrar de que seu irmão tem algo contra você, deixe sua oferta ali, diante do altar, e vá primeiro reconciliar-se com seu irmão; depois volte e apresente sua oferta” (Mt 5.23-24). Amar nosso próximo como a nós mesmos está no cerne dos requisitos da lei (Lv 19.18, como citado em Rm 13.9), e fazer restituição é uma expressão essencial de qualquer tipo genuíno de amor. Jesus concedeu a salvação ao rico cobrador de impostos Zaqueu, que ofereceu mais restituição do que a lei exigia, elevando-o como um exemplo daqueles que realmente entendiam o perdão (Lc 19.1-10).

4. As palavras de Jesus em Mateus 5.23-24 também nos ensinam que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para nos reconciliarmos com as pessoas é um aspecto essencial para acertar as coisas com Deus e viver em paz sempre que possível. Receber o perdão de Deus vai além, mas não devemos deixar de fazer restituição, sempre que possível, àqueles a quem prejudicamos. Em resposta ao perdão que Deus nos dá, nosso coração é movido a fazer tudo o que pudermos para reverter o dano que causamos aos outros. Raramente teremos a capacidade de desfazer completamente o dano que nosso pecado causou, mas o amor de Cristo nos impele a fazer o máximo que podemos.

A oferta pela culpa é um lembrete poderoso de que Deus não exerce seu direito de perdão às custas das pessoas prejudicadas por nossos erros. Ele não nos oferece libertação psicológica de nossa culpa como um substituto barato para reparar o dano e a mágoa que causamos.

O imundo e o puro (Levítico 11—16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No cerne disso, Levítico 11.45 explica a lógica temática de toda esta seção. “Eu sou o Senhor que os tirou da terra do Egito para ser o seu Deus; por isso, sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 11.45). Deus chama Israel para refletir sua santidade em todos os aspectos da vida. Levítico 11—16 lida com a classificação de alimentos “limpos” e “impuros” (capítulo 11) e ritos de purificação (capítulos 12—15). Ele termina com o procedimento para celebrar o Dia da Expiação para purificar o povo e o santuário de Deus (capítulo 16).

Os cristãos também reconhecem que todos os aspectos de nossa vida devem ser uma resposta à santa presença de Deus entre nós. Mas os assuntos e o escopo das leis em Levítico tendem a nos deixar perplexos hoje. Existem princípios éticos duradouros a serem encontrados nessas regulamentações específicas? Por exemplo, é difícil entender a razão pela qual Deus permitiu que Israel comesse alguns animais e não outros. Por que há tanta preocupação com doenças de pele específicas (que nem hoje podemos identificar com certeza) e não com outras doenças mais graves? De todos os males que a sociedade enfrenta, a questão do mofo é realmente tão importante? Estreitando nosso foco para questões de trabalho, devemos esperar que esses textos nos digam algo que possamos aplicar à indústria de alimentos, medicamentos ou à contaminação ambiental de casas e ambientes de trabalho? Como observado anteriormente, encontraremos respostas não perguntando se devemos obedecer a regulamentos feitos para uma situação diferente, mas procurando como as passagens nos orientam a servir ao bem-estar da comunidade.

A permissão para comer animais específicos (Levítico 11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Existem várias teorias plausíveis sobre as regras que tratam dos animais para consumo humano em Levítico 11. Cada uma cita evidências de apoio, mas nenhuma alcança um consenso geral. Classificá-los está além do nosso escopo aqui, mas Jacob Milgrom oferece uma perspectiva diretamente relacionada ao ambiente de trabalho. [1] Ele observa três elementos dominantes: Deus limitou severamente a escolha de alimentos de origem animal por parte de Israel, deu-lhes regras específicas para o abate e os proibiu de comer sangue, que representa a vida e, portanto, pertence somente a Deus. À luz disso, Milgrom conclui que o sistema alimentar de Israel era um método de controlar o instinto humano de matar. Em resumo: “Embora possam satisfazer seu apetite por comida, devem conter sua fome de poder. Como a vida é inviolável, ela não pode ser adulterada indiscriminadamente”. [2] Se Deus escolhe se envolver nos detalhes de quais animais podem ser mortos e como isso deve ser feito, como podemos não perceber que a matança de seres humanos é ainda mais restrita e sujeita ao escrutínio de Deus? Essa visão sugere mais aplicabilidade aos dias atuais. Por exemplo, se todas as instalações agrícolas, de criação de animais e de alimentação prestassem contas a Deus diariamente pelo tratamento e pela condição de seus animais, não estariam ainda mais atentas à segurança e às condições de trabalho de seu pessoal?

Apesar dos extensos detalhes em Levítico que iniciam a discussão contínua sobre alimentos na Bíblia, seria inapropriado para qualquer cristão tentar ditar o que os crentes devem fazer e evitar fazer em relação à provisão, preparação e consumo de alimentos. No entanto, o que quer que comamos ou não comamos, Derek Tidball lembra corretamente os cristãos da centralidade da santidade. Qualquer que seja a posição de alguém sobre essas questões complexas, ela não pode ser separada do compromisso do cristão com a santidade. A santidade nos convida a comer e beber “para a glória de Deus”. [3] O mesmo se aplica ao trabalho de produzir, preparar e consumir alimentos e bebidas.

Lidando com doenças de pele e infecções por mofo (Levítico 13—14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em contraste com as leis alimentares, as leis sobre doenças e contaminação ambiental de fato parecem estar principalmente preocupadas com a saúde. A saúde também é uma questão crítica hoje e, mesmo que o livro de Levítico não estivesse na Bíblia, ainda seria uma preocupação nobre e piedosa. Mas seria imprudente supor que Levítico fornece instruções para lidar com doenças contagiosas e contaminação ambiental que podemos aplicar diretamente hoje. Com milhares de anos distantes desse período, é difícil até mesmo ter certeza de que doenças exatamente as passagens tratam. A mensagem duradoura de Levítico é de que o Senhor é o Deus da vida e que ele guia, honra e enobrece todos aqueles que trazem cura às pessoas e ao meio ambiente. Se as regras específicas de Levítico não ditam a maneira como realizamos o trabalho de cura e proteção ambiental, certamente esse ponto maior o faz.

Código de santidade (Levítico 17—27)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Algumas das instruções do código de santidade parecem relevantes apenas no mundo antigo de Israel, enquanto outras parecem atemporais. Por um lado, Levítico diz aos homens para não estragar as pontas de suas barbas (Lv 19.27), mas, por outro lado, os juízes não devem proferir julgamentos injustos no tribunal, devendo mostrar justiça a todos (Lv 19.15). Como sabemos quais se aplicam diretamente hoje? Mary Douglas explica de maneira útil como uma compreensão clara da santidade como ordem moral tanto coloca o fundamento dessas instruções em Deus como dá sentido à sua variedade.

Desenvolver a ideia de santidade como ordem, não confusão, defende a retidão e a integridade como algo sagrado, tendo a contradição e a dubiedade como algo contrário à santidade. Roubo, mentira, falso testemunho, trapaça em pesos e medidas, todo tipo de dissimulação, como falar mal dos surdos (enquanto finge sorrir diante deles), odiar seu irmão em seu coração (enquanto aparenta falar com ele gentilmente), são claramente contradições entre o que parece e o que é. [1]

Alguns aspectos do que leva à boa ordem (por exemplo, aparar a barba) podem ser importantes em um contexto, mas não em outro. Outros são essenciais em todas as situações. Podemos identificá-los perguntando o que contribui para a boa ordem em nossos contextos específicos. Aqui, exploraremos passagens que tocam diretamente em questões de trabalho e economia.


Colheita e respiga (Levítico 19.9-10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Embora os métodos antigos de colheita não fossem tão eficientes quanto hoje, Levítico 19.9-10 instrui os israelitas a torná-los ainda menos eficientes. Primeiro, eles deveriam deixar as margens de seus campos de grãos sem colheita. A largura dessa margem parece ser uma decisão do proprietário. Em segundo lugar, eles não deveriam recolher qualquer produto que caísse no chão. Isso se aplicaria quando um ceifeiro pegasse um feixe de caules e os cortasse com a foice, bem como quando as uvas caíssem de um cacho recém-cortado da videira. Terceiro, eles deveriam colher seus vinhedos apenas uma vez, presumivelmente pegando apenas as uvas maduras, de modo a deixar as uvas ainda não maduras para os pobres e os imigrantes que viviam entre eles. [1] Essas duas categorias de pessoas — os pobres e os estrangeiros — estavam unidas pela falta de propriedade de terras e, portanto, dependiam de seu próprio trabalho manual para se alimentar. As leis que beneficiavam os pobres eram comuns no antigo Oriente Próximo, mas apenas os regulamentos de Israel estendiam esse tratamento ao estrangeiro residente. Essa era mais uma maneira pela qual o povo de Deus deveria ser distinto das nações vizinhas. Outros textos especificam a viúva e o órfão como membros dessa categoria. (Outras referências bíblicas à respiga incluem Êx 22.21-27; Dt 24.19-21; Jz 8.2; Rt 2.17-23; Jó 24.6; Is 17.5-6; 24.13; Jr 6.9; 49.9; Ob 1.5; Mq 7.1.)

Podemos classificar a respiga como uma expressão de compaixão ou justiça, mas, de acordo com Levítico, permitir que outros façam isso em nossa propriedade é fruto da santidade. Fazemos isso porque Deus diz: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.10). Isso destaca a distinção entre caridade e respiga. Na caridade, as pessoas doam voluntariamente a outros que estão em necessidade. Isso é uma coisa boa e nobre de se fazer, mas não é disso que Levítico está falando. A respiga é um processo no qual os proprietários de terras têm a obrigação de fornecer às pessoas pobres e marginalizadas acesso aos meios de produção (em Levítico, a terra) e de eles mesmos trabalharem. Ao contrário da caridade, ela não depende da generosidade dos proprietários de terras. Nesse sentido, era muito mais um imposto do que uma oferta de caridade. Além disso, diferentemente da caridade, ela não foi dada aos pobres como pagamento de transferência. Por meio da respiga, os pobres ganhavam a vida da mesma forma que os proprietários de terras, trabalhando nos campos com seu próprio trabalho. Era simplesmente uma ordem mostrando que todos tinham o direito de acessar os meios de provisão criados por Deus.

Nas sociedades contemporâneas, pode não ser fácil discernir como aplicar os princípios da respiga. Em muitos países, a reforma agrária é certamente necessária para que a terra esteja disponível com segurança para os agricultores, em vez de ser controlada por funcionários caprichosos do governo ou proprietários de terras que a obtiveram de forma corrupta. Em economias mais industrializadas e baseadas no conhecimento, a terra não é o principal fator de produção. O acesso à educação, ao capital, aos mercados de trabalho e de produtos, aos sistemas de transporte e a leis e regulamentos não discriminatórios pode ser o que as pessoas pobres precisam para serem produtivas. Como os cristãos podem não ser mais capazes do que qualquer outra pessoa de determinar com precisão quais soluções serão mais eficazes, as soluções precisam vir de toda a sociedade. Certamente, Levítico não contém um sistema pronto para as economias de hoje. Mas o sistema de respiga em Levítico impõe aos proprietários de ativos produtivos a obrigação de garantir que as pessoas marginalizadas tenham a oportunidade de trabalhar para ganhar a vida. Nenhum proprietário individual pode fornecer oportunidades para todos os trabalhadores desempregados ou subempregados, é claro, assim como nenhum agricultor no antigo Israel poderia garantir a respiga para todo o distrito. Mas os proprietários são chamados a ser as pessoas mais importantes na criação de oportunidades de trabalho. Talvez os cristãos em geral também sejam chamados a apreciar o serviço que os empresários prestam em seu papel de criadores de empregos em suas comunidades.

(Para mais informações sobre respiga na Bíblia, veja “Êxodo 22.21-27”em Êxodo e o Trabalho e “Rute 2.17-23”em Rute e o Trabalho em www.teologiadotrabalho.org.)

Agir com honestidade (Levítico 19.11-12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os mandamentos em Levítico contra o roubo, a falsidade, a mentira e a violação do nome de Deus por meio de juramentos falsos encontram expressão mais familiar entre os Dez Mandamentos de Êxodo 20. (Para mais informações sobre honestidade, veja “Dizer a verdade na Bíblia” e “Pode haver exceções à verdade no local de trabalho”, no artigo Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org.) Exclusiva de Levítico, no entanto, é a expressão hebraica por trás de “Não enganem uns aos outros” (Lv 19.11; grifo nosso). Literalmente, ele diz que “uma pessoa não deve mentir para seu amit”, que significa “companheiro”, “amigo” ou “próximo”. Isso certamente inclui membros da comunidade de Israel; mas com base em Levítico 24.19 no contexto de Levítico 24.17-22, também parece incluir o estrangeiro que vivia entre eles. A ética e a moralidade de Israel deveriam ser distintamente melhores do que as das nações ao seu redor, a ponto de tratar os imigrantes de outras nações da mesma maneira que tratavam os cidadãos nativos.

De qualquer forma, o ponto aqui é o aspecto relacional de dizer a verdade em vez de mentir. Uma mentira não é apenas uma distorção de um fato, mas também uma traição a um companheiro, amigo ou vizinho. O que dizemos uns aos outros deve realmente fluir da santidade de Deus em nós, não apenas de uma análise técnica para evitar mentiras descaradas. Quando o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, disse: “Eu não tive relações sexuais com aquela mulher”, ele pode ter tido alguma lógica tortuosa em mente, segundo a qual a declaração não era tecnicamente uma mentira. Mas seus concidadãos sentiram, com razão, que ele havia quebrado a confiança deles, e mais tarde ele reconheceu e aceitou essa avaliação. Ele havia violado o dever de não mentir aos outros.

Em muitos ambientes de trabalho, é necessário promover os aspectos positivos ou negativos de um produto, serviço, pessoa, organização ou situação. Os cristãos não precisam se recusar a se comunicar vigorosamente para defender um ponto de vista. Mas eles não devem se comunicar de tal maneira que aquilo que transmitem aos outros seja falso. Se palavras tecnicamente verdadeiras se somam a uma falsa impressão na mente de outros, então o dever de dizer a verdade é quebrado. Na prática, sempre que uma discussão sobre veracidade desce para um debate técnico sobre terminologia, é aconselhável nos perguntar se o debate é sobre se devemos mentir aos outros neste sentido.

Tratar os trabalhadores com justiça (Levítico 19.13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

“Não oprimam nem roubem o seu próximo. Não retenham até a manhã do dia seguinte o pagamento de um diarista” (Lv 19.13). Os diaristas eram geralmente pessoas mais pobres, que não tinham terra para cultivar. Eles dependiam especialmente do pagamento imediato por seu trabalho e, portanto, precisavam ser pagos no final de cada dia (cf. Dt 24.14-15). Em nosso mundo, uma situação comparável ocorre quando os empregadores têm o poder de ditar termos e condições de trabalho que tiram proveito das vulnerabilidades dos trabalhadores. Isso ocorre, por exemplo, quando os funcionários são pressionados a contribuir com os candidatos políticos favoritos de seus chefes ou quando se espera que continuem trabalhando de graça após o horário de expediente. Essas práticas são ilegais na maioria dos lugares, mas, infelizmente, continuam sendo comuns.

Uma situação mais controversa diz respeito aos diaristas que não possuem documentação para um emprego formal. Essa situação ocorre em todo o mundo, aplicando-se a refugiados, migrantes, pessoas que mudam do campo para a cidade, imigrantes ilegais, menores de idade e outros. Essas pessoas geralmente trabalham na agricultura, paisagismo, trabalhos braçais, serviços de alimentação e pequenos projetos, além de ocupações ilegais. Visto que tanto empregadores quanto funcionários estão trabalhando fora da lei, esses trabalhadores raramente recebem a proteção de contratos de trabalho e regulamentos governamentais. Os empregadores podem tirar proveito de sua situação pagando menos do que é pago aos trabalhadores legais, negando benefícios e oferecendo condições de trabalho precárias ou perigosas. Tais funcionários podem estar sujeitos a abuso e assédio sexual. Em muitos casos, ficam completamente à mercê do empregador. É legítimo que os empregadores os tratem dessa maneira? Certamente não.

Mas e se as pessoas em tais situações se oferecerem para empregos abaixo do padrão, aparentemente de boa vontade? Em muitos lugares, trabalhadores não registrados estão disponíveis do lado de fora de lojas de jardinagem e materiais de construção, em mercados agrícolas e outros locais de encontro. É correto empregá-los? Em caso afirmativo, será que é responsabilidade dos empregadores fornecer os benefícios que os trabalhadores legais têm garantido por direito, como salário mínimo, auxílio-saúde, planos de aposentadoria, fundo de garantia e indenização por demissão? Como cristãos, devemos ser rigorosos sobre a legalidade de tal emprego, ou devemos ser flexíveis, com base no fato de que a legislação ainda não alcançou a realidade? Cristãos ponderados inevitavelmente vão diferir em suas conclusões a respeito disso e, portanto, é difícil justificar uma solução do tipo “tamanho único”. Seja como for que um cristão enxergue essas questões, Levítico nos lembra que a santidade (e não a conveniência prática) deve estar no centro de nosso pensamento. E a santidade em questões trabalhistas surge da preocupação com as necessidades dos trabalhadores mais vulneráveis.

Direitos das pessoas com deficiência (Levítico 19.14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

“Não amaldiçoem o surdo nem ponham pedra de tropeço à frente do cego, mas temam o seu Deus. Eu sou o Senhor” (Lv 19.14). Esses mandamentos pintam um quadro vívido do tratamento cruel dado a pessoas com deficiência. Um surdo não poderia ouvir se fosse amaldiçoado, nem um cego poderia ver a pedra. Por essas razões, Levítico 19.14 lembra os israelitas a “temer o seu Deus”, que ouve e vê como cada um é tratado no ambiente de trabalho. Por exemplo, os trabalhadores com deficiência não precisam necessariamente dos mesmos móveis e equipamentos de escritório que aqueles sem deficiência. Mas eles precisam sim ter a oportunidade de emprego em todo o âmbito de sua produtividade, assim como todos os outros. Em muitos casos, o que uma pessoa com deficiência mais precisa é não ser impedida de trabalhar numa função em que ela é capaz. Novamente, a ordem em Levítico não é que o povo de Deus deva ser caridoso para com os outros, mas que a santidade de Deus dá a todas as pessoas criadas à sua imagem o direito a oportunidades adequadas de trabalho.

Fazer justiça (Levítico 19.15-16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

“Não cometam injustiça num julgamento; não favoreçam os pobres, nem procurem agradar os grandes, mas julguem o seu próximo com justiça. Não espalhem calúnias entre o seu povo. Não se levantem contra a vida do seu próximo. Eu sou o Senhor”. (Lv 19.15-16)

Esta breve seção defende o conhecido valor bíblico da justiça e, em seguida, amplia consideravelmente o tema. O trecho começa com uma solicitação para juízes, mas termina com uma solicitação para todos. Não julgue processos judiciais com parcialidade e não julgue seu próximo injustamente. A redação do hebraico destaca a tentação de julgar a aparência externa de uma pessoa ou problema. Traduzido ao pé da letra, Levítico 19.15 diz: “Não cometam injustiça no julgamento. Não levantem o rosto do pobre e não honrem o rosto do grande. Com justiça julguem o seu próximo”. Os juízes não devem se deixar levar por seus preconceitos (o “rosto” que percebem) para tratar da questão de forma imparcial. O mesmo vale para nossos relacionamentos sociais no trabalho, na escola e na vida cívica. Em todos os contextos, algumas pessoas são privilegiadas e outras oprimidas por causa de preconceitos sociais de todo tipo. Imagine a diferença que nós cristãos poderíamos fazer se simplesmente esperássemos para emitir julgamentos apenas depois de conhecer pessoas e situações em profundidade. E se dedicássemos um tempo para conhecer melhor a pessoa irritante em nossa equipe antes de reclamar dela pelas costas? E se ousássemos passar um tempo com pessoas fora de nossa zona de conforto na escola, na universidade ou na vida social? E se procurássemos jornais, TV e mídias que oferecessem uma perspectiva diferente daquela com a qual nos sentimos confortáveis? Escavar abaixo da superfície nos daria mais sabedoria para fazer nosso trabalho bem e com justiça?

A última parte de Levítico 19.16 nos lembra que o preconceito social não é uma questão simples. Literalmente, o hebraico diz: “Não se coloque contra o sangue do seu próximo”. Na linguagem do tribunal, no trecho anterior, o testemunho tendencioso (“calúnia”) põe em risco a vida (“sangue”) do acusado. Nesse caso, não apenas seria errado falar palavras tendenciosas, mas seria errado até ficar de braços cruzados, sem se oferecer para testemunhar em favor dos falsamente acusados.

Os líderes nos ambientes de trabalho devem frequentemente agir como árbitros. Os trabalhadores podem testemunhar uma injustiça no ambiente de trabalho e legitimamente questionar se é ou não apropriado se envolver. Levítico afirma que permanecer proativamente a favor dos maltratados é um elemento essencial para pertencer ao povo santo de Deus.

Em um nível mais amplo, Levítico traz sua visão teológica de santidade para toda a comunidade. A saúde da comunidade e a economia que compartilhamos está em jogo. Hans Kung aponta a inter-relação necessária entre negócios, política e religião:

Não se deve esquecer que o pensamento e as ações econômicas também não são isentos ou neutros em termos de valores... Assim como a responsabilidade social e ecológica das empresas não pode ser simplesmente imposta aos políticos, a responsabilidade moral e ética não pode ser simplesmente imposta para a religião... Não, a ação ética não deve ser apenas um acréscimo particular aos planos de marketing, estratégias de vendas, contabilidade ecológica e balanços sociais, mas deve formar a estrutura natural para a ação social humana. [1]

Todo tipo de ambiente de trabalho — doméstico, empresarial, governamental, acadêmico, médico, agrícola e todo o resto — tem um papel distinto a desempenhar. No entanto, todos são chamados a ser santos. Em Levítico 19.15-16, a santidade começa por ver os outros com uma profundidade de percepção que vai além do valor aparente.

Amar o próximo como a si mesmo (Levítico 19.17-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O versículo mais famoso de Levítico pode ser o mandamento: “Ame cama um o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19.18). Esse imperativo é tão abrangente que tanto Jesus quanto os rabinos o consideravam um dos dois “grandes” mandamentos, sendo o outro “Ouve, ó Israel, o Senhor, o nosso Deus, o Senhor é o único Senhor” (Mc 12.29-31; cf. Dt 6.4). Ao citar Levítico 19.18, o apóstolo Paulo escreveu que “o amor é o cumprimento da lei” (Rm 13.10).

Trabalhar pelos outros tanto quanto por nós mesmos

O cerne da ordem está nas palavras “como a si mesmo”. Pelo menos até certo ponto, a maioria de nós trabalha para se sustentar. Há um forte elemento de interesse próprio no trabalho. Sabemos que, se não trabalharmos, não comeremos. As Escrituras elogiam essa motivação (2Ts 3.10), mas o aspecto “como a si mesmo” de Levítico 19.18 sugere que devemos estar igualmente motivados a servir aos outros por meio de nosso trabalho. Esse é um chamado muito importante: trabalhar tanto para servir aos outros quanto para atender às nossas próprias necessidades. Se tivéssemos de trabalhar o dobro para conseguir isso — digamos, um turno por dia para nós mesmos e outro para o próximo — seria quase impossível.

Providencialmente, é possível amar a nós mesmos e ao próximo por meio do mesmo trabalho, pelo menos na medida em que nosso trabalho forneça algo de valor a clientes, cidadãos, estudantes, familiares e outros consumidores. Um professor recebe um salário que paga as contas e, ao mesmo tempo, transmite aos alunos conhecimentos e habilidades que serão igualmente valiosos para eles. Uma camareira de hotel recebe seu salário enquanto oferece aos hóspedes um quarto limpo e saudável. Na maioria dos empregos, não ficaríamos empregados por muito tempo se não oferecêssemos aos outros um valor pelo menos igual ao que recebemos de salário. Mas e se nos encontrarmos em uma situação em que possamos distorcer os benefícios a nosso favor? Algumas pessoas podem ter poder suficiente para exigir salários e bônus que excedam o valor que realmente fornecem. Pessoas com conexões políticas ou envolvida em corrupção podem conseguir grandes recompensas para si mesmos na forma de contratos, subsídios, bônus e empregos temporários, enquanto fornecem pouco valor para os outros. Quase todos nós temos momentos em que podemos fugir de nossos deveres e, ainda assim, ser pagos.

Pensando de forma mais ampla, se temos uma ampla gama de opções em nosso trabalho, qual é o papel de servir aos outros em nossas decisões de trabalho, em comparação com fazer o máximo para nós mesmos? Quase todo tipo de trabalho pode servir aos outros e agradar a Deus. Mas isso não significa que todo emprego ou oportunidade de trabalho seja igualmente útil para os outros. Amamos a nós mesmos quando fazemos escolhas de trabalho que nos trazem altos salários, prestígio, segurança, conforto e trabalho fácil. Amamos os outros quando escolhemos um trabalho que forneça bens e serviços necessários, oportunidades para pessoas marginalizadas, proteção para a criação de Deus, justiça e democracia, verdade, paz e beleza. Levítico 19.18 sugere que os últimos devem ser tão importante para nós quanto os primeiros.

Ser legal?

Em vez de nos esforçarmos para cumprir esse alto chamado, é fácil transformar nosso entendimento de “amar ao próximo como a si mesmo” em algo banal como “ser legal”. Mas ser legal muitas vezes nada mais é do que uma fachada e uma desculpa para nos desconectarmos das pessoas ao nosso redor. Levítico 19.17 nos ordena fazer o oposto. “Repreendam com franqueza o seu próximo para que, por causa dele, não sofram as consequências de um pecado” (Lv 19.17). Esses dois mandamentos — tanto amar quanto repreender o próximo — parecem improváveis, mas são reunidos no provérbio: “Melhor é a repreensão feita abertamente do que o amor oculto” (Pv 27.5).

Lamentavelmente, muitas vezes a lição que aprendemos na igreja é sempre sermos legais. Se isso se tornar nossa regra no ambiente de trabalho, os efeitos pessoais e profissionais podem ser desastrosos. A gentileza pode induzir os cristãos a permitirem que agressores e predadores manipulem e abusem deles — e que façam o mesmo com outros. Para ser legal, um gerente cristão pode encobrir as deficiências dos trabalhadores nas avaliações de desempenho, privando-os de um motivo para aprimorar suas habilidades e manter seus empregos a longo prazo. Ao querer ser legal, qualquer pessoa pode guardar ressentimento, alimentar rancor ou buscar vingança. Levítico nos diz que amar as pessoas às vezes significa repreender honestamente. Esta não é uma licença para a insensibilidade. Quando repreendemos, precisamos fazê-lo com compaixão e humildade — afinal, também podemos precisar ser repreendidos na situação.

Para uma discussão mais completa sobre o que significa amar ao próximo como a si mesmo no ambiente de trabalho, veja “A abordagem de comando na prática” e “A abordagem do caráter” em Visão geral da ética no trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

Quem é meu próximo? (Levítico 19.33-34)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Levítico ensina que os israelitas não devem maltratar (ou oprimir) os estrangeiros que viviam entre eles (Lv 19.33). (O mesmo verbo hebraico aparece em Lv 25.17, “Não explorem um ao outro.”) A ordem continua: “O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.34). Esse versículo é um exemplo particularmente forte da conexão inquebrável em Levítico entre a força moral da lei (amar o estrangeiro “como a si mesmos”) e o próprio ser de Deus: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês”. Você não oprime estrangeiros pois pertence a um Deus que é santo.

Estrangeiros residentes, junto com viúvas e pobres (veja Lv 19.9-10 acima), tipificam os forasteiros sem poder. Nos ambientes de trabalho de hoje, as diferenças de poder surgem não apenas das diferenças de nacionalidade e gênero, mas também de uma variedade de outros fatores. Seja qual for a causa, a maioria dos ambientes de trabalho desenvolve uma hierarquia de poder que é bem conhecida por todos, independentemente de ser abertamente reconhecida. Com Levítico 19.33-34, podemos concluir que os cristãos devem tratar outras pessoas com justiça nos negócios, como uma expressão de adoração genuína a Deus.

Negociar com justiça (Levítico 19.35-36)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Essa passagem proíbe trapaças nos negócios, usando medidas enganosas de comprimento, peso ou quantidade, e isso se torna ainda mais específica ao mencionar balanças e pesos, equipamentos comuns do comércio. As várias medidas mencionadas indicam que essa regra se aplicaria a um amplo espectro, desde vastas extensões de terra até a menor quantidade de mercadorias secas e úmidas. A palavra hebraica tsedeq (“honesto”) que aparece quatro vezes em Levítico 19.36 denota um caráter que é certo em termos de integridade e de irrepreensibilidade. Todos os pesos e medidas devem ser precisos. Em suma, os compradores devem receber aquilo pelo que pagaram.

Os vendedores possuem inúmeras e variadas maneiras de entregar menos do que os compradores pensam que estão recebendo. Essas medidas não se limitam a medidas falsificadas de peso, área e volume. Afirmações exageradas, estatísticas enganosas, comparações irrelevantes, promessas que não podem ser cumpridas, propaganda enganosa e termos e condições ocultos são apenas a ponta do iceberg. (Para aplicações em vários ambientes de trabalho, veja “Apreciação da verdade no ambiente de trabalho” em www.teologiadotrabalho.org.)

Uma mulher que trabalha para uma grande emissora de cartões de crédito conta uma história perturbadora:

Nosso negócio é fornecer cartões de crédito a pessoas pobres com histórico de crédito ruim. Embora cobremos altas taxas de juros, a taxa de inadimplência de nossos clientes é tão alta que não podemos lucrar simplesmente cobrando juros. Temos de encontrar uma maneira de cobrar encargos.
Um desafio é que a maioria de nossos clientes tem medo de se endividar ainda mais e, por isso, paga o saldo mensal em dia. Assim, não há encargos para cobrarmos. Portanto, temos um truque para pegá-los desprevenidos. Nos primeiros seis meses, enviamos uma conta no dia 15 do mês, com vencimento no dia 15 do seguinte. Eles aprendem o padrão e diligentemente fazem o pagamento no dia 14 todos os meses. No sétimo mês, enviamos a fatura no dia 12, com vencimento para o dia 12 do mês seguinte. Eles não percebem a mudança e fazem o pagamento no dia 14, como de costume. Agora nós os pegamos. Cobramos uma taxa de serviço de US$ 30 pelo atraso no pagamento. Além disso, como eles estão inadimplentes, podemos aumentar sua taxa de juros. No mês seguinte, eles já estão em atraso e em um ciclo que gera encargos para nós, mês após mês.[1]

É difícil ver como qualquer comércio ou negócio que dependa de mentir ou enganar as pessoas para obter lucro possa ser uma linha de trabalho adequada para aqueles que são chamados a seguir um Deus santo.

O ano sabático e o ano do jubileu (Levítico 25)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Levítico 25 ordena um ano sabático, um em cada sete (Lv 25.1-7), e um ano de jubileu, um em cada cinquenta (Lv 25.8-17), para santificar a economia interna de Israel. No ano sabático, cada campo deveria ficar em repouso, o que parece ser uma boa prática agrícola. O ano do jubileu era muito mais radical. A cada 50 anos, todas as terras arrendadas ou hipotecadas deveriam ser devolvidas a seus proprietários originais, e todos os escravos e trabalhadores em servidão deveriam ser libertados (Lv 25.10). Isso naturalmente apresentou dificuldades nas transações bancárias e de terras, e disposições especiais foram projetadas para melhorá-las (Lv 25.15-16), que exploraremos em seguida. A intenção subjacente é a mesma vista na lei da respiga (Lv 19.9-10), ou seja, garantir que todos tenham acesso aos meios de produção, seja a fazenda da família ou simplesmente os frutos de seu próprio trabalho.

Não se sabe com certeza se Israel realmente observou o ano do jubileu ou as disposições antiescravidão associadas a ele (por exemplo, Lv 25.25-28,39-41) em larga escala. Independentemente disso, o simples detalhe de Levítico 25 sugere fortemente que tratemos as leis como algo que Israel fez ou deveria ter implementado. Em vez de ver o ano do jubileu como uma ficção literária utópica, parece melhor acreditar que sua negligência generalizada ocorreu não porque o jubileu era inviável, mas porque os ricos não estavam dispostos a aceitar as implicações sociais e econômicas que teriam sido dispendiosas e perturbadoras para eles. [1]

Proteção para os necessitados

Depois que Israel conquistou Canaã, a terra foi atribuída aos clãs e famílias de Israel, conforme descrito em Números 26 e Josué 15—22. Esta terra nunca deveria ser vendida definitivamente, pois pertencia ao Senhor, não ao povo (Lv 25.23-24). [2] O efeito do jubileu era impedir que qualquer família se tornasse permanentemente sem terra por meio da venda, hipoteca ou arrendamento permanente da terra que lhe havia sido designada. Em essência, qualquer venda de terra era realmente um contrato de arrendamento que não poderia durar mais do que o próximo ano do jubileu (Lv 25.15). Isso fornecia um meio para que os necessitados arrecadassem dinheiro (arrendando a terra) sem privar as futuras gerações da família dos meios de produção. As regras de Levítico 25 não são fáceis de decifrar, e Milgrom as entende ao definir três estágios progressivos de pobreza. [3]

  1. O primeiro estágio é descrito em Levítico 25.25-28. Uma pessoa poderia simplesmente se tornar pobre. O cenário presumido é o de um agricultor que pediu dinheiro emprestado para comprar sementes, mas não colheu o suficiente para pagar o empréstimo. Ele, portanto, deve vender parte da terra a um comprador, a fim de cobrir a dívida e comprar sementes para o próximo plantio. Se houvesse uma pessoa pertencente ao clã do agricultor que desejasse atuar como “resgatador”, ela poderia pagar ao comprador de acordo com o número de colheitas anuais restantes até o ano do jubileu; depois disso, a terra voltaria para o agricultor. Até lá, a terra pertenceria ao resgatador, que cederia a terra para que o fazendeiro a cultivasse.
  2. O segundo estágio era mais sério (Lv 25.35-38). Supondo que a terra não fosse resgatada e que o agricultor voltasse a ter uma dívida da qual não pudesse se recuperar, ele perderia todas as suas terras para o credor. Nesse caso, o credor deveria emprestar ao agricultor os fundos necessários para continuar trabalhando como arrendatário em sua própria terra, mas sem cobrar juros. O agricultor amortizava esse empréstimo com o lucro obtido com as colheitas, talvez eliminando a dívida. Nesse caso, o agricultor recuperaria sua terra. Se o empréstimo não fosse totalmente pago antes do jubileu, então a terra voltaria para o fazendeiro ou seus herdeiros.
  3. O terceiro estágio era ainda mais sério (Lv 25.39-43). Supondo que o agricultor no estágio anterior não pudesse pagar o empréstimo nem mesmo sustentar a si mesmo e sua família, ele ficaria temporariamente vinculado à família do credor. Como trabalhador vinculado, ele trabalharia por salários, que eram inteiramente voltados para redução da dívida. No ano do jubileu, ele recuperaria sua terra e sua liberdade (Lv 25.41). Ao longo desses anos, o credor não deveria escravizá-lo, vendê-lo como escravo ou dominá-lo impiedosamente (Lv 25.42-43). O credor deve “temer a Deus”, aceitando o fato de que todo o povo de Deus é “escravo” (ou “servo”) de Deus que ele graciosamente tirou do Egito. Ninguém mais pode possuí-los, porque Deus já os possui.

O ponto principal dessas regras é que os israelitas nunca deveriam se tornar escravos de outros israelitas. Era concebível, porém, que israelitas empobrecidos pudessem se vender como escravos a ricos estrangeiros residentes que viviam na terra (Lv 25.47-55). Mesmo que isso tenha acontecido, a venda não deveria ser permanente. As pessoas que se vendiam deviam manter o direito de se livrar da escravidão, se viessem a prosperar. Caso contrário, um parente próximo poderia intervir como “resgatador”, pagando ao estrangeiro de acordo com o número de anos restantes até o jubileu, quando os israelitas empobrecidos seriam libertados. Durante esse tempo, eles não deveriam ser tratados com severidade, mas seriam considerados trabalhadores contratados.

O que o ano do jubileu significa para hoje?

O ano do jubileu operava dentro do contexto do sistema de parentesco de Israel para a proteção do direito inalienável do clã de trabalhar em sua terra ancestral, que eles entendiam ser propriedade de Deus e que deveria ser desfrutada por eles como um benefício de seu relacionamento com Deus. Essas condições sociais e econômicas não existem mais e, do ponto de vista bíblico, Deus não administra mais o resgate por meio de um único estado político. Devemos, portanto, ver o jubileu do nosso ponto de vista atual.

Existe uma grande variedade de perspectivas sobre a aplicação adequada — se é que há uma — do jubileu às sociedades de hoje. Para citar um exemplo que se relaciona seriamente com as realidades contemporâneas, Christopher Wright escreveu extensivamente sobre a apropriação cristã das leis do Antigo Testamento. [4] Ele identifica princípios implícitos nessas leis antigas, a fim de compreender suas implicações éticas para os dias de hoje. Seu tratamento do ano do jubileu considera, portanto, três ângulos básicos: o teológico, o social e o econômico. [5]

Teologicamente, o jubileu afirma que o Senhor não é apenas o Deus que possui a terra de Israel; ele é soberano sobre todo o tempo e a natureza. Seu ato de resgatar seu povo do Egito trazia o compromisso de sustentá-los em todos os níveis, porque eles eram seus. Portanto, a observância de Israel quanto ao sábado, ao ano sabático e ao ano do jubileu era uma questão de obediência e confiança. Em termos práticos, o ano do jubileu encarna a confiança que todos os israelitas poderiam ter de que Deus proveria suas necessidades imediatas e o futuro de suas famílias. Ao mesmo tempo, exorta os ricos a confiarem que tratar os credores com compaixão ainda trará um retorno adequado.

Olhando para o ângulo social, a menor unidade da estrutura de parentesco de Israel era a família, que incluiria de três a quatro gerações. O jubileu forneceu uma solução socioeconômica para manter a família inteira, mesmo diante da calamidade econômica. A dívida familiar era uma realidade nos tempos antigos, como é hoje, e seus efeitos incluem uma lista assustadora de males sociais. O jubileu procurou conter essas consequências sociais negativas, limitando sua duração, para que as gerações futuras não tivessem de arcar com o fardo de seus ancestrais distantes. [6]

O ângulo econômico revela os dois princípios que podemos aplicar hoje. Primeiro, Deus deseja uma distribuição justa dos recursos da terra. De acordo com o plano de Deus, a terra de Canaã foi distribuída de forma equitativa entre o povo. O jubileu não dizia respeito a redistribuição, mas a restauração. De acordo com Wright, “o jubileu, portanto, representa uma crítica não apenas à massiva acumulação privada de terra e de riqueza relacionada, mas também a formas em larga escala de coletivismo ou nacionalização que destroem qualquer senso significativo de propriedade pessoal ou familiar”. [7] Em segundo lugar, as unidades familiares devem ter a oportunidade e os recursos para se sustentarem.

Na maioria das sociedades modernas, as pessoas não podem ser vendidas como escravas para pagar dívidas. As leis de falência fornecem alívio para aqueles que têm dívidas impagáveis, e os descendentes não são responsáveis ​​pelas dívidas dos antepassados. A propriedade básica necessária para a sobrevivência pode ser protegida contra apreensão. No entanto, Levítico 25 parece oferecer uma base mais ampla do que as leis de falências contemporâneas. Ela se baseia não apenas em proteger a liberdade pessoal e um pouco de propriedade para pessoas carentes, mas em garantir que todos tenham acesso aos meios de ganhar a vida e escapar da pobreza multigeracional. Como mostram as leis de respiga em Levítico, a solução não é esmola nem a apropriação em massa da propriedade, mas valores e estruturas sociais que dão a cada pessoa a oportunidade de trabalhar de forma produtiva. As sociedades modernas realmente ultrapassaram o antigo Israel nesse aspecto? E quanto aos milhões de pessoas escravizadas ou em trabalho escravo, ainda hoje, enfrentando situações em que as leis antiescravidão não são aplicadas adequadamente? O que seria necessário para que os cristãos fossem capazes de oferecer soluções reais?

Conclusões de Levítico

Voltar ao índice Voltar ao índice

A conclusão mais importante que podemos tirar de Levítico é que somos chamados como povo de Deus a refletir a santidade de Deus em nosso trabalho. Isso nos chama a nos separar das ações de qualquer pessoa ao nosso redor que se oponha aos caminhos de Deus. Quando refletimos a santidade de Deus, nos encontramos na presença de Deus, seja no trabalho, em casa, na igreja ou na sociedade. Refletimos a santidade de Deus não pendurando versículos das Escrituras, recitando orações, usando cruzes ou mesmo sendo gentis. Fazemos isso amando nossos colegas de trabalho, clientes, alunos, investidores, concorrentes, rivais e todos que encontramos, tanto quanto amamos a nós mesmos. Em termos práticos, isso significa fazer tanto bem aos outros por meio de nosso trabalho quanto fazemos a nós mesmos. Isso anima nossa motivação, nossa diligência, nosso exercício de poder, nosso desenvolvimento de habilidades e talvez até nossa escolha de trabalho. Também significa trabalhar em benefício de toda a comunidade e em harmonia com o restante da sociedade, na medida em que depende de nós. E significa trabalhar para mudar as estruturas e os sistemas da sociedade para que reflitam a santidade de Deus como aquele que libertou Israel da escravidão e da opressão. Quando fazemos isso, descobrimos, pela graça de Deus, que suas palavras se cumprem: “Estabelecerei a minha habitação entre vocês e não os rejeitarei. Andarei entre vocês e serei o seu Deus, e vocês serão o meu povo” (Lv 26.11-12).

Introdução a Números

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Números contribui significativamente para nossa compreensão e prática do trabalho. O livro apresenta o povo de Deus, Israel, lutando para trabalhar de acordo com os propósitos de Deus em tempos difíceis. Em suas lutas, eles experimentam conflitos sobre identidade, autoridade e liderança, enquanto atravessam o deserto em direção à terra prometida de Deus. A maior parte da percepção que podemos obter para nosso trabalho vem pelo exemplo, onde vemos o que agrada a Deus e o que não agrada a Deus, e não por uma série de mandamentos.

O livro é chamado de “Números” em português porque registra uma série de censos que Moisés fez das tribos de Israel. Censos foram feitos para quantificar os recursos humanos e naturais disponíveis para os assuntos econômicos e governamentais, incluindo o serviço militar (Nm 1.2-3; 26.2-4), deveres religiosos (Nm 4.2-3,22-23), tributação (Nm 3.40-48) e agricultura (Nm 26.53-54). A alocação eficaz de recursos depende de dados confiáveis. Mas esses censos servem como estrutura para uma narrativa que vai além de apenas relatar os números. Nas narrativas, as estatísticas são frequentemente mal utilizadas, levando à dissensão, rebelião e agitação social. O raciocínio quantitativo em si não é o problema — o próprio Deus ordena censos (Nm 1.1-2). Mas, quando a análise numérica é usada como pretexto para se desviar da palavra do Senhor, segue-se o desastre (Nm 14.20-25). Um eco distante dessa manipulação de números como um substituto para o raciocínio moral genuíno pode ser ouvido nos escândalos contábeis e nas crises financeiras de hoje.

O relato de Números se passa naquela região desértica que não é o Egito nem a terra prometida. O título hebraico do livro, bemidbar, é uma abreviação para a frase “no deserto do Sinai” (Nm 1.1), que descreve a ação principal do livro — a jornada de Israel pelo deserto. A nação progride do Sinai em direção à terra prometida, terminando com a chegada de Israel à região a leste do rio Jordão. Eles chegaram a esse local porque a “mão poderosa” de Deus (Êx 6.1) os libertou da escravidão no Egito, a história contada no livro do Êxodo. Uma coisa era tirar o povo da escravidão; tirar a escravidão do povo provaria ser outra coisa bem diferente. Em suma, o livro de Números fala sobre a vida com Deus durante a jornada para o destino de suas promessas, uma jornada que nós, como povo de Deus, ainda estamos empreendendo. Na experiência de Israel no deserto, encontramos recursos para os desafios em nossa vida e trabalho hoje, e podemos obter encorajamento da ajuda sempre presente de Deus.

Deus numera e ordena a nação de Israel (Números 1.1—2.34)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Antes do Êxodo, Israel nunca havia sido uma nação. Israel começou como a família de Abraão e Sara e seus descendentes, prosperou como um clã sob a liderança de José, mas caiu em escravidão como minoria étnica no Egito. A população israelita no Egito cresceu e se tornou do tamanho de uma nação (Êx 12.37), mas, como povo escravizado, não lhes era permitido instituições ou organizações nacionais. Eles haviam partido do Egito como uma multidão desorganizada de refugiados (Êx 12.34-39), que agora precisava ser organizada em uma nação funcional.

Deus instrui Moisés a enumerar a população (o primeiro censo, Nm 1.1-3) e criar um governo provisório chefiado por líderes tribais (Nm 1.4-16). Sob a direção adicional de Deus, Moisés nomeia uma ordem religiosa, os levitas, e os equipa com recursos para construir o tabernáculo da aliança (Nm 1.48-54). Ele estabelece acampamentos para todo o povo, depois arregimenta os homens em idade de combate em escalões militares e nomeia comandantes e oficiais (Nm 2.1-9). Ele cria uma burocracia, delega autoridade a líderes qualificados e institui um judiciário civil e um tribunal de apelação (isso é dito em Êx 18.1-27, em vez de Números). Antes que Israel possa entrar na posse da terra prometida (Gn 28.15) e cumprir sua missão de abençoar todas as nações (Gn 18.18), a nação teve de ser organizada de forma eficaz.

As atividades de organização, liderança, governança e desenvolvimento de recursos dirigidas por Moisés encontram paralelos em praticamente todos os setores da sociedade atual — negócios, governo, forças armadas, educação, religião, organizações sem fins lucrativos, associações de bairro e até famílias. Nesse sentido, Moisés é o padrinho de todos os gerentes, contadores, estatísticos, economistas, oficiais militares, governadores, juízes, policiais, diretores, líderes comunitários e uma infinidade de outros. A atenção detalhada que Números dá à organização de obreiros, ao treinamento de líderes, à criação de instituições civis, ao desenvolvimento de capacidades logísticas, à estruturação de defesas e ao desenvolvimento de sistemas contábeis sugere que Deus ainda orienta e capacita a organização, o governo, os recursos e a manutenção das estruturas sociais hoje.

Os levitas e a obra de Deus (Números 3—8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O texto de Números 3—8 se concentra no trabalho dos sacerdotes e levitas. (Os levitas são a tribo cujos homens servem como sacerdotes — em grande parte, os termos são intercambiáveis ​​em Números.) Eles têm o papel essencial de mediar a redenção de Deus para todo o povo (Nm 3.40-51). Como outros trabalhadores, eles são enumerados e organizados em unidades de trabalho, embora estejam isentos do serviço militar (Nm 4.2-3,22-23). Pode parecer que o trabalho deles receba um destaque como mais importante do que o trabalho dos outros, pois lida com as “coisas santíssimas” (Nm 4.4). É verdade que a atenção particularmente detalhada dada à Tenda do Encontro e seus utensílios parece elevar o papel dos sacerdotes a um nível mais alto do que o restante do povo. Mas o texto, na verdade, retrata o quão intrincadamente seu trabalho está relacionado ao trabalho de todos os israelitas. Os levitas ajudam todas as pessoas a alinharem sua vida e seu trabalho com a lei e os propósitos de Deus. Além disso, o trabalho realizado pelos levitas na tenda é bastante semelhante ao trabalho da maioria dos israelitas — desmontar, mover e montar acampamento, acender fogo, lavar roupa, abater animais e processar grãos. A ênfase, então, está na integração do trabalho dos levitas com o de todos os outros. Números dá uma atenção cuidadosa ao trabalho dos sacerdotes de mediar a presença de Deus, não porque o trabalho religioso seja a ocupação mais importante, mas porque Deus é o ponto central de cada ocupação.

Oferecendo a Deus os produtos de nosso trabalho (Números 4 e 7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Senhor dá instruções detalhadas para montar a Tenda do Encontro, o local de sua presença com Israel. A Tenda do Encontro requer materiais produzidos por uma grande variedade de trabalhadores — couro fino, tecido azul, tecido vermelho, cortinas, varas e molduras, pratos, travessas, tigelas, jarros, candelabros, apagadores, bandejas, óleo e vasos para guardá-lo, um altar de ouro, panelas de fogo, garfos, pás, bacias e incenso aromático (Nm 4.5-15). (Para uma descrição semelhante, veja “O tabernáculo”, em Êxodo 31.1-12.) No decorrer da adoração, o povo traz para ela outros produtos do trabalho humano, como ofertas de bebidas (Nm 4.7 e outros), grãos (4.16 e outros), óleo (7.13 e outros), cordeiros e ovelhas (6.12 e outros), cabras (7.16 e outros) e metais preciosos (7.25 e outros). Praticamente todas as ocupações — na verdade, quase todas as pessoas — em Israel são necessárias para tornar possível a adoração a Deus na Tenda do Encontro.

Os levitas alimentavam suas famílias principalmente com uma parte dos sacrifícios. Estes foram distribuídos aos levitas porque, ao contrário das outras tribos, eles não receberam terras para cultivar (Nm 18.18-32). Os levitas não recebiam sacrifícios porque eles eram homens santos, mas porque, presidindo os sacrifícios, levavam todos a uma relação santa com Deus. O povo, e não os levitas, era o principal beneficiário dos sacrifícios. Na verdade, o próprio sistema sacrificial era um componente do sistema de suprimento de alimentos de Israel. Além de algumas porções queimadas no altar e da porção dos levitas, mencionada acima, as partes principais das ofertas de cereais e de animais eram destinadas ao consumo daqueles que as traziam. [1] Assim, todos em Israel foram, em parte, alimentados pelo sistema. No geral, o sistema sacrificial não servia para isolar algumas coisas sagradas do restante da produção humana, mas para mediar a presença de Deus em toda a vida e obra da nação.

Da mesma forma, hoje, os produtos e serviços de todo o povo de Deus são expressões do poder de Deus em ação nos seres humanos, ou pelo menos deveriam ser. O Novo Testamento desenvolve esse tema explicitamente a partir do Antigo Testamento. “Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9). Todo o trabalho que fazemos, quando a bondade de Deus é proclamada, é um trabalho sacerdotal. Os itens que produzimos — couro e tecidos, pratos e recipientes, materiais de construção, planos de aula, previsões financeiras e todo o resto — são itens sacerdotais. O trabalho que fazemos — lavar roupas, plantar, criar filhos e todas as outras formas de trabalho legítimo — é um serviço sacerdotal a Deus. Todos nós devemos perguntar: “Como meu trabalho reflete a bondade de Deus, torna-o visível para aqueles que não o reconhecem e serve a seus propósitos no mundo?” Todos os crentes, não apenas o clero, são descendentes dos sacerdotes e levitas em Números, fazendo a obra de Deus todos os dias.

Arrependimento, restituição e reconciliação (Números 5.5-10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Um papel essencial do povo de Deus é levar reconciliação e justiça a cenas de conflito e abuso. Embora o povo de Israel se comprometesse a obedecer aos mandamentos de Deus, eles rotineiramente falhavam, assim como nós fazemos hoje. Muitas vezes, isso acontecia na forma de maltratar outras pessoas. “Quando um homem ou uma mulher prejudicar outra pessoa e, portanto, ofender o Senhor, será culpado” (Nm 5.6). Por meio da obra dos levitas, Deus fornece um meio de arrependimento, restituição e reconciliação após tais erros. Um elemento essencial é que a parte culpada não apenas retribua a perda que causou, mas também acrescente 20% (Nm 5.7), presumivelmente como uma forma de sofrer a perda em solidariedade à vítima. (Esta passagem é paralela à oferta pela culpa descrita em Levítico; veja “O significado da oferta pela culpa”, em Levítico e o trabalho.)

O Novo Testamento dá um exemplo vívido desse princípio em ação. Quando o cobrador de impostos Zaqueu vem para a salvação em Cristo, ele se oferece para devolver quatro vezes a quantia que cobrou a mais de seus concidadãos. Um exemplo mais moderno — embora não fundamentado explicitamente na Bíblia — é a prática crescente de hospitais admitirem erros, pedirem desculpas e oferecerem restituição financeira imediata e assistência aos pacientes e famílias envolvidas. [1] Mas você não precisa ser um coletor de impostos ou um médico para cometer erros. Todos nós temos amplas oportunidades de confessar nossos erros e nos oferecer para compensá-los e muito mais. É no local de trabalho que grande parte desse desafio ocorre. No entanto, realmente fazemos isso ou tentamos encobrir nossas falhas e minimizar nossa responsabilidade?

A bênção de Arão para o povo (Números 6.22-27)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Um dos principais papéis dos levitas é invocar a bênção de Deus. Deus ordena estas palavras para a bênção sacerdotal:

O Senhor te abençoe e te guarde;
o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça;
o Senhor volte para ti o seu rosto e te dê paz. (Nm 6.24-26)

Deus abençoa as pessoas de inúmeras maneiras — espiritual, mental, emocional e material. Mas o foco aqui é abençoar as pessoas com palavras. Nossas boas palavras se tornam o momento da graça de Deus na vida das pessoas. “Assim eles invocarão o meu nome sobre os israelitas, e eu os abençoarei”, Deus promete (Nm 6.27).

As palavras que usamos em nosso ambiente de trabalho têm o poder de abençoar ou amaldiçoar, edificar ou destruir outros. Nossa escolha de palavras muitas vezes tem mais poder do que imaginamos. A bênção em Números 6.24-26 declara que Deus o “guardará”, concederá “graça” a você e lhe dará “paz”. No trabalho, nossas palavras podem “guardar” outra pessoa — ou seja, tranquilizar, proteger e apoiar. “Se precisar de ajuda, venha até mim. Não vou usar isso contra você.” Nossas palavras podem ser cheias de “graça”, fazendo com que uma situação seja melhor do que seria de outra forma. Podemos aceitar a responsabilidade por um erro compartilhado, por exemplo, em vez de transferir a culpa e minimizar nosso papel. Nossas palavras podem trazer paz ao restaurar relacionamentos que foram rompidos. “Percebo que as coisas deram errado entre nós, mas quero encontrar uma maneira de ter um bom relacionamento novamente”, por exemplo. Claro, há momentos em que temos de contestar, criticar, corrigir e talvez punir os outros no trabalho. Mesmo assim, podemos escolher entre criticar a ação errada ou condenar a pessoa como um todo. Por outro lado, quando os outros se saem bem, podemos optar por elogiar em vez de ficar em silêncio, apesar do pequeno risco para nossa reputação ou situação.

Aposentadoria do serviço regular (Números 8.23-26)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Números contém a única passagem da Bíblia que especifica um limite de idade para o trabalho. Os levitas começaram em seu serviço ainda jovens, sendo fortes o suficiente para erguer e transportar o tabernáculo com todos os seus elementos sagrados. Os censos de Números 4 não incluíam nomes de levitas com mais de cinquenta anos, e Números 8.25 especifica que, aos cinquenta anos de idade, os levitas deviam se aposentar de seus deveres. Além do trabalho pesado do tabernáculo, o trabalho dos levitas também incluía inspecionar de perto as doenças da pele (Lv 13). Em uma época anterior aos óculos de grau, praticamente ninguém com mais de cinquenta anos seria capaz de ver qualquer coisa de perto. O ponto aqui não é definir que cinquenta anos seja a idade universal para a aposentadoria, mas mostrar que chegará um momento em que um corpo que envelhece terá menos eficácia no trabalho. O processo varia muito entre indivíduos e ocupações. Moisés tinha oitenta anos quando começou seus deveres como líder de Israel (Êx 7.7).

A aposentadoria, no entanto, não foi o fim do trabalho dos levitas. O objetivo não era retirar do serviço os trabalhadores produtivos, mas redirecionar seu serviço para uma direção mais madura, dadas as condições de sua ocupação. Após a aposentadoria, eles ainda podiam “ajudar seus companheiros de ofício na responsabilidade de cuidar da Tenda do Encontro” (Nm 8.26). Às vezes, algumas faculdades — juízo, sabedoria e perspicácia, talvez — podem realmente melhorar com o avançar da idade. Ao “ajudar seus irmãos”, os levitas mais velhos passaram a adotar diferentes maneiras de servir suas comunidades. As noções modernas de aposentadoria, que consistem em deixar de trabalhar e dedicar tempo exclusivamente ao lazer, não são encontradas na Bíblia.

Como os levitas, não devemos buscar a cessação total do trabalho significativo na velhice. Podemos querer ou precisar abrir mão de nossas posições, mas nossas habilidades e sabedoria ainda são valiosas. Podemos continuar a servir aos outros em nossas ocupações por meio da liderança em associações comerciais, organizações sociais, conselhos de administração e órgãos de licenciamento. Podemos prestar consultoria, treinar, ensinar ou orientar. Podemos finalmente ter tempo para servir ao máximo na igreja, nos clubes, nos cargos eletivos ou nas organizações de serviço. Talvez possamos investir mais tempo com nossa família, ou, se for tarde demais para isso, na vida de outras crianças e jovens. Muitas vezes, nosso novo serviço mais valioso é treinar e encorajar (abençoar) os trabalhadores mais jovens (veja Nm 6.24-27).

Dadas essas possibilidades, a velhice pode ser um dos períodos mais satisfatórios da vida de uma pessoa. Infelizmente, a aposentadoria deixa muitas pessoas de lado no momento em que seus dons, recursos, tempo, experiência, redes de relacionamentos, influência e sabedoria podem ser mais benéficos. Alguns decidem buscar apenas lazer e entretenimento ou simplesmente desistir da vida. Outros acham que as regulamentações relacionadas à idade e a marginalização social os impedem de trabalhar tão plenamente quanto desejam. Um artigo de Ian Rose para a BBC, “Por que mentimos sobre estar aposentado”, explora os desafios que as pessoas enfrentam na aposentadoria, especialmente se entram na aposentadoria esperando parar de trabalhar pelo resto da vida.

Há muito pouco material nas Escrituras de onde podemos extrair uma teologia abrangente sobre a aposentadoria. Mas, à medida que envelhecemos, cada um de nós pode se preparar para a aposentadoria com tanto ou mais cuidado quanto nos preparamos para o trabalho. Quando jovens, podemos respeitar e aprender com colegas mais experientes. Em todas as idades, podemos trabalhar em prol de políticas e práticas de aposentadoria mais justas e produtivas para trabalhadores mais jovens e mais velhos.

O desafio à autoridade de Moisés (Números 12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em Números 12, o irmão e a irmã de Moisés, Arão e Miriã, tentam iniciar uma revolta contra sua autoridade. Eles parecem ter uma reclamação justificável. Moisés ensina que os israelitas não devem se casar com estrangeiros (Dt 7.3), mas ele mesmo tem uma esposa estrangeira (Nm 12.1). Se essa reclamação tivesse sido sua verdadeira preocupação, eles poderiam tê-la levado a Moisés ou ao conselho de anciãos que ele havia formado recentemente (Nm 11.16-17) para resolução. Em vez disso, eles se mobilizam para se colocar no lugar de Moisés como líderes da nação. Na realidade, sua reclamação foi apenas um pretexto para começar uma rebelião geral com o objetivo de se elevar a posições de poder supremo.

Deus os pune severamente em nome de Moisés. Ele relembra que escolheu Moisés como seu representante para Israel, falando “face a face” com Moisés, e confia a ele “toda a minha casa” (Nm 12.7-8). “Por que não temeram criticar meu servo Moisés?” ele questiona (Nm 12.8). Como não recebe resposta, Números nos diz que “a ira do Senhor acendeu-se contra eles” (Nm 12.9). Seu castigo recai primeiro sobre Miriã, que se torna leprosa a ponto de quase morrer, e Arão implora a Moisés que lhes perdoe (Nm 12.10-12). A autoridade do líder escolhido por Deus deve ser respeitada, pois rebelar-se contra esse líder é rebelar-se contra o próprio Deus.

Quando temos queixas contra aqueles que estão em posição de autoridade

Deus estava presente de forma singular na liderança de Moisés. “Em Israel nunca mais se levantou profeta como Moisés, a quem o Senhor conheceu face a face” (Dt 34.10). Os líderes de hoje não manifestam a autoridade de Deus face a face, como Moisés fez. No entanto, Deus ordena que respeitemos a autoridade de todos os líderes, “pois não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13.1-3). Isso não significa que os líderes nunca devam ser questionados, responsabilizados ou mesmo substituídos. Significa que, sempre que tivermos uma queixa contra aqueles que detêm autoridade legítima — como Moisés tinha —, nosso dever é discernir as maneiras pelas quais a liderança deles é uma manifestação da autoridade de Deus. Devemos respeitá-los por qualquer porção da autoridade de Deus que eles realmente detenham, mesmo quando procuramos corrigi-los, limitá-los ou até removê-los do poder.

Um detalhe revelador da história é que o propósito de Arão e Miriã era se colocar em posições de poder. A sede de poder nunca pode ser uma motivação legítima para se rebelar contra a autoridade. Se tivermos uma queixa contra nosso chefe, nossa esperança deve ser primeiramente resolvê-la com ele. Se o abuso de poder ou a incompetência do chefe impedirem isso, nosso próximo objetivo seria substituí-lo por alguém íntegro e capaz. Mas, se nosso propósito é ampliar nosso próprio poder, então nosso objetivo é falso e perdemos até mesmo a capacidade de perceber se o chefe está agindo legitimamente ou não. Nossos próprios desejos nos tornaram incapazes de discernir a autoridade de Deus na situação.

Quando os outros se opõem à nossa autoridade

Embora Moisés fosse poderoso e estivesse certo, ele responde ao desafio da liderança com gentileza e humildade. “Ora, Moisés era um homem muito paciente [“humilde”, NVT], mais do que qualquer outro que havia na terra” (Nm 12.3). Ele permanece com Arão e Miriã durante todo o episódio, mesmo quando eles começam a receber sua merecida punição. Ele intercede para que Deus restaure a saúde de Miriã, e consegue reduzir sua punição de morte para sete dias de isolamento fora do acampamento (Nm 12.13-15). Ele os mantém na liderança máxima da nação.

Se estivermos em posições de autoridade, provavelmente enfrentaremos oposição, tal como Moisés enfrentou. Considerando que nós, assim como Moisés, chegamos à autoridade legitimamente, podemos ficar ofendidos quando enfrentamos oposição e até reconhecê-la como uma ofensa contra o propósito de Deus para nós. Podemos muito bem nos sentir no direito de tentar defender nossa posição e derrotar aqueles que a estão atacando. No entanto, assim como Moisés, devemos cuidar primeiro das pessoas sobre as quais Deus nos colocou em posição de autoridade, incluindo aqueles que se opõem a nós. Eles podem ter queixas legítimas contra nós ou podem estar aspirando à tirania. Podemos ter sucesso em resistir a eles ou podemos perder. Podemos ou não continuar na organização, assim como eles também podem ou não continuar. Podemos encontrar um terreno comum, ou podemos achar impossível restaurar boas relações de trabalho com nossos oponentes. No entanto, em todas as situações, temos o dever de humildade, o que significa que agimos para o bem daqueles que Deus nos confiou, mesmo às custas de nosso conforto, poder, prestígio e autoimagem. Saberemos que estamos cumprindo esse dever quando estivermos defendendo aqueles que se opõem a nós, como Moisés fez com Miriã.

Quando a liderança leva à impopularidade (Números 13—14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Outro desafio à autoridade de Moisés surge em Números 13—14. O Senhor pede que Moisés envie espiões à terra de Canaã, a fim de se prepararem para a conquista. Os espiões são nomeados de todas as tribos (Nm 13.18-20) e devem obter informações tanto na área militar quanto econômica. Isso significa que o relatório dos espiões poderia ser usado não apenas para planejar a conquista, mas também para iniciar discussões sobre a alocação de território entre as tribos israelitas. O relatório dos espiões confirma que a terra é muito boa, “onde manam leite e mel” (Nm 13.27). No entanto, os espias também relatam que “o povo que lá vive é poderoso, e as cidades são fortificadas e muito grandes” (Nm 13.28). Moisés e seu tenente, Calebe, usam a inteligência para planejar o ataque, mas os espiões ficam com medo e declaram que a terra não pode ser conquistada (Nm 13.30-32). Seguindo a liderança dos espiões, o povo de Israel se rebela contra o plano do Senhor e decide encontrar um novo líder que os leve de volta à escravidão no Egito. Apenas Arão, Calebe e um jovem chamado Josué permanecem com Moisés.

Mas Moisés permanece firme, apesar da impopularidade do plano. O povo está prestes a substituí-lo, mas ele se apega ao que o Senhor lhe revelou como certo. Ele e Arão imploram ao povo que cesse sua rebelião, mas sem sucesso. Finalmente, o Senhor repreende Israel por sua falta de fé e declara que os ferirá com uma peste mortal (Nm 14.5-12). Ao abandonar o plano, eles se lançaram em uma situação ainda pior — destruição iminente e total. Somente Moisés, firme em seu propósito original, sabe como evitar o desastre. Ele apela ao Senhor para que perdoe o povo, como já havia feito antes. (Vimos em Números 12 como Moisés está sempre pronto a colocar o bem-estar de seu povo em primeiro lugar, mesmo às suas próprias custas.) O Senhor cede, mas declara que há consequências inevitáveis ​​para o povo. Nenhum daqueles que se juntaram à rebelião terá permissão para entrar na terra prometida (Nm 14.20-23).

As ações de Moisés demonstram que os líderes são escolhidos para assumir um compromisso decisivo, não para se insuflar no vento da popularidade. A liderança pode ser um dever solitário e, se estivermos em posição de liderança, podemos ser severamente tentados a concordar com a opinião popular. É verdade que bons líderes ouvem as opiniões dos outros. Mas, quando um líder sabe qual é a melhor decisão a ser tomada e testou esse conhecimento da melhor maneira possível, ele tem a responsabilidade de fazer o que é melhor, não o que é mais popular.

Na situação de Moisés, não havia dúvida sobre o que deveria ser feito. O Senhor ordenou a Moisés que ocupasse a terra prometida. Como vimos, o próprio Moisés permaneceu humilde em seu comportamento, mas não vacilou em sua direção. Ele, na verdade, não conseguiu cumprir o mandamento do Senhor. Se as pessoas não o seguirem, o líder não poderá cumprir a missão sozinho. Nesse caso, a consequência para o povo foi o desastre de uma geração inteira que perdeu a terra que Deus havia escolhido para eles. Pelo menos o próprio Moisés não contribuiu para o desastre, mudando seu plano em resposta às opiniões deles.

A era moderna está repleta de exemplos de líderes que cederam à opinião popular. A rendição do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain às exigências de Hitler em Munique, em 1938, vem prontamente à mente. Em contraste, Abraham Lincoln se tornou um dos maiores presidentes dos Estados Unidos, recusando-se firmemente a ceder à opinião popular para acabar com a Guerra Civil Americana, aceitando a divisão da nação. Embora tivesse a humildade de reconhecer a possibilidade de estar errado (“como Deus nos permite ver o que é certo”), ele também teve a coragem de fazer o que sabia ser certo, apesar da enorme pressão para ceder. O livro Leadership on the Line (Liderança na linha), de Ronald Heifetz e Martin Linsky, explora o desafio de permanecer aberto às opiniões dos outros, mantendo uma liderança firme em tempos de desafio. [1] (Para mais informações sobre este episódio, veja, “Israel se recusa a entrar na terra prometida” em Deuteronômio 1.19-45.)

Oferecendo a Deus nossos primeiros frutos (Números 15.20-21; 18.12-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Com base no sistema sacrificial descrito em Números 4 e 7, duas passagens em Números 15 e 18 descrevem a oferta a Deus do primeiro fruto do trabalho e da terra. Além das ofertas descritas anteriormente, os israelitas devem oferecer a Deus “todos os primeiros frutos da terra” (Nm 18.13). Visto que Deus é o soberano que possui todas as coisas, tudo o que é produzido pela terra e pelas pessoas realmente já pertence a Deus. Quando as pessoas trazem os primeiros frutos ao altar, elas reconhecem que Deus é o dono de tudo, e não apenas do que sobra depois que elas atendem às suas próprias necessidades. Ao trazer os primeiros frutos antes de fazer uso do restante para si mesmos, eles expressam respeito pela soberania de Deus, bem como a esperança urgente de que Deus abençoará a produtividade contínua de seu trabalho e recursos. [1]

As ofertas e sacrifícios no sistema sacrificial de Israel são diferentes das dádivas e ofertas que fazemos hoje para a obra de Deus, mas o conceito de dar nossos primeiros frutos a Deus ainda é aplicável. Ao dar primeiro a Deus, reconhecemos que Deus é o dono de tudo o que temos. Portanto, damos a ele o nosso primeiro e melhor. Dessa forma, oferecer nossas primícias se torna uma bênção para nós, assim como foi para o antigo Israel.

Lembretes da aliança (Números 15.37-41)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Uma breve passagem em Números 15 ordena aos israelitas que façam borlas ou franjas nos cantos de suas vestes, com um cordão azul em cada canto: “Quando virem essas borlas vocês se lembrarão de todos os mandamentos do Senhor, para que lhes obedeçam”. No trabalho, assim como em outros lugares, sempre há a tentação de que “sigam as inclinações do seu coração e dos seus olhos” (Nm 15.39). Na verdade, quanto mais diligentemente você prestar atenção ao seu trabalho (seus “olhos”), maior será a chance de que coisas em seu ambiente de trabalho que não são do Senhor o influenciem (seu “coração”). A resposta não é parar de prestar atenção no trabalho ou levá-lo menos a sério. Em vez disso, pode ser bom plantar lembretes que o lembrem de Deus e de seu caminho. Pode não ser borlas, mas pode ser uma Bíblia que cruzará sua visão, um alarme lembrando você de orar momentaneamente de vez em quando ou um símbolo que se possa usar ou carregar em um lugar que chame sua atenção. O objetivo não é se exibir para os outros, mas atrair seu próprio coração de volta a Deus. Embora isso seja algo pequeno, pode ter um efeito significativo. Ao fazer isso, “vocês se lembrarão de obedecer a todos os meus mandamentos, e para o seu Deus vocês serão um povo consagrado” (Nm 15.40).

A infidelidade de Moisés em Meribá (Números 20.2-13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O momento de maior fracasso de Moisés veio quando o povo de Israel voltou a reclamar, desta vez por comida e água (Nm 20.1-5). Moisés e Arão decidiram levar a queixa ao Senhor, que lhes ordenou que pegassem seu cajado e, na presença do povo, ordenassem que uma rocha providenciasse água suficiente para o povo e seu gado (Nm 20.6-8). Moisés fez como o Senhor instruiu, mas acrescentou dois floreios próprios. Primeiro, ele repreendeu o povo, dizendo: “Escutem, rebeldes, será que teremos que tirar água desta rocha para lhes dar?” Então ele bateu na rocha duas vezes com seu cajado. A água derramou em abundância (Nm 20.9-11), mas o Senhor ficou extremamente descontente com Moisés e Arão.

O castigo de Deus foi severo. “Como vocês não confiaram em mim para honrar minha santidade à vista dos israelitas, vocês não conduzirão esta comunidade para a terra que lhes dou” (Nm 20.12). Moisés e Arão, como todas as pessoas que se rebelaram contra o plano de Deus anteriormente (Nm 14.22-23), não terão permissão para entrar na terra prometida.

Argumentos acadêmicos sobre a ação exata pela qual Moisés foi punido podem ser encontrados em qualquer comentário, mas o texto de Números 20.12 cita diretamente a ofensa que estava implícita: “Vocês não confiaram em mim”. A liderança de Moisés vacilou no momento crucial em que ele deixou de confiar em Deus e começou a agir por impulso.

Honrar a Deus na liderança — como todos os líderes cristãos em todas as esferas devem tentar fazer — é uma responsabilidade aterrorizante. Podemos liderar um negócio, uma sala de aula, uma organização de ajuda humanitária, uma família ou qualquer outra organização, sempre devemos ter cuidado para não confundir nossa autoridade com a autoridade de Deus. O que podemos fazer para nos manter em obediência a Deus? Podemos nos reunir regularmente com um grupo de prestação de contas, orar diariamente sobre as tarefas da liderança, guardar um sábado semanal para descansar na presença de Deus e buscar a perspectiva de outros sobre a orientação de Deus — estes são métodos que alguns líderes empregam. Mesmo assim, a tarefa de liderar com firmeza, permanecendo totalmente dependente de Deus, está além da capacidade humana. Se o homem mais humilde sobre a face da terra (Nm 12.3) pôde falhar dessa maneira, nós também podemos. Pela graça de Deus, mesmo fracassos tão grandes quanto os de Moisés em Meribá, com consequências desastrosas nesta vida, não nos separam do cumprimento final das promessas de Deus. Moisés não entrou na terra prometida, mas o Novo Testamento o declara “fiel em toda a casa de Deus” e nos lembra da confiança que todos na casa de Deus têm no cumprimento de nossa redenção em Cristo (Hb 3.2-6).

Quando Deus fala por meio de fontes inesperadas (Números 22—24)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em Números 22—23, o protagonista não é Moisés, mas Balaão, um homem que morava perto do caminho pelo qual Israel lentamente passava em direção à terra prometida. Embora não fosse israelita, era sacerdote ou profeta do Senhor. O rei de Moabe reconheceu o poder de Deus nas palavras de Balaão, dizendo: “Sei que aquele que você abençoa é abençoado, e aquele que você amaldiçoa é amaldiçoado”. Temendo a força dos israelitas, o rei de Moabe enviou emissários pedindo a Balaão que fosse a Moabe e amaldiçoasse os israelitas para livrá-lo da ameaça percebida (Nm 22.1-6).

Deus informa a Balaão que ele escolheu Israel como uma nação abençoada e ordena a Balaão que não vá a Moabe nem amaldiçoe Israel (Nm 22.12). No entanto, depois de várias embaixadas do rei de Moabe, Balaão concorda em ir a Moabe. Suas hostes tentam suborná-lo para amaldiçoar Israel, mas Balaão avisa que ele fará apenas o que o Senhor ordenar (Nm 22.18). Deus parece concordar com esse plano, mas, enquanto Balaão monta seu jumento em direção a Moabe, um anjo do Senhor bloqueia seu caminho três vezes. O anjo é invisível para Balaão, mas a jumenta vê o anjo e se desvia a cada vez. Balaão fica furioso com a jumenta e começa a bater no animal com seu cajado. “Então o Senhor abriu a boca da jumenta, e ela disse a Balaão: ‘Que te fiz eu, que me golpeou três vezes?’” (Nm 22.28). Balaão conversa com a jumenta e percebe que o animal percebeu a orientação do Senhor com muito mais clareza do que Balaão. Os olhos de Balaão são abertos; ele vê o anjo e recebe instruções adicionais de Deus sobre como lidar com o rei de Moabe. “Vá com os homens, mas fale apenas o que eu lhe disser”, o Senhor reforça (Nm 22.35). Ao longo dos capítulos 23 e 24, o rei de Moabe continua a suplicar que Balaão amaldiçoe Israel, mas toda vez Balaão responde que o Senhor declara Israel abençoado. Finalmente, ele consegue dissuadir o rei de atacar Israel (Nm 24.12-25), poupando assim Moabe da destruição imediata pela mão do Senhor.

Balaão é semelhante a Moisés porque consegue seguir a orientação do Senhor, apesar das falhas pessoais às vezes. Como Moisés, ele desempenha um papel significativo no cumprimento do plano de Deus de levar Israel à terra prometida. Mas Balaão também é muito diferente de Moisés e da maioria dos outros heróis da Bíblia hebraica. Ele mesmo não é um israelita. E sua principal realização é salvar Moabe, não Israel, da destruição. Por essas duas razões, os israelitas ficariam bastante surpresos ao ler que Deus falou a Balaão de forma tão clara e direta, tal como falou aos próprios profetas e sacerdotes de Israel. Ainda mais surpreendente — tanto para Israel quanto para o próprio Balaão — é que a orientação de Deus, no momento crucial, veio a ele pela boca de um animal, uma jumenta humilde. De duas maneiras surpreendentes, vemos que a orientação de Deus não vem das fontes mais favorecidas pelas pessoas, mas das fontes que Deus escolhe. Se Deus escolhe falar por meio das palavras de um inimigo em potencial ou mesmo de um animal do campo, devemos prestar atenção.

A passagem não nos diz que a melhor fonte de orientação de Deus são necessariamente profetas estrangeiros ou jumentos, mas nos dá algumas dicas sobre como ouvir a voz de Deus. É fácil para nós ouvir a voz de Deus apenas de fontes que conhecemos. Isso geralmente significa ouvir apenas as pessoas que pensam como nós, pertencem a nossos círculos sociais ou falam e agem como nós. Isso pode significar que nunca prestamos atenção a outras pessoas que tomariam uma posição diferente da nossa. Torna-se fácil acreditar que Deus está nos dizendo exatamente o que já pensávamos. Os líderes muitas vezes reforçam isso cercando-se de um grupo restrito de assessores e conselheiros com ideias semelhantes. Talvez sejamos mais parecidos com Balaão do que gostaríamos de acreditar. Mas, pela graça de Deus, poderíamos de alguma forma aprender a ouvir o que Deus pode estar nos dizendo, mesmo por meio de pessoas em quem não confiamos ou de fontes com as quais não concordamos?

Propriedade da terra e direitos de propriedade (Números 26—27; 36.1-12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

À medida que o tempo passa e a demografia muda, é necessário outro novo censo (Nm 26.1-4). Um propósito crucial desse censo é começar a desenvolver estruturas socioeconômicas para a nova nação. A produção econômica e a organização governamental devem ser organizadas em torno de tribos, com suas unidades menores de clãs e famílias. A terra deve ser dividida entre os clãs em proporção à sua população (Nm 26.52-56), e a designação deve ser feita aleatoriamente. O resultado é que cada família (família extensa) recebe um lote de terra suficiente para se sustentar. Ao contrário do Egito — e, mais tarde, do Império Romano e da Europa medieval — a terra não deve se tornar propriedade de uma classe de nobres e ser trabalhada por uma classe de plebeus ou escravos despossuídos. Em vez disso, cada família deve possuir seus próprios meios de produção agrícola. Fundamentalmente, a terra nunca pode ser perdida permanentemente pela família por meio de dívidas, impostos ou mesmo venda voluntária. (Veja Lv 25 para as proteções legais que visavam evitar que as famílias perdessem suas terras). Mesmo que uma geração de uma família falhe na agricultura e fique endividada, a próxima geração tem acesso à terra necessária para ganhar a vida.

O censo é enumerado de acordo com os chefes de tribos e clãs, cujos chefes de família recebem cada um uma cota. Mas, nos casos em que as mulheres são as chefes de família (por exemplo, se seus pais morrem antes de receber sua porção), as mulheres podem possuir terras e passá-las a seus descendentes (Nm 27.8). No entanto, isso poderia complicar o ordenamento de Israel, visto que uma mulher pode se casar com um homem de outra tribo. Aquela mulher acabaria transferindo a terra da tribo de seu pai para a de seu marido, enfraquecendo a estrutura social. A fim de evitar isso, o Senhor decreta que, embora as mulheres possam “casar-se com quem lhes agradar” (Nm 36.6), “nenhuma herança poderá passar de uma tribo para outra” (Nm 36.9). Esse decreto garante os direitos de todas as pessoas — inclusive as mulheres — de possuir propriedades e se casar como quiserem, em equilíbrio com a necessidade de preservar as estruturas sociais. As tribos devem respeitar os direitos de seus membros. Os chefes de família devem respeitar as necessidades da sociedade.

Em grande parte da economia de hoje, possuir terras não é o principal meio de ganhar a vida, e as estruturas sociais não estão organizadas em torno de tribos e clãs. Portanto, os regulamentos específicos em Números e Levítico não se aplicam diretamente aos dias de hoje. As condições atuais exigem diferentes soluções específicas. Leis sábias, justas e aplicadas com justiça, que respeitem a propriedade e as estruturas econômicas, os direitos individuais e o bem comum são essenciais em todas as sociedades. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “o avanço do Estado de direito nos níveis nacional e internacional é essencial para o crescimento econômico sustentado e inclusivo, o desenvolvimento sustentável, a erradicação da pobreza e da fome e a plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”. [1] Os cristãos têm muito a contribuir para o bom governo da sociedade, não apenas por meio da lei, mas também por meio da oração e da transformação da vida. E, cada vez mais, nós cristãos estamos descobrindo que, trabalhando juntos, podemos oferecer oportunidades eficazes para que pessoas marginalizadas tenham acesso permanente aos recursos necessários para prosperar economicamente. Um exemplo é Agros International, que é guiada por uma “bússola moral” cristã para ajudar famílias rurais pobres da América Latina a adquirir e cultivar terras com sucesso. [2]

Planejamento de sucessão (Números 27.12-23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Construir uma organização sustentável — neste caso, a nação de Israel — requer transições ordenadas de autoridade. Sem continuidade, as pessoas ficam confusas e com medo, as estruturas de trabalho desmoronam e os trabalhadores se tornam ineficazes, “como ovelhas sem pastor” (Nm 27.17). A preparação de um sucessor leva tempo. Líderes fracos podem ter medo de equipar alguém capaz de sucedê-los, mas grandes líderes como Moisés começam a desenvolver sucessores muito antes de esperarem deixar o cargo. A Bíblia não nos diz que processo Moisés usa para identificar e preparar Josué, exceto que ele ora pela orientação de Deus (Nm 27.16). Números nos diz que ele se certifica de reconhecer e apoiar publicamente Josué e de seguir o procedimento reconhecido para confirmar sua autoridade (Nm 27.17-21).

O planejamento da sucessão é responsabilidade tanto do executivo atual (como Moisés) quanto daqueles que exercem autoridade complementar (como Eleazar e os líderes da congregação), como vemos em Números 27.21. As instituições, sejam elas grandes como uma nação ou pequenas como um grupo de trabalho, precisam de processos eficazes para treinamento e sucessão.

Oferta diária: orar pelos outros (Números 28—29)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Embora as pessoas façam ofertas individuais e familiares em horários determinados, também há um sacrifício em nome de toda a nação todos os dias (Nm 28.1-8). Há ofertas adicionais no sábado (Nm 28.9-10), luas novas (Nm 28.11-15), Páscoa (Nm 28.16-25) e a festa das semanas (Nm 28.26-31), as trombetas (Nm 29.1-6), a Expiação (Nm 29.7-10) e as tendas (Nm 29.12-40). Por meio dessas ofertas comunitárias, as pessoas recebem os benefícios da presença e do favor do Senhor, mesmo quando não estão pessoalmente na adoração.[1]

O sistema israelita de sacrifícios não está mais em operação e é impossível aplicá-lo diretamente à vida e ao trabalho hoje. Mas a importância de sacrificar, oferecer e adorar em benefício dos outros permanece (Rm 12.1-6). Alguns crentes — principalmente certas ordens de monges e freiras — passam a maior parte do dia orando por aqueles que não conseguem ou não adoram ou oram por conta própria. Em nosso trabalho, não seria certo negligenciar nossos deveres para orar. Mas, nos momentos em que oramos, podemos orar pelas pessoas com quem trabalhamos, especialmente se soubermos que ninguém mais está orando por elas. Afinal, somos chamados a trazer bênçãos ao mundo ao nosso redor (Nm 6.22-27). Certamente podemos seguir o que vemos em Números 28.1-8 orando diariamente. Orar todos os dias, ou várias vezes ao longo do dia, parece nos manter mais próximos da presença de Deus. A fé não é apenas para o sábado.

Honrando os compromissos (Números 30)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O capítulo 30 de Números fornece um sistema elaborado para determinar a validade de promessas, juramentos e votos. A posição básica, no entanto, é simples: faça o que diz que fará.

Quando um homem fizer um voto ao Senhor ou um juramento que o obrigar a algum compromisso, não poderá quebrar a sua palavra, mas terá que cumprir tudo o que disse. (Nm 30.2)

Elaborações são dadas para lidar com exceções à regra, quando alguém faz uma promessa que excede sua autoridade. (Os regulamentos no texto tratam de situações em que certas mulheres estão sujeitas à autoridade de homens específicos.) Embora as exceções sejam válidas — você não pode fazer cumprir a promessa de uma pessoa que não tem autoridade para fazê-la, em primeiro lugar —, quando Jesus comentou essa passagem, propôs uma regra prática muito mais simples: não faça promessas que não pode ou não vai cumprir (Mt 5.33-37).

Compromissos relacionados ao trabalho podem nos levar a acumular elaborações, qualificações, exceções e justificativas para não fazer o que prometemos. Sem dúvida, muitas delas são razoáveis, como cláusulas de força maior em contratos, que dispensam uma parte de cumprir suas obrigações, se impedida por ordens judiciais, desastres naturais e similares. Não se limita a honrar a letra do contrato. Muitos acordos são feitos com um aperto de mão. Às vezes, há brechas. Podemos aprender a honrar a intenção do acordo e não apenas a letra da lei? A confiança é o ingrediente que faz com que o ambiente de trabalho funcione, e a confiança é impossível se prometermos mais do que podemos cumprir ou entregarmos menos do que prometemos. Isso não é apenas um fato da vida, mas um mandamento do Senhor.

Planejamento civil para cidades levíticas (Números 35.1-5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao contrário do restante das tribos, os levitas deveriam viver em cidades espalhadas por toda a terra prometida, onde poderiam ensinar a lei ao povo e aplicá-la nos tribunais locais. Números 35.2-5 detalha a quantidade de pastagens que cada cidade deve ter. Medindo a partir dos limites da cidade, a área de pastagem deveria se estender por cerca de 450 metros (lit., “mil côvados”) em cada direção: leste, sul, oeste e norte.

Jacob Milgrom mostrou que esse layout geográfico era um exercício realista de planejamento urbano.[1]


O diagrama mostra uma cidade com pastagens que se estendem além do diâmetro da cidade em cada direção. À medida que o diâmetro da cidade cresce e absorve o pasto mais próximo, mais pastagens são adicionadas, de modo que o pasto permaneça 450 metros além dos limites da cidade em cada direção. (No diagrama, as áreas mais claras permanecem do mesmo tamanho à medida que se movem para fora, mas as áreas com linhas ficam mais amplas à medida que o centro da cidade se alarga.)

Do lado de fora da cidade, meçam novecentos metros para o lado leste, para o lado sul, para o lado oeste e para o lado norte, tendo a cidade no centro (Nm 35.5).

Matematicamente, à medida que a cidade cresce, o mesmo acontece com a área de suas pastagens, mas a uma taxa menor do que a área do centro habitado da cidade. Isso significa que a população está crescendo mais rápido do que a área agrícola. Para que isso continue, a produtividade agrícola por metro quadrado deve aumentar. Cada pastor deve fornecer comida a mais pessoas, liberando mais pessoas para empregos industriais e de serviços. Isso é exatamente o que é necessário para o desenvolvimento econômico e cultural. Certamente, o planejamento urbano não causa aumento de produtividade, mas cria uma estrutura socioeconômica adaptada ao aumento da produtividade. É um exemplo notavelmente sofisticado de política civil que cria condições para um crescimento econômico sustentável.

Essa passagem em Números 35.5 ilustra novamente a atenção detalhada que Deus presta à capacitação do trabalho humano que sustenta as pessoas e cria bem-estar econômico. Se Deus se preocupa em instruir Moisés sobre o planejamento civil, com base no crescimento geométrico de pastagens, isso não sugere que o povo de Deus hoje deveria buscar vigorosamente todas as profissões, ofícios, artes, acadêmicos e outras disciplinas que sustentam e prosperam comunidades e nações? Talvez as igrejas e os cristãos pudessem fazer mais para incentivar e celebrar a excelência de seus membros em todos os campos de atuação. Talvez os obreiros cristãos pudessem fazer mais para se tornarem excelentes em seu trabalho, como forma de servir ao Senhor. Existe alguma razão para acreditar que um excelente planejamento urbano e econômico, uma creche ou um atendimento ao cliente trazem menos glória a Deus do que a adoração sincera, a oração ou o estudo da Bíblia?

Conclusões de Números

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Números mostra Deus trabalhando por meio de Moisés para ordenar e organizar a nova nação de Israel. A primeira parte do livro enfoca a adoração, que depende do trabalho dos sacerdotes em conjunto com trabalhadores de todas as profissões. O trabalho essencial daqueles que representam o povo de Deus não é realizar rituais, mas abençoar todas as pessoas com a presença de Deus e o amor reconciliador. Todos nós temos a oportunidade de trazer bênção e reconciliação por meio de nosso trabalho, quer pensemos em nós mesmos como sacerdotes ou não.

A segunda parte do livro de Números traça a ordem da sociedade à medida que as pessoas marcham em direção à terra prometida. Passagens em Números podem nos ajudar a obter uma perspectiva piedosa sobre questões de trabalho contemporâneas, como oferecer o fruto de nosso trabalho a Deus, resolução de conflitos, aposentadoria, liderança, direitos de propriedade, produtividade econômica, planejamento sucessório, relacionamentos sociais, honra aos compromissos e planejamento civil.

Os líderes em Números — especialmente Moisés — fornecem exemplos do que significa seguir ou não seguir a orientação de Deus. Os líderes precisam estar abertos à sabedoria de outras pessoas e de fontes inesperadas. No entanto, precisam permanecer firmes em seguir a orientação de Deus da melhor maneira possível. Devem ser ousados ​​o suficiente para confrontar reis, mas humildes o suficiente para aprender com os animais do campo. Ninguém no livro de Números é completamente bem-sucedido na tarefa, mas Deus permanece fiel ao seu povo em seus sucessos e falhas. Nossos erros têm consequências negativas reais, mas não eternas, e procuramos uma esperança além de nós mesmos para a realização do amor de Deus por nós. Vemos o Espírito de Deus guiando Moisés e ouvimos a promessa de Deus de também dar aos líderes que vierem depois de Moisés uma porção do Espírito de Deus. Com isso, nós mesmos podemos ser encorajados a buscar a orientação de Deus para as oportunidades e os desafios em nosso trabalho. Em tudo que fizermos, podemos ter certeza da presença de Deus conosco enquanto trabalhamos, pois ele nos diz: “Eu, o Senhor, habito entre os israelitas” (Nm 35.34) em cujos passos trilhamos.

Introdução a Deuteronômio

Voltar ao índice Voltar ao índice

O trabalho é um assunto importante do livro de Deuteronômio, e os principais tópicos incluem os seguintes:

  • Significado e valor do trabalho. O mandamento de Deus para trabalhar em benefício dos outros, as bênçãos do trabalho para o indivíduo e para a comunidade, as consequências do fracasso e os perigos do sucesso e a responsabilidade que advém de representar Deus para os outros.

  • Relacionamentos no trabalho. A importância de bons relacionamentos, o desenvolvimento da dignidade e do respeito pelos outros e a exigência de não prejudicar os outros ou falar injustamente deles em nosso trabalho.

  • Liderança. O exercício sábio de liderança e autoridade, o planejamento e treinamento de sucessão e a responsabilidade dos líderes de trabalhar em benefício das pessoas que lideram.

  • Justiça econômica. Respeito à propriedade, aos direitos dos trabalhadores e aos tribunais, uso produtivo de recursos, empréstimos, e honestidade nos acordos comerciais e no comércio justo.

  • Trabalho e descanso. A exigência de trabalhar, a importância do descanso e o convite para confiar em Deus para nos prover o necessário, tanto no trabalho quanto no descanso.

Apesar dos séculos de mudanças no comércio e na vocação, Deuteronômio pode nos ajudar a entender melhor como viver em resposta ao amor de Deus e servir aos outros por meio de nosso trabalho.

A apresentação dramática e unificada do livro o torna especialmente memorável. Jesus citou Deuteronômio muitas vezes. Na verdade, suas primeiras citações das Escrituras foram três passagens de Deuteronômio (Mt 4.4,7,10). O Novo Testamento se refere a Deuteronômio mais de cinquenta vezes, número que é superado apenas por Salmos e Isaías. [1] E Deuteronômio contém a primeira formulação do Grande Mandamento: “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças” (Dt 6.4-5).

Implícita a todos os temas de Deuteronômio está a aliança de Israel com o único Deus verdadeiro. Tudo no livro flui da pedra angular da aliança: “Eu sou o Senhor, o teu Deus... Não terás outros deuses além de mim” (Dt 5.6-7). Quando as pessoas adoram somente ao Senhor, geralmente o resultado é boa governança, trabalho produtivo, comércio ético, bem civil e tratamento justo para todos. Quando as pessoas colocam outras motivações, valores e preocupações à frente de Deus, o trabalho e a vida enfrentam sofrimento.

Deuteronômio abrange o mesmo material que os outros livros da lei — Êxodo, Levítico e Números —, mas aumenta a atenção dada ao trabalho, principalmente nos Dez Mandamentos. Parece que, ao recontar os eventos e os ensinamentos dos outros livros, Moisés sentiu a necessidade de enfatizar a importância do trabalho na vida do povo de Deus. Talvez, em algum sentido, isso preveja a crescente atenção que os cristãos estão dando ao trabalho nos dias atuais. Olhando para as Escrituras com novos olhos, descobrimos que o trabalho é mais importante para Deus do que imaginávamos antes e que a palavra de Deus dá mais direção ao nosso trabalho do que pensávamos.

Rebelião e acomodação (Deuteronômio 1.1—4.43)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deuteronômio começa com um discurso de Moisés relatando os principais acontecimentos da história recente de Israel. Moisés tira lições desses acontecimentos e exorta Israel a responder à fidelidade de Deus, obedecendo a ele com confiança (Dt 4.40). Duas seções — sobre violar a confiança em Deus por meio de rebelião e sobre acomodação, respectivamente — são particularmente importantes para a teologia do trabalho.

Israel se recusa a entrar na terra prometida (Deuteronômio 1.19-45)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No deserto, o medo leva o povo a falhar em sua confiança em Deus. Como resultado, eles se rebelam contra o plano de Deus para entrar na terra que ele prometeu a Abraão, Isaque e Jacó (Dt 1.7-8). Deus havia tirado Israel da escravidão no Egito, dado a lei no Monte Horebe (Sinai) e levado o povo rapidamente às fronteiras da terra prometida (Dt 1.19-20). De acordo com o livro de Números, Deus pede a Moisés que envie espiões para inspecionar a terra que ele está dando aos israelitas, e Moisés obedece (Nm 13.1-3). Mas outros israelitas usam essa missão de reconhecimento como uma chance de desobedecer a Deus. Eles pedem a Moisés que envie espiões para que possam impedir a ação militar que Deus ordenou. Quando os espiões retornam com um relatório favorável, os israelitas ainda se recusam a ir (Dt 1.26). “O povo é mais forte e mais alto do que nós; as cidades são grandes, com muros que vão até o céu”, dizem eles a Moisés, acrescentando que “nossos compatriotas nos desanimaram” (Dt 1.28). Embora Moisés assegure ao povo que Deus lutará por eles, assim como fez no Egito, eles não confiam em Deus para cumprir suas promessas (Dt 1.29-33). O medo leva à desobediência, que leva a uma punição severa.

Por causa dessa desobediência, os israelitas que viviam na época são impedidos de entrar na terra prometida. “Ninguém desta geração má verá a boa terra que jurei dar aos seus antepassados” (Dt 1.35). As únicas exceções são Calebe e Josué, os únicos membros da expedição de reconhecimento que encorajaram os israelitas a obedecer à ordem de Deus (Nm 13.30). O próprio Moisés é impedido de entrar na terra devido a um ato diferente de desobediência. Em Números 20.2-12 Moisés suplica a Deus por uma fonte de água, e Deus diz a Moisés para ordenar a uma rocha que se torne uma fonte. Em vez disso, Moisés golpeia a rocha duas vezes com sua vara. Se Moisés tivesse falado com a rocha, como Deus ordenou, o milagre resultante poderia ter satisfeito tanto a sede física do israelita quanto sua necessidade de acreditar que Deus estava cuidando deles. Em vez disso, quando Moisés golpeia a rocha como se fosse abri-la, o momento oportuno passa. Como os israelitas em Deuteronômio 1.19-45 , Moisés é punido por sua falta de fé, o que sublinha sua desobediência. “Como vocês não confiaram em mim para honrar minha santidade à vista dos israelitas”, diz Deus, “vocês não conduzirão esta comunidade para a terra que lhes dou”

Quando sabemos o que é certo, mas somos tentados a violar isso, confiar em Deus é tudo o que temos para nos manter nos caminhos de Deus. Essa não é uma questão de fibra moral. Se até mesmo Moisés falhou em confiar completamente em Deus, podemos realmente imaginar que seremos bem-sucedidos? Em vez disso, é uma questão da graça de Deus. Podemos orar para que o Espírito de Deus nos fortaleça quando defendemos o que é certo, e podemos pedir o perdão de Deus quando caímos. Como Moisés e o povo de Israel, deixar de confiar em Deus pode ter sérias consequências na vida, mas, em última análise, nosso fracasso é redimido pela graça de Deus. (Para mais informações sobre este episódio, veja “Quando a liderança leva à impopularidade” em Números 13—14.)

Quando o sucesso leva à acomodação (Deuteronômio 4.25-40)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No deserto, o fato de Israel abandonar a confiança em Deus surge não apenas do medo, mas também do sucesso. Neste ponto de seu primeiro discurso, Moisés está descrevendo a prosperidade que aguarda a nova geração prestes a entrar na terra prometida. Moisés ressalta que o sucesso provavelmente gerará uma acomodação espiritual muito mais perigosa do que o fracasso. “Quando vocês tiverem filhos e netos, e já estiverem há muito tempo na terra, e se corromperem e fizerem ídolos de qualquer tipo... não viverão muito ali; serão totalmente destruídos” (Dt 4.25-26). Chegaremos à idolatria, por si só, em Deuteronômio 5.8, mas o ponto aqui é o perigo espiritual causado pela acomodação. Na esteira do sucesso, as pessoas param de temer a Deus e começam a acreditar que o sucesso é um direito inato. Em vez de gratidão, forjamos um senso de direito. O sucesso pelo qual lutamos não é errado, mas é um perigo moral. A verdade é que o sucesso que alcançamos é uma mistura de uma pitada de habilidade e trabalho árduo, combinado com um monte de circunstâncias afortunadas e a graça comum de Deus. Na verdade, não podemos atender às nossas próprias necessidades, desejos e segurança. O sucesso não é permanente. Não satisfaz verdadeiramente. Uma ilustração dramática dessa verdade é encontrada na vida do rei Uzias, em 2Crônicas. “Ele foi extraordinariamente ajudado [por Deus], e assim tornou-se muito poderoso e a sua fama espalhou-se para longe. Entretanto, depois que Uzias se tornou poderoso, o seu orgulho provocou a sua queda” (2Cr 26.15-16). Somente em Deus podemos encontrar a verdadeira segurança e satisfação (Sl 17.15).

Pode ser surpreendente que o resultado da acomodação não seja o ateísmo, mas a idolatria. Moisés prevê que, se o povo abandonar o Senhor, eles não se tornarão agentes espirituais livres. Eles se prenderão a “deuses de madeira e de pedra, deuses feitos por mãos humanas, deuses que não podem ver, nem ouvir, nem comer, nem cheirar” (Dt 4.28). Talvez, nos dias de Moisés, a ideia de uma existência sem religião não tenha ocorrido a ninguém. Mas, em nossos dias, sim. Uma onda crescente de secularismo tenta se livrar daquilo que entende — às vezes com bastante razão — como algemas da dominação por instituições, crenças e práticas religiosas corruptas. Mas isso resulta em uma verdadeira liberdade ou a adoração a Deus é necessariamente substituída pela adoração de invenções feitas pelo homem?

Embora essa pergunta pareça abstrata, ela tem efeitos tangíveis no trabalho e no ambiente de trabalho. Por exemplo, antes da última metade do século XX, as questões sobre ética nos negócios eram geralmente resolvidas com base nas Escrituras. Essa prática estava longe de ser perfeita, mas dava uma posição firme para aqueles que estavam do lado perdedor das lutas pelo poder relacionadas ao trabalho. O caso mais dramático foi provavelmente a oposição religiosa à escravidão na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, que, em última análise, conseguiu abolir tanto o tráfico de escravos quanto a própria escravidão. Nas instituições secularizadas, não há autoridade moral à qual se possa apelar. Em vez disso, as decisões éticas devem ser baseadas na lei e no “costume ético”, como disse Milton Friedman. [1] Sendo a lei e os costumes éticos construções humanas, a ética nos negócios torna-se reduzida ao domínio dos poderosos e dos populares. Ninguém quer um ambiente de trabalho dominado pela elite religiosa, mas será que um ambiente de trabalho totalmente secularizado não abre a porta para um tipo diferente de exploração? Certamente, é possível que os crentes tragam as bênçãos da fidelidade de Deus para seu ambiente de trabalho sem tentar reimpor privilégios especiais para si mesmos.

Tudo isso não quer dizer que o sucesso deva necessariamente levar à acomodação. Se pudermos nos lembrar de que a graça de Deus, a palavra de Deus e a orientação de Deus estão na raiz de qualquer sucesso que tenhamos, podemos ser gratos, não acomodados. O sucesso que experimentamos poderia, então, honrar a Deus e nos trazer alegria. A cautela é simplesmente que, ao longo da história, o sucesso parece ser espiritualmente mais perigoso do que a adversidade. Moisés ainda adverte Israel sobre os perigos da prosperidade em Deuteronômio 8.11-20.

A lei de Deus e suas aplicações (Deuteronômio 4.44—30.20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deuteronômio continua com um segundo discurso contendo o corpo principal do livro. Esta seção se concentra na aliança de Deus com Israel, especialmente na lei, ou nos princípios e regras pelos quais Israel deve viver. Depois de uma introdução narrativa (Dt 4.44-49), o discurso em si consiste em três partes. Na primeira parte, Moisés expõe os Dez Mandamentos (Dt 5.1—11.33). Na segunda parte, ele descreve em detalhes os “decretos e ordenanças” que Israel deve seguir (Dt 12.1—26.19). Na terceira parte, Moisés descreve as bênçãos que Israel experimentará se guardarem a aliança, bem como as maldições que os destruirão se não o fizerem (Dt 27.1—28.68). O segundo discurso, portanto, tem o padrão de primeiramente fornecer os princípios governantes mais amplos (Dt 5.1—11.32), depois as regras específicas (Dt 12.1—26.19) e, então, as consequências para a obediência ou desobediência (Dt 27.1—28.68).

Os Dez Mandamentos (Deuteronômio 5.6-21)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os Dez Mandamentos trazem grandes contribuições para a teologia do trabalho. Eles descrevem os requisitos essenciais da aliança de Israel com Deus e são os princípios fundamentais que governam a nação e o trabalho de seu povo. A exposição de Moisés começa com a declaração mais memorável do livro: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças” (Dt 6.4-5). Como Jesus apontou séculos depois, esse é o maior mandamento de toda a Bíblia. Então Jesus acrescentou uma citação de Levítico 19.18: “E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’” (Mt 22.37-40). Embora o “segundo” maior mandamento não seja declarado explicitamente em Deuteronômio, veremos que os Dez Mandamentos realmente nos apontam para o amor a Deus e ao próximo.

A passagem é praticamente idêntica à Êxodo 20.1-17 — variações gramaticais à parte — exceto por algumas diferenças no quarto (guardar o sábado), quinto (honrar mãe e pai) e décimo (cobiçar) mandamentos. Curiosamente, as variações desses mandamentos abordam especificamente o trabalho. Repetiremos o comentário de Êxodo e o trabalho aqui, com acréscimos que exploram as variações entre os relatos de Êxodo e Deuteronômio.

“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3; Deuteronômio 5.7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O primeiro mandamento nos lembra que tudo na Torá flui do amor que temos por Deus, que é uma resposta ao amor que ele tem por nós. Este amor foi demonstrado pela libertação de Israel operada por Deus “da terra da escravidão” no Egito (Dt 5.6). Nada na vida deve nos preocupar mais do que nosso desejo de amar e ser amado por Deus. Se nós tivermos alguma outra preocupação mais forte em relação a nós do que nosso amor por Deus, não significa tanto que estarmos quebrando as regras de Deus, mas sim que não estamos realmente em um relacionamento com Deus. A outra preocupação — seja dinheiro, poder, segurança, reconhecimento, sexo ou qualquer outra coisa — tornou-se nosso deus. Esse deus terá seus próprios mandamentos em desacordo com os de Deus, e inevitavelmente violaremos a Torá se cumprirmos as exigências desse deus. A observância dos Dez Mandamentos só é concebível para aqueles que começam não tendo outro deus além de Deus.

No campo do trabalho, isso significa que não devemos permitir que o trabalho ou seus requisitos e frutos substituam Deus como nossa preocupação mais importante na vida. “Nunca permita que alguém ou alguma coisa ameace o lugar central de Deus em sua vida”, como diz David Gill. [1]

Como muitas pessoas trabalham principalmente para ganhar dinheiro, um desejo excessivo por dinheiro provavelmente seja o perigo mais comum do trabalho em relação ao primeiro mandamento. Jesus advertiu exatamente sobre esse perigo. “Ninguém pode servir a dois senhores... Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6.24). Mas quase tudo relacionado ao trabalho pode se tornar distorcido em nossos desejos, a ponto de interferir em nosso amor por Deus. Quantas carreiras chegam a um fim trágico porque os meios para realizar coisas pelo amor de Deus — como poder político, sustentabilidade financeira, compromisso com o trabalho, status entre colegas ou desempenho superior — tornam-se um fim em si mesmos? Quando, por exemplo, o reconhecimento no trabalho se torna mais importante do que o caráter no trabalho, não é um sinal de que a reputação está substituindo o amor de Deus como a preocupação principal?

“Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4; Deuteronômio 5.8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O segundo mandamento levanta a questão da idolatria. Ídolos são deuses que nós mesmos criamos, deuses que nada têm em si próprios a não ser o que nós mesmos criamos, deuses sobre os quais pensamos ter controle. Nos tempos antigos, a idolatria muitas vezes assumia a forma de adoração a objetos físicos. Mas a questão é realmente de confiança e devoção. Em última análise, em que depositamos nossa esperança de bem-estar e sucesso? Qualquer coisa que não seja capaz de cumprir nossa esperança — ou seja, qualquer coisa que não seja Deus — é um ídolo, seja ou não um objeto físico. A história de uma família que forja um ídolo com a intenção de manipular Deus, bem como as desastrosas consequências pessoais, sociais e econômicas que se seguem, são memoravelmente contadas em Juízes 17—21.

No mundo do trabalho, é comum falar em dinheiro, fama e poder como ídolos em potencial, e com razão. Eles não são ídolos em si e, de fato, podem ser necessários para cumprirmos nossos papéis na obra criadora e redentora de Deus no mundo. No entanto, começamos a cair na idolatria quando imaginamos que temos total controle sobre eles, ou que, ao alcançá-los, nossa segurança e prosperidade serão garantidas. O mesmo pode ocorrer com praticamente todos os outros elementos do sucesso, incluindo preparação, trabalho árduo, criatividade, risco, riqueza e outros recursos e circunstâncias favoráveis. Somos capazes de reconhecer quando começamos a idolatrar essas coisas? Pela graça de Deus, podemos vencer a tentação de adorar essas coisas no lugar de Deus.

“Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus” (Êxodo 20.7; Deuteronômio 5.11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O terceiro mandamento literalmente proíbe o povo de Deus de tomar “em vão” o nome de Deus. Isso não precisa se restringir ao nome “YHWH” (Dt 5.11), mas inclui “Deus”, “Jesus”, “Cristo” e assim por diante. Mas o que significa tomar em vão? Isso inclui, é claro, o uso desrespeitoso para xingar, caluniar e blasfemar. Mas, mais significativamente, inclui atribuir falsamente desígnios humanos a Deus. Isso nos proíbe de reivindicar a autoridade de Deus para nossas próprias ações e decisões. Lamentavelmente, alguns cristãos parecem acreditar que seguir a Deus no trabalho consiste principalmente em falar por Deus com base em seu entendimento individual, em vez de trabalhar respeitosamente com os outros ou assumir a responsabilidade por suas ações. “A vontade de Deus é que…” ou “Deus está punindo você por…” são coisas muito perigosas de se dizer e quase nunca válidas quando ditas por um indivíduo sem o discernimento da comunidade de fé (1Ts 5.20-21). À luz disso, talvez a tradicional reticência dos judeus em proferir até mesmo o termo traduzido por “Deus” — sem falar do próprio nome divino — demonstre uma sabedoria que os cristãos muitas vezes carecem. Se fôssemos um pouco mais cuidadosos ao usar a palavra “Deus”, talvez fôssemos mais criteriosos ao afirmar que conhecemos a vontade de Deus, especialmente no que se refere a outras pessoas.

O terceiro mandamento também nos lembra que respeitar os nomes humanos é importante para Deus. O Bom Pastor “chama as ovelhas pelo nome” (Jo 10.3), enquanto nos adverte que, se você chamar outra pessoa de “louco” (ou “tolo”, NAA), então “corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.22). Tendo isso em mente, não devemos fazer uso indevido do nome de outras pessoas ou chamá-las por apelidos desrespeitosos. Usamos o nome das pessoas de forma errada quando o fazemos para amaldiçoar, humilhar, oprimir, excluir e fraudar. Usamos bem o nome das pessoas quando o fazemos para encorajar, agradecer, demonstrar solidariedade e acolher. Simplesmente aprender e dizer o nome de alguém é uma bênção, especialmente se essa pessoa é frequentemente tratada como alguém sem nome, invisível ou insignificante. Você sabe o nome da pessoa que esvazia sua lixeira, atende sua ligação telefônica ou dirige o ônibus que você pega todos os dias? Se esses exemplos não dizem respeito ao próprio nome do Senhor, eles dizem respeito ao nome daqueles que foram feitos à sua imagem.

“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo” (Êxodo 20.8-11; Deuteronômio 5.12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A questão do sábado é complexa, não apenas nos livros de Deuteronômio, Êxodo e no Antigo Testamento, mas também na teologia e na prática cristãs. A aplicabilidade exata do quarto mandamento — guardar o sábado — aos crentes gentios tem sido uma questão de debate desde os tempos do Novo Testamento (Rm 14.5-6). No entanto, o princípio geral do sábado se aplica diretamente à questão do trabalho.

O sábado e o trabalho que fazemos (Deuteronômio 5.13)
Voltar ao índice Voltar ao índice

A primeira parte do mandamento exige que se pare de trabalhar um dia a cada sete. Por um lado, esse foi um presente incomparável para o povo de Israel. Nenhum outro povo antigo tinha o privilégio de descansar um dia em cada sete. Por outro lado, exigia uma confiança extraordinária na provisão de Deus. Seis dias de trabalho tinham de ser suficientes para plantar, colher, carregar água, fiar e tirar o sustento da criação. Enquanto Israel descansava um dia por semana, as nações ao redor continuavam a forjar espadas, preparar flechas e treinar soldados. Israel tinha de confiar em Deus para não deixar que um dia de descanso levasse a uma catástrofe econômica e militar.

Enfrentamos a mesma questão de confiança na provisão de Deus hoje. Se obedecermos ao mandamento de Deus de observar o próprio ciclo de trabalho e descanso de Deus, seremos capazes de competir na economia moderna? São necessários sete dias de trabalho para ter um emprego (ou dois ou três empregos), limpar a casa, preparar as refeições, cortar a grama, lavar o carro, pagar as contas, terminar os trabalhos da escola e comprar roupas? Ou podemos confiar em Deus para nos sustentar, mesmo que tiremos um dia de folga durante o curso de cada semana? Podemos reservar um tempo para adorar a Deus, orar e nos reunir com outras pessoas para estudo e encorajamento e, se o fizermos, isso nos tornará mais ou menos produtivos em geral? O quarto mandamento não explica como Deus fará com que tudo dê certo para nós. Ele simplesmente nos diz para descansar um dia a cada sete.

Os cristãos, com algumas exceções significativas, geralmente adotam como dia de descanso o Dia do Senhor (domingo, o dia da ressurreição de Cristo), mas a essência do sábado não é escolher um dia específico da semana em detrimento de outro (Rm 14.5-6). A polaridade que realmente está na base do sábado é trabalhar e descansar. Tanto o trabalho quanto o descanso estão incluídos no quarto mandamento. Os seis dias de trabalho fazem parte do mandamento tanto quanto o dia de descanso. Embora muitos cristãos corram o risco de permitir que o trabalho consuma o tempo reservado para o descanso, outros correm o risco de evitar o trabalho e tentar levar uma vida de lazer e preguiça. Isso é ainda pior do que negligenciar o sábado, pois “se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1Tm 5.8). O que precisamos é de um ritmo adequado de trabalho e descanso, que, juntos, sejam bons para nós, nossa família, nossos funcionários e nossos hóspedes. O ritmo pode ou não incluir vinte e quatro horas contínuas de descanso, caindo no domingo (ou sábado). As proporções podem mudar devido a necessidades temporárias ou a necessidades mutáveis ​​das fases da vida.

Se o excesso de trabalho é o nosso principal perigo, precisamos encontrar uma maneira de honrar o quarto mandamento sem instituir um novo e falso legalismo que oponha o espiritual (adoração no domingo) contra o secular (trabalho de segunda a sábado). Se evitar o trabalho é o nosso perigo, precisamos aprender a encontrar alegria e significado em trabalhar como um serviço a Deus e ao próximo (Ef 4.28).

O sábado e o trabalho que as pessoas fazem por nós
Voltar ao índice Voltar ao índice

Das poucas variações entre as duas versões dos Dez Mandamentos, a maioria ocorre como acréscimos ao quarto mandamento em Deuteronômio. Primeiro, a lista daqueles que você não pode forçar a trabalhar no sábado é expandida para incluir “teu boi, teu jumento ou qualquer dos teus animais”. (Dt 5.14a). Em segundo lugar, é dada uma razão pela qual você não pode forçar escravos a trabalhar no sábado: “para que o teu servo e a tua serva descansem como tu. Lembra-te de que foste escravo no Egito” (Dt 5.14b-15a). Por fim, acrescenta-se um lembrete de que sua capacidade de descansar com segurança em meio à concorrência militar e econômica de outras nações é um dom de Deus, que protege Israel “com mão poderosa e com braço forte” (Dt 5.15b).

Uma distinção importante entre os dois textos sobre esse mandamento é seu fundamento na criação e na redenção, respectivamente. Em Êxodo, o sábado está enraizado nos seis dias da criação, seguidos por um dia de descanso (Gn 1.3—2.3). Deuteronômio acrescenta o elemento da redenção de Deus. “O Senhor, o teu Deus, te tirou de lá com mão poderosa e com braço forte. Por isso o Senhor, o teu Deus, te ordenou que guardes o dia de sábado” (Dt 5.15). Ao juntar os dois, vemos que os fundamentos para guardar o sábado são a maneira como Deus nos criou e a maneira como ele nos redime.

Esses acréscimos destacam a preocupação de Deus por aqueles que trabalham sob a autoridade de outros. Não é você apenas quem deve descansar, mas aqueles que trabalham para você — escravos, outros israelitas e até animais — também devem descansar. Quando você se lembra de que foi “escravo no Egito”, isso o lembra de não ter seu próprio descanso como um privilégio especial, mas de trazer descanso aos outros, assim como o Senhor o trouxe a você. Não importa que religião eles sigam ou o que possam escolher fazer com o tempo. Eles são trabalhadores, e Deus nos orienta a fornecer descanso para aqueles que trabalham. Podemos estar acostumados a pensar em guardar o sábado para nosso descanso, mas quanto pensamos no descanso daqueles que trabalham para nos servir? Muitas pessoas trabalham em horários que interferem em seus relacionamentos, ritmos de sono e oportunidades sociais, a fim de tornar a vida mais conveniente para os outros.

As chamadas “leis azuis” (ou “leis do domingo”) visavam proteger — ou impedir, dependendo do ponto de vista — as pessoas de trabalharem o tempo todo, mas acabaram desaparecendo na maioria dos países desenvolvidos. Sem dúvida, isso abriu muitas novas oportunidades para os trabalhadores e as pessoas a quem servem. Mas isso é sempre algo de que devemos fazer parte? Quando fazemos compras tarde da noite, vamos ao clube no domingo de manhã ou assistimos a eventos esportivos que continuam depois da meia-noite, consideramos como isso pode afetar aqueles que trabalham nesses horários? Talvez nossas ações ajudem a criar uma oportunidade de trabalho que, de outra forma, não existiria. Por outro lado, talvez simplesmente exigimos que alguém trabalhe em um horário miserável, sendo que poderia trabalhar em um horário mais conveniente.

A rede de restaurantes de fast-food Chick-fil-A é conhecida por fechar aos domingos. Muitas vezes, presume-se que isso se deva à interpretação particular do quarto mandamento do fundador Truett Cathy. Mas, de acordo com o site da empresa, “sua decisão foi tão prática quanto espiritual. Ele acredita que todos os dirigentes e funcionários dos restaurantes franqueados da Chick-fil-A devem ter a oportunidade de descansar, passar tempo com a família e os amigos e adorar a Deus, se assim o desejarem”. É claro que ler o quarto mandamento como uma forma de cuidar das pessoas que trabalham para você é uma interpretação particular, mas não uma interpretação sectária ou legalista. A questão é complexa e não há uma resposta única para todos. Mas, como consumidores e, em alguns casos, como empregadores, tomamos decisões que afetam as horas e as condições de descanso e trabalho de outras pessoas.

“Honra teu pai e tua mãe” (Êxodo 20.12; Deuteronômio 5.16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O quinto mandamento diz que devemos respeitar a autoridade mais básica entre os seres humanos, a dos pais em relação aos filhos. Em outras palavras, ser pai ou mãe está entre os tipos mais importantes de trabalho que existem no mundo e merece e requer o maior respeito. Há muitas maneiras de honrar — ou desonrar — seu pai e sua mãe. Nos dias de Jesus, os fariseus queriam restringir isso a falar bem deles. Mas Jesus salientou que obedecer a esse mandamento inclui trabalhar para sustentar seus pais (Mc 7.9-13). Honramos as pessoas trabalhando para o bem delas.

Para muitas pessoas, um bom relacionamento com os pais é uma das alegrias da vida. Servir com amor a eles é um deleite, e obedecer a esse mandamento é fácil. Mas somos postos à prova por esse mandamento quando achamos difícil trabalhar em favor de nossos pais. Podemos ter sido maltratados ou negligenciados por eles. Eles podem ser controladores e intrometidos. Estar perto deles pode minar nosso senso de identidade, nosso compromisso com nosso cônjuge (incluindo nossas responsabilidades sob o terceiro mandamento) e até mesmo nosso relacionamento com Deus. Mesmo que tenhamos um bom relacionamento com nossos pais, pode chegar um momento em que cuidar deles seja um grande fardo, simplesmente por causa do tempo e do trabalho que isso exige. Se o envelhecimento ou a demência começarem a roubar sua memória, suas capacidades e sua boa índole, cuidar deles pode se tornar uma profunda tristeza.

No entanto, o quinto mandamento vem com uma promessa: “para que tenhas longa vida e tudo te vá bem na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Dt 5.16). Por meio da devida honra aos pais, os filhos aprendem o respeito adequado em todos os outros tipos de relacionamento, incluindo aqueles em seus futuros ambientes de trabalho. A obediência a esse mandamento nos permite viver muito e fazer o bem, porque desenvolver relacionamentos adequados de respeito e autoridade é essencial para o sucesso individual e a ordem social.

Como essa é uma ordem para trabalhar em benefício dos pais, é inerentemente uma ordem do ambiente de trabalho. O ambiente de trabalho pode ser onde ganhamos recursos para sustentá-los ou pode ser onde os ajudamos nas tarefas da vida cotidiana. Ambos são trabalho. Quando aceitamos um emprego porque ele nos permite viver perto deles, enviamos dinheiro para eles, fazemos uso dos valores e dons que eles desenvolveram em nós ou ainda fazemos coisas que eles nos ensinaram como sendo importantes, então estamos honrando-os. Quando nós limitamos nossas carreiras para que possamos estar presentes com eles, limpar e cozinhar para eles, dar-lhes banho e abraçá-los, levá-los aos lugares de que gostam ou diminuir seus medos, estamos honrando-os.

Os pais, portanto, têm o dever de ser dignos de confiança, respeito e obediência. Criar filhos é uma forma de trabalho, e nenhum ambiente de trabalho exige padrões mais elevados de confiabilidade, compaixão, justiça e equidade. Como o apóstolo Paulo disse: “Pais, não irritem seus filhos; antes criem-nos segundo a instrução e o conselho do Senhor” (Ef 6.4). Somente pela graça de Deus alguém poderia esperar servir adequadamente como pai, outra indicação de que a adoração a Deus e a obediência aos seus caminhos estão implícitas em todo o Deuteronômio.

Em nosso ambiente de trabalho, podemos ajudar outras pessoas a cumprir o quinto mandamento, assim como nós mesmos obedecemos. Podemos lembrar que funcionários, clientes, colegas de trabalho, chefes, fornecedores e outros também têm família e, então, podemos ajustar nossas expectativas para apoiá-los a honrar suas famílias. Quando outras pessoas compartilham ou reclamam sobre suas dificuldades com os pais, podemos ouvi-las com compaixão, apoiá-las de forma prática (talvez oferecendo-se para fazer um turno no trabalho para que elas possam estar com os pais), talvez oferecer uma perspectiva piedosa para que considerem. Por exemplo, se um colega focado na carreira revela uma crise familiar, temos a chance de orar pela família e sugerir que ele pense em reequilibrar o tempo entre a carreira e a família.

“Não matarás” (Êxodo 20.13; Deuteronômio 5.17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Infelizmente, o sexto mandamento tem uma aplicação muito prática no ambiente de trabalho moderno, onde 10% de todas as mortes relacionadas ao trabalho (nos Estados Unidos) são homicídios. [1] No entanto, admoestar os leitores deste artigo para que “não mate ninguém no trabalho”, provavelmente não mudará muito essa estatística.

Mas o assassinato não é a única forma de violência no ambiente de trabalho, apenas a mais extrema. Jesus disse que até mesmo a ira é uma violação do sexto mandamento (Mt 5.21-22). Como Paulo observou, podemos não ser capazes de evitar o sentimento de raiva, mas podemos aprender a lidar com ele. “Quando vocês ficarem irados, não pequem. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha” (Ef 4.26). A implicação mais significativa do sexto mandamento para o trabalho, então, pode ser: “Se você ficar com raiva no trabalho, procure ajuda para controlar a raiva”. Muitos empregadores, igrejas, entidades governamentais e organizações sem fins lucrativos oferecem aulas e aconselhamento sobre controle da raiva, e aproveitá-las pode ser uma maneira altamente eficaz de obedecer ao sexto mandamento.

Assassinato é homicídio intencional, mas a jurisprudência que decorre do sexto mandamento mostra que também temos o dever de evitar mortes não intencionais. Um caso que serve de ilustração é quando um boi (um animal de trabalho) chifra um homem ou uma mulher até a morte (Êx 21.28-29). Se o evento era previsível, o dono do boi deve ser tratado como um assassino. Em outras palavras, os proprietários/gerentes são responsáveis ​​por garantir a segurança no ambiente de trabalho dentro do razoável. Esse princípio está bem estabelecido na lei na maioria dos países, e a segurança no ambiente de trabalho é objeto de atenção significativa do governo, da autorregulamentação do setor e de políticas e práticas organizacionais. No entanto, ambientes de trabalho de todos os tipos continuam a exigir ou permitir que as pessoas trabalhem em condições desnecessariamente inseguras. Os cristãos que de alguma maneira ajudam a estabelecer as condições de trabalho, supervisionar os trabalhadores ou modelar as práticas no ambiente de trabalho são lembrados pelo sexto mandamento de que condições seguras de trabalho estão entre suas maiores responsabilidades no mundo do trabalho.

“Não adulterarás” (Êxodo 20.14; Deuteronômio 5.18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O ambiente de trabalho é um dos ambientes mais comuns de adultério, não necessariamente porque o adultério ocorre no próprio ambiente de trabalho, mas porque surge das condições de trabalho e do relacionamento com colegas de trabalho. A primeira aplicação ao ambiente de trabalho, então, é literal. As pessoas casadas não devem fazer sexo com pessoas que não sejam seus cônjuges, no trabalho ou por causa de seu trabalho. Algumas profissões, como a prostituição e a pornografia, quase sempre violam esse mandamento, pois quase sempre envolvem sexo entre pessoas que são casadas com outras pessoas. Mas qualquer tipo de trabalho que corroa os laços do casamento infringe o sétimo mandamento. Existem muitas maneiras pelas quais isso pode ocorrer. Um trabalho que incentiva fortes laços afetivos entre colegas de trabalho, sem apoiar adequadamente seus compromissos com os cônjuges, como pode acontecer em hospitais, empreendimentos, instituições acadêmicas e igrejas, entre outros lugares. Condições de trabalho que colocam as pessoas em contato físico próximo por períodos prolongados ou que não incentivam limites razoáveis ​​para encontros fora do expediente, como pode acontecer em tarefas de campo prolongadas. O trabalho pode sujeitar as pessoas a assédio sexual e a pressão para fazer sexo com aqueles que detêm poder sobre elas. O trabalho pode inflar o ego das pessoas ou expô-las à bajulação, como pode ocorrer com celebridades, atletas famosos, gurus dos negócios, altos funcionários do governo e os super-ricos. O trabalho pode exigir tanto tempo longe — física, mental ou emocionalmente — que desgasta os laços entre os cônjuges. Tudo isso pode representar perigos que os cristãos fariam bem em reconhecer e evitar, melhorar ou resguardar-se.

“Não furtarás” (Êxodo 20.15; Deuteronômio 5.19)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O oitavo mandamento é outro que tem o trabalho como seu assunto principal. Roubar é uma violação do trabalho adequado, porque priva a vítima dos frutos de seu trabalho. Também é uma violação do mandamento de trabalhar seis dias por semana, já que, na maioria dos casos, o roubo é um atalho em relação ao trabalho honesto, o que mostra novamente a inter-relação dos Dez Mandamentos. Portanto, podemos tomar como palavra de Deus que não devemos roubar daqueles para quem, com quem ou entre quem trabalhamos.

A própria ideia de que existe algo como “roubar” implica a existência de propriedade e direitos de propriedade. Existem apenas três maneiras de adquirir coisas — fabricando-as nós mesmos, pela troca voluntária de bens e serviços com outras pessoas (comércio ou presentes) ou pelo confisco. O roubo é a forma mais flagrante de confisco, quando alguém toma o que pertence a outro e foge. Mas o confisco também ocorre em uma escala maior e mais sofisticada, como quando uma corporação frauda clientes ou um governo impõe uma tributação desastrosa a seus cidadãos. Essas instituições não respeitam os direitos de propriedade. Este não é o lugar para fazer comparações entre o que constitui o comércio justo e o monopolista ou entre a tributação legítima e a excessiva. Mas o oitavo mandamento nos diz que nenhuma sociedade pode prosperar quando os direitos de propriedade são violados impunemente por indivíduos, gangues criminosas, empresas ou governos.

Em termos práticos, isso significa que o furto ocorre de muitas formas, além do roubo propriamente dito. Sempre que nos apossamos de algo de valor sem consentimento de seu legítimo dono, estamos cometendo um roubo. Apropriar-se indevidamente de recursos ou fundos para uso pessoal é roubar. Usar o engano para fazer vendas, ganhar participação no mercado ou aumentar os preços é roubar, porque o engano significa que aquilo que o comprador adquire não é o que realmente pensava ser. (Veja a seção sobre “Exagero” em Verdade e Engano em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.) Da mesma forma, lucrar tirando vantagem do medo, vulnerabilidade, impotência ou desespero das pessoas é uma forma de roubo, porque seu consentimento não é verdadeiramente voluntário. Violar patentes, direitos autorais e outras leis de propriedade intelectual é roubar porque priva os proprietários da capacidade de lucrar com sua criação, nos termos da lei civil.

O respeito pela propriedade e pelos direitos dos outros significa que não tomamos o que é deles nem nos intrometemos em seus assuntos. Mas isso não significa que olhamos apenas para nós mesmos. Deuteronômio 22.1 declara: “Se o boi ou a ovelha de um israelita se extraviar e você o vir, não ignore o fato, mas faça questão de levar o animal de volta ao dono”. Dizer “Não é da minha conta” não é desculpa para a insensibilidade.

Lamentavelmente, muitos trabalhos parecem incluir um elemento de aproveitar-se da ignorância dos outros ou da falta de alternativas para forçá-los a fazer transações com as quais, de outra forma, não concordariam. Empresas, governos, indivíduos, sindicatos e outros podem usar seu poder para coagir outras pessoas quanto a pagamento de salários, preços, termos financeiros, condições de trabalho, horários ou outros fatores injustos. Podemos até não estar roubando bancos, roubando de nossos empregadores ou furtando lojas, mas muito provavelmente podemos estar participando de práticas injustas ou antiéticas que privam outras pessoas de certos direitos que deveriam ser delas. Resistir a essas práticas pode ser difícil e até mesmo trazer consequências para nossa carreira, mas, mesmo assim, somos chamados a fazer isso.

“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20.16; Deuteronômio 5.20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O nono mandamento honra o direito à própria reputação. [1] Ele encontra aplicação direta em processos judiciais em que o que as pessoas dizem retrata a realidade e determina o curso da vida. Decisões judiciais e outros processos legais exercem grande poder. Manipulá-los mina o tecido ético da sociedade e, portanto, constitui uma ofensa muito grave. Walter Brueggemann diz que esse mandamento reconhece “que a vida em comunidade não é possível, a menos que haja uma arena na qual haja confiança pública de que a realidade social será descrita e relatada de forma confiável”. [2]

Embora afirmado na linguagem do tribunal, o nono mandamento também se aplica a uma ampla gama de situações que afetam praticamente todos os aspectos da vida. Nunca devemos dizer ou fazer algo que desvirtue outra pessoa. Brueggemann novamente fornece uma perspectiva:

Os políticos procuram destruir uns aos outros em campanhas negativas; colunistas de fofocas se alimentam de calúnias; e nas salas de estar cristãs, reputações são manchadas ou destruídas enquanto o café é servido em porcelana fina com a sobremesa. Esses tribunais informais são conduzidos sem o devido processo legal. Acusações são feitas; boatos são permitidos; difamações, perjúrios e comentários caluniosos são proferidos sem objeção. Sem provas, sem defesa. Como cristãos, devemos nos recusar a participar ou a tolerar qualquer conversa em que uma pessoa esteja sendo difamada ou acusada sem que a pessoa esteja presente para se defender. É errado transmitir boatos de qualquer forma, mesmo como pedidos de oração ou preocupações pastorais. Mais do que simplesmente não participar, cabe aos cristãos impedir os rumores e aqueles que os espalham. [3]

Isso sugere ainda que a fofoca no ambiente de trabalho é uma ofensa grave. Parte disso diz respeito a assuntos pessoais e externos, o que é bastante maligno. E quanto aos casos em que um funcionário mancha a reputação de um colega de trabalho? A verdade pode realmente ser dita quando aqueles de quem se fala não estão lá para falar por si mesmos? E as avaliações de desempenho? Que medidas devem ser adotadas para garantir que os relatórios sejam justos e precisos? Em larga escala, o negócio de marketing e propaganda opera no espaço público entre organizações e indivíduos. No interesse de apresentar os próprios produtos e serviços da melhor maneira possível, até que ponto se pode apontar as falhas e fraquezas da concorrência, sem incorporar a perspectiva dela? É possível que os direitos do seu “próximo” incluam os direitos de outras empresas? O escopo de nossa economia global sugere que esse mandamento pode ter uma aplicação muito ampla.

O mandamento proíbe especificamente falar falsamente sobre outra pessoa, mas levanta a questão de saber se devemos dizer a verdade em todo tipo de situação. A emissão de demonstrações financeiras falsas ou enganosas é uma violação do nono mandamento? E o que dizer de alegações de publicidade exageradas, mesmo que não depreciem falsamente os concorrentes? E quanto às garantias da administração que enganam os funcionários sobre demissões iminentes? Em um mundo em que a percepção muitas vezes conta para a realidade, a retórica da persuasão eficaz pode ou não ter muito a ver com a verdade genuína. A origem divina desse mandamento nos lembra de que as pessoas podem não ser capazes de detectar quando nossa representação dos outros é precisa ou não, mas Deus não pode ser enganado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que o engano às vezes é praticado, aceito e até aprovado nas Escrituras. Uma teologia completa da verdade e do engano baseia-se em textos que incluem, mas não se limitam ao nono mandamento. (Veja Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org para uma discussão muito mais completa desse tópico, incluindo se a proibição de “falso testemunho contra o próximo” abrange todas as formas de mentira e engano.)

“Não cobiçarás a casa do teu próximo [...] nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20.17; Deuteronômio 5.21)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O décimo mandamento proíbe cobiçar qualquer coisa que pertença ao próximo (Dt 5.21). Não é errado notar as coisas que pertencem ao próximo, nem mesmo desejar obter essas coisas para nós mesmos legitimamente. A cobiça acontece quando alguém vê a prosperidade, as conquistas ou os talentos de outra pessoa e, em seguida, se ressente com isso, ou quer tomar aquilo para si, ou quer punir a pessoa bem-sucedida. É o dano a outra pessoa, o “próximo” — não o desejo de ter algo — que é proibido aqui.

Podemos nos inspirar no sucesso dos outros ou podemos cobiçar. A primeira atitude leva ao trabalho árduo e à prudência. A segunda atitude causa preguiça, gera desculpas para o fracasso e provoca atos de confisco. Nunca teremos sucesso se nos convencermos de que a vida é um jogo de soma zero e que, de alguma forma, somos prejudicados quando outras pessoas se saem bem. Nunca faremos grandes coisas se, em vez de trabalhar arduamente, fantasiarmos que as conquistas de outras pessoas são nossas. Aqui, novamente, o fundamento último desse mandamento é o mandamento de adorar somente a Deus. Se Deus é o foco de nossa adoração, o desejo por ele substitui todo desejo profano e cobiçoso por qualquer outra coisa, incluindo o que pertence ao próximo. Como o apóstolo Paulo disse: “Aprendi a ficar satisfeito com o que tenho” (Fp 4.11, NVT).

Deuteronômio, em relação a Êxodo, acrescenta as palavras “nem sua propriedade” à lista das coisas do próximo que não se deve cobiçar. Como nas outras adições aos Dez Mandamentos em Deuteronômio, esta chama a atenção para o ambiente de trabalho. Uma propriedade ou campo é um ambiente de trabalho, e cobiçar isso é cobiçar os recursos produtivos que outra pessoa possui.

A inveja e a ganância são de fato especialmente perigosas no trabalho, onde status, salário e poder são fatores rotineiros em nossos relacionamentos com as pessoas com quem passamos muito tempo. Podemos ter muitos bons motivos para desejar realizações, promoções ou recompensas no trabalho. Mas a inveja não é um deles, assim como não é um bom motivo trabalhar obsessivamente por inveja da posição social que isso pode possibilitar.

Em particular, enfrentamos no trabalho a tentação de inflar falsamente nossas realizações às custas dos outros. O antídoto é simples, embora às vezes difícil de fazer. Torne uma prática consistente reconhecer as realizações dos outros e dar a eles todo o crédito que merecem. Se pudermos aprender a nos alegrar com — ou pelo menos reconhecer — os sucessos dos outros, cortaremos a força vital da inveja e da cobiça em ação. Melhor ainda, se pudermos aprender a trabalhar para que nosso sucesso ande de mãos dadas com o sucesso dos outros, a cobiça será substituída pela colaboração e a inveja, pela unidade.

Leith Anderson, ex-pastor da Wooddale Church, em Eden Prairie, Minnesota, diz: “Como pastor titular, é como se eu tivesse um suprimento ilimitado de moedas no bolso. Sempre que dou crédito a um membro da equipe por uma boa ideia, elogio o trabalho de um voluntário ou agradeço a alguém, é como se estivesse enfiando uma moeda do meu bolso no dele. Esse é o meu trabalho como líder, passar moedas do meu bolso para o bolso dos outros, para aumentar o apreço que outras pessoas têm por elas.” [1]

Decretos e ordenanças (Deuteronômio 4.44—28.68)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Na segunda parte de seu segundo discurso, Moisés descreve em detalhes os “decretos e ordenanças” que Deus ordena que Israel obedeça (Dt 6.1). Essas regras lidam com uma ampla gama de assuntos, incluindo guerra, escravidão, dízimos, festas religiosas, sacrifícios, comida kosher, profecia, monarquia e o santuário central. Esse material contém várias passagens que falam diretamente à teologia do trabalho. Vamos explorá-las em sua ordem bíblica.

As bênçãos de obedecer à aliança de Deus (Deuteronômio 7.12-15; 28.2-12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mesmo que os mandamentos, decretos e ordenanças da aliança de Deus possam parecer não passar de um fardo para Israel, Moisés nos lembra que seu propósito principal é nos abençoar.

Se vocês obedecerem a essas ordenanças, as guardarem e as cumprirem, então o Senhor, o seu Deus, manterá com vocês a aliança e a bondade que prometeu sob juramento aos seus antepassados. Ele os amará, os abençoará e fará com que vocês se multipliquem. Ele abençoará os seus filhos e os frutos da sua terra: o cereal, o vinho novo e o azeite, as crias das vacas e das ovelhas, na terra que aos seus antepassados jurou dar a vocês. (Dt 7.12-13)

Todas estas bênçãos virão sobre vocês e os acompanharão, se vocês obedecerem ao Senhor, o seu Deus: “Vocês serão abençoados na cidade e serão abençoados no campo. Os filhos do seu ventre serão abençoados, como também as colheitas da sua terra e os bezerros e os cordeiros dos seus rebanhos. A sua cesta e a sua amassadeira serão abençoadas. Vocês serão abençoados em tudo o que fizerem... O Senhor lhes concederá grande prosperidade, no fruto do seu ventre, nas crias dos seus animais e nas colheitas da sua terra, nesta terra que ele jurou aos seus antepassados que daria a vocês. O Senhor abrirá o céu, o depósito do seu tesouro, para enviar chuva à sua terra no devido tempo e para abençoar todo o trabalho das suas mãos”. (Dt 28.2-7,11-12)

A obediência à aliança deve ser uma fonte de bênção, prosperidade, alegria e saúde para o povo de Deus. Como Paulo diz: “A Lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7.12), e “O amor é o cumprimento da Lei” (Rm 13.10).

Isso não deve ser confundido com o chamado “Evangelho da Prosperidade”, que afirma incorretamente que Deus inevitavelmente traz riqueza e saúde aos indivíduos que ganham seu favor. Significa que, se o povo de Deus vivesse de acordo com sua aliança, o mundo seria um lugar melhor para todos. Obviamente, o testemunho cristão é que não somos capazes de cumprir a lei por meio de qualquer poder que possamos ter. É por isso que há uma nova aliança em Cristo, na qual a graça de Deus se torna disponível para nós por meio da morte e ressurreição de Cristo, em vez de ser limitada por nossa própria obediência. Ao viver em Cristo, descobrimos que somos capazes de amar e servir a Deus, e que, por fim, recebemos as bênçãos descritas por Moisés, de modo parcial nos dias atuais e de modo completo depois, quando Cristo levar o Reino de Deus ao seu cumprimento.

De qualquer forma, a obediência à aliança de Deus é o tema abrangente que atravessa o livro de Deuteronômio. Além dessas três passagens extensas, o tema é abordado em muitas ocasiões breves ao longo do livro, e Moisés retorna a ele em seu discurso final, ao fim de sua vida, nos capítulos 29 e 30.

Os perigos da prosperidade (Deuteronômio 8.11-20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em contraste com a alegre obediência a Deus está a arrogância que muitas vezes acompanha a prosperidade. Isso é semelhante ao perigo da acomodação sobre o qual Moisés adverte em Deuteronômio 4.25-40, mas com foco no orgulho ativo, em vez de no direito passivo.

Não aconteça que, depois de terem comido até ficarem satisfeitos, de terem construído boas casas e nelas morado, de aumentarem os seus rebanhos, a sua prata e o seu ouro, e todos os seus bens, o seu coração fique orgulhoso e vocês se esqueçam do Senhor, o seu Deus, que os tirou do Egito, da terra da escravidão. (Dt 8.12-14)

Quando, depois de muitos anos de suor, uma pessoa vê um negócio, uma carreira, um projeto de pesquisa, a criação dos filhos ou outro trabalho se tornar um sucesso, ela terá um senso de orgulho justificável. Mas podemos abrir as portas para que o orgulho alegre se transforme em arrogância. Deuteronômio 8.17-18 nos lembra: “Não digam, pois, em seu coração: ‘A minha capacidade e a força das minhas mãos ajuntaram para mim toda esta riqueza’. Mas, lembrem-se do Senhor, o seu Deus, pois é ele que lhes dá a capacidade de produzir riqueza, confirmando a aliança que jurou aos seus antepassados, conforme hoje se vê”. Como parte de sua aliança com seu povo, Deus nos dá a capacidade de nos engajarmos na produção econômica. Precisamos lembrar, no entanto, que isto é um dom de Deus. Quando atribuímos nosso sucesso inteiramente a nossas habilidades e esforços, esquecemos que Deus nos deu essas habilidades, bem como a própria vida. Não criamos a nós mesmos. A ilusão de autossuficiência nos torna insensíveis. Como sempre, a adoração adequada e a consciência da dependência de Deus fornecem o antídoto (Dt 8.18).

Generosidade e bênção de Deus (Deuteronômio 15.7-11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O tema da generosidade surge em Deuteronômio 15.7-8: “Se houver algum israelita pobre em qualquer das cidades da terra que o Senhor, o seu Deus, lhes está dando, não endureçam o coração, nem fechem a mão para com o seu irmão pobre. Ao contrário, tenham mão aberta”. Generosidade e compaixão são a essência da aliança. “Dê-lhe generosamente, e sem relutância no coração; pois, por isso, o Senhor, o seu Deus, o abençoará em todo o seu trabalho e em tudo o que você fizer” (Dt 15.10). Nosso trabalho só se torna plenamente abençoado quando abençoa os outros. Como Paulo disse: “o amor é o cumprimento da Lei” (Rm 13.10).

Para a maioria de nós, o dinheiro ganho com o trabalho nos dá os meios para sermos generosos. Será que realmente usamos isso generosamente? Além disso, há maneiras em que podemos ser generosos em nosso próprio trabalho? A passagem fala da generosidade especificamente como um aspecto do trabalho (“todo o seu trabalho”). Se um colega de trabalho precisa de ajuda para desenvolver uma habilidade ou capacidade, ou de uma palavra honesta de recomendação nossa, ou de paciência para lidar com suas deficiências, essas poderiam ser oportunidades de praticar a generosidade? Esses tipos de generosidade podem nos custar tempo e dinheiro, ou podem ainda exigir que reconsideremos nossa autoimagem, examinemos nossa conivência e questionemos nossos motivos. Se pudéssemos de bom grado fazer esses sacrifícios, será que abriríamos uma nova porta para a bênção de Deus por meio de nosso trabalho?

Escravidão (Deuteronômio 15.12-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Um tópico preocupante em Deuteronômio é a escravidão. A permissão da escravidão no Antigo Testamento gera muito debate, e não podemos resolver todas as questões aqui. Não devemos, no entanto, equiparar a escravidão israelita à escravidão na era moderna. A última envolveu o sequestro de africanos ocidentais de sua terra natal para venda como escravos, seguido pela escravização perpétua de seus descendentes. O Antigo Testamento condena esse tipo de prática (Am 1.6) e a torna punível com a morte (Dt 24.7; Êx 21.16). Os israelitas se tornavam escravos uns dos outros, não por sequestro ou nascimento infeliz, mas por causa de dívidas ou pobreza (Dt 15.12). A escravidão era preferível à fome, e as pessoas podiam se vender como escravas para pagar uma dívida e pelo menos ter onde morar. Mas a escravidão não deveria durar a vida toda. “Se seu compatriota hebreu, homem ou mulher, vender-se a você e servi-lo seis anos, no sétimo ano dê-lhe a liberdade” (Dt 15.12). Após a libertação, os ex-escravos deveriam receber uma parte da riqueza que seu trabalho havia gerado. “Não o mande embora de mãos vazias. Dê-lhe com generosidade dos animais do seu rebanho e do produto da sua eira e do seu tanque de prensar uvas. Dê-lhe conforme a bênção que o Senhor, o seu Deus, lhe tem dado” (Dt 15.13-14).

Em algumas partes do mundo, as pessoas ainda são vendidas (geralmente pelos pais) para pagar uma dívida — uma forma de trabalho que é escravidão em tudo, menos no nome. Outros podem ser atraídos para o tráfico sexual, do qual é difícil ou impossível escapar. Em alguns lugares, os cristãos estão liderando a erradicação dessas práticas, mas muito mais pode ser feito. Imagine a diferença que faria se muito mais igrejas e cristãos fizessem disso uma alta prioridade para a missão e a ação social.

Nos países mais desenvolvidos, trabalhadores desesperados não são vendidos para o trabalho involuntário, mas aceitam quaisquer empregos que possam encontrar. Se Deuteronômio contém proteções até mesmo para escravos, essas proteções não se aplicam também aos trabalhadores? Deuteronômio exige que os senhores cumpram os termos do contrato e os regulamentos trabalhistas, incluindo a data fixa de liberação, o fornecimento de comida e abrigo e a responsabilidade pelas condições de trabalho. As horas de trabalho devem ser razoavelmente limitadas, incluindo um dia de folga semanal (Dt 5.14). Mais significativamente, os senhores devem considerar os escravos como iguais aos olhos de Deus, lembrando que todo o povo de Deus é formado por escravos resgatados. “Lembre-se de que você foi escravo no Egito e que o Senhor, o seu Deus, o redimiu. É por isso que hoje lhe dou essa ordem” (Dt 15.15).

Empregadores modernos podem abusar de trabalhadores desesperados de maneira semelhante à forma como os antigos senhores abusavam de escravos. Será que os trabalhadores perdem essas proteções simplesmente porque não são realmente escravos? De qualquer maneira, os empregadores têm o dever de, pelo menos, não tratar os trabalhadores como se fossem escravos. Os trabalhadores vulneráveis ​​de hoje podem enfrentar imposições para trabalhar horas extras sem remuneração, dar comissões a gerentes, trabalhar em condições perigosas ou tóxicas, pagar pequenos subornos para conseguir turnos, sofrer assédio sexual ou tratamento degradante, receber benefícios inferiores, sofrer discriminação ilegal e outras formas de maus-tratos. Mesmo trabalhadores abastados podem ver que lhes é negada injustamente uma parte razoável dos frutos de seu trabalho.

Para os leitores modernos, a aceitação da escravidão temporária pela Bíblia parece difícil de aceitar — embora reconheçamos que a escravidão antiga não era o mesmo que a escravidão dos séculos 16 ao 19 — e podemos ser gratos pelo fato de a escravidão ser, pelo menos tecnicamente, ilegal em todos os lugares hoje. Mas, em vez de considerar obsoleto o ensino bíblico sobre a escravidão, faríamos bem em trabalhar para abolir as formas modernas de servidão involuntária, ao mesmo tempo em que devemos seguir e promover as proteções da Bíblia para os membros economicamente desfavorecidos da sociedade.

Suborno e corrupção (Deuteronômio 16.18-20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A eficácia dos direitos de propriedade e da proteção dos trabalhadores geralmente depende da aplicação da lei e dos sistemas judiciais. A imposição de Moisés para com os juízes e oficiais é especialmente importante quando se trata de trabalho. “Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade. Não aceitem suborno, pois o suborno cega até os sábios e prejudica a causa dos justos” (Dt 16.19). A justiça imparcial seria fundamental: “Sigam única e exclusivamente a justiça, para que tenham vida e tomem posse da terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá” (Dt 16.20).

Os ambientes de trabalho e as sociedades modernas não estão menos suscetíveis ao suborno, à corrupção e ao preconceito do que o antigo Israel. De acordo com as Nações Unidas, o maior impedimento ao crescimento econômico nos países menos desenvolvidos são as falhas na aplicação imparcial das leis. [1] Em lugares onde a corrupção é endêmica, pode ser impossível ganhar a vida, atravessar a cidade ou viver em paz sem pagar suborno. Essa lei parece reconhecer que, em geral, aqueles que têm o poder de exigir subornos são mais culpados do que aqueles que concordam em pagá-los, pois a proibição é contra aceitar subornos, não contra pagá-los. Mesmo assim, tudo o que os cristãos podem fazer para reduzir a corrupção — seja no dar ou no receber — é uma contribuição para as decisões justas (Dt 16.18), que são sagradas para o Senhor. (Para uma exploração mais aprofundada das aplicações econômicas do estado de direito, veja “Propriedade da terra e direitos de propriedade” em Números 26—27; 36.1-12.

Obedecer às decisões dos tribunais (Deuteronômio 17.8-13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Moisés estabelece um sistema de tribunais de primeira instância e tribunais de apelação que são surpreendentemente semelhantes à estrutura dos tribunais de justiça modernos. Ele ordena ao povo que obedeça às suas decisões. “Procedam de acordo com a sentença e as orientações que eles lhes derem. Não se desviem daquilo que eles lhes determinarem, nem para a direita, nem para a esquerda” (Dt 17.11).

Os ambientes de trabalho hoje são regidos por leis, regulamentos e costumes, com procedimentos, tribunais e processos de apelação para interpretá-los e aplicá-los adequadamente. Devemos obedecer a essas estruturas legais, como Paulo também afirmou (Rm 13.1). Em alguns países, leis e regulamentos são rotineiramente ignorados por quem está no poder ou burlados por suborno, corrupção ou violência. Em outros países, as empresas e outras instituições de trabalho raramente infringem a lei intencionalmente, mas podem tentar infringi-la por meio de ações judiciais incômodas, favores políticos ou lobbies que se opõem ao bem comum. Mas os cristãos são chamados a respeitar o estado de direito, bem como obedecer, defender e procurar fortalecê-lo. Isso não quer dizer que a desobediência civil nunca tenha lugar. Algumas leis são injustas e devem ser quebradas se a mudança não for viável. Mas esses casos são raros e sempre envolvem sacrifício pessoal em busca do bem comum. Subverter a lei para fins de interesse próprio, por outro lado, não é justificável.

De acordo com Deuteronômio 17.9, tanto sacerdotes quanto juízes — ou, como poderíamos dizer hoje, tanto o espírito quanto a letra — são essenciais para a Lei. Se nos encontrarmos presos a certos pontos, explorando tecnicalidades legais para justificar práticas questionáveis, talvez precisemos de um bom teólogo tanto quanto de um bom advogado. Precisamos reconhecer que as decisões que as pessoas tomam no trabalho “secular” são questões teológicas, não meramente jurídicas e técnicas. Imagine um cristão moderno pedindo a seu pastor que o ajude a pensar em uma decisão importante no trabalho, quando as questões éticas ou legais parecerem complicadas. Para que isso valha a pena, o pastor precisa entender que o trabalho é um empreendimento profundamente espiritual e que eles precisam aprender a oferecer assistência útil aos trabalhadores. Talvez um primeiro passo seja simplesmente perguntar às pessoas sobre seu trabalho. “Que ações e decisões você toma diariamente?” “Quais desafios você enfrenta?” “Sobre quais assuntos você gostaria de ter alguém para conversar?” “Como posso orar por você?"

Usando a autoridade com justiça (Deuteronômio 17.14-20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Assim como pessoas e instituições não devem violar a autoridade legítima, pessoas em posições de poder não devem usar sua autoridade de forma ilegítima. Moisés lida especificamente com o caso de um rei.

Esse rei, porém, não deverá adquirir muitos cavalos... Ele não deverá tomar para si muitas mulheres; se o fizer, desviará o seu coração. Também não deverá acumular muita prata e muito ouro. Quando subir ao trono do seu reino, mandará fazer num rolo, para o seu uso pessoal, uma cópia da lei... Trará sempre essa cópia consigo e terá que lê-la todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o Senhor, o seu Deus, e a cumprir fielmente todas as palavras desta lei, e todos estes decretos (Dt 17.16-19).

Nesse texto, vemos duas restrições ao uso da autoridade — aqueles que exercem autoridade não estão acima da lei, mas devem sujeitar-se a ela e defendê-la; e aqueles que exercem autoridade não devem abusar de seu poder para enriquecer.

Hoje, pessoas em posições de autoridade podem tentar se colocar acima da lei, como, por exemplo, quando policiais e agentes judiciais “dão um jeitinho” em multas de trânsito para si e para seus amigos, ou quando funcionários públicos de alto escalão ou funcionários de empresas não obedecem às políticas de despesas a que outros estão sujeitos. Da mesma forma, os funcionários podem usar seu poder para enriquecer recebendo subornos, isenções de zoneamento e licenciamento, acesso a informações privilegiadas ou uso pessoal de propriedade pública ou privada. Às vezes, benefícios especiais são concedidos aos que estão no poder por uma questão de política ou lei, mas isso não elimina realmente a infração. A ordem de Moisés aos reis não é para se certificar de obter autorização legal para seus excessos, mas para evitar completamente os excessos. Quando aqueles que estão no poder usam sua autoridade não apenas para obter privilégios especiais, mas para criar monopólios para seus comparsas, apropriar-se de terras e de bens ou, ainda, prender, torturar ou matar oponentes, as apostas se tornam mortais. Não há diferença de tipo entre pequenos abusos de poder e opressão totalitária, apenas em grau.

Quanto mais autoridade você tiver, maior será a tentação de agir como se estivesse acima da lei. Moisés prescreve um antídoto. O rei deve ler a lei (ou palavra) de Deus todos os dias de sua vida. Ele não apenas deve ler, mas deve desenvolver a habilidade de interpretar e aplicar essa lei de maneira correta e justa. Ele deve desenvolver o hábito de obedecer à palavra de Deus, de colocá-la em prática em seu trabalho, a fim de “cumprir fielmente todas as palavras desta lei” (Dt 17.19). Por meio disso, o rei aprende a reverenciar o Senhor e a cumprir as responsabilidades que Deus lhe deu. Assim ele é lembrado de que também está debaixo de uma autoridade. Deus não lhe dá o privilégio de fazer uma lei para si mesmo, mas o dever de cumprir a lei de Deus para o benefício de todos.

O mesmo vale hoje para aqueles que exercem autoridade de qualquer tipo, mesmo que seja mera autoridade para fazer seu próprio trabalho. Para exercer autoridade com justiça, você precisa se envolver novamente com as Escrituras todos os dias de sua vida e procurar aplicá-las todos os dias às circunstâncias comuns do trabalho. Isso sugere que os trabalhadores cristãos precisam saber o suficiente sobre as Escrituras para aplicá-las ao seu trabalho, e as igrejas precisam treinar pessoas na habilidade de aplicá-las ao ambiente de trabalho. Somente pela arte da prática contínua, não nos voltando nem para a esquerda nem para a direita da palavra de Deus, podemos domar o impulso de fazer mau uso da autoridade. O resultado é que o líder serve à comunidade (Dt 17.20), e não o contrário.

Combine essa percepção com nossa observação anterior de que pastores e teólogos precisam aprender o suficiente sobre o trabalho para saber como oferecer assistência útil aos trabalhadores. Isso sugere que as igrejas e as instituições que treinam e apoiam os líderes da igreja precisam criar diálogos significativos entre pastores e trabalhadores, para que possam entender mais sobre o trabalho uns dos outros.

Empregando recursos para o bem comum (Deuteronômio 23.1—24.13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deuteronômio exige que os proprietários de recursos produtivos os empreguem para beneficiar a comunidade, e faz isso de maneira clara. Por exemplo, os proprietários de terras devem permitir que os vizinhos usem suas terras para ajudar a atender às suas necessidades imediatas. “Se vocês entrarem na vinha do seu próximo, poderão comer as uvas que desejarem, mas nada poderão levar em sua cesta. Se entrarem na plantação de trigo do seu próximo, poderão apanhar espigas com as mãos, mas nunca usem foice para ceifar o trigo do seu próximo” (Dt 23.24-25). Essa era a lei que permitia aos discípulos de Jesus colher grãos dos campos locais enquanto seguiam seu caminho (Mt 12.1). Os respigadores eram responsáveis ​​por colher alimentos para si mesmos, e os proprietários de terras eram responsáveis ​​por dar-lhes acesso para fazê-lo. (Veja “Colheita e respiga” em Levítico 19.9-10 para saber mais sobre essa prática.)

Da mesma forma, aqueles que emprestam dinheiro não devem exigir termos que ponham em risco a saúde ou a subsistência que quem toma o empréstimo (Dt 23.19-20; 24.6,10-13). Em alguns casos, eles devem até estar dispostos a emprestar quando houver probabilidade de perda, simplesmente porque a necessidade do próximo é muito grande (Dt 15.7-9). Veja “Empréstimos e garantias” em Êxodo 22.25-27 para obter mais detalhes.

Deus exige que nossos recursos estejam disponíveis aos necessitados, ao mesmo tempo em que devemos exercer uma boa mordomia dos recursos que ele nos confia. Por um lado, tudo o que temos pertence a Deus, e seu mandamento é que usemos o que é dele para o bem da comunidade (Dt 15.7). Por outro lado, Deuteronômio não trata o campo de uma pessoa como propriedade comum. Os forasteiros não podiam levar tanto quanto quisessem. A exigência de contribuição para o bem público é estabelecida dentro de um sistema de propriedade privada como principal meio de produção. O equilíbrio entre propriedade privada e pública e a adequação de vários sistemas econômicos às sociedades de hoje são questões de debate para a qual a Bíblia pode contribuir com princípios e valores, mas não pode prescrever regulamentos.

Justiça econômica (Deuteronômio 24.14-15; 25.19; 27.17-25)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Diferenças de classe e riqueza podem criar oportunidades para injustiça. O que se exige é que os trabalhadores sejam tratados com justiça. Lemos em Deuteronômio 24.14: “Não se aproveitem do pobre e necessitado, seja ele um irmão israelita ou um estrangeiro que viva numa das suas cidades”. Nem os pobres nem os estrangeiros tinham posição na comunidade para desafiar os ricos proprietários de terras nos tribunais e, portanto, eram vulneráveis ​​a esse tipo de abuso. Tiago 5.4 contém uma mensagem semelhante. Os empregadores devem considerar como sagradas e irrevogáveis suas obrigações para com todos os funcionários, mesmo os mais humildes.

O que se espera também é que os clientes com justiça. “Não tenham na bolsa dois padrões para o mesmo peso, um maior e outro menor” (Dt 25.13). Os pesos em questão são usados ​​para medir grãos ou outras commodities em uma venda. O vendedor poderia obter vantagens se pesasse o grão usando um peso mais leve do que o informado. O comprador lucraria usando um peso falsamente mais pesado. Mas Deuteronômio exige que uma pessoa sempre use o mesmo peso, seja comprando ou vendendo. A proteção contra fraudes não se limita a vendas feitas a clientes, mas a todos os tipos de negócios com todas as pessoas ao nosso redor.

Maldito quem mudar o marco de divisa da propriedade do seu próximo. (Dt 27.17)
Maldito quem fizer o cego errar o caminho. (Dt 27.18)
Maldito quem negar justiça ao estrangeiro, ao órfão ou à viúva. (Dt 27.19)
Maldito quem aceitar pagamento para matar um inocente. (Dt 27.25)

Em princípio, essas regras proíbem todo tipo de fraude. Como uma analogia moderna, uma empresa pode conscientemente vender um produto defeituoso, sem se importar com as implicações morais. Os clientes podem abusar das políticas da loja ao devolver mercadorias usadas. As empresas podem emitir demonstrações financeiras sem respeitar os princípios contábeis geralmente aceitos. Os trabalhadores, durante seu horário de trabalho, podem cuidar de assuntos pessoais e deixar de realizar seu trabalho. Essas práticas não são apenas injustas, mas também violam o compromisso de adorar somente a Deus: “Vocês serão um povo santo para o Senhor, o seu Deus” (Dt 26.19).

Apelo final de Moisés por obediência a Deus (Deuteronômio 29.1—30.20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Moisés conclui com um terceiro discurso, um apelo final por obediência à aliança de Deus, que resultará em prosperidade humana. Isso reforça suas exortações anteriores em Deuteronômio 7.12-15 e 28.2-12. Deuteronômio 30.15 resume bem: “Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição”. A obediência a Deus leva à bênção e à vida, enquanto a desobediência leva à maldição e à morte. Nesse contexto, “obediência a Deus” significava guardar a aliança do Sinai e, portanto, era uma obrigação que se relacionava exclusivamente a Israel. No entanto, a obediência a Deus, que leva à bênção, é um princípio atemporal, que não se limita ao antigo Israel, mas se aplica ao trabalho e à vida de hoje. Se amarmos a Deus e fizermos o que ele ordena, veremos que este é o melhor plano para nossa vida e nosso trabalho. Isso não significa que seguir a Cristo nunca envolve dificuldades e necessidades (os cristãos podem ser perseguidos, marginalizados ou presos). Significa que aqueles que vivem com genuína piedade e integridade se sairão bem não apenas porque têm um bom caráter, mas também porque estão sob a bênção de Deus. Mesmo em tempos difíceis, quando a obediência a Deus pode levar à perseguição, o doce fruto da bênção de Deus é melhor do que o resíduo azedo da cumplicidade com o mal. No quadro geral, estamos sempre em melhor situação nos caminhos de Deus do que em qualquer outro.

O fim da obra de Moisés (Deuteronômio 31.1-34.12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Planejamento de sucessão (Deuteronômio 31.1—32.47)

Após os discursos, Josué sucede Moisés como líder de Israel. “Então Moisés convocou Josué e lhe disse na presença de todo o Israel: ‘Seja forte e corajoso, pois você irá com este povo para a terra que o Senhor jurou aos seus antepassados que lhes daria, e você a repartirá entre eles como herança’” (Dt 31.7). Moisés conduz a transição publicamente por dois motivos. Primeiro, Josué tem de reconhecer perante toda a nação que aceitou os deveres que lhe foram impostos. Em segundo lugar, toda a nação deve reconhecer que Josué é o único e legítimo sucessor de Moisés. Depois disso, Moisés se afasta da maneira mais completa possível — ele morre. Qualquer organização, seja uma nação, uma escola, uma igreja ou uma empresa, ficará confusa se a questão da sucessão legítima não for clara ou não for resolvida.

Observe que Josué não é uma escolha aleatória de última hora. Os líderes têm o dever de preparar as pessoas em suas organizações para assumir a liderança no devido tempo. Isso não significa que os líderes tenham o direito de designar seus próprios sucessores. Esse poder geralmente pertence a outros, seja por nomeação, eleição, comissão ou outros meios. É o Senhor quem designa o sucessor de Moisés. Sob a direção do Senhor, Moisés há muito tempo prepara Josué para sucedê-lo. Desde cedo, como se vê em Deuteronômio 1.38, o Senhor se refere a Josué como “auxiliar” de Moisés. Moisés tinha notado a capacidade militar de Josué pouco depois de sua partida do Egito e, com o tempo, delegou a liderança do exército a ele (Dt 31.3). Moisés observou que Josué era capaz de ver as coisas da perspectiva de Deus e estava disposto a arriscar sua própria segurança para defender o que era certo (Nm 14.5-10). Moisés havia treinado Josué na arte de governar no incidente com os reis dos amorreus (Dt 3.21). Orar a Deus em favor de Josué era um elemento importante do regime de treinamento de Moisés (Dt 3.28). No momento em que Josué assume o lugar de Moisés, ele está totalmente preparado para a liderança, e o povo está totalmente preparado para segui-lo (Dt 34.9). Para a passagem paralela em Números, veja Números 27.12-23 .

Moisés também entoa seu cântico final (Dt 32.1-43), um texto profético advertindo que Israel não obedecerá à aliança, sofrerá terrivelmente, mas finalmente experimentará a redenção por um ato poderoso de Deus. Entre outras coisas, as palavras de Moisés são um lembrete dos perigos que podem advir do sucesso. “Você engordou, tornou-se pesado e farto de comida. Abandonou o Deus que o fez e rejeitou a Rocha, que é o seu Salvador” (Dt 32.15). Em tempos de dificuldade, muitas vezes recorremos a Deus em busca de ajuda, quando chega o desespero e não temos mais a quem recorrer. Mas, quando o sucesso vem, é fácil desmerecer a ação de Deus em nosso trabalho. Podemos até acreditar que nossas realizações se devem exclusivamente a nossos próprios esforços, e não à graça de Deus. Moisés lembra ao povo que o sucesso pode nos tornar vulneráveis ​​a abandonar o Deus que nos criou, com resultados desastrosos. Para saber mais sobre esse tópico, veja o relato de Uzias no comentário sobre 2Crônicas 26.

Então Moisés exorta o povo uma última vez para que a lei seja levada a sério (Dt 32.46-47).

Os últimos atos de Moisés (Deuteronômio 32.48—34.12)

O ato final de Moisés antes de partir de Israel e deste mundo é abençoar a nação, tribo por tribo, no cântico registrado em Deuteronômio 33.1-29. Esse cântico é análogo à bênção de Jacó às tribos pouco antes de sua morte (Gn 49.1-27). Isso é apropriado, pois Jacó era o pai biológico das doze tribos, mas Moisés é o pai espiritual da nação. Além disso, nesse cântico, Moisés se despede de Israel com palavras de bênção e não com palavras de repreensão e exortação. “Moisés, o servo do Senhor, morreu ali” (Dt 34.5). O texto honra Moisés com um título ao mesmo tempo humilde e exaltado: “o servo do Senhor”. Ele não havia sido perfeito, e Israel, sob sua liderança, não havia sido perfeito, mas Moisés havia sido grande. Mesmo assim, ele não era insubstituível. Israel continuaria, e os líderes que viessem depois dele teriam seus próprios sucessos e fracassos. Quando as pessoas de qualquer instituição consideram seu líder insubstituível, elas já estão em crise. Quando um líder se considera insubstituível, é uma calamidade para todos.

Conclusões do livro de Deuteronômio

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao recontar os eventos do início da história de Israel e a entrega da lei por Deus, Deuteronômio retrata vividamente a importância do trabalho para o cumprimento da aliança de Deus com seu povo. Os temas abrangentes do livro são a necessidade de confiar em Deus, obedecer a seus mandamentos e recorrer a ele em busca de ajuda. Abandonar qualquer uma dessas atividades é cair na idolatria, na adoração de falsos deuses que nós mesmos criamos. Embora esses temas possam inicialmente parecer abstratos ou filosóficos, eles são encenados de maneiras concretas e práticas no trabalho e na vida diários. Quando confiamos em Deus, damos-lhe graças pelas coisas boas que ele nos capacita a produzir. Reconhecemos nossas limitações e nos voltamos para Deus em busca de orientação. Tratamos os outros com respeito. Observamos um ritmo de trabalho e descanso que revigora a nós mesmos e às pessoas que trabalham em nosso benefício. Exercemos autoridade, obedecemos à autoridade diligentemente com um senso preciso de justiça e exercemos a autoridade com sabedoria para o bem comum. Limitamo-nos a um trabalho que, em vez de prejudicar, sirva os outros e que, em vez de destruir, construa famílias e comunidades. Fazemos uso generoso dos recursos que Deus coloca à nossa disposição e não nos apropriamos de recursos que pertencem a outros. Somos honestos em nossos relacionamentos com os outros. Nós nos treinamos para ser alegres no trabalho que Deus nos dá e não para invejar outras pessoas.

Cada dia nos dá oportunidades de ser gratos e generosos em nosso trabalho, de tornar nosso ambiente de trabalho mais justo, mais livre e mais gratificante para aqueles com quem trabalhamos, e de trabalhar pelo bem comum. À nossa maneira, cada um de nós tem a oportunidade — seja ela grande ou pequena — de transformar a si mesmo, a nossa família, as nossas comunidades e as nações do mundo, a fim de erradicar práticas idólatras, como escravidão e exploração de trabalhadores, corrupção e injustiça e indiferença à falta de recursos sofrida pelos mais pobres.

Mas, se Deuteronômio não fosse nada além de uma longa lista de coisas que devemos e não devemos fazer para nosso trabalho, o fardo sobre nós seria intolerável. Quem poderia cumprir a lei, mesmo que apenas na esfera do trabalho? Pela graça de Deus, Deuteronômio não é, em sua essência, uma lista de regras e regulamentos, mas um convite a um relacionamento com Deus. “E lá procurarão o Senhor, o seu Deus, e o acharão, se o procurarem de todo o seu coração e de toda a sua alma” (Dt 4.29). “Pois vocês são um povo santo para o Senhor, o seu Deus. O Senhor, o seu Deus, os escolheu dentre todos os povos da face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro pessoal” (Dt 7.6). Se acharmos que nosso trabalho fica aquém do quadro pintado por Deuteronômio, que nossa resposta não seja uma determinação sombria de nos esforçarmos mais, mas uma aceitação revigorante do convite de Deus para um relacionamento mais próximo com ele. Um relacionamento vivo com Deus é nossa única esperança de podermos viver de acordo com sua palavra. Esse, é claro, é o evangelho que Jesus pregou e estava profundamente enraizado no livro de Deuteronômio. Como Jesus disse: “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11.30). Não é uma lista impossível de exigências, mas um convite para nos aproximarmos de Deus. Nisso, ele ecoa Moisés: “E agora, ó Israel, que é que o Senhor, o seu Deus, lhe pede, senão que tema o Senhor, o seu Deus, que ande em todos os seus caminhos, que o ame e que sirva ao Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração e de toda a sua alma, e que obedeça aos mandamentos e aos decretos do Senhor, que hoje lhe dou para o seu próprio bem?” (Dt 10.12-13).

Introdução a Josué e Juízes

Voltar ao índice Voltar ao índice

Josué e Juízes contam a história da ocupação israelita da terra prometida por Deus e da formação de um governo nacional. Seu tema geral é que, quando o povo de Deus segue seus mandamentos e sua orientação, seu trabalho prospera e eles experimentam paz e alegria. Mas, quando o povo segue suas próprias inclinações e se estabelece como a autoridade suprema, a pobreza, a discórdia e todo tipo de mal trazem tristeza e sofrimento.

Conquistar, estabelecer e governar um território era o trabalho dos líderes designados por Deus, dos profetas, dos exércitos e de todo o povo de Israel. Embora tenhamos todos os motivos para esperar que esses livros contribuam para nossa compreensão do trabalho a partir de uma perspectiva bíblica, é preciso algum esforço de nossa parte para descobrir como o trabalho que vemos em Josué e Juízes se aplica às circunstâncias de nossos ambientes de trabalho contemporâneos. Mas, se olharmos com cuidado, descobriremos que algumas perspectivas para as questões de hoje surgem dos incidentes relatados no texto, incluindo o desenvolvimento e o gerenciamento de liderança, a proximidade dos papéis desempenhados pelo trabalho árduo e pela orientação de Deus para alcançar nossos objetivos, o conflito por recursos, a tensão entre dirigir para ter sucesso e servir aos outros, a orientação de Deus em nosso trabalho e o perigo sempre presente de fazer de nosso trabalho um ídolo. Os acontecimentos em Josué e Juízes nos dão modelos — bons e ruins — para resolver conflitos no ambiente de trabalho, motivar funcionários, enfrentar os desafios de cargos eletivos e planejar novos líderes para suceder aqueles que se aposentam ou partem. Os personagens que encontramos nos livros ilustram o notável valor da liderança feminina, os efeitos econômicos da guerra e a cumplicidade dos poderosos no abuso dos vulneráveis ​​no trabalho.

A principal linha na história de Josué e Juízes é que, embora o povo escolhido de Deus seja repetidamente rebelde contra Deus, voltando-se para servir outros deuses e esquecendo-se da aliança de Deus com eles, Deus está sempre pronto para responder às suas crises e libertá-los. Somente quando param de desejar as bênçãos de Deus é que caem na miséria e na devastação social. Essa também é uma mensagem notavelmente contemporânea. Muitas vezes, nos afastamos de Deus ao decidirmos como lidar com as muitas oportunidades e desafios que surgem em nosso trabalho. Descobrimos que colocamos outras preocupações acima de receber seu amor, amá-lo e servi-lo por meio de nosso trabalho. A mensagem de Josué e de Juízes é que Deus está pronto, aqui e agora, para que voltemos a ele e recebamos suas bênçãos em nossa vida e trabalho.

Organizaremos nossa análise dos livros em torno de quatro temas principais, que correspondem aproximadamente ao fluxo da narrativa: conquista, coordenação, aliança e caos. [1]

Conquista (Josué 1—12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Josué começa com a reiteração a Josué da promessa de terra e da presença divina.

“Meu servo Moisés está morto. Agora, pois, você e todo este povo preparem-se para atravessar o rio Jordão e entrar na terra que eu estou para dar aos israelitas. Como prometi a Moisés, todo lugar onde puserem os pés eu darei a vocês. Seu território se estenderá do deserto ao Líbano, e do grande rio, o Eufrates, toda a terra dos hititas até o mar Grande, no oeste. Ninguém conseguirá resistir a você todos os dias da sua vida. Assim como estive com Moisés, estarei com você; nunca o deixarei, nunca o abandonarei.” (Josué 1.2-5)

Josué, a terra e a presença de Deus são todos dignos de nota, como exploraremos nas seções seguintes.

Josué (Josué 1)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Josué é o sucessor de Moisés como líder de Israel. Embora não seja um rei, de certa forma prefigura os reis que governarão Israel nos séculos seguintes. Ele lidera a nação na batalha, executa o julgamento quando necessário e tenta manter o povo nos termos da aliança que Deus fez com os israelitas no monte Sinai.

Para usar termos modernos, poderíamos considerar a transição de Moisés para Josué um exemplo de bom planejamento sucessório. Seguindo a orientação de Deus, Moisés designou Josué como um líder que corresponde ao caráter de fidelidade do próprio Moisés a Deus. Ele é descrito como um homem de valor e erudição, forte e corajoso (Js 1.6-7), bem informado e obediente à lei de Deus (Js 1.8-9). Mais importante ainda, ele é um homem espiritual. Em última análise, o fundamento da liderança de Josué não é sua própria força, nem mesmo a tutela de Moisés, mas a orientação e o poder de Deus. Deus lhe promete: “O Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar” (Js 1.9). Mais informações sobre a preparação de Josué para suceder Moisés podem ser encontradas em “Planejamento de sucessão (Números 27.12-23)” e “O Fim da Obra de Moisés (Deuteronômio 31.1—34.12)” em www.teologiadotrabalho.org.

Como exemplo para os líderes de hoje, a característica mais notável de Josué pode ser sua disposição de continuar crescendo em virtude ao longo da vida. Ao contrário de Sansão, que parece preso à teimosia infantil, Josué é marcado pela transição de um jovem impetuoso (Nm 14.6-10) para um comandante militar (Js 6.1-21) e para um chefe do executivo nacional (Js 20) e, no fim das contas, para um visionário profético (Js 24). Ele está mais do que disposto a se sujeitar a um longo período de treinamento sob Moisés e a aprender com os que eram mais experientes do que ele (Nm 27.18-23; Dt 3.28). Ele não tem medo de dar ordens em tempos de ação, mas continua a compartilhar a liderança entre uma equipe que inclui o sacerdote Eleazar e os anciãos das Doze Tribos (por exemplo, Josué 19.51). Ele parece nunca recusar uma oportunidade de crescer em caráter ou de se beneficiar da sabedoria dos outros.

A terra (Josué 2—12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao longo de Josué e Juízes, a terra assume tal importância central que se torna virtualmente um personagem em si: “E a terra teve paz” (Jz 3.11; 3.30, etc.). A principal ação do livro de Josué é Israel conquistando a terra que Deus havia prometido a seus antepassados ​(Js 2.24, cf. 1.6). A terra é o palco central sobre o qual o drama de Deus com Israel se desenrola e está no centro das promessas de Deus à nação. A própria Lei de Moisés está inseparavelmente ligada à terra. Muitas das principais disposições da Lei só fazem sentido para Israel na terra, e a principal punição prevista na aliança consiste na expulsão da terra.

Desolarei a terra a ponto de ficarem perplexos os seus inimigos que vierem ocupá-la. Espalharei vocês entre as nações e empunharei a espada contra vocês. Sua terra ficará desolada; as suas cidades, em ruínas. (Levítico 26.32-33)

A terra — o solo, o chão sob nossos pés — é onde nossa existência acontece. (Mesmo aqueles que vão para o mar e para o ar passam a maior parte da vida em terra.) A promessa de Deus a seu povo não é uma abstração desencarnada, mas um lugar concreto onde sua vontade é feita e sua presença é encontrada. O lugar em que estamos a qualquer momento é o lugar em que encontramos Deus e o único lugar que temos para realizar sua obra. A criação pode ser um lugar onde habita o mal ou o bem. Nossa tarefa é trabalhar o bem na criação e na cultura em que trabalhamos. Josué recebeu a tarefa de santificar a terra de Canaã, aderindo à aliança de Deus ali. Recebemos a tarefa de santificar nosso ambiente de trabalho, trabalhando também de acordo com a aliança de Deus.

Trabalhando a terra (Josué 5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A terra, é claro, era abundante para os padrões do Antigo Oriente Próximo. Mas as bênçãos da terra iam além do clima favorável, da água abundante e de outros benefícios naturais fornecidos pela mão do Criador. Israel também herdaria uma infraestrutura bem desenvolvida dos cananeus. “Dei a vocês uma terra que não cultivaram e cidades que vocês não construíram. Nelas vocês moram e comem de vinhas e olivais que não plantaram” (Js 24.13; cf. Dt 6.10-11). Mesmo a descrição característica da terra como uma “terra onde há leite e mel com fartura” (Js 5.6; cf. Êx 3.8) pressupõe algum grau de manejo de gado e apicultura.

Há, portanto, uma ligação inseparável entre terra e trabalho. Nossa capacidade de produzir não decorre apenas de nossa própria capacidade ou diligência, mas também dos recursos disponíveis. Por outro lado, a terra não trabalha sozinha. Pelo suor de nosso rosto devemos produzir o pão (Gn 3.19). Esse ponto é enfatizado com bastante precisão em Josué 5.11-12. “No dia seguinte ao da Páscoa, nesse mesmo dia, eles comeram pães sem fermento e grãos de trigo tostados, produtos daquela terra. Um dia depois de comerem do produto da terra, o maná cessou. Já não havia maná para os israelitas, e naquele mesmo ano eles comeram do fruto da terra de Canaã”. Israel sobreviveu com o dom divino do maná ao longo de suas peregrinações no deserto, mas Deus não tinha intenção de tornar isso uma solução permanente para o problema da provisão. A terra deveria ser trabalhada. Recursos suficientes e trabalho frutífero eram elementos integrantes da terra prometida.

O ponto pode parecer óbvio, mas mesmo assim vale a pena ser mencionado. Embora às vezes Deus possa suprir milagrosamente nossas necessidades físicas, a norma é que nossa subsistência venha do fruto de nosso trabalho.

Conquistando a terra — Deus endossa a conquista? (Josué 6—12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O fato de que a economia produtiva dos israelitas foi fundada na expropriação dos cananeus da terra, no entanto, levanta questões desconfortáveis. Deus endossa a conquista como uma maneira de uma nação adquirir terras? Deus tolera a guerra étnica? Israel era mais merecedor da terra do que os cananeus? Uma análise teológica completa da conquista está além do escopo deste artigo. [1] Embora não possamos esperar responder às inúmeras questões que surgem, há pelo menos algumas coisas que devemos ter em mente:

  1. Deus escolhe vir ao seu povo na agitação do Antigo Oriente Próximo, onde as forças reunidas contra Israel são vastas e violentas.

  2. O trabalho de conquista militar é certamente o trabalho mais proeminente do livro de Josué, mas não é apresentado como modelo para qualquer trabalho que o siga. Encontramos aspectos de trabalho ou liderança em Josué e Juízes que são aplicáveis ​​hoje, mas a expropriação de pessoas da terra não é um deles.

  3. A ordem para expulsar os cananeus (Js 1.1-5) é altamente específica e não indica a disposição geral dos mandamentos de Deus para os israelitas ou qualquer outro grupo de pessoas.

  4. A erradicação dos cananeus decorre de seus caminhos notoriamente iníquos. Os cananeus eram conhecidos por praticar sacrifícios de crianças, adivinhação, feitiçaria e necromancia, coisas que Deus não podia tolerar no meio do povo que ele havia escolhido para ser uma bênção para o mundo (Dt 18.10-12). A terra deveria ser despojada da idolatria, para que o mundo pudesse ter a oportunidade de ver a natureza do único Deus verdadeiro, criador do céu e da terra. [2]

  5. Cananeus arrependidos, como Raabe (Js 2.1-21; 6.22-26), são poupados — e, de fato, a suposta destruição em massa dos cananeus nunca é totalmente realizada (veja abaixo).

  6. Israel, por sua vez, praticará muita da mesma maldade que os cananeus, dando um firme “não” como resposta à pergunta se Israel era mais merecedor da terra. Como os cananeus, os israelitas também sofrerão o deslocamento da terra por meio da conquista por outros, o que a Bíblia também atribui à mão de Deus. Israel também está sujeito ao julgamento de Deus (veja Amós 3.1-2, por exemplo).

  7. A plena ética cristã do poder não pode ser encontrada no livro de Josué, mas na vida, morte e ressurreição de Jesus, que encarna toda a Palavra de Deus. O modelo definitivo da Bíblia para o uso do poder não é que Deus conquista nações por seu povo, mas que o Filho de Deus dá sua vida por todos os que vêm a ele (Mc 10.42; Jo 10.11-18). A ética bíblica do poder é, em última análise, fundamentada na humildade e no sacrifício.

Lembrando-se da presença de Deus na terra (Josué 4.1-9)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A bênção suprema para o povo da terra é a presença de Deus entre eles. O povo celebra essa bênção passando em frente à arca do Senhor — a habitação de sua presença — e deixando pedras memoriais no leito do rio Jordão. A prosperidade e a segurança de Israel na terra devem vir das mãos de Deus. A obra de Israel é sempre derivada da obra anterior de Deus em seu favor. Sempre que eles se desconectam da presença de Deus, a trajetória de seu trabalho se volta para baixo. Testemunhe a nota sombria que soou em Juízes 2.10-11: “Depois que toda aquela geração foi reunida a seus antepassados, surgiu uma nova geração que não conhecia o Senhor e o que ele havia feito por Israel. Então os israelitas fizeram o que o Senhor reprova e prestaram culto aos baalins”. Os problemas subsequentes de Israel decorrem de sua falha em reconhecer a obra de Deus em seu favor.

Também podemos nos perguntar se estamos prestando atenção à obra de Deus em nosso favor. A questão aqui não é se estamos trabalhando bem para Deus, mas se podemos vê-lo trabalhando por nós. No trabalho, a maioria de nós encontra uma tensão entre promover a si mesmo e servir aos outros, ou entre “um sistema de interesse próprio muito centrado no eu” e “o bem-estar do outro lado”, como Laura Nash coloca em sua excelente exploração dessa dinâmica. [1] Será que estamos nos esforçando demais para ficar em primeiro lugar porque temos medo de que ninguém mais se importe conosco?

E se tivéssemos o hábito de acompanhar as coisas que Deus faz em nosso favor? Muitos de nós guardamos lembranças de nossos sucessos no trabalho — prêmios, placas, fotos, comendas, certificados e coisas assim. E se, toda vez que nossos olhos passassem por eles, pensássemos: “Deus tem estado comigo todos os dias aqui”, em vez de “Eu me esforcei para isso”. Isso nos libertaria para cuidar mais generosamente dos outros, mas ainda assim sentiríamos que estamos cuidando mais de nós mesmos? Uma maneira simples de começar seria anotar mentalmente ou mesmo registrar cada coisa boa inesperada que acontece durante o dia, seja com você ou com outra pessoa por meio de você. Cada uma delas poderia se tornar uma espécie de pedra memorial para Deus, como as pedras que os israelitas colocaram nas águas do Jordão para lembrar como Deus os trouxe à terra prometida. De acordo com o texto, esse foi um lembrete muito poderoso para eles e “estão lá até hoje” (Josué 4.1-9).

Engajando o Senhor em nossas decisões (Josué 9.12-15)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O capítulo 9 de Josué descreve como o povo de Gibeão enganou o povo de Israel. Eles queriam que os israelitas acreditassem que viviam longe da terra de Canaã e, portanto, não representavam ameaça para Israel. Na verdade, eles moravam nas proximidades. Para pôr em prática seu plano enganador, eles usavam roupas velhas e sandálias remendadas, e carregavam provisões que indicavam uma longa viagem.

Este nosso pão estava quente quando o embrulhamos em casa no dia em que saímos de viagem para cá. Mas vejam como agora está seco e esmigalhado. Estas vasilhas de couro que enchemos de vinho eram novas, mas agora estão rachadas. E as nossas roupas e sandálias estão gastas por causa da longa viagem”. Os israelitas examinaram as provisões dos heveus, mas não consultaram o Senhor. Então Josué fez um acordo de paz com eles, garantindo poupar-lhes a vida, e os líderes da comunidade o confirmaram com juramento. (Js 9.12-15).

Os israelitas foram enganados porque se basearam em suas próprias observações e não “consultaram o Senhor”. Isso também pode acontecer conosco hoje. Com base no que acreditamos, tiramos uma conclusão, tomamos uma decisão rapidamente, mas nos esquecemos de pedir a orientação de Deus. É muito fácil confiar em nossas próprias percepções quando pensamos que entendemos a situação, em vez de pedir a Deus por seu discernimento.

Coordenação (Josué 13—22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A extensão do texto dedicado à distribuição de terras (Josué 13—22) reflete o papel essencial da terra na formação da identidade de Israel, embora possa ser uma leitura de cair as pálpebras, se não olharmos para o quadro geral da ação. Esses capítulos detalham o trabalho de estabelecer limites, designar cidades e vilas e criar procedimentos para resolver conflitos — o trabalho de organizar e cultivar uma sociedade para o florescimento humano e a glorificação de Deus. Josué tomou medidas criteriosas para garantir que a distribuição fosse feita de forma justa (Js 14.1). Tais passagens nos lembram que o trabalho produtivo depende em grande parte da cooperação e do jogo limpo, o que significa organização e justiça. Os israelitas precisam saber o que pertence a quem, para que possam organizar suas comunidades de maneira pacífica e produtiva. É preciso trabalho (neste caso, bastante trabalho) para abordar as realidades da organização geográfica e social.

Essas realidades se manifestam com força especial em Josué 22, quando as tribos da Transjordânia são acusadas de separatismo depois de erguerem um altar em seu território. Como se vê, a instalação do altar memorial é um movimento astuto por parte dessas tribos, que serve para manter sua posição dentro de Israel.

“Se agimos com rebelião ou infidelidade para com o Senhor, não nos poupem hoje. Se construímos nosso próprio altar para nos afastarmos do Senhor e para oferecermos holocaustos e ofertas de cereal, ou sacrifícios de comunhão sobre ele, que o próprio Senhor nos peça contas disso!
“Ao contrário! Fizemos isso temendo que no futuro os seus descendentes digam aos nossos: ‘Que relação vocês têm com o Senhor, com o Deus de Israel? Homens de Rúben e de Gade! O Senhor fez do Jordão uma fronteira entre nós e vocês. Vocês não têm parte com o Senhor’. Assim os seus descendentes poderiam levar os nossos a deixarem de temer o Senhor.
“É por isso que resolvemos construir um altar, não para holocaustos ou sacrifícios, mas para que esse altar sirva de testemunho entre nós e vocês e as gerações futuras de que cultuaremos o Senhor em seu santuário com nossos holocaustos, sacrifícios e ofertas de comunhão. Então, no futuro, os seus descendentes não poderão dizer aos nossos: ‘Vocês não têm parte com o Senhor’.” (Juízes 22.22-27)

A partir de todos os detalhes, vemos que distribuir a terra de forma justa, criar estruturas de governança, resolver conflitos e manter uma missão unida foi um processo complexo. Josué estava no comando geral, mas todas as pessoas tinham papéis a desempenhar, e mesmo as disputas e o posicionamento astuto eram necessários para manter uma nação de indivíduos imperfeitos trabalhando em harmonia. Isso poderia nos dar subsídios para a prática e a ciência da administração hoje. Construir uma cadeia de suprimentos internacional, por exemplo, requer alinhar incentivos, comunicar especificações, compartilhar ideias, resolver interesses competitivos mas cooperativos, aumentar sua própria lucratividade sem levar outros elementos a perdas, atrair e motivar colaboradores qualificados e superar obstáculos imprevisíveis, algo semelhante ao que os líderes de Israel tiveram de fazer. O mesmo vale para universidades, agências governamentais, bancos, cooperativas agrícolas, empresas de mídia e praticamente todo tipo de ambiente de trabalho. A sociedade também depende daqueles que pesquisam e ensinam métodos de gestão e que moldam as políticas corporativas e governamentais em conformidade.

Se Deus guiou Josué, os outros líderes e o povo de Israel, podemos esperar que ele guie os gerentes de hoje? Temos os recursos das Escrituras, oração, adoração, estudos em grupo e o conselho de outros cristãos. Como, exatamente, cada um de nós pode entrelaçar isso em nossa própria maneira de receber orientação de Deus sobre a administração, o gerenciamento e a liderança que exercemos?

Embora a posse da terra e o governo do povo fossem de primeira importância para a nação, os capítulos posteriores desta seção nos mostram que nem a conquista da terra nem a organização da nação foram totalmente concluídas. Capítulo após capítulo, ouvimos o refrão perturbador de que “não conseguiram expulsar” as várias tribos cananeias de seus territórios (Js 15.63; 16.10; 17.12-13). O Senhor havia ordenado a Israel que expulsasse os cananeus, a fim de estabelecer uma nova ordem que não fosse degradada pelas práticas abomináveis ​​dos ocupantes anteriores. A presença contínua dos cananeus se torna uma das principais causas da posterior infidelidade de Israel à aliança de Deus, embora isso não ocorra durante o período coberto pelo livro de Josué.

Aliança: Israel assume um compromisso (Josué 23—24)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A renovação da aliança de Deus com Israel conclui o livro de Josué. O ponto alto ocorre no último capítulo, quando Josué inspira o povo com um desafio empolgante ao seu compromisso de servir somente a Deus. Seu discurso é um modelo de comunicação. Primeiro, ele relata os maravilhosos atos de Deus em favor de Israel no Egito, no deserto e na terra prometida. Então, Josué pergunta, por que eles ainda carregam ídolos e falsos deuses com eles? Usando o que hoje podemos chamar de psicologia reversa, ele os desafia: “Se, porém, não agrada a vocês servir ao Senhor, escolham hoje a quem irão servir” (Js 24.15). Isso chama a atenção deles. “Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses!” (Js 24.16). Mas Josué os desafia ainda mais. “Vocês não têm condições de servir ao Senhor”, diz ele. “Ele é Deus santo” (Js 24.19). “Se abandonarem o Senhor e servirem a deuses estrangeiros, ele se voltará contra vocês e os castigará. Mesmo depois de ter sido bondoso com vocês, ele os exterminará” (Js 24.20). Isso os leva a um ponto de decisão real e eles afirmam: “De maneira nenhuma! Nós serviremos ao Senhor” (Js 24.21) Vamos colocar por escrito, diz Josué, e ele faz o povo assinar, testemunhando seu compromisso (Js 24.15-27). Em tempos mais recentes, John Wesley publicou um culto de renovação da aliança que é amplamente usado hoje, e muitas igrejas desenvolveram suas próprias abordagens para renovar a aliança. [1]

Quando as pessoas parecem estar vacilando em seu compromisso, os líderes podem ser tentados a minimizar a tarefa em mãos ou induzir as pessoas a pensar que as coisas serão mais fáceis do que realmente são. Talvez haja momentos em que essa técnica possa ganhar adesão por um tempo. Mas, como Ronald Heifetz argumenta em seu livro [2], seguidores enganados diminuem rapidamente a autoridade de um líder. Isso não ocorre apenas porque os seguidores acabam descobrindo o engano, mas porque isso os impede de contribuir para a solução dos desafios do grupo. A menos que o líder conheça a solução para cada desafio — uma possibilidade extremamente improvável — as soluções terão de vir da criatividade e do compromisso dos membros do grupo. Mas, se o líder enganou o povo sobre a natureza dos desafios, o povo não pode contribuir para encontrar uma solução. Isso praticamente garante que o líder fracassará. Em vez disso, os líderes que são honestos com seus seguidores sobre a dificuldade dos desafios têm a oportunidade de envolver seu pessoal na criação de soluções. Josué, por meio de seu relacionamento com Deus, fornece um excelente modelo para líderes que buscam construir um compromisso com um curso de ação difícil por meio de honestidade e transparência, em vez de sigilo e falsas esperanças.

Caos (Juízes 1—21)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Após a morte de Josué, Israel não tem alguém em posição de liderança nacional permanente. Em vez disso, à medida que surgem ameaças — um ataque militar, por exemplo — homens e mulheres são promovidos à liderança no período de cada crise. O termo “juízes” não capta realmente o papel que esses homens e mulheres desempenham na nação. (A palavra hebraica shopet, geralmente traduzida como “juiz”, significa árbitro de conflitos, comandante militar e governador de um território. [1]) Os juízes resolvem disputas, mas também assumem a responsabilidade pelos assuntos militares e governamentais da nação em face dos povos vizinhos hostis. Embora mantenhamos a designação tradicional de juízes, o epíteto “libertadores” é uma descrição mais precisa desses líderes.

No livro de Juízes, encontramos uma visão bem mais sombria dos líderes de Israel do que no livro de Josué. Pouco a pouco, a sucessão de juízes diminui em qualidade, até finalmente levar Israel ao caos total. O livro termina com histórias de estupro, assassinato e guerra civil, com a conclusão apropriadamente sombria: “Naquela época, não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” (Jz 21.25). Fazer o que parece certo aos seus próprios olhos não se refere a pessoas virtuosas agindo eticamente por vontade própria, mas à busca irrestrita de conseguir o primeiro lugar, como poderíamos colocar hoje. Significa a falha em obedecer à ordem de Deus, por meio de Josué, para que “não se desvie dela, nem para a direita nem para a esquerda, para que você seja bem-sucedido por onde quer que andar. ” (Js 1.7). A ordem é fazer o que é certo aos olhos de Deus, não o que parece bom em nossa própria visão tendenciosa e egoísta. Os juízes falharam em liderar o povo na observância da lei de Deus e, assim, falharam tanto em administrar a justiça quanto em governar a nação. [2]

Falha no teste de condução: a idolatria de Israel (Juízes 1—2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Juízes 1—2 retoma de onde Josué 13—22 parou, com o fracasso de Israel em expulsar as nações cananeias da terra. “Quando os israelitas se fortaleceram, submeteram os cananeus a trabalhos forçados, mas não os expulsaram totalmente” (Js 17.13). Há certa ironia no fato de os israelitas recém-libertados se tornarem proprietários de escravos na primeira oportunidade. Mas a principal razão pela qual Israel deveria expulsar os cananeus era impedir que sua idolatria infectasse Israel. Como a serpente no jardim, a idolatria dos cananeus testará a lealdade dos israelitas a Deus e sua aliança. Israel não se sai melhor do que Adão ou Eva. Não conseguindo remover a tentação dos cananeus, eles logo começaram a “servir” aos deuses cananeus, Baal e Astarte (Jz 2.11-13; 10.16, etc.) (A NVI traduz o hebraico como “prestar culto”, mas praticamente todas as outras traduções são mais precisar ao usar “servir”.) Esta não é apenas uma questão de ocasionalmente se curvar diante de uma imagem ou proferir uma oração a uma divindade estrangeira. Em vez disso, a vida de Israel e seu trabalho são gastos em serviço fútil aos ídolos, pois Israel passa a acreditar que seu sucesso no trabalho depende de aplacar as divindades cananeias locais. [1]

A maior parte de nosso trabalho hoje é dedicada a servir alguém ou algo que não seja o Deus de Israel. As empresas servem aos clientes e acionistas. Os governos servem aos cidadãos. As escolas servem aos alunos. Ao contrário de adorar os deuses cananeus, esse tipo de serviço não é um mal em si. Na verdade, servir a outras pessoas é uma das maneiras pelas quais servimos a Deus. Mas, se servir a clientes, acionistas, cidadãos, estudantes e afins se tornar mais importante para nós do que servir a Deus, ou, se isso se tornar simplesmente um meio de nos expandirmos, estamos seguindo os antigos israelitas na adoração a falsos deuses. Tim Keller observa que os ídolos não são uma relíquia obsoleta da religiosidade antiga, mas uma espiritualidade sofisticada, embora falsa, que encontramos todos os dias.

O que é um ídolo? É qualquer coisa mais importante para você do que Deus, qualquer coisa que absorva seu coração e sua imaginação mais do que Deus, qualquer coisa que você busque para receber o que somente Deus pode dar. Um deus falso é algo tão central e essencial para sua vida que, se você o perdesse, sua vida dificilmente valeria a pena ser vivida. Um ídolo tem uma posição tão controladora em seu coração que você pode gastar a maior parte de sua paixão e energia, seus recursos emocionais e financeiros, sem pensar duas vezes. Pode ser família e filhos, ou carreira e ganhar dinheiro, ou realizações e aclamação da crítica, ou salvar a “aparência” e a posição social. Pode ser um relacionamento romântico, aprovação de colegas, competência e habilidade, circunstâncias seguras e confortáveis, sua beleza ou seu cérebro, uma grande causa política ou social, sua moralidade e virtude ou até mesmo o sucesso no ministério cristão. [2]

Por exemplo, uma autoridade eleita deseja, com razão, servir ao público. Para fazer isso, ele deve continuar a ter um público para servir, ou seja, permanecer no cargo e continuar vencendo as eleições. Se o serviço ao público se tornar seu maior objetivo, então tudo o que for necessário para vencer uma eleição se tornará justificável, incluindo bajulação, engano, intimidação, acusações falsas e até fraude eleitoral. Um desejo ilimitado de servir ao público — combinado com uma crença inabalável de que ele era a única pessoa que poderia liderá-lo com eficácia — parece ser exatamente o que motivou o presidente dos EUA, Richard Nixon, na eleição de 1972. Parece que um desejo ilimitado de servir ao público foi o que o levou a tentar vencer a eleição a todo custo, incluindo espionar o Comitê Nacional Democrata no Watergate Hotel. Isso, por sua vez, levou ao seu impeachment, à perda do cargo e à desgraça. Servir a um ídolo sempre termina em desastre.

Pessoas em todas as posições — mesmo as posições familiares de cônjuge, pai e filho — enfrentam a tentação de elevar algum bem intermediário acima do serviço a Deus. Quando servir qualquer bem se torna um objetivo final, em vez de uma expressão de serviço a Deus, a idolatria se instala. Para saber mais sobre os perigos de idolatrar o trabalho, consulte as seções sobre o primeiro e o segundo mandamentos em Êxodo e o trabalho (“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3); “Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4)) e Deuteronômio e o trabalho (“Não terás outros deuses além de mim” Dt 5.7; Êx 20.3); “Não farás para ti nenhum ídolo” (Dt 5.8; Êx 20.4) em www.teologiadotrabalho.org.

Débora (Juízes 4—5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O melhor dentre os juízes é Débora. O povo reconhece sua sabedoria e a procura em busca de conselho e resolução de conflitos (Jz 4.5). A hierarquia militar a reconhece como comandante suprema e, de fato, só entrará em guerra sob seu comando pessoal (Jz 4.9). Seu governo é tão bom que “a terra teve paz durante quarenta anos” (Jz 5.31), uma ocorrência rara em qualquer momento da história de Israel.

Alguns hoje podem achar surpreendente que uma mulher, e não a viúva ou a filha de um governante, possa se tornar a chefe nacional de uma nação pré-moderna. Mas o livro de Juízes a considera a maior dos líderes de Israel durante esse período. Sozinha entre os juízes, ela é chamada de profetisa (Jz 4.4), indicando o quanto ela se parece muito com Moisés e Josué, a quem Deus também falou diretamente. Nem as mulheres, incluindo o agente disfarçado Jael, nem os homens, incluindo o general comandante Baraque, demonstram qualquer preocupação em ter uma líder mulher. O serviço de Débora como juíza e profetisa de Israel sugere que Deus não considera problemática a liderança política, judicial ou militar das mulheres. Também é evidente que seu marido, Lapidote, e sua família imediata não tiveram problemas para estruturar o trabalho doméstico, de modo que ela tivesse tempo e “se sentava debaixo da tamareira de Débora” para cumprir seus deveres, quando “os israelitas a procuravam, para que ela decidisse as suas questões”. (Jz 4.5).

Hoje, em algumas sociedades, em muitos setores de trabalho, em certas organizações, a liderança das mulheres tornou-se tão incontroversa quanto a de Débora. Mas, em muitas outras culturas, setores e organizações contemporâneos, as mulheres não são aceitas como líderes ou estão sujeitas a restrições que não são impostas aos homens. Refletir sobre a liderança de Débora no antigo Israel poderia ajudar os cristãos de hoje a esclarecer nossa compreensão da intenção de Deus nessas situações? Poderíamos servir a nossas organizações e sociedades ajudando a derrubar obstáculos impróprios à liderança feminina? Nós nos beneficiaríamos pessoalmente ao buscar mulheres como chefes, mentoras e modelos em nosso trabalho?

Os efeitos econômicos da guerra (Juízes 6.1-11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Depois de Débora, a qualidade dos juízes começa a declinar. O texto de Juízes 6.1-11 ilustra o que provavelmente era uma característica comum da vida israelita naquela época — as dificuldades econômicas decorrentes da guerra.

De novo os israelitas fizeram o que o Senhor reprova, e durante sete anos ele os entregou nas mãos dos midianitas. Os midianitas dominaram Israel; por isso os israelitas fizeram para si esconderijos nas montanhas, nas cavernas e nas fortalezas. Sempre que os israelitas faziam as suas plantações, os midianitas, os amalequitas e outros povos da região a leste deles as invadiam. Acampavam na terra e destruíam as plantações ao longo de todo o caminho, até Gaza, e não deixavam nada vivo em Israel, nem ovelhas nem gado nem jumentos. Eles subiam trazendo os seus animais e suas tendas, e vinham como enxames de gafanhotos; era impossível contar os homens e os seus camelos. Invadiam a terra para devastá-la. Por causa de Midiã, Israel empobreceu tanto que os israelitas clamaram por socorro ao Senhor.

Os efeitos da guerra sobre o trabalho são sentidos em muitas partes do mundo hoje. Além dos danos causados ​​por ataques diretos contra alvos econômicos, a instabilidade causada por conflitos armados pode devastar a subsistência das pessoas. Os agricultores em áreas devastadas pela guerra relutam em plantar, pois é provável que sejam deslocados antes da colheita. Os investidores consideram os países devastados pela guerra um risco e provavelmente não canalizarão recursos para melhorar a infraestrutura. Com pouca esperança de desenvolvimento econômico, as pessoas podem ser atraídas para facções armadas que lutam por quaisquer recursos que possam ser explorados. Assim, o ciclo sombrio de guerra e miséria continua. A paz precede a abundância.

A situação econômica de Israel era tão precária sob os midianitas que encontramos o futuro juiz Gideão “malhando o trigo num tanque de prensar uvas, para escondê-lo dos midianitas” (Jz 6.11). Daniel Block mostra a lógica de seu comportamento.

Na ausência de tecnologia moderna, o grão era debulhado batendo primeiro as cabeças dos talos cortados com um mangual, descartando a palha e, em seguida, jogando a mistura de palha e grãos no ar, permitindo que o vento soprasse a palha enquanto os grãos mais pesados ​​caíam no chão. Nas atuais circunstâncias críticas, isso obviamente teria sido imprudente. A atividade de debulhar no topo das colinas só teria despertado a atenção dos saqueadores midianitas. Portanto, Gideão recorre a bater os grãos em uma cuba abrigada usada para prensar as uvas. Geralmente os lagares envolviam duas depressões escavadas na rocha, uma sobre a outra. As uvas seriam colhidas e pisadas na parte superior, enquanto um canal drenaria o suco para a parte inferior. [1]

Hoje, cristãos e não-cristãos concordam amplamente que é imoral conduzir negócios de maneiras que perpetuem conflitos armados. A proibição internacional de “diamantes de conflito” é um exemplo atual. [2] Os cristãos estão assumindo a liderança em tais empreendimentos? Somos nós que rastreamos se empresas, governos, universidades e outras instituições em que trabalhamos estão involuntariamente participando da violência? Corremos o risco de levantar essas questões quando nossos superiores podem preferir ignorar a situação? Ou nos escondemos, como Gideão, atrás da desculpa de apenas fazer nosso trabalho?

O sucesso do passado não garante o futuro — a liderança ambivalente de Gideão (Juízes 6.12— 8.35)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Gideão é um excelente exemplo do caráter paradoxal dos juízes de Israel e das lições ambivalentes que eles oferecem para a liderança no ambiente de trabalho e em outros lugares. O nome de Gideão significa literalmente “destruidor”, [1] e parece apontar em uma direção positiva quando destrói os ídolos de seu pai em Juízes 6.25-27. (O fato de ele fazer isso à noite, por medo, é um detalhe perturbador.) [2] Apesar do fato de que Deus prometeu estar com ele, Gideão está sempre buscando sinais, principalmente no incidente da lã em Juízes 6.36-40. Deus concorda em dar a Gideão o sinal neste caso, mas dificilmente é um exemplo para outros seguirem, como muitos cristãos modernos argumentam em relação à orientação e, especificamente, à orientação vocacional. Em vez disso, é um sinal do compromisso vacilante que, no final da história, descambará para a idolatria. [3] Ver Tomada de decisão pelo livro [4] e Tomada de decisão e a vontade de Deus [5] para uma análise aprofundada dos métodos de discernimento de Gideão.

O ponto alto da história é, naturalmente, o surpreendente triunfo de Gideão sobre os midianitas (Juízes 7). Menos conhecidos são seus subsequentes fracassos de liderança (Juízes 8). Os habitantes de Sucote e Peniel se recusam a ajudar seus homens após a batalha, e a destruição brutal dessas cidades pode parecer desproporcional à ofensa. Gideão está novamente fazendo jus ao seu nome, mas agora está atacando qualquer um que cruze seu caminho. [6] Apesar de seus protestos de que não quer ser rei, ele se torna um déspota em tudo, mesmo sem o nome (Jz 8.22-26). Ainda mais preocupante é sua subsequente queda na idolatria. O éfode que ele faz torna-se uma “armadilha” para seu povo, e “todo o Israel prostituiu-se” (Jz 8.27). Como os poderosos caíram!

Uma lição para nós hoje pode ser encontrar gratidão pelos dons de grandes pessoas sem idolatrá-las. Como Gideão, um general hoje pode nos levar à vitória na guerra, mas se mostrar um tirano na paz. Um gênio pode nos trazer percepções sublimes na música ou no cinema, mas nos desviar do caminho em termos de família ou política. Um líder empresarial pode resgatar uma empresa em crise, apenas para destruí-la em tempos de tranquilidade. Podemos até encontrar as mesmas descontinuidades dentro de nós mesmos. Talvez subamos na hierarquia no trabalho, enquanto afundamos na discórdia em casa, ou vice-versa. Talvez nos provemos capazes como pessoas individuais, mas falhemos como gerentes. O mais provável de tudo, talvez, é que tenhamos sucesso quando reconhecemos nossa insegurança em nós mesmos e dependemos de Deus, mas causamos estragos quando o sucesso nos leva à autossuficiência. [7] Como os juízes, somos pessoas de contradição e fragilidade. Nossa única esperança, ou então desespero, é o perdão e a transformação que nos são possíveis em Cristo.

A falha de liderança dos juízes (Juízes 9—16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

As falhas de Gideão são intensificadas nos juízes que se seguem. Abimeleque, filho de Gideão, une o povo ao seu redor, mas apenas matando seus setenta irmãos que estavam em seu caminho (Jz 9). Jefté começa como um bandido, levanta-se para libertar o povo dos amonitas, mas destrói sua própria família e seu futuro com um voto terrível que leva à morte de sua filha (Jz 11). O mais famoso dos juízes, Sansão, causa estragos entre os filisteus, mas sucumbe infamemente às seduções da pagã Dalila, causando sua própria ruína (Jz 13—16).

O que devemos fazer com tudo isso para nosso trabalho no mundo de hoje? Em primeiro lugar, as histórias dos juízes afirmam a verdade de que Deus trabalha por meio de pessoas quebrantadas. Isso certamente é verdade, pois vários juízes — Gideão, Baraque, Sansão e Jefté — são louvados no Novo Testamento, junto com Raabe (Hb 11.31-34). O livro de Juízes não hesita em apontar que o Espírito de Deus os capacitou a realizar poderosos atos de libertação diante de adversidades esmagadoras (Jz 3.10; 6.34; 11.29; 13.25; 14.6-9; 15.14). Além disso, eles eram mais do que instrumentos nas mãos de Deus. Eles responderam positivamente ao chamado de Deus para libertar a nação e, por meio deles, Deus libertou seu povo repetidas vezes.

No entanto, o teor geral de Juízes não nos encoraja a transformar esses homens em modelos. A tônica do livro é que a nação está uma bagunça, inundada de transigências, e seus líderes são uma decepção por sua desobediência à aliança de Deus. Uma lição mais apropriada a ser extraída pode ser que o sucesso — até mesmo o sucesso dado por Deus — não é necessariamente um pronunciamento do favor de Deus. Quando nossos esforços no ambiente de trabalho são abençoados, especialmente diante de circunstâncias adversas, é tentador raciocinar: “Bem, Deus obviamente tem sua mão nisso, então ele deve estar me recompensando por ser uma boa pessoa”. Mas a história dos juízes mostra que Deus trabalha quando deseja, como deseja e por meio de quem deseja. Ele age de acordo com seus planos, não de acordo com nosso mérito ou falta dele. Não podemos receber o crédito como se merecêssemos as bênçãos do sucesso. Da mesma forma, não podemos julgar aqueles a quem consideramos menos merecedores do favor de Deus, como Paulo nos lembra em Romanos 2.1.

O evangelho da prosperidade desmascarado em sua forma inicial (Juízes 17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Se a seção central de Juízes nos oferece heróis falhos presos em um ciclo deprimente de opressão e libertação, os capítulos finais retratam um povo caído, aparentemente sem esperança de redenção. Juízes 17 começa com quase uma paródia da idolatria. Um homem chamado Mica tem muito dinheiro, sua mãe usa o dinheiro para fazer um ídolo e Mica contrata um levita autônomo como seu sacerdote pessoal. Não é de surpreender que o culto caseiro espalhafatoso de Mica apresente uma teologia igualmente abismal. “Mica disse: ‘Agora sei que o Senhor me tratará com bondade, pois esse levita se tornou meu sacerdote” (Jz 17.13). Em outras palavras, ao contratar uma autoridade religiosa para abençoar seu empreendimento idólatra, Mica acredita que pode cooptar Deus para produzir os bens que deseja. A criatividade humana é aqui desperdiçada da pior maneira possível, na fabricação de deuses de faz de conta como um disfarce para a ganância e a arrogância.

O impulso de transformar Deus em uma máquina de prosperidade nunca desapareceu. Uma forma notória disso hoje é o chamado “evangelho da prosperidade” ou “evangelho do sucesso”, que afirma que aqueles que professam a fé em Cristo serão necessariamente recompensados ​​com riqueza, saúde e felicidade. No que diz respeito ao trabalho, isso leva alguns a negligenciar seu trabalho e a cair na licenciosidade, enquanto esperam que Deus os cubra de riquezas. Tal pensamento leva outros — que esperam que Deus traga prosperidade apesar de seu trabalho — a negligenciar a família e a comunidade, abusar de colegas de trabalho e fazer negócios de forma antiética, certos de que o favor de Deus os isenta da moralidade comum.

A concubina do levita: a depravação humana e a cumplicidade das autoridades religiosas (Juízes 18—21)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O episódio final de Juízes é o acontecimento mais terrível na longa queda de Israel para a depravação, a idolatria e a anarquia. Alguns homens da tribo de Dã fogem com todo o empreendimento religioso de Mica, incluindo o levita e o ídolo (Jz 18.1-31). O levita leva uma concubina de uma aldeia distante (Belém, por acaso), mas, depois de uma briga doméstica, ela volta para a casa de seu pai. O levita vai a Belém para recuperá-la. Depois de uma bebedeira de cinco dias com o pai dela, o levita começa, tolamente, a jornada de volta para casa, pouco antes do pôr do sol. Eles se encontram sozinhos à noite, na praça de uma aldeia da tribo de Benjamim. Ninguém os acolheu, até que, por fim, um velho oferece a hospitalidade de um lugar para passar a noite.

Naquela noite, os homens da cidade cercam a casa e exigem que o velho traga o estranho para que possam abusar dele (Jz 19.22). O velho tenta proteger o estranho, mas sua ideia de proteger os visitantes é de virar o estômago, para dizer o mínimo. A fim de poupar o levita, o homem oferece sua própria filha e a concubina do levita para que os homens abusem delas. O próprio levita expulsa a concubina porta afora, talvez no mais antigo exemplo registrado em que uma autoridade religiosa se mostra cúmplice com o abuso sexual. “E eles a violentaram e abusaram dela a noite toda. Ao alvorecer a deixaram” (Jz 19.25). Seu corpo é posteriormente desmembrado e disperso para as tribos de Israel, que quase exterminam a tribo de Benjamim em represália (Jz 20—21). A influência cananeia sobre os israelitas era completa. [1]

A linha final do livro resume as coisas de forma sucinta. “Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” (Jz 21.25). Caso não seja óbvio, isso significa que, sem uma liderança que levasse o povo a servir ao Senhor, as pessoas seguiam seus próprios artifícios e desejos malignos, não que a bússola moral inerente às pessoas as levasse a fazer o que é certo sem precisar de supervisão.

Em nossas esferas de trabalho hoje, as ameaças contra os mais fracos — incluindo o abuso de mulheres e estrangeiros — continuam a ser surpreendentemente comuns. Individualmente, temos de escolher se ficamos ao lado daqueles que enfrentam injustiça — sem dúvida, um risco para nós mesmos — ou se ficamos quietos até que o dano tenha passado.

Organizacional e socialmente, temos de decidir se trabalhamos por sistemas e estruturas que restringem os males do comportamento humano ou se ficamos de lado enquanto todos fazem o que acham certo aos seus próprios olhos. Mesmo nossa passividade pode contribuir para abusos em nosso ambiente de trabalho, especialmente se não estivermos em posições de autoridade. Mas, sempre que os outros perceberem que você tem poder — por exemplo, porque você é mais velho, trabalha na empresa há mais tempo, está mais bem vestido, é visto frequentemente conversando com o chefe, pertence a um grupo étnico ou linguístico privilegiado, tem mais educação ou é melhor em se expressar — e você não consegue defender aqueles que estão sendo abusados, está contribuindo para o sistema de abuso. Por exemplo, se as pessoas tendem a pedir ajuda, isso significa que você tem uma quantidade significativa de poder percebido. Se, então, você fica de braços cruzados quando uma piada depreciativa é contada ou um novo funcionário é intimidado, está adicionando seu peso ao fardo da vítima e ajudando a preparar o caminho para o próximo abuso.

Ler os acontecimentos horríveis nos últimos capítulos de Juízes pode nos tornar gratos por não vivermos naqueles dias. Mas, se estivermos realmente conscientes, podemos ver que o simples ato de trabalhar é tão carregado de significado moral quanto o trabalho de qualquer líder ou pessoa no antigo Israel.

Conclusões de Josué e Juízes

Voltar ao índice Voltar ao índice

A jornada por meio de Josué e Juízes é preocupante. Começamos com o exemplo inspirador de Josué, em quem foram combinadas habilidade, sabedoria e virtude piedosa. O próprio Senhor guia o povo de Israel à terra da promessa, e eles prometem segui-lo por toda a vida. Deus lhes concede uma sociedade livre da tirania, com um novo começo, livre de corrupção, dominação e injustiça institucionalizada. Quando necessário, ele levanta líderes que livram a nação de todas as ameaças sucessivas, exemplificadas por Josué e Débora — sábios, corajosos e universalmente aclamados.

Vemos os primeiros líderes e o povo de Israel construindo as estruturas necessárias para a paz e a prosperidade na terra. Eles alocam recursos de forma justa e produtiva. Perseguem uma missão unificadora, ao mesmo tempo em que mantêm uma cultura diversificada e flexível. Distribuem o poder e, ao mesmo tempo, mantêm a responsabilidade mútua e aprendem como resolver conflitos de forma produtiva e criativa. Eles prosperam e têm paz.

Mas, logo depois, vemos Israel degenerar de uma nação da aliança bem governada, bem organizada e segura para uma massa de gente violenta e rebelde. Todos os aspectos de sua vida, incluindo o trabalho, tornam-se corrompidos pelo abandono dos preceitos e da presença de Deus. Deus lhes deu uma terra abundante, preparada para o trabalho produtivo, mas eles se esquecem de sua obra em favor deles e desperdiçam seus recursos em ídolos. Eles se abrem para a guerra e a consequente privação econômica e, em pouco tempo, começam a abraçar plenamente os males dos povos ao redor. No final, eles se tornaram seu pior inimigo.

A principal lição para nós, então, é a mesma com a qual João terminou sua primeira carta, séculos depois: “Filhinhos, guardem-se dos ídolos” (1Jo 5.21). Quando trabalhamos em fidelidade a Deus, obedecendo à sua aliança e buscando sua orientação, nosso trabalho traz um bem inimaginável para nós mesmos e para nossa sociedade. Mas, quando quebramos a aliança com o Deus que trabalha em nosso favor e começamos a praticar as injustiças que aprendemos tão facilmente com a cultura ao nosso redor, descobrimos que nosso trabalho é tão vazio quanto os ídolos que passamos a servir.

Introdução ao livro de Rute

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Rute conta a extraordinária história da fidelidade de Deus a Israel na vida e na obra de três pessoas comuns: Noemi, Rute e Boaz. À medida que eles trabalham tanto em momentos de dificuldades econômicas como em momentos de prosperidade, vemos a mão de Deus em ação mais claramente em seu trabalho agrícola produtivo, no gerenciamento generoso de recursos para o bem de todos, no tratamento respeitoso dos colegas de trabalho, na engenhosidade diante da necessidade e na concepção e criação dos filhos. Ao longo de tudo, a fidelidade de Deus a eles cria oportunidades para um trabalho frutífero, e fidelidade das pessoas a Deus traz a bênção da provisão e segurança uns para os outros e para as pessoas ao seu redor.

Os acontecimentos no livro de Rute ocorrem na época da festa da colheita da cevada (Rt 1.22; 2.17,23; 3.2,15,17), quando se celebrava a conexão entre a bênção de Deus e o trabalho humano. Duas passagens da Torá dão o pano de fundo do festival (grifo nosso):

Celebrem a festa da colheita dos primeiros frutos do seu trabalho de semeadura. (Êx 23.16)
Celebrem então a festa das semanas ao Senhor, o seu Deus, e tragam uma oferta voluntária conforme às bênçãos recebidas do Senhor, o seu Deus. E alegrem-se perante o Senhor, o seu Deus, no local que ele escolher para habitação do seu Nome, junto com os seus filhos e as suas filhas, os seus servos e as suas servas, os levitas que vivem na sua cidade, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas que vivem com vocês. Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito e obedeçam fielmente a estes decretos. (Dt 16.10-12)

Juntas, essas passagens estabelecem uma base teológica para os acontecimentos do livro de Rute.

  1. A bênção de Deus é a fonte da produtividade humana (“bênçãos recebidas do Senhor”).

  2. Deus concede sua bênção de produtividade por meio do trabalho humano (“frutos do seu trabalho”).

  3. Deus chama as pessoas para que forneçam oportunidades de trabalho produtivo (“Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito”, uma lembrança de que Deus libertou seu povo da escravidão no Egito e garantiu-lhes sua provisão no deserto e na terra de Canaã) para pobres e pessoas vulneráveis ​​(“os estrangeiros, os órfãos e as viúvas”).

Em suma, a produtividade do trabalho humano é uma extensão da obra de Deus no mundo, e a bênção de Deus sobre o trabalho humano está inseparavelmente ligada ao mandamento de Deus de prover generosamente àqueles que não têm meios para se sustentar. Esses princípios fundamentam o livro de Rute. Mas o livro é uma narrativa, não um tratado teológico, e a história é envolvente.

Tragédia atinge a família de Rute e Noemi (Rute 1.1-22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A história começa com uma fome “na época dos juízes” (Rt 1.1). Esta foi uma época em que o povo de Israel havia abandonado os caminhos de Deus e caído na idolatria, em condições sociais horríveis e em uma guerra civil desastrosa, como é relatado nos capítulos de Juízes, imediatamente anteriores ao livro de Rute, nas Bíblias cristãs (nas Bíblias hebraicas, os livros aparecem em ordem diferente). Como um todo, a nação certamente não estava seguindo os preceitos da Torá no que diz respeito ao trabalho ou a qualquer outra coisa. Os personagens da história — pelo menos Noemi — reconheceram a perda da bênção de Deus que isso causou (Rt 1.13; 1.20-21). Como resultado, a estrutura socioeconômica da sociedade estava desmoronando e a fome assolava a terra.

Movidos pela fome, Elimeleque, sua esposa Noemi e seus dois filhos mudaram-se para Moabe — uma atitude de desespero, dada a longa inimizade entre Israel e Moabe —, onde pensaram que as perspectivas de trabalho produtivo eram maiores. Não sabemos se eles conseguiram encontrar trabalho, mas os dois filhos encontraram esposas em Moabe. Mas, em dez anos, elas experimentaram uma tragédia social e econômica: a morte de todos os homens, deixando Noemi e suas duas noras sem maridos (Rt 1.3-5). As três viúvas então tiveram de se sustentar sem os direitos legais e econômicos concedidos aos homens em sua sociedade. Em suma, elas não tinham maridos, nenhum título claro de propriedade da terra e nenhum recurso para ganhar a vida. “Não me chamem Noemi, melhor que me chamem de Mara [amarga], pois o Todo-poderoso tornou minha vida muito amarga”. Noemi lamentou (Rt 1.20), refletindo a dureza de sua situação.

Junto com os estrangeiros e os órfãos, as viúvas recebiam muita atenção na Lei de Israel. [1] Por terem perdido a proteção e o apoio de seus maridos, elas se tornavam alvos fáceis de abuso e exploração econômica e social. Muitas recorriam à prostituição simplesmente para sobreviver, uma situação muito comum para mulheres vulneráveis ​​em nossos dias. Noemi não apenas ficou viúva, mas também era uma estrangeira em Moabe. No entanto, se ela voltasse a Belém com suas noras, as mulheres mais jovens seriam viúvas e estrangeiras em Israel. [2] Talvez, em resposta à vulnerabilidade que enfrentavam, não importa onde morassem, Noemi exortou-as a voltar para seus lares maternos e orou para que o Deus de Israel concedesse a cada uma delas segurança dentro da casa de um novo marido (moabita) (Rt 1.8-9). No entanto, uma das noras, Rute, não suportava a ideia de separar-se de Noemi, por mais que sofressem. Suas palavras para Noemi cantam a profundidade de seu amor e lealdade:

Não insistas comigo que te deixe e que não mais te acompanhe. Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus! Onde morreres morrerei, e ali serei sepultada. Que o Senhor me castigue com todo o rigor, se outra coisa que não a morte me separar de ti! (Rt 1.16-17)

A vida pode ser difícil, e essas mulheres enfrentaram o pior.

A bênção de Deus é a fonte da produtividade humana (Rute 2.1-4)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Noemi e Rute enfrentam dificuldades agonizantes, mas, em Deus, dificuldade não é desesperança. Embora não encontremos intervenções milagrosas óbvias no livro de Rute, a mão de Deus não está de forma alguma ausente. Pelo contrário, Deus está trabalhando a cada momento, especialmente por meio das ações de pessoas fiéis no livro. Há muito tempo, Deus havia prometido a Abraão: “Eu o tornarei extremamente prolífero; de você farei nações e de você procederão reis” (Gn 17.6). O Senhor cumpriu sua promessa, restaurando a produtividade agrícola de Israel (Rt 1.6), apesar da infidelidade de seu povo. Quando Noemi ouviu falar disso, decidiu voltar para casa, em Belém, para tentar encontrar comida. Rute, fiel à sua palavra, foi com ela, com a intenção de encontrar trabalho para sustentar a si mesma e a Noemi. À medida que a história se desenrola, as bênçãos de Deus se derramam sobre as duas — e, finalmente, sobre toda a humanidade — por meio do trabalho de Rute e seus resultados.

A fidelidade de Deus a nós é a base de toda a produtividade

No geral, as Escrituras Hebraicas retratam Deus como o Trabalhador divino, que fornece um paradigma para o trabalho humano. A Bíblia começa com uma imagem de Deus em ação — falando, criando, formando, construindo. Em toda a Bíblia hebraica, Deus não apenas aparece como o sujeito de muitos verbos “trabalhar”, mas as pessoas muitas vezes se referem a ele metaforicamente como “Trabalhador”. Em toda a Bíblia hebraica, Deus não apenas se envolve em muitos tipos de trabalho, [1] mas também ordena ao povo de Israel que trabalhe de acordo com o padrão divino (Êx 20.9-11). Ou seja, Deus trabalha diretamente e por meio das pessoas.

Os personagens principais do livro de Rute reconheceram Deus como o fundamento de seu trabalho, pela maneira como abençoavam uns aos outros e por suas repetidas declarações de fé. [2] Algumas dessas expressões são elogios por ações que Deus já tomou (ele não reteve sua bondade, mas forneceu um parente resgatador, Rt 4.14). Outros são pedidos de bênção divina (Rt 2.4,19; 3.10), presença (Rt 2.4) ou bondade (Rt 1.8). Um terceiro grupo envolve pedidos mais específicos de ação divina. Que Deus conceda segurança (Rt 1.9). Que Deus faça Rute igual a Raquel e Lia (Rt 4.11-12). A bênção em Rute 2.12 é particularmente significativa: “O Senhor lhe retribua o que você tem feito! Que seja ricamente recompensada pelo Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas você veio buscar refúgio!” Todas essas bênçãos expressavam a certeza de que Deus está trabalhando para prover o sustento de seu povo.

Rute desejava receber a bênção da produtividade de Deus, fosse do próprio Deus (Rt 2.12) ou por meio de um ser humano, “aquele que me permitir” (Rt 2.2). Apesar de ser moabita, ela era mais sábia do que muitos em Israel quando se tratava de reconhecer a mão do Senhor em seu trabalho.

Para a ação da história, uma das bênçãos mais importantes de Deus é que ele abençoou Boaz com uma fazenda produtiva (Rt 2.3). Boaz estava plenamente ciente do papel de Deus em seu trabalho, como mostrado em sua repetida invocação da bênção do Senhor (Rt 2.4; 3.10).

Deus usa acontecimentos aparentemente fortuitos para capacitar o trabalho das pessoas

Uma das maneiras pelas quais Deus cumpre sua promessa de produtividade é seu domínio das circunstâncias do mundo. O estranho emprego de “casualmente” (traduzida como “aconteceu de” pela NVT) em Rute 2.3 é deliberado. Coloquialmente, diríamos que “ela estava com sorte”. Mas a afirmação é irônica. O narrador usa intencionalmente uma expressão que força o leitor a se sentar e perguntar como Rute “casualmente” chegou ao campo de um homem que não era apenas bondoso e permitiu que ela ficasse ali (Rt 2.2), mas também era um parente (Rt 2.1). À medida que a história se desenrola, vemos que a chegada de Rute ao campo de Boaz foi uma evidência da mão providencial de Deus. O mesmo pode ser dito sobre o aparecimento do parente mais próximo (resgatador), assim que Boaz se sentou no portão, em Rute 4.1–2.

Como o mundo seria triste se tivéssemos de ir trabalhar todos os dias esperando nada além do que nós mesmos temos o poder de realizar. Devemos depender do trabalho dos outros, da oportunidade inesperada, da explosão de criatividade, da bênção não prevista. Certamente, uma das bênçãos mais consoladoras de seguir a Cristo é sua promessa de que, quando formos trabalhar, ele trabalhará ao nosso lado e carregará a carga conosco. “Tomem sobre vocês o meu jugo... Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11.29-30). Rute não tinha as palavras de Jesus, mas vivia na fé e confiança de que, sob as asas de Deus, encontraria tudo o que precisava (Rt 2.12).

A produtividade humana é uma consequência de nossa fidelidade a Deus

A fidelidade de Deus a Israel se refletiu na fidelidade de Rute a Noemi. Rute havia prometido: “Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” (Rt 1.16). A promessa de Rute não era um apelo para permanecer como consumidora passiva no que restava da casa de Elimeleque, mas um compromisso de fornecer à sogra o máximo que pudesse. Embora não seja uma israelita, ela parece ter vivido de acordo com a Lei de Israel, conforme encarnada no Quinto Mandamento: “Honra teu pai e tua mãe”. A restauração do trabalho produtivo para ela e sua família começou com seu compromisso de trabalhar em fidelidade à lei de Deus.

Deus concede sua bênção de produtividade por meio do trabalho humano (Rute 2.5-7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A fidelidade de Deus é a base da produtividade humana, mas as pessoas precisam fazer o trabalho de verdade. Essa foi a intenção de Deus desde o princípio (Gn 1.28; 2.5; 2.15). Rute estava ansiosa para trabalhar arduamente e, assim, sustentar a si mesma e a Naomi. “Deixe-me ir para o campo”, implorou ela, e, quando teve a chance de trabalhar, seus colegas de trabalho relataram que “ela chegou cedo e está em pé até agora” (Rt 2.7). Seu trabalho era excepcionalmente produtivo. Quando ela voltou para casa, após seu primeiro dia de trabalho, tendo colhido a cevada dos talos, sua colheita rendeu “quase uma arroba” (Rt 2.17). Isso equivalia a aproximadamente um cesto de 20 litros de cevada. [1] Tanto Deus quanto Boaz a elogiaram (e a recompensaram) por sua fé e diligência (Rt 2.12,17-23; 3.15-18).

Em maior ou menor grau, todos somos vulneráveis ​​a circunstâncias que tornam difícil ou impossível ganhar a vida. Desastres naturais, corte de jornada, corte de pessoal, preconceito, lesão, doença, falência, tratamento injusto, restrições legais, barreiras linguísticas, falta de treinamento ou experiência relevante, idade, sexo, má gestão econômica por parte do governo ou da indústria, barreiras geográficas, ser demitido, necessidade de cuidar dos membros da família, e uma série de outros fatores pode nos impedir de trabalhar para sustentar a nós mesmos e às pessoas que dependem de nós. No entanto, Deus espera que trabalhemos o máximo que pudermos (Êx 20.9).

Mesmo que não consigamos encontrar um emprego que atenda às nossas necessidades, precisamos trabalhar o máximo que pudermos. Rute não tinha um emprego estável, com horário regular e salário. Ela estava ansiosa para saber se sua posição na vida seria suficiente para encontrar oportunidades no ambiente de trabalho (Rt 2.12), e não podia necessariamente esperar ganhar o suficiente para alimentar sua família. Ela foi trabalhar mesmo assim. Muitas das condições que enfrentamos hoje em termos de desemprego e subemprego são profundamente desencorajadoras. Se a falta de empregos altamente qualificados nos deixa apenas o que parecem ser oportunidades inferiores, se a discriminação nos impede de conseguir o emprego para o qual somos qualificados, se as circunstâncias nos impedem de obter a educação de que precisamos para um bom emprego, se as condições fazem com que o trabalho pareça sem esperança, o exemplo de Rute é que, apesar disso, somos chamados a trabalhar. Nosso trabalho pode nem mesmo gerar renda a princípio, como quando voluntariamos para ajudar os outros, cuidar de membros da família, receber educação ou treinamento ou cuidar da própria casa.

A graça salvadora é que Deus é o poder por trás de nosso trabalho. Não dependemos de nossa própria capacidade ou das circunstâncias ao nosso redor para suprir nossas necessidades. Em vez disso, trabalhamos fielmente como podemos, sabendo que a fidelidade de Deus à sua promessa de gerar frutos é o que nos dá confiança de que nosso trabalho vale a pena, mesmo nas situações mais adversas. Raramente somos capazes de ver de antemão como Deus pode usar nosso trabalho para cumprir suas promessas, mas o poder de Deus se estende muito além do que podemos ver.

Receber a bênção de Deus para a produtividade significa respeitar os colegas de trabalho (Rute 2.8-16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como Rute 2.1 relata, Boaz era “um homem rico e influente”. Quaisquer que sejam as conotações que isso possa ter hoje, no caso de Boaz, isso significava que ele era um dos melhores chefes da Bíblia. Seu estilo de liderança começou com respeito. Quando ele saía para o campo onde seus homens estavam trabalhando, ele os cumprimentava com uma bênção (“O Senhor esteja com vocês”), e eles respondiam da mesma forma (“O Senhor te abençoe”; Rt 2.4). O local de trabalho de Boaz é notável em muitos níveis. Ele era dono e administrava uma empresa que dependia de uma força de trabalho contratada. Ele controlava o ambiente de trabalho dos outros. Em contraste com muitos ambientes de trabalho em que supervisores e proprietários tratam seus funcionários com desdém e os funcionários não têm respeito por seus chefes, Boaz promovia um relacionamento de confiança e respeito mútuo.

Boaz colocou em prática seu respeito por seus trabalhadores, fornecendo-lhes água enquanto trabalhavam (Rt 2.9), comendo com eles e, acima de tudo, compartilhando sua comida com a pessoa considerada a mais baixa entre eles (Rt 2.14). Mais tarde, aprendemos que, na época da colheita, Boaz, o proprietário da terra, limpava a cevada com seus ceifeiros e dormia com eles no campo (Rt 3.2-4,14).

Boaz demonstrou uma visão elevada de todo ser humano como portador da imagem de Deus (Gn 1.27; Pv 14.31; 17.5) pela maneira sensível com que tratou a mulher estrangeira em seu ambiente de trabalho. Quando a viu entre os trabalhadores, perguntou gentilmente: “A quem pertence aquela moça?” (Rt 2.5), supondo que ela fosse dependente ou ligada a algum homem — seja como esposa ou filha —, talvez algum proprietário de terras na área. Quando ele soube que ela era uma mulher moabita que havia retornado de Moabe com Noemi (Rt 2.6), e ouviu falar de seu pedido de permissão para respigar atrás de seus ceifeiros (Rt 2.7), chocantemente, as primeiras palavras que ele disse foram: “Ouça com atenção, minha filha” (Rt 2.8). Compartilhar sua comida com uma mulher estrangeira (Rt 2.14) foi um ato mais significativo do que poderia parecer. Homens respeitáveis, ​​proprietários de terras, não estavam acostumados a conversar com mulheres estrangeiras, [1] como a própria Rute aponta (Rt 2.10). Um homem mais preocupado com aparências sociais e oportunidades de negócios — e menos compadecido por alguém em necessidade — poderia ter enviado uma intrusa moabita para fora de suas terras de imediato. Mas Boaz estava mais do que disposto a defender o trabalhador vulnerável em seu meio, qualquer que fosse a reação dos outros.

Na verdade, com esse relato, podemos ter encontrado a primeira política contra o assédio sexual no ambiente de trabalho registrada no mundo. Talvez ele estivesse ciente de que muitos proprietários e trabalhadores de fazendas eram homens abusivos [2] e talvez seja por isso que ele comunicou a Rute que havia falado a seus homens para que não a tocassem (Rt 2.9). O comentário de Noemi: “É melhor mesmo você ir com as servas dele, minha filha. Noutra lavoura poderiam molestá-la” (Rt 2.22), certamente mostra que ela temia pela segurança de sua nora. Os termos da política de Boaz são claros:

  1. Os trabalhadores do sexo masculino não deveriam “incomodar” essa mulher. Normalmente, a palavra naga, significa “tocar”, mas aqui funciona de forma mais geral para “golpear, assediar, tirar vantagem de, maltratar ”. [3] Boaz reconhece que a implicação de ser tocado é determinada por como a pessoa que está sendo tocada percebe o ato.
  2. Rute deveria ter acesso igual à água (Rt 2.9) e à mesa do almoço (Rt 2.14). Na hora da refeição, Boaz convidou Rute a sentar-se com ele e seus trabalhadores e mergulhar seu pedaço de pão no molho (Rt 2.14). Então ele mesmo a serviu até que ela estivesse mais do que satisfeita. A escolha do verbo nagash, “achegar-se, aproximar-se”, sugere que, como estrangeira, Rute havia deliberada e apropriadamente (de acordo com o costume) mantido distância. A política de assédio sexual de Boaz não é simplesmente restritiva — proibindo certas ações —, mas é positiva em sua intenção, o que significa que a reação da pessoa em perigo de assédio é o indicador do que os outros podem fazer. Boaz procurou descobrir se Rute se sentia segura como medida para saber se ele estava oferecendo a proteção de que ela precisava. Ele demonstrou, por exemplo, como esperava que as trabalhadoras vulneráveis ​​fossem respeitadas.
  3. Os funcionários regulares de Boaz não deveriam repreendê-la (Rt 2.15) ou impedi-la (Rt 2.16). Junto com a palavra “tocar” em 2.9, essas expressões demonstram que o assédio vem de muitas formas: abuso físico, emocional e verbal. De fato, com seu pronunciamento efusivo de bênção sobre Rute (Rt 2.12), Boaz representa um modelo dramaticamente afirmativo.
  4. Os funcionários regulares deveriam tornar o ambiente de trabalho de Rute o mais seguro possível e fazer de tudo para ajudá-la a realizar suas tarefas de trabalho (Rt 2.15-16). No local de trabalho, prevenir o assédio significa não apenas criar um ambiente seguro, mas também produtivo para as pessoas em risco. As barreiras à produtividade, ao avanço e às recompensas que as acompanham devem ser eliminadas. Boaz poderia ter deixado Rute segura, mantendo-a a uma grande distância dos trabalhadores do sexo masculino. Mas isso teria negado seu acesso a água e comida, e poderia ter causado perda de grãos devido ao vento ou a animais antes que ela pudesse juntar os feixes. Boaz se certificou de que as salvaguardas que ele criou permitissem que ela fosse totalmente produtiva.

Parece que os trabalhadores de Boaz captaram seu espírito generoso. Quando seu chefe os saudava com uma bênção, eles também o abençoavam (Rt 2.4). Quando Boaz perguntou sobre a identidade da mulher que havia aparecido em seu campo, o supervisor da força de trabalho reconheceu que Rute era moabita, mas exibiu um tom gracioso (Rt 2.6-7). O fato de Rute ter trazido uma grande quantidade de grãos para casa, para Noemi, atesta a reação positiva dos trabalhadores às recomendações de Boaz de tratar bem Rute. Eles não apenas obviamente cortaram muitos grãos para ela, mas também aceitaram essa mulher moabita como colaboradora durante a colheita (Rt 2.21-23).

Os efeitos positivos da liderança de Boaz vão além do ambiente de trabalho. Quando Noemi vê os resultados dos esforços de Rute, ela abençoa o empregador que deu seu trabalho e louva a Deus por sua bondade e generosidade (Rt 2.20). Mais tarde, torna-se óbvio que a alta reputação de Boaz na comunidade está trazendo harmonia social e glória a Deus (Rt 4.11-12). Todos os líderes — na verdade, todos os trabalhadores — moldam a cultura na qual trabalham. Embora possamos pensar que somos coagidos por nossa cultura a nos conformarmos a maneiras de trabalhar que são injustas, sem sentido ou improdutivas, na realidade, a maneira como trabalhamos influencia profundamente os outros. Boaz, um homem de posses em meio a uma sociedade corrupta e sem fé (Rt 1.1, onde “na época dos juízes” é uma abreviação para uma sociedade corrupta) consegue criar um negócio honesto e bem-sucedido. O supervisor da colheita molda práticas igualitárias em uma sociedade repleta de misoginia e racismo (Jz 19—21). Rute e Noemi formam uma família amorosa mesmo diante de grandes perdas e dificuldades. Quando nos sentimos pressionados a nos conformarmos com um ambiente ruim no trabalho, a promessa da fidelidade de Deus pode superar todas as dúvidas que levamos em conta devido à disfunção cultural e social ao nosso redor.

Deus chama pessoas para que forneçam oportunidades para os pobres trabalharem produtivamente (Rute 2.17-23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A maneira mais importante pela qual Deus supera as barreiras à nossa produtividade é por meio das ações de outras pessoas. No livro de Rute, vemos isso tanto na lei de Deus na sociedade quanto em sua orientação aos indivíduos.

A lei de Deus chama pessoas de recursos para que forneçam oportunidades econômicas aos pobres (Rute 2.17-23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A ação do livro de Rute gira em torno da respiga, que era um dos elementos mais importantes da Lei para a proteção de pessoas pobres e vulneráveis. Os requisitos são estabelecidos em Levítico, Deuteronômio e Êxodo (clique nos links abaixo para ver mais sobre cada uma das passagens relevantes).

Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até as extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas de sua colheita. Não passem duas vezes pela sua vinha, nem apanhem as uvas que tiverem caído. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. (Lv 19.9-10, repetido em parte em Lv 23.22) Veja “Levítico 19.9-10” em Levítico e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.
Quando vocês estiverem fazendo a colheita de sua lavoura e deixarem um feixe de trigo para trás, não voltem para apanhá-lo. Deixem-no para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, para que o Senhor, o seu Deus, os abençoe em todo o trabalho das suas mãos. Quando sacudirem as azeitonas das suas oliveiras, não voltem para colher o que ficar nos ramos. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. E quando colherem as uvas da sua vinha, não passem de novo por ela. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito; por isso lhes ordeno que façam tudo isso. (Dt 24.19-22)
Plantem e colham em sua terra durante seis anos, mas no sétimo deixem-na descansar sem cultivá-la. Assim os pobres do povo poderão comer o que crescer por si, e o que restar ficará para os animais do campo. Façam o mesmo com as suas vinhas e com os seus olivais. (Êx 23.10-11) Veja “Êxodo 22.21-27 e 23.10-11” em Êxodo e trabalho em www.teologiadotrabalho.org.

A base da lei é a intenção de que todas as pessoas tenham acesso aos meios de produção necessários para sustentar a si mesmas e suas famílias. Em geral, cada família (exceto no caso da tribo sacerdotal dos levitas, que eram sustentados por dízimos e ofertas) deveria ter uma porção perpétua de terra que nunca poderia ser alienada (Nm 27.5-11; 36.5-12; Dt 19.14, 27.17; Lv 25). Assim, todos em Israel teriam meios para cultivar alimentos. Mas estrangeiros, viúvas e órfãos normalmente não receberiam uma herança de terra, por isso eram vulneráveis ​​à pobreza e ao abuso. A lei da respiga deu-lhes a oportunidade de se sustentarem, colhendo as sobras do campo, os grãos e os produtos que estavam verdes ou perdidos durante a colheita inicial, e o que quer que surgisse nos campos que estavam em descanso em um determinado ano. O acesso à respiga deveria ser fornecido gratuitamente por todos os proprietários de terras.

Essas passagens sugerem três fundamentos para as leis de respiga. A generosidade para com os pobres (1) era um pré-requisito para que Deus abençoasse o trabalho das mãos das pessoas (Dt 24.19); (2) deveria ser impulsionada pela memória da experiência vivida por Israel no Egito, sob senhores de escravos cruéis e abusivos (Dt 24.22a); e (3) é uma questão de obediência à vontade de Deus (Dt 24.22b). Vemos todas essas três motivações nas ações de Boaz: (1) ele abençoou Rute, (2) lembrou-se da graça de Deus para com Israel (3) e a elogiou por se colocar nas mãos de Deus (Rt 2.12). É uma questão em aberto até que ponto as leis sobre a terra e a colheita foram cumpridas no antigo Israel, mas Boaz as manteve de maneira exemplar.

As leis de respiga forneciam uma notável rede de apoio às pessoas pobres e marginalizadas, pelo menos na medida em que eram realmente praticadas. Já vimos que a intenção de Deus é que as pessoas recebam sua produtividade trabalhando. A respiga fazia exatamente isso. Ela proporcionava uma oportunidade de trabalho produtivo para aqueles que, de outra forma, teriam de depender da mendicância, da escravidão, da prostituição ou de outras práticas degradantes. Os respigadores mantinham as habilidades, o respeito próprio, o condicionamento físico e os hábitos de trabalho que os tornariam produtivos na agricultura comum, caso surgisse a oportunidade de casamento, adoção ou retorno ao seu país de origem. Os proprietários de terras forneciam oportunidades, mas aquilo não era uma oportunidade de exploração. Não havia trabalho forçado. O benefício estava disponível localmente em todo o país, sem a necessidade de uma burocracia pesada e propensa à corrupção. No entanto, dependia da formação do caráter de cada proprietário de terra para cumprir a lei da respiga, e não devemos romantizar as circunstâncias que os pobres enfrentavam no antigo Israel.

No caso de Boaz, Rute e Noemi, as leis de respiga funcionaram conforme o planejado. Se não fosse pela possibilidade de respiga, Boaz teria enfrentado duas alternativas, uma vez que tomou conhecimento da pobreza de Rute e Noemi. Ele poderia deixá-las morrer de fome ou poderia entregar comida pronta (pão) na casa delas. A primeira é impensável, mas a segunda, embora pudesse ter aliviado sua fome, teria tornado aquelas mulheres cada vez mais dependentes de Boaz. Por causa da oportunidade de respiga, no entanto, Rute não apenas poderia trabalhar na colheita, mas também poderia usar o grão para fazer pão por meio de seu próprio trabalho. O processo preservou sua dignidade, fez uso de suas habilidades e conhecimentos, libertou tanto ela como Naomi da dependência de longo prazo e as tornou menos vulneráveis ​​à exploração.

Nos debates sociais, políticos e teológicos de hoje sobre a pobreza e as respostas públicas e privadas a ela, vale a pena ter em mente e debater vigorosamente esses aspectos da respiga. Os cristãos discordam uns dos outros sobre questões como responsabilidades individuais vs. sociais, meios privados vs. públicos e distribuição de renda. É improvável que uma reflexão cuidadosa sobre o livro de Rute resolva essas divergências, mas talvez possa destacar objetivos compartilhados e um terreno comum. A sociedade moderna pode não ser adequada para a respiga no sentido literal e agrícola, mas será que há aspectos que poderiam ser incorporados às maneiras pelas quais as sociedades cuidam das pessoas pobres e vulneráveis ​​hoje? Em particular, como podemos oferecer oportunidades para que as pessoas tenham acesso aos meios de trabalho produtivo, em vez de serem sufocadas pela dependência ou pela exploração?

Deus guia indivíduos para que forneçam oportunidades econômicas aos pobres e vulneráveis (Rute 2.17-23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Boaz foi inspirado a ir muito além do que a lei exigia para atender aos pobres e vulneráveis. As leis da respiga apenas exigiam que os proprietários deixassem alguns produtos nos campos para que estrangeiros, órfãos e viúvas respigassem. Isso geralmente significava que os pobres e vulneráveis ​​tinham um trabalho difícil, perigoso e desconfortável, como colher grãos nas beiras dos campos cobertas de ervas daninhas ou no alto das oliveiras. Os produtos que obtinham dessa maneira eram geralmente de qualidade inferior, como uvas e azeitonas que haviam caído no chão ou não estavam totalmente maduras. Mas Boaz diz a seus trabalhadores que sejam ativamente generosos. Eles deveriam remover grãos de primeira qualidade dos talos que haviam cortado e deixá-los em cima do restolho, para que Rute precisasse apenas recolhê-los. A preocupação de Boaz não era cumprir minimamente um regulamento, mas genuinamente prover para Rute e sua família.

Além disso, ele insistiu que ela respigasse em seus campos (mantendo o que colheu para si e para Noemi, é claro) e se juntasse aos trabalhadores dele. Ele não apenas deu a ela acesso aos seus campos, mas também a tornou uma de suas assalariadas, a ponto de garantir que ela recebesse uma parte proporcional da colheita (Rt 2.16).

Em um mundo em que todas as nações, todas as sociedades contam com pessoas desempregadas e subempregadas que precisam de oportunidades de trabalho, como os cristãos podem imitar Boaz? Como podemos incentivar as pessoas a aplicarem suas habilidades e talentos dados por Deus para criar bens e serviços que empreguem pessoas de forma produtiva? Como podemos moldar a formação do caráter das pessoas que possuem e administram os recursos da sociedade, de modo que, com entusiasmo e criatividade, ofereçam oportunidades aos pobres e marginalizados?

Como, de fato, essas perguntas se aplicam a nós? Cada um de nós é uma pessoa abastada, mesmo que não sejamos ricos como Boaz? As pessoas de classe média têm os meios e a responsabilidade de oferecer oportunidades às pessoas pobres? E quanto às próprias pessoas pobres? O que Deus pode estar levando cada um de nós a fazer para trazer sua bênção de produtividade a outros trabalhadores e futuros trabalhadores?

A bênção de Deus é redobrada quando as pessoas trabalham de acordo com seus caminhos (Rute 3.1–4.18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No notável episódio em que Rute respiga no campo de Boaz, vemos uma demonstração vívida da compaixão, generosidade e tolerância étnica de Boaz. Isso levanta algumas questões: Por que o coração de Boaz era tão brando em relação a Rute e por que ele criaria esse ambiente em que qualquer pessoa, mesmo uma moabita estrangeira, se sentiria em casa? De acordo com o próprio testemunho de Boaz, Rute incorporou nobreza e fidelidade ao verdadeiro Deus (Rt 3.10-11). Como resultado, ele desejou a ela: “Que seja ricamente recompensada pelo Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas você veio buscar refúgio!” (Rt 2.12). Ela era nascida em Moabe, mas se voltou para o Deus de Israel em busca de salvação (Rt 1.16). Boaz reconheceu as asas de Deus sobre ela e estava ansioso para ser o instrumento da bênção de Deus para ela. Ao cuidar de um estrangeira necessitada, ele honrou o Deus de Israel. Nas palavras do provérbio israelita: “Oprimir o pobre é ultrajar o seu Criador, mas tratar com bondade o necessitado é honrar a Deus” (Pv 14.31; veja também Pv 17.5). O apóstolo Paulo expressou esse tema séculos depois: “Enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gl 6.10).

À medida que a história avançava, Boaz começou a ver em Rute mais do que uma trabalhadora diligente e a nora fiel de Noemi. Com o tempo, ele estendeu sua capa sobre Rute (Rt 3.9) — uma metáfora apropriada para o casamento, espelhando o amor e o compromisso representados pelas asas de Deus. Há um aspecto relacionado ao trabalho nessa história de amor, pois há bens imobiliários envolvidos. Noemi ainda tem algum direito à terra que pertencia a seu falecido marido e, de acordo com a lei israelita, seu parente mais próximo tinha o direito de adquirir a terra e mantê-la na família, casando-se com Noemi. Boaz, a quem Noemi mencionou ser parente de seu marido (Rt 2.1), era, na verdade, o segundo na linha de sucessão a esse direito. Ele informa o homem que era o parente mais próximo de seu direito, mas quando o homem descobre que reivindicar a terra significava também ter de levar a moabita Rute para sua casa, ele abre mão do direito (Rt 4.1-6).

Boaz, em contraste, ficou satisfeito por ser escolhido por Deus para mostrar favor a essa mulher, apesar de ela ser considerada racial, econômica e socialmente inferior (Rt 4.1-12). Ele exerce seu direito de resgatar a propriedade, não casando-se com a idosa Noemi, em um casamento de conveniência, mas, com a permissão de Noemi, casando-se com Rute, em um casamento de amor e respeito. Ao se casar com essa mulher moabita, ele cumpre, à sua maneira, um pouco da promessa de Deus a Abraão: “Por meio dela [da sua descendência], todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 22.18). Ele também ganha ainda mais propriedades, que podemos presumir que serão administradas de forma tão produtiva e generosa quanto a propriedade que já possuía, prenunciando as palavras de Cristo de que “a quem tiver, mais lhe será dado” (Mc 4.25). Como logo aprenderemos, é perfeitamente adequado que Boaz sirva como precursor de Jesus. Ao longo do caminho, os acontecimentos da história revelam ainda mais sobre como Deus está trabalhando no mundo para o bem.

Deus opera por meio da engenhosidade humana (Rute 3.1-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao instigar o namoro entre Boaz e Rute, a necessidade mais uma vez leva Noemi a ir além dos limites da convenção. Ela envia Rute à eira de Boaz, no meio da noite, para que “descubra os pés dele e deite-se” (Rt 3.4). Independentemente do significado de “pés” em Rute 3.4,7,8,14 — que pode ser um eufemismo sexual [1] — o esquema que Noemi inventa é suspeito do ponto de vista dos costumes e da moralidade, e está repleto de perigos. Os preparativos de Rute e a escolha do local do encontro sugerem as ações de uma prostituta. Em circunstâncias normais, se um homem de respeito e moralmente nobre como Boaz, dormindo na eira, acordasse no meio da noite e descobrisse uma mulher ao seu lado, ele certamente a mandaria embora, protestando que não tinha nada a ver com mulheres como ela. O pedido de Rute para que Boaz se casasse com ela é igualmente ousado do ponto de vista do costume: uma estrangeira fazendo uma proposta a um israelita; uma mulher fazendo propostas a um homem; uma jovem fazendo propostas para uma pessoa mais velha; uma trabalhadora do campo indigente fazendo propostas a um rico proprietário de terras. Mas, em vez de se ofender com a atitude de Rute, Boaz a abençoou, elogiou-a por seu compromisso com o bem-estar de sua família, chamou-a de “minha filha”, tranquilizou-a dizendo-lhe que não temesse, prometeu fazer tudo o que ela pedisse e a declarou uma mulher nobre (Rt 3.10-13). Essa reação extraordinária é melhor atribuída à inspiração de Deus enchendo seu coração e sua língua quando ele acordou.

Deus opera por meio de processos legais (Rute 4.1-12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Boaz aceita o pedido de Rute para se casar com ela, se seu parente mais próximo renunciasse ao seu direito de fazê-lo. Ele não perde tempo em providenciar a resolução legal da questão (Rt 4.1-12). A essa altura, o leitor já sabe que nada neste livro acontece por acaso e, quando, no dia seguinte, o parente mais próximo passa pelo portão onde Boaz estava sentado, isso também é atribuível à mão de Deus. Se Rute estivesse presente para os procedimentos legais no portão, seu coração teria sucumbido quando o homem que tinha prioridade aos direitos anunciou que reivindicaria as terras de Elimeleque. No entanto, quando Boaz o lembrou de que teria de casar com Rute para ficar com a terra, então ele mudou de ideia, e a esperança dela aumentaria. O que o levou a mudar de ideia? Ele diz que havia se lembrado de que tinha uma obrigação legal contraída. “Não poderei resgatá-la, pois poria em risco a minha propriedade” (Rt 4.6). A desculpa é torta e fraca. No entanto, é suficiente para Boaz, cujo discurso de aceitação do veredicto é um modelo de clareza e lógica. O caso poderia facilmente ter seguido de outra maneira, mas parece que o resultado foi guiado por Deus desde o início.

Deus opera por meio da fecundidade da gravidez (Rute 4.13-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em Rute 4.13, encontramos apenas a segunda vez no livro (além de Rt 1.6) em que um acontecimento é expressamente atribuído à mão de Deus. “Boaz casou-se com Rute, e ela se tornou sua mulher. Boaz a possuiu e o Senhor concedeu que ela engravidasse dele e desse à luz um filho.” Enquanto o termo hebraico para concepção/gravidez (herayon) ocorre em outros lugares apenas em Gênesis 3.16 e Oseias 9.11, a expressão idiomática em particular “conceder/engravidar” ocorre apenas aqui. Devemos interpretar essa declaração no contexto do casamento aparentemente de dez anos e sem filhos de Rute com Malom (Rt 1.4). Depois da fidelidade de Rute em vir a Israel com Noemi, depois da fidelidade de Boaz em providenciar para que Rute respigasse seus campos e sua fidelidade em servir como seu parente resgatador, depois da oração fiel das testemunhas no portão (Rt 1.11-12), e, aparentemente, assim que Rute e Boaz consumaram o casamento, Deus concedeu que Rute concebesse um filho. Todo esforço humano, mesmo a relação sexual, depende de Deus para a realização dos objetivos pretendidos ou desejados (Rt 4.13-15; cf. 1.4).

O nascimento de qualquer filho é um presente de Deus, mas houve uma história maior no nascimento de Obede, filho de Rute e Boaz. Ele se tornaria o avô de Davi, o maior rei de Israel (Rt 4.22) e, finalmente, o ancestral de Jesus, o Messias (Mt 1.5,16-17). Dessa forma, a estrangeira Rute se tornou uma bênção para Israel e para todos que seguem Jesus até hoje.

Conclusões sobre o livro de Rute

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Rute apresenta uma poderosa história de Deus em ação, direcionando acontecimentos de todos os lados para cuidar de seu povo e, mais importante, para cumprir seus propósitos. A fidelidade — tanto a fidelidade de Deus às pessoas quanto a fidelidade das pessoas a Deus — é exercida por meio do trabalho e da produtividade resultante. Os personagens do livro trabalham com diligência, justiça, generosidade e engenhosidade, de acordo com a lei e a inspiração de Deus. Eles reconhecem a imagem de Deus nos seres humanos e trabalham juntos em harmonia e compaixão.

A partir dos acontecimentos no livro de Rute, podemos concluir que os cristãos de hoje devem reconhecer não apenas a dignidade, mas também o valor do trabalho. O trabalho traz glória a Deus. Traz benefícios para os outros. Ele serve ao mundo em que vivemos. Como cristãos hoje, podemos estar acostumados a reconhecer a mão de Deus mais claramente no trabalho de pastores, missionários e evangelistas, mas o trabalho deles não é o único legítimo no Reino de Deus. O livro de Rute nos lembra que o trabalho comum, como a agricultura, é um chamado cheio de fé, seja ele realizado por ricos proprietários de terras ou estrangeiros atingidos pela pobreza. Alimentar nossa família é um trabalho sagrado, e qualquer pessoa que tenha meios de ajudar os outros a alimentar sua família se torna uma bênção de Deus. Toda ocupação legítima é obra de Deus. Por meio de nós, Deus cria, projeta, organiza, embeleza, ajuda, lidera, cultiva, cuida, cura, capacita, informa, decora, ensina e ama. Somos as asas de Deus.

Nosso trabalho honra a Deus quando tratamos os colegas de trabalho com honra e dignidade, independentemente de termos o poder de moldar as condições de trabalho dos outros ou de nos colocarmos em risco ao defender os outros. Vivemos nossa aliança com Deus quando trabalhamos para o bem de nossos semelhantes — especialmente os marginalizados social e economicamente. Honramos a Deus quando buscamos os interesses dos outros e fazemos tudo o que está ao nosso alcance para humanizar seu trabalho e promover seu bem-estar.

Introdução a Samuel, Reis e Crônicas

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os livros de 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e 1 e 2Crônicas têm um profundo interesse pelo trabalho. Seu interesse predominante é no trabalho dos reis, incluindo aspectos políticos, militares, econômicos e religiosos. Governar, na forma de “ter domínio”, é uma das tarefas que Deus deu aos seres humanos no início (Gn 1.28), e as questões de liderança ou governança ocupam o centro do palco em 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e 1 e 2Crônicas. Como os israelitas deveriam ser governados, por quem e com que propósitos? Quando as organizações são bem governadas, as pessoas prosperam. Quando a boa governança é violada, todos sofrem.

Os acontecimentos nos livros de Samuel, Reis e Crônicas estão completamente entrelaçados. Por causa disso, discutiremos todos os seis juntos, em vez de subdividir livro por livro. Para localizar a discussão de uma passagem específica, use o índice e os títulos.

Os reis são o foco, mas eles não são as únicas pessoas que vemos trabalhando nesses livros. Em primeiro lugar, o trabalho dos reis afeta o trabalho de muitos outros, como soldados, construtores, artesãos e sacerdotes, e os livros de Samuel, Reis e Crônicas prestam atenção em como o trabalho dos reis afeta esses outros trabalhadores. Em segundo lugar, os próprios reis têm outro trabalho além de governar, e a paternidade recebe particular interesse nesses livros. Por fim, como histórias de Israel, esses livros se interessam pelo povo como um todo e, em muitos casos, isso significa relatar o trabalho de pessoas que não estão ligadas ao trabalho da realeza.

Seguindo o exemplo dos próprios livros, prestaremos maior atenção às tarefas de liderança e governança dos reis de Israel, ao mesmo tempo em que exploraremos os muitos outros tipos de trabalhadores descritos. Incluem-se entre eles soldados e comandantes, juízes e líderes civis (muitas vezes chamados de “anciãos”), pais, pastores, agricultores, cozinheiros e padeiros, perfumistas, viticultores, músicos e artistas, inventores, empresários, diplomatas (formais e informais), manifestantes ou ativistas, conselheiros políticos, artesãos e trabalhadores manuais, arquitetos, supervisores, pedreiros, empreiteiros, metalúrgicos, carpinteiros, armeiros, tratadores de poços, negociantes de azeite, curandeiros, escravas, mensageiros, lenhadores e contadores. Profetas e sacerdotes também estão incluídos, mas, como o foco do Projeto Teologia do Trabalho está mais no trabalho não religioso, nos limitaremos ao seu papel no trabalho fora da esfera religiosa. Eles realmente desempenham um papel significativo nos assuntos políticos, militares e econômicos, como veremos.

Praticamente todo tipo de obreiro de hoje está representado nos livros de Samuel, Reis e Crônicas ou pode encontrar neles aplicações práticas para seu trabalho. De um modo geral, descobriremos como a boa governança e a liderança se aplicam ao nosso trabalho, em vez de encontrar instruções sobre como fazer nosso trabalho específico — a menos que governança ou liderança seja nosso trabalho.

O contexto histórico de Samuel, Reis e Crônicas

Voltar ao índice Voltar ao índice

O interesse primordial dos livros é o trabalho do rei, à medida que Israel se torna uma monarquia. Eles começam em um momento em que as doze tribos de Israel há muito violavam as regras, a ética e as virtudes de liderança que Deus havia estabelecido para elas, que podem ser encontradas nos livros de Gênesis a Deuteronômio. Depois de quase 200 anos de governança cada vez pior por uma sucessão de “juízes” (líderes temporários), Israel está em frangalhos. Samuel, Reis e Crônicas narram a intervenção de Deus no governo de Israel, à medida que seu povo passa de uma confederação tribal falida para uma monarquia promissora, que caminha para o fracasso à medida que gerações sucessivas de reis abandonam Deus e seus caminhos. Lamentavelmente, a história termina com a destruição de Israel como nação, que nunca mais será restaurada durante o período bíblico. Isso pode não parecer um pano de fundo promissor para um estudo de governança, mas a orientação de Deus está sempre em evidência na narrativa, quer as pessoas escolham segui-la ou não. Lendo a história milhares de anos depois, podemos aprender tanto com seus sucessos quanto com seus fracassos.

A posição teológica fundamental dos livros é que, se o rei é fiel a Deus, a nação prospera econômica, social e militarmente. Se o rei é infiel, segue-se uma catástrofe nacional. Portanto, a história do povo de Deus é contada principalmente por meio das ações dos principais líderes governamentais, para usar termos modernos. No entanto, a governança é necessária em todo tipo de comunidade ou instituição, seja política, civil, empresarial, sem fins lucrativos, acadêmica ou qualquer outra. As lições dos livros se aplicam à governança em todos os setores da sociedade hoje. Esses livros oferecem um rico estudo sobre liderança, demonstrando como a subsistência de muitos depende do que os líderes fazem e dizem.

Estudiosos acreditam que, originalmente, cada par de livros (1 e 2Samuel, 1 e 2Reis, 1 e 2Crônicas) era um único conjunto dividido entre dois pergaminhos. Os pergaminhos de Samuel e Reis formam uma história política integrada das monarquias israelitas. Crônicas conta a mesma história de Reis, mas com foco nos aspectos sacerdotais ou de adoração da história hebraica. Seguiremos a narrativa em três atos: (1) Da confederação tribal à monarquia, (2) A era de ouro da monarquia, (3) Das monarquias fracassadas ao exílio.


Da confederação tribal à monarquia: 1Samuel

Voltar ao índice Voltar ao índice

O primeiro livro de Samuel marca a transição de Israel de uma coalizão de tribos rebeldes para uma monarquia com um governo central em Jerusalém. A história começa com o nascimento e o chamado do profeta Samuel e continua com a transição para a monarquia e os reinados de Saul e Davi. Esta é a história da formação do Estado, da centralização do poder e do culto e do estabelecimento de uma nova ordem política, militar e social.

O chamado de Samuel (1Samuel 1—3)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Pelas palavras finais do livro de Juízes e pelos capítulos iniciais de 1Samuel, sabemos que os israelitas não tinham liderança e estavam desconectados de Deus. A coisa mais próxima que eles têm de um líder nacional é o sacerdote Eli, que administra com seus filhos o santuário de Siló. A prosperidade política, militar e econômica dos israelitas depende de sua fidelidade a Deus. Assim, o povo traz suas ofertas e sacrifícios a Deus no santuário, mas os sacerdotes zombam da interação com Deus. “Os filhos de Eli eram ímpios... eles estavam tratando com desprezo a oferta do Senhor” (1Sm 2.12,17). Eles não são confiáveis ​​como líderes humanos e não honram a Deus em seu coração. Os adoradores descobrem que aqueles que deveriam direcioná-los para uma experiência de adoração estão, em vez disso, roubando deles.

Os perigos da autoridade herdada

Um tanto ameaçador para uma nação prestes a se tornar uma monarquia, a primeira coisa que observamos é que a autoridade herdada é inerentemente perigosa por duas razões. A primeira é que não há garantia de que os descendentes, mesmo do maior líder, sejam competentes e fiéis. A segunda é que ter nascido para o poder é muitas vezes uma influência corruptora, resultando com muita frequência em complacência ou — como no caso dos filhos de Eli — em alegação de direitos. Eli realiza seu trabalho como um encargo sagrado de Deus (1Sm 2.25), mas seus filhos veem aquilo como uma propriedade pessoal (1Sm 2.14). Crescendo em uma atmosfera um tanto análoga a de uma empresa familiar, eles esperam, desde cedo, herdar os privilégios de seu pai. Como essa “empresa familiar” é o próprio santuário de Deus — o que dá à família o direito de ter autoridade divina sobre a população —, a má conduta de seus filhos é ainda mais prejudicial.

Empresas familiares e dinastias políticas no mundo de hoje têm paralelos com a situação de Eli. O fundador da empresa ou da organização política pode ter trazido um grande bem ao mundo, mas, se os herdeiros o virem como um meio de ganho pessoal, aqueles a quem eles devem servir sofrerão danos. Todos ganham quando os fundadores e seus sucessores são fiéis ao propósito original e bom. O mundo é um lugar melhor, os negócios e a comunidade prosperam e a família está bem abastecida. Mas, quando o propósito original é negligenciado ou corrompido, a empresa ou a comunidade sofre, e a organização e a família correm perigo.

A triste história do poder herdado em governos, igrejas, empresas e outras organizações nos adverte de que aqueles que esperam receber o poder como um direito muitas vezes não sentem necessidade de desenvolver a habilidade, a autodisciplina e a atitude de serviço necessárias para ser bons líderes. Essa realidade deixou o mestre de Eclesiastes perplexo. “Desprezei todas as coisas pelas quais eu tanto me esforçara debaixo do sol, pois terei que deixá-las para aquele que me suceder. E quem pode dizer se ele será sábio ou tolo? Todavia, terá domínio sobre tudo o que realizei com o meu trabalho e com a minha sabedoria” (Ec 2.18-19). O que era verdade para ele é verdade para nós hoje. As famílias que obtêm riqueza e poder com o sucesso de um empreendedor em uma geração costumam perder esses ganhos na terceira geração e também sofrem brigas familiares devastadoras e infortúnios pessoais. [1] Isso não quer dizer que o poder ou a riqueza herdados sempre levem a resultados ruins, mas que a herança é uma política perigosa para a governança. Famílias, organizações ou governos que passam autoridade por meio de herança farão bem em desenvolver uma multiplicidade de meios para neutralizar os perigos que a herança acarreta. Existem consultorias e organizações especializadas em apoiar famílias e empresas em processos de herança.

Deus chama Samuel para suceder a Eli

Se não fossem seus filhos ímpios, quem sucederia a Eli como sacerdote? Em 1Samuel 3.1—4.1 e 1Samuel 7.3-17 é revelado o plano de Deus para levantar o jovem Samuel como sucessor de Eli. Samuel recebe um dos poucos chamados audíveis de Deus registrados na Bíblia, mas observe que esse não é um chamado para um tipo de trabalho ou ministério. (Samuel servia na casa do Senhor desde os dois ou três anos de idade, e a escolha da profissão havia sido feita por sua mãe. Veja 1Sm 1.20-28 e 2.18-21.) No entanto, é um chamado para uma tarefa: dizer a Eli que Deus decidiu trazer castigo sobre ele e seus filhos, que em breve serão removidos do cargo de sacerdotes de Deus. Depois de cumprir esse chamado, Samuel continua a servir sob o comando de Eli até que seja reconhecido como profeta por direito próprio (1Sm 4.1) e suceda a Eli após a morte deste (1Sm 4.18). Samuel se torna o líder do povo de Deus, não por ambição egoísta ou por um senso de direito, mas porque Deus tinha lhe dado uma visão (1Sm 3.10-14) e os dons e habilidades para levar as pessoas a realizar aquela visão (1Sm 3.19-4.1). Ver Visão geral da vocação para saber mais sobre o tema do chamado para o trabalho.

Os perigos de tratar Deus como um amuleto de boa sorte (1Samuel 4)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Não está claro se a corrupção do líder, Eli, causa a corrupção do povo ou vice-versa, mas os capítulos 4—6 retratam o desastre que acontece àqueles que não são bem governados. Israel está engajado em uma luta secular contra o país vizinho dos filisteus. Um novo ataque é feito pelos filisteus, que derrotam os israelitas, resultando em 4.000 baixas (1Sm 4.1-3). Os israelitas reconhecem a derrota como um sinal do desfavor de Deus. Mas, em vez de examinar sua falta, arrepender-se e buscar orientação do Senhor, eles tentam manipular Deus para que sirva a seus propósitos. Eles pegam a arca da aliança de Deus e avançam para a batalha contra os filisteus, presumindo que a arca os tornará invencíveis. Os filhos de Eli emprestam uma aura de autoridade ao plano. Mas os filisteus massacram Israel na batalha, matando 30.000 soldados israelitas, capturando a arca, matando os filhos de Eli e causando a própria morte de Eli (1Sm 4.4-19).

Os filhos de Eli, ao lado dos líderes do exército, cometeram o erro de pensar que, por levarem o nome do povo de Deus e possuírem os símbolos da presença de Deus, podiam comandar o poder de Deus. Talvez os responsáveis ​​acreditassem que poderiam realmente controlar o poder de Deus carregando a arca. Ou talvez tenham se enganado ao pensar que, por serem o povo de Deus, tudo o que quisessem para si seria o que Deus queria para eles. De qualquer forma, eles descobriram que a presença de Deus não é uma garantia para projetar o poder de Deus, mas um convite para receber a orientação de Deus. Ironicamente, a arca continha o maior meio de orientação de Deus — os Dez Mandamentos (Dt 10.5) — mas os filhos de Eli não se preocuparam em buscar qualquer tipo de orientação de Deus antes de atacar os filisteus.

Será que muitas vezes caímos no mesmo mau hábito em nosso trabalho? Quando enfrentamos oposição ou dificuldade em nosso trabalho, buscamos a orientação de Deus em oração ou apenas lançamos uma oração rápida pedindo a Deus que faça o que queremos? Consideramos os possíveis cursos de ação à luz das Escrituras ou apenas mantemos uma Bíblia em nossa mesa? Examinamos nossas motivações e avaliamos nossas ações com abertura à transformação de Deus ou simplesmente nos enfeitamos com símbolos cristãos? Se nosso trabalho parece insatisfatório ou se nossa carreira não está progredindo como esperamos, é possível que estejamos usando Deus como um amuleto da sorte, em vez de segui-lo como o mestre de nosso trabalho?

As oportunidades que surgem do trabalho fiel (1Samuel 5—7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os filisteus não se saem melhor com a arca do que os israelitas, e ela se torna uma propriedade perigosa para ambos os lados, até que seja retirada do uso militar e Samuel chame Israel para se comprometer novamente com o próprio Senhor (1Sm 5.1—7.3). O povo atende ao seu chamado e volta a adorar ao Senhor, e a carreira de Samuel se expande rapidamente. Seu papel como sacerdote logo cresce para “juiz” (ou seja, um governador militar) e ele lidera a defesa bem-sucedida contra os filisteus (1Sm 7.4-13). Seu papel logo abrange a realização de um tribunal itinerante para questões legais (1Sm 7.16). Por trás de todas as suas tarefas está seu chamado para ser “profeta do Senhor” (1Sm 3.20).

Obreiros habilidosos e confiáveis, que são fiéis aos caminhos de Deus, muitas vezes descobrem que seu trabalho vai além da descrição de seu trabalho. Diante de responsabilidades cada vez maiores, a resposta de Samuel não é: “Esse não é o meu trabalho”. Em vez disso, ele vê as necessidades cruciais à sua frente, reconhece que tem a capacidade de atendê-las e intervém para resolvê-las. Ao fazer isso, Deus aumenta sua autoridade e eficácia para corresponder à sua disposição.

Uma lição que podemos tirar disso é responder a Deus com a mesma disposição de servir demonstrada por Samuel. Você vê oportunidades à sua frente no trabalho que, estritamente falando, não se encaixam na descrição de sua função? Seus supervisores ou colegas parecem esperar que você assuma mais responsabilidades em áreas que não fazem parte formalmente de sua função? Geralmente, essas são oportunidades de crescimento, desenvolvimento e avanço (a menos que seus supervisores não gostem da ideia de você assumir responsabilidades adicionais). O que seria necessário para você aproveitar essas oportunidades? Da mesma forma, você pode ver necessidades ao seu redor que poderia ajudar a atender se tivesse confiança e coragem para responder. O que seria necessário para desenvolver sua confiança em Deus e receber a coragem necessária para seguir sua orientação?

O relato final do governo de Samuel (1Sm 7.15-17) diz que ele percorria ano após ano as cidades de Israel, governando e administrando a justiça. O capítulo termina dizendo: “e naquele lugar construiu um altar em honra ao Senhor”. Seus serviços civis e militares a Israel foram baseados em sua fidelidade e adoração ao Senhor ao longo da vida.

Os filhos de Samuel decepcionam (1Samuel 8.1-3)

Voltar ao índice Voltar ao índice

À medida que Samuel envelhece, ele repete o erro de Eli e nomeia seus próprios filhos para suceder-lhe. Como os filhos de Eli, eles se revelaram gananciosos e corruptos (1Sm 8.1-3). A decepção causada por filhos de grandes líderes é um tema recorrente em Samuel e Reis. (A tragédia do filho de Davi, Absalão, ocupa a maior parte dos capítulos 13-19 de 2Samuel, e isso será abordado mais tarde. Veja “O tratamento disfuncional de Davi com os conflitos familiares leva à guerra civil (2Samuel 13-19)”.) Isso nos lembra que o trabalho dos pais é tão desafiador quanto qualquer outra ocupação, mas muito mais intenso emocionalmente. Nenhuma solução é dada no texto, mas podemos observar que Eli, Samuel e Davi parecem ter dado a seus filhos problemáticos muitos privilégios, mas pouco envolvimento paterno. No entanto, também sabemos que mesmo os pais mais dedicados podem enfrentar o desgosto de filhos rebeldes. Em vez de culpar ou criar estereótipos para as causas, observemos simplesmente que criar filhos é uma ocupação que exige tanta oração, habilidade, apoio da comunidade, boa sorte e amor quanto qualquer outra, se não mais. Em última análise, ser pai ou mãe — quer nossos filhos tragam alegria, decepção ou um pouco de ambos — é depender da graça e da misericórdia de Deus e esperar por uma redenção além do que vemos durante nossa vida. Talvez nosso conforto mais profundo seja lembrar que Deus também experimentou o desgosto de um pai por seu Filho condenado, mas superou tudo por meio do poder do amor.

Os israelitas pedem um rei (1Samuel 8.4-22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Vendo a inadequação dos filhos de Samuel, os israelitas pediram a ele: “Escolhe agora um rei para que nos lidere, à semelhança das outras nações”. Esse pedido desagrada a Samuel (1Sm 8.4-6). Samuel adverte o povo, mostrando que os reis costumam impor fardos pesados ​​a uma nação.

O rei que reinará sobre vocês reivindicará como seu direito o seguinte: ele tomará os filhos de vocês para servi-lo em seus carros de guerra e em sua cavalaria, e para correr à frente dos seus carros de guerra. Colocará alguns como comandantes de mil e outros como comandantes de cinquenta. Ele os fará arar as terras dele, fazer a colheita, e fabricar armas de guerra e equipamentos para os seus carros de guerra. Tomará as filhas de vocês para serem perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará de vocês o melhor das plantações, das vinhas e dos olivais, e o dará aos criados dele. (1Sm 8.10-17)

De fato, os reis seriam tão vorazes que, por fim, o povo acabaria clamando a Deus para salvá-los dos reis (1Sm 8.18).

Deus concorda que pedir um rei é uma má ideia, porque equivale a uma rejeição do próprio Deus como rei. No entanto, o Senhor decide permitir que o povo escolha sua forma de governo e diz a Samuel: “Atenda a tudo o que o povo está lhe pedindo; não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei” (1Sm 8.7). Como observa o estudioso bíblico John Goldingay: “Deus começa com seu povo onde eles estão; se eles não conseguem lidar com seu caminho mais elevado, ele entalha um caminho mais baixo. Quando eles não respondem ao espírito do Senhor ou quando todos os tipos de espíritos os levam à anarquia, ele fornece... a salvaguarda institucional dos governantes terrenos”. Às vezes, Deus permite instituições que não fazem parte de seu propósito eterno, e a monarquia de Israel é um dos exemplos mais flagrantes.

Tanto Deus quanto Samuel mostraram grande humildade, resiliência e graça ao permitir que Israel fizesse escolhas e cometesse erros, aprendendo com as consequências. Existem muitas situações institucionais e no ambiente de trabalho em que a liderança deve se ajustar às más escolhas das pessoas e, ao mesmo tempo, tentar oferecer oportunidades de crescimento e graça. A advertência de Samuel a Israel poderia facilmente servir de advertência a nações, empresas, igrejas, escolas e outras organizações do mundo de hoje. Em nosso mundo decaído, as pessoas abusam do poder e temos de nos ajustar e, ao mesmo tempo, fazer o que podemos para mudar as coisas. Nossa aspiração é amar a Deus e tratar as outras pessoas como Deus ordena na lei dada a Moisés, algo que o povo de Deus teve muita dificuldade em cumprir em todas as épocas.

A tarefa de escolher um rei (1Samuel 9—16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Saul é escolhido como primeiro rei de Israel

A primeira escolha de Deus para ser rei é Saul (c. 1050-1010 a.C.), alguém que se destacava — ele literalmente era “sem igual entre os israelitas; os mais altos batiam nos seus ombros” (1Sm 9.2). Além disso, ele obteve vitórias militares, a principal razão para ter um rei (1Sm 11.1-11). No início, ele serviu fielmente (1Sm 11.13-14), mas rapidamente se tornou desobediente a Deus (1Sm 13.8-15) e arrogante com seu povo (1Sm 14.24-30). Tanto Samuel quanto Deus ficaram exasperados com ele e começaram a procurar seu substituto (1Sm 16.1). Mas, antes de compararmos as ações de Saul com as expectativas da liderança do século 21, devemos observar que ele simplesmente fez o que faziam os reis no antigo Oriente Próximo. O povo conseguiu o que pediu (e contra o que Samuel havia advertido): um tirano militarista, carismático e que exaltava a si mesmo.

Como devemos avaliar o primeiro rei de Israel? Deus cometeu um erro ao levar Samuel a ungir o jovem Saul como rei? Ou a escolha de Saul foi uma lição prática para os israelitas não serem seduzidos pelas aparências externas — bonito por fora, mas vazio por dentro? Ao pedir um rei, os israelitas mostraram sua falta de fé em Deus. O rei que eles receberam, em última análise, demonstrou a mesma falta de fé em Deus. A principal tarefa de Saul como rei era garantir a segurança dos israelitas contra ataques dos filisteus vizinhos e de outras nações. Mas, quando enfrentou Golias, o medo de Saulo superou sua fé e ele se mostrou inapto para seu papel (1Sm 17.11). Ao longo de seu reinado, Saul igualmente duvidou de Deus, buscando conselho nos lugares errados e, finalmente, cometendo suicídio, enquanto seu exército era derrotado pelo inimigo (1Sm 31.4).

Davi é escolhido para suceder a Saul

Enquanto Samuel procura o substituto de Saul, ele quase comete o erro de julgar pelas aparências uma segunda vez (1Sm 16.1-4). O menino Davi parece insignificante para Samuel, mas, com a ajuda de Deus, ele finalmente reconhece em Davi o escolhido de Deus para ser rei de Israel. Na aparência externa, Davi não projeta a imagem de seriedade que as pessoas esperam de um líder (1Sm 16.6-11). Um pouco mais tarde na história, o gigante filisteu Golias se mostra igualmente desdenhoso (1Sm 17.42). Davi é um candidato não convencional por razões que vão além de sua juventude. Ele é o último filho em uma sociedade baseada na primazia do filho mais velho. Além disso, ele é etnicamente misto, não um israelita puro, porque uma de suas bisavós era Rute (Rt 4.21-22), uma imigrante do reino de Moabe (Rt 1.1-4). Embora Davi tenha contra ele vários aspectos, Deus vê nele uma grande promessa.

Ao pensarmos sobre a seleção de liderança hoje, é valioso lembrar a palavra de Deus a Samuel: “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16.7). No reino invertido de Deus, o último ou o esquecido pode acabar sendo a melhor escolha. O melhor líder pode ser aquele que ninguém está procurando. Pode ser tentador partir para o candidato inicialmente impressionante, aquele que transborda carisma, a pessoa que outras pessoas parecem querer seguir. Mas o excesso de autoconfiança, na verdade, leva a um desempenho inferior, de acordo com um artigo de 2012 da Harvard Business Review. [1] O carisma não é o que Deus valoriza. O caráter é. O que seria necessário para aprender a ver o caráter de uma pessoa pelos olhos de Deus?

É significativo que Davi estivesse fazendo seu trabalho como pastor, cuidando conscientemente das ovelhas de seu pai, quando Samuel o encontrou. O desempenho fiel no trabalho em questão é uma boa preparação para um trabalho maior, como no caso de Davi (1Sm 17.34-37; veja também Lc 16.10; 19.17). Samuel logo descobre que Davi é o líder forte, confiante e competente pelo qual o povo ansiava, que “sairá à nossa frente para combater em nossas batalhas” (1Sm 8.20). Ao longo de sua carreira, Davi mantém em mente que está servindo à vontade de Deus para cuidar do povo de Deus (2Sm 6.21). Deus o chama de “homem segundo o meu coração” (At 13.22).

Deus escolheu Davi para suceder a Saul. Agora, Samuel deve ungir Davi como rei enquanto Saul ainda está no trono. Samuel duvida das perspectivas de sucesso. Samuel diz: “Como poderei ir? Saul saberá disto e me matará” (1Sm 16.2). A resposta de Deus é que Samuel vá disfarçado. “Leve um novilho com você e diga que foi sacrificar ao Senhor. Convide Jessé para o sacrifício, e eu lhe mostrarei o que fazer. Você irá ungir para mim aquele que eu indicar” (1Sm 16.2-3). Em outras palavras, vá abertamente à casa de Jessé (onde o novo rei será encontrado), mas disfarce seu propósito ao ir para lá. Seguindo a orientação de Deus, Samuel consegue ungir Davi como rei.

Em nosso trabalho, também podemos enfrentar o desafio de lidar com um sistema abusivo ou um líder tirânico. Falamos claramente, como se tivéssemos um alvo nas costas, esperando para ser abatidos? Ou transitamos sutilmente, esperando que isso nos dê a chance de afetar mais positivamente o resultado final? O que significa ser “astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas”, como Jesus disse? (Mt 10.16). Para saber mais sobre o tópico de quando o engano pode ser moralmente necessário, veja o artigo “Quando alguém não tem direito à verdade”.

Há um momento para ser claro sobre o que defendemos, e há um momento para agir de forma mais discreta, mantendo o objetivo em mente. Como podemos identificar a diferença? A pista está aqui no texto, no qual Samuel está continuamente conversando com Deus em busca de orientação. Sob pressão, podemos tomar esse tipo de decisão por conta própria, mas é provável que isso gravite em direção ao que é mais confortável para nós mesmos, e não ao que Deus deseja. No entanto, temos a promessa de Jesus de que recebermos ajuda do Espírito Santo de Deus (Jo 14.26). Samuel tinha o hábito de conversar com Deus em seu ambiente de trabalho, e isso o levou a lidar com a situação moralmente ambígua à luz de Deus para entender os propósitos de Deus corretamente. Podemos fazer o mesmo em nosso próprio ambiente de trabalho, levar nossas dúvidas e incertezas a Deus em oração? Para obter ajuda com isso, veja o plano de leitura da Bíblia, “Como tomar a decisão certa”.

A ascensão de Davi ao poder (1Samuel 17—30)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao contrário de Saul, que começou seu reinado logo depois que Samuel o ungiu (1Sm 11.1), Davi tem um aprendizado longo e difícil antes de ser aclamado rei em Hebrom. Seu primeiro sucesso público veio ao matar o gigante Golias, que ameaçava a segurança militar de Israel. Quando o exército volta para casa, uma multidão de mulheres começa a cantar: “Saul matou milhares, e Davi, dezenas de milhares” (1Sm 18.7). Isso enfurece Saul (1Sm 18.8). Em vez de reconhecer como ele e a nação podem se beneficiar das capacidades de Davi, ele o considera uma ameaça. Ele decide eliminar Davi na primeira oportunidade (1Sm 18.9-13). Assim começou uma rivalidade que acabou forçando Davi a fugir para salvar a vida, evitando Saul enquanto liderava um bando de rebeldes no deserto de Judá por dez anos.

Quando Davi tem a oportunidade de assassinar o rei Saul, ele se recusa, sabendo que o trono não é dele: é de Deus, e só ele pode dar. Como os salmos expressam: “É Deus quem julga: Humilha a um, a outro exalta” (Sl 75.7). Davi respeita a autoridade que Deus deu a Saul, mesmo quando ele age de maneira desonrosa. Isso parece uma lição para aqueles que hoje trabalham para chefes difíceis ou estão esperando ser reconhecidos por sua liderança. Mesmo que sintamos que somos chamados por Deus para uma tarefa ou posição específica, isso não nos autoriza a tomar o poder, contrariando as autoridades existentes. Se todos os que pensavam que Deus queria que eles fossem o chefe tentassem acelerar o processo tomando o poder por conta própria, toda sucessão de autoridade seria marcada pelo caos. Deus é paciente, e nós também devemos ser pacientes, assim como Davi foi.

Podemos confiar que Deus nos dará a autoridade de que precisamos, em seu tempo, para fazer a obra que ele deseja que façamos? No ambiente de trabalho, ter mais autoridade é valioso para realizar o trabalho necessário. Agarrar-se a essa autoridade prematuramente, subestimando um chefe ou empurrando um colega para fora do caminho, não cria confiança com os colegas nem demonstra confiança em Deus. Às vezes, pode ser frustrante quando parece que está demorando muito para que a autoridade necessária apareça em seu caminho, mas a verdadeira autoridade não pode ser alcançada, apenas concedida. Davi estava disposto a esperar até que Deus colocasse essa autoridade em suas mãos.

Abigail acalma uma crise entre Davi e Nabal (1Samuel 25)

Voltar ao índice Voltar ao índice

À medida que o poder de Davi cresce, ele entra em conflito com um rico proprietário de terras chamado Nabal. Por acaso, o bando de rebeldes de Davi, contra o governo de Saul, está acampado na área de Nabal há algum tempo. Os homens de Davi trataram os pastores de Nabal com bondade, protegendo-os de danos ou, pelo menos, não roubando nada (1Sm 25.15-16). Davi imagina que isso significa que Nabal deve algo a ele, e ele envia uma delegação para pedir a Nabal que doe alguns animais para um banquete para o exército de Davi. Talvez percebendo a fraqueza de sua afirmação, Davi instrui sua delegação a ser ainda mais educada com Nabal.

Nabal não aceitará nada disso. Ele não apenas se recusa a dar a Davi qualquer coisa para a festa, mas também o insulta publicamente, nega conhecê-lo e contesta a integridade de Davi por ser um rebelde contra Saul (1Sm 25.10). Os próprios servos de Nabal descrevem seu amo como “um homem tão mau que ninguém consegue conversar com ele” (1Sm 25.17). Davi imediatamente sai com 400 homens armados para matar Nabal e todos os homens de sua casa.

De repente, Davi está prestes a cometer um assassinato em massa, enquanto Nabal se preocupa mais com seu orgulho do que com seus trabalhadores e sua família. Esses dois homens arrogantes são incapazes de resolver uma discussão sobre ovelhas sem derramar o sangue de centenas de pessoas inocentes. Graças a Deus, quem intervém na discussão é Abigail, a sábia esposa de Nabal. Ela rapidamente prepara um banquete para Davi e seus homens, depois sai ao encontro de Davi com um pedido de desculpas que estabelece um novo padrão de cortesia no Antigo Testamento (1Sm 25.26-31). No entanto, envoltas em palavras de cortesia, estão algumas verdades duras que Davi precisa ouvir. Ele está prestes a derramar sangue sem motivo, trazendo sobre si uma culpa da qual nunca poderia escapar.

Davi fica comovido com as palavras dela e abandona seu plano de matar Nabal e todos os seus homens e meninos. Ele até agradece a Abigail por desviá-lo de seu plano imprudente. “Seja você abençoada pelo seu bom senso e por evitar que eu hoje derrame sangue e me vingue com minhas próprias mãos. De outro modo, juro pelo nome do Senhor, o Deus de Israel, que evitou que eu lhe fizesse mal, que, se você não tivesse vindo depressa encontrar-me, nem um só do sexo masculino pertencente a Nabal teria sido deixado vivo ao romper do dia” (1Sm 25.33-34).

O incidente mostra que as pessoas precisam responsabilizar seus líderes, embora isso possa acarretar um grande risco pessoal. Você não precisa ter status de autoridade para ser chamado a exercer influência. Mas você precisa de coragem, o que, felizmente, é algo que você pode receber de Deus a qualquer momento. A intervenção de Abigail também demonstra que mostrar respeito, mesmo ao fazer uma crítica direta, fornece um modelo para desafiar a autoridade. Nabal transformou uma pequena discussão em uma situação de risco de vida, envolvendo uma pequena disputa em um insulto pessoal. Abigail resolve uma crise com risco de vida, disfarçando uma grande repreensão em um diálogo respeitoso.

De que maneiras Deus pode estar chamando você para exercer influência a fim de responsabilizar pessoas em posições de autoridade superior? Como você pode cultivar uma atitude piedosa de respeito, juntamente com um compromisso inabalável de dizer a verdade? Que coragem você precisa de Deus para realmente fazer isso?

A era de ouro da monarquia: 2Samuel 1—24, 1Reis 1—11, 1Crônicas 13; 21—25

Voltar ao índice Voltar ao índice

Após a morte de Saul, Davi é ungido rei sobre a tribo do sul de Judá, mas só depois de muito sangue derramado é que Davi finalmente é ungido rei sobre todo o Israel (2Sm 5.1-10). Quando Davi finalmente se destaca, ele investe seu talento no desenvolvimento de outras pessoas. Ao contrário dos medos de Saul quanto a um rival, Davi se cerca de uma companhia cujas façanhas rivalizam com as suas (2Sm 23.8-39; 1Cr 11.10-47). Ele os honra (1Cr 11.19), encoraja sua fama e os promove (1Cr 11.25). Deus usa a disposição de Davi para patrocinar e encorajar as pessoas a construir o próprio sucesso de Davi e abençoar as pessoas de seu reino.

Enfim, a frouxa confederação de tribos israelitas se uniu como nação. Por oitenta anos, primeiramente sob o governo de Davi (c. 1010-970 a.C.), depois de seu filho Salomão (c. 970-931 a.C.), Israel vive uma era de ouro de prosperidade e renome entre todas as nações do antigo Oriente Próximo. Mas, em meio a seus sucessos, esses dois governantes também violam a aliança de Deus. Embora isso cause apenas danos limitados em sua própria época, estabelece um padrão para aqueles que vierem depois deles se afastarem do Senhor e abandonarem sua aliança.

Os sucessos e fracassos de Davi como rei (2Samuel 1—24)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Bíblia considera Davi o modelo de rei de Israel, e os livros de Samuel, Reis e Crônicas descrevem seus muitos sucessos. No entanto, mesmo Davi, um homem segundo o coração de Deus (1Sm 13.14), abusa de seu poder e às vezes age sem fé. Ele tende a ter sucesso quando não se leva muito a sério, mas entra em sérios problemas quando o poder sobe à sua cabeça — por exemplo, quando resolve fazer um censo, violando o mandamento de Deus (2Sm 24.10-17) ou quando explora sexualmente Bate-Seba e ordena o assassinato de seu marido, Urias (2Sm 11.2-17). No entanto, apesar das falhas de Davi, Deus cumpre sua aliança com ele e o trata com misericórdia.

O estupro de Bate-Seba e o assassinato de Urias por Davi (2Samuel 11—12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Pessoas no poder têm encoberto casos de abuso sexual há milênios, mas a Bíblia expõe corajosamente exemplos de abuso contra Sara, Hagar, Diná, Tamar (duas delas) e Bate-Seba, o assunto desta passagem. O abuso de Bate-Seba parece o mais chocante de todos, porque ocorre nas mãos de ninguém menos que o ancestral mais famoso de Jesus, o rei Davi. A história é antiga, mas a questão permanece tão atual quanto sempre. Nos últimos anos, uma onda de histórias de abuso sexual gerou o movimento #metoo que derrubou grandes nomes do entretenimento (Harvey Weinstein, Bill O'Reilly, Charlie Rose), da política (Al Franken, Patrick Meehan, John Conyers), dos negócios (Steve Wynn, Travis Kalanick), esportes (Larry Nassar), música (R. Kelly) e religião (Bill Hybels, Andy Savage, Paige Patterson). Todos esses nomes são dos EUA, mas o problema é mundial.

A história é conhecida. Do telhado, Davi percebe que sua atraente vizinha, Bate-Seba, está tomando banho. Ele envia seus homens para levá-la até ele no palácio, faz sexo com ela e ela fica grávida. Em uma tentativa de encobrir a gravidez, Davi chama Urias, marido de Bate-Seba, que estava lutando em Rabá, mas Urias tem integridade demais para dormir com sua esposa enquanto o restante do exército e a arca estão acampados em tendas. Depois que Davi orquestra a morte de Urias em batalha, ele assume que o desastre foi evitado. Mas Davi não leva Deus em consideração.

Ao longo da história, esse encontro entre Davi e Bate-Seba foi frequentemente descrito como adultério, o que implica consentimento mútuo. No entanto, ao examinarmos os detalhes, vemos que, na verdade, trata-se de abuso sexual por alguém com poder, em outras palavras, estupro. Nem o texto nem o contexto apoiam a conclusão de que foi um caso consensual entre dois adultos. As pessoas que pensam que Bate-Seba seduziu Davi tomando banho do lado de fora de sua janela podem não perceber que o verbo hebraico rachats, usado para a ação de Bate-Seba aqui (2Sm 11.2), significa literalmente “lavar”, e assim é traduzido em outras partes desta narrativa (2Sm 11.8; 12.20). Não há razão para supor que Bate-Seba estava nua, ou que ela estava ciente de que o rei, que deveria estar com seu exército, estaria espiando de seu telhado (2Sm 11.1-2).

As pessoas que pensam que ela concordou em ir ao palácio de bom grado não entendem que, quando um antigo governante convocava um súdito ao palácio, o súdito não tinha escolha a não ser obedecer (veja Et 2.14, 3.12 e 8.9, por exemplo). E Davi envia não um, mas vários mensageiros, para garantir a obediência de Bate-Seba (2Sm 11.4). Lembre-se, a única pessoa que se recusa a seguir as diretrizes de Davi nesta história é Urias, e ele acaba morto (2Sm 11.14-18). O texto não diz que Bate-Seba percebeu que estava sendo trazida ao palácio para fazer sexo com o rei. É até mais provável que ela tivesse presumido que a convocação era para ser informada da morte de seu marido, o que foi essencialmente o que aconteceu mais tarde (2Sm 11.26-27).

O texto declara a ação como uma perpetração unilateral de Davi. “Davi mandou que a trouxessem, e se deitou com ela”, não “eles se deitaram juntos” (2Sm 11.4). A linguagem usada aqui para descrever o encontro sugere estupro, não adultério. Davi “mandou trazer” (laqach, lit. “tomou”) Bate-Seba e “deitou” (shakav) com ela. O verbo shakav pode significar apenas relação sexual, mas é usado na maioria dos incidentes de estupro na Bíblia hebraica. Os verbos laqach e shakav só aparecem juntos em contextos de estupro (Gn 34.2; 2Sm 12.11; 16.22).

Não podemos culpar Bate-Seba por consentir quando levada à câmara de um homem que possuía grande poder e um histórico de violência. À medida que a narrativa continua, todas as pessoas censuram Davi, mas ninguém censura Bate-Seba. Deus culpa Davi. “O que Davi fez desagradou ao Senhor” (2Sm 11.27). O profeta Natã acusa Davi, contando uma parábola na qual um homem rico (representando Davi) “toma” uma ovelha preciosa (Bate-Seba) de um homem pobre (Urias). Depois de ouvir a parábola de Natã, até Davi o culpa. “O homem que fez isso merece a morte!” (2Sm 12.5). Caso ainda não tenha ficado claro, Natã responde: “Você é esse homem!” (2Sm 12.7). De acordo com as leis de estupro e adultério de Deuteronômio 22.22-29, se o homem merece morrer, o que aconteceu não foi adultério, mas estupro.

Quando chamamos esse incidente de adultério ou contestamos as ações de Bate-Seba, não estamos apenas ignorando o texto, mas essencialmente culpando a vítima. No entanto, quando chamamos isso de estupro e nos concentramos nas ações de Davi, não apenas levamos o texto a sério, mas validamos as histórias de outras vítimas de abuso sexual. Assim como Deus viu o que Davi fez com Bate-Seba, Deus vê o que os perpetradores fazem com as vítimas de abuso sexual hoje.

O crime de Davi foi um abuso de poder realizado na forma de violação sexual. Como soberano sobre o maior império de Israel, Davi tinha indiscutivelmente mais poder do que qualquer outro israelita no Antigo Testamento. Antes de Davi assumir o trono, ele usou seu poder para servir aos outros, talvez mais notavelmente às cidades indefesas de Queila e Ziclague (1Sm 23.1-14; 30.1-31). Já no caso de Bate-Seba, ele abusou de seu poder primeiro para servir sua própria luxúria e, em seguida, para preservar sua reputação.

Embora poucos de nós tenham tanta autoridade quanto Davi, muitos de nós têm poder em esferas menores em contextos familiares ou de trabalho, seja como resultado de nosso sexo, raça, posição, riqueza ou outros marcadores de status, ou simplesmente à medida que envelhecemos, ganhamos experiência e temos mais responsabilidade. É tentador tirar proveito de nosso poder e privilégio, pensando que trabalhamos duro por essas vantagens (melhores escritórios, vagas especiais de estacionamento, salários mais altos), mesmo que pessoas com menos poder não as compartilhem.

Por outro lado, muitos de nós somos vulneráveis ​​aos que estão no poder pelas mesmas razões, embora estejam do lado oposto da distribuição de poder. Pode ser tentador pensar que aqueles em posições vulneráveis ​​​​devam tentar se defender, como muitos pensaram em relação a Bate-Seba. O texto não apresenta nenhuma evidência de que ela tenha tentado recusar a imposição sexual de Davi, portanto — segundo esse tipo de pensamento — ela deve ter participado voluntariamente. Como vimos, a Bíblia rejeita esse tipo de pensamento. A vítima de um crime é sempre a vítima do crime, não importa quanta ou pouca resistência ela possa ter oferecido.

Davi mergulhou nesse crime depois de ter esquecido que foi Deus quem lhe deu sua posição de poder e que Deus se importava com o que ele fazia com ela. Os pastores deveriam cuidar das ovelhas de seu rebanho, e não devorá-las (Ez 34). Jesus, o bom pastor, usou seu poder para alimentar, servir, curar e abençoar as pessoas sob sua autoridade, e ordenou que seus seguidores fizessem o mesmo (Mc 9.35; 10.42-45).

O poder soberano de Davi permitiu que ele evitasse aspectos desagradáveis ​​de sua responsabilidade, especificamente liderando seu exército na guerra, mesmo sendo um herói militar, derrotando Golias e “milhares” em batalha (1Sm 17; 18.7; 21.11; 29.5).Uma consequência de sua decisão de ficar em casa e tirar um cochilo foi que ele tinha pouca responsabilidade, já que seus amigos mais próximos (seus “homens poderosos”) estavam lutando. Muitas pessoas sabiam o que Davi estava fazendo, mas eles eram servos e, o que não é de surpreender, nenhum deles se manifestou. As pessoas que enfrentam o poder normalmente pagam por isso.

Mas isso não impediu Abigail, a sábia esposa do tolo Nabal, de se colocar em perigo para impedir que Davi, que ainda não era o governante, iniciasse um ataque sangrento (1Sm 25). Se um dos servos de Davi tivesse proferido uma palavra de advertência cedo, como Abigail fez, talvez o estupro de Bate-Seba e o assassinato de Urias pudessem ter sido evitados. Depois que os crimes foram cometidos, o profeta Natã foi inspirado por Deus a confrontar o rei, que, felizmente para sua alma, foi receptivo à mensagem (2Sm 12). Observe que tanto Abigail quanto Natã não eram propriamente os alvos dos abusos de poder de Davi. Eles estavam em posições de poder inferior ao do agressor, mas de alguma forma reconheciam que poderiam intervir e estavam dispostos a correr o risco de fazê-lo. Será que suas ações sugerem que aqueles de nós que estão cientes do abuso têm a responsabilidade de preveni-lo ou denunciá-lo, mesmo que isso represente um risco para nós ou para nossa reputação?

A maioria de nós não está em situações em que confrontar um chefe ou supervisor envolve arriscar a vida, mas falar nesses tipos de contexto pode significar perder status, uma promoção ou até o emprego. Mas, como esta e muitas outras histórias semelhantes nas Escrituras ilustram, Deus chama seu povo para agir como profetas em nossas igrejas, escolas, empresas e onde quer que trabalhemos e vivamos. Os exemplos de Abigail e Natã — além das instruções de Jesus em Mateus 18.15-17 — sugerem que, idealmente, devemos falar cara a cara com o agressor. (No entanto, Romanos 13.1-7 implica que os cristãos podem usar outros meios do devido processo legal que não exijam confronto individual com o agressor.)

Para aqueles de nós que evitam conflitos, aprender a falar a verdade para pessoas em posição de autoridade é algo que pode ser desenvolvido gradualmente ao longo do tempo, como fazer fisioterapia para um músculo fraco ou lesionado. Cultivamos a capacidade de confrontar começando com pequenos passos, fazendo perguntas ou apontando pequenos problemas. Podemos, então, passar para questões mais significativas, oferecendo diferentes perspectivas que podem não ser populares. Com o tempo, podemos nos tornar mais corajosos, de modo que, se estivermos cientes de uma falha moral significativa, como o abuso sexual cometido por um colega ou um superior, possamos falar a verdade de maneira sábia e graciosa. Do outro lado da equação, líderes sábios permitem com mais facilidade que seus subordinados os responsabilizem e levantem questões. Quando você atua como líder, o que faz para receber ou solicitar feedback negativo dos outros?

Davi aceita o severo feedback negativo de Natã e se arrepende. Mesmo assim, Natã aponta para Davi que seu arrependimento e perdão individuais não põem fim, por si só, às consequências que o pecado de Davi terá sobre os outros:

Então Davi disse a Natã: “Pequei contra o Senhor!”
E Natã respondeu: “O Senhor perdoou o seu pecado. Você não morrerá. Entretanto, uma vez que você insultou o Senhor, o menino morrerá”. (2Sm 12.13-14).

Mesmo pessoalmente arrependido, Davi não erradica a cultura de exploração que vigorava sob sua liderança. Natã declara a Davi que a punição por seu pecado será severa, e o restante do reinado de Davi é marcado por turbulências (2Sm 13—21, 1Rs 1). De fato, o filho de Davi, Amnom, comete o mesmo crime (estupro), mas de uma maneira ainda mais repreensível, pois é contra sua própria irmã Tamar (2Sm 13.1-19). O próprio Davi é cúmplice, embora talvez sem saber. Mesmo quando o assunto é trazido à sua atenção, Davi não faz nada para trazer justiça à situação. Finalmente, outro filho de Davi, Absalão, decide agir por conta própria. Ele mata Amnom e inicia uma guerra dentro da própria casa de Davi (2Sm 13), que se transforma em guerra civil e uma sequência de tragédias em todo o Israel.

Uma cultura que tolera o abuso é muito difícil de ser erradicada, muito mais difícil do que seus líderes supõem. Se Davi achava que seu arrependimento pessoal seria suficiente para restaurar a integridade de sua família, estava tragicamente enganado. Infelizmente, esse tipo de complacência e desrespeito voluntário em tolerar uma cultura de abuso continua até os dias atuais. Quantas igrejas, corporações, universidades, governos e organizações prometeram erradicar uma cultura de abuso sexual depois que um incidente for exposto, apenas para voltar imediatamente aos mesmos velhos hábitos e perpetrar ainda mais abusos?

Este episódio não termina em desespero, no entanto. O abuso sexual é um dos pecados mais graves, mas, mesmo assim, há esperança de justiça e restauração. Será que é possível deixar que os exemplos de Davi, Natã e Bate-Seba nos encorajem a admitir e nos arrepender (se formos os autores), a confrontar (se estivermos cientes do crime) ou a nos recuperar (se formos a vítima)? Em qualquer caso, o primeiro passo é fazer que o abuso cesse. Somente quando isso ocorre é que podemos falar de arrependimento, incluindo aceitação da culpa, punição e, se possível, restituição. Ao mencionar a linhagem de Jesus — o descendente mais famoso de Davi —, Mateus nos lembra do estupro de Davi. Mateus inclui Bate-Seba entre as quatro mães que ele menciona, não a chamando de esposa de Davi, mas de “mulher de Urias”, o homem que Davi assassinou (Mt 1.6). Esse aviso, no início dos Evangelhos, nos lembra que Deus é um Deus tanto de justiça quanto de restauração. Nessa faceta única, podemos de fato ver Davi como um modelo que vale a pena imitar. Esse homem de poder, quando confrontado com evidências de seus próprios erros, se arrepende e clama por justiça, mesmo sabendo que isso pode levar à sua ruína. Ele recebe misericórdia, mas não por seu próprio poder nem pelo poder de seus comparsas, mas por se submeter a uma autoridade que está além de seu poder de manipulação.

O tratamento disfuncional de Davi com os conflitos familiares leva à guerra civil (2Samuel 13—19)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A maioria das pessoas se sente desconfortável em situações de conflito, por isso tendemos a evitar conflitos, seja em casa ou no trabalho. Mas os conflitos são muito parecidos com doenças. Os menores podem desaparecer, mesmo que os ignoremos, mas os maiores penetrarão mais profundamente e de forma mais catastrófica em nossos sistemas, se não os tratarmos. Isso é verdade para a família de Davi. Davi permite que o conflito entre alguns de seus filhos mergulhe sua família na tragédia. Seu filho mais velho, Amnom, estupra e depois envergonha sua meia-irmã, Tamar (2Sm 13.1-19). O irmão de Tamar, Absalão, odeia Amnom por esse crime, mas não fala com ele sobre isso. Davi sabe o que se passa, mas decide ignorar a situação (2Sm 13.21). Para saber mais sobre filhos que decepcionam os pais, veja “Os filhos de Samuel decepcionam (1Sm 8.1-3)”.

Por dois anos, tudo parece ficar bem, mas conflitos não resolvidos dessa magnitude nunca desaparecem. Quando Amnom e Absalão viajam juntos pelo campo, Absalão embebeda seu meio-irmão com vinho e, em seguida, seus servos o matam (2Sm 13.28-29). O conflito atrai mais membros da família de Davi, os nobres e o exército, até que toda a nação acaba envolvida em uma guerra civil. A destruição causada por evitar o conflito é muitas vezes pior do que o desagrado que pode ter resultado de lidar com os problemas quando eles surgem.

Os professores de Harvard Ronald Heifetz e Marty Linsky descrevem como os líderes devem “orquestrar o conflito”, ou então ele se desenvolverá por conta própria, frustrará seus objetivos e colocará em risco suas organizações. [1] Da mesma forma, Jim Collins dá o exemplo de Alan Iverson, que era CEO da Nucor Steel em uma época em que havia profundas divisões sobre se a empresa deveria ou não diversificar para a reciclagem de sucata de aço. Iverson trouxe as divisões à tona, permitindo que todos expressassem sua opinião, protegendo-os de represálias de outros que pudessem discordar. Os “debates acalorados” que se seguiram foram desconfortáveis ​​para todos. “As pessoas gritavam. Acenavam com os braços e batiam nas mesas. Os rostos ficavam vermelhos e as veias saltavam.” Mas reconhecer o conflito e trabalhá-lo abertamente impediu que ele se tornasse clandestino e explodisse mais tarde. Além disso, ao trazer à tona uma variedade de fatos e opiniões, o grupo foi levado a tomar as melhores decisões. “Os colegas entravam no escritório de Iverson e gritavam uns com os outros, mas depois chegavam a uma conclusão... A estratégia da empresa ‘evoluiu por meio de muitas discussões e brigas agonizantes’.” [2] Um conflito bem orquestrado pode, na verdade, ser uma fonte de criatividade.

Davi aprende que precisa da orientação divina de como fazer sua obra (1Crônicas 13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em 1Crônicas 13, Davi enfrenta um desafio em seu trabalho como rei e logo começa a resolvê-lo. Ele acredita que a arca de Deus deveria ser trazida de volta de Quiriate-Jearim, onde foi deixada durante o reinado de Saul. No entanto, em vez de agir por conta própria, ele conferencia com todos os seus líderes e ganha a concordância deles. Juntos, eles oram a Deus por sabedoria e concluem que realmente precisam trazer a arca de volta. É fácil para um líder cometer o erro de sair sozinho, sem o conselho de Deus ou de outras pessoas. Davi faz bem em reconhecer a necessidade de conselhos humanos e divinos. Ele recebe uma clara aprovação para seu projeto.

Mas o desastre ocorre. Uzá, que está ajudando a transportar a arca, põe a mão sobre ela para segurá-la, e Deus o mata (1Cr 13.9-10). Isso deixa Davi com raiva (1Cr 13.9-11) e com medo de Deus (1Cr 13.12), o que leva Davi a abandonar o projeto. O que começa como uma confirmação de Deus e de pessoas de confiança para realizar um projeto, de repente se transforma em um fracasso dramático. O mesmo acontece hoje. Por fim, quase todos nós experimentamos um doloroso revés em nosso trabalho. Pode ser profundamente desencorajador, e até ficamos tentados a abandonar a obra que Deus nos chamou para fazer.

No que parece ser um parêntese, Davi trava duas batalhas bem-sucedidas. Ele pergunta ao Senhor em cada caso se deve prosseguir, Deus o envia e ele obtém sucesso nas duas vezes. Mas a orientação de Deus para a segunda missão contém uma instrução peculiar. Deus diz: “Não ataque pela frente, mas dê a volta por trás deles e ataque-os em frente das amoreiras” (1Cr 14.14). Deus queria que Davi fosse, mas ele queria que ele fosse de uma maneira particular.

Depois desses sucessos, Davi reflete sobre essa experiência e ordena que ninguém, exceto os levitas, carregue a arca de Deus, porque o Senhor os escolheu para a tarefa (1Cr 15.2). Isso estava escrito no livro da Lei (Nm 4.15), mas havia sido esquecido ou negligenciado. Depois que Davi reúne os levitas para completar o trabalho de mover a arca, ele fala sobre o fracasso anterior: “Pelo fato de vocês [sacerdotes e levitas] não terem carregado a arca na primeira vez, a ira do Senhor, o nosso Deus, causou destruição entre nós. Nós não o tínhamos consultado sobre como proceder” (1Cr 15.13). Na segunda vez, porque eles seguiram o procedimento prescrito pela Lei, a arca foi movida com sucesso.

Esta história é um lembrete para nós em nosso próprio trabalho. É importante consultar a Deus e obter conselhos de pessoas de confiança sobre o que devemos fazer. Mas isso não é suficiente. Deus também se importa com como nós fazemos o trabalho. Como mostra a campanha fracassada de Davi, que negligenciou Números 4.15, fazer as coisas à maneira de Deus requer um conhecimento prático das Escrituras.

A desobediência de Davi a Deus causa uma praga nacional (1Crônicas 21.1-17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Davi também sofre outro fracasso que, para nós, no século 21, pode parecer estranho. Ele faz um censo do povo de Israel. Embora isso pareça prudente, o texto bíblico nos diz que Satanás incitou Davi a fazer isso, contrariando o conselho de Joabe, general de Davi. Além disso, a iniciativa “foi reprovada por Deus, e por isso ele puniu Israel” (1Cr 21.7).

Davi reconhece seu pecado ao fazer um censo contra a vontade de Deus. Como castigo, ele pode escolher entre três opções, cada uma das quais prejudicaria muitos no reino: (1) três anos de fome, ou (2) três meses de devastação pela espada de seus inimigos, ou (3) três dias de praga sobre a terra. Davi escolhe a terceira opção. Resultado: setenta mil pessoas morrem quando um anjo da morte passa pela terra. Diante disso, Davi clama a Deus: “Não fui eu que ordenei contar o povo? Fui eu que pequei e fiz o mal. Estes não passam de ovelhas. O que eles fizeram? Ó Senhor meu Deus, que o teu castigo caia sobre mim e sobre a minha família, mas não sobre o teu povo!” (1Cr 21.17).

Assim como Davi, provavelmente achamos difícil entender por que Deus puniria 70.000 outras pessoas pelo pecado de Davi. O texto não responde. Podemos observar, no entanto, que as transgressões dos líderes inevitavelmente prejudicam seu povo. Se os líderes empresariais tomarem más decisões sobre o desenvolvimento de produtos, as pessoas em sua organização perderão seus empregos quando as receitas despencarem. Se o gerente de um restaurante não aplicar as regras de saneamento, os clientes ficarão doentes. Se um professor der boas notas por um trabalho ruim, os alunos serão reprovados ou ficarão para trás no próximo nível de ensino. Aqueles que aceitam posições de liderança não podem fugir da responsabilidade pelos efeitos de suas ações sobre os outros.

O apoio de Davi às artes musicais (1Crônicas 25)

Voltar ao índice Voltar ao índice

1Crônicas acrescenta um detalhe não encontrado em 2Samuel e 1Reis. Davi cria um corpo de músicos para “ministrar a música no templo do Senhor”.

Todos esses homens estavam sob a supervisão de seus pais quando ministravam a música do templo do Senhor, com címbalos, liras e harpas, na casa de Deus. Asafe, Jedutum e Hemã estavam sob a supervisão do rei. Eles e seus parentes, todos capazes e preparados para o ministério do louvor do Senhor, totalizavam 288. (1Cr 25.6-7)

Manter um conjunto do tamanho de duas orquestras sinfônicas modernas seria um grande empreendimento em uma nação emergente no século 10 a.C. Davi não considera isso um luxo, mas uma necessidade. De fato, ele o ordena em seu papel de comandante-em-chefe do exército, com o consentimento dos outros comandantes (1Cr 25.1).

Muitos corpos militares ainda hoje mantêm bandas e corais, mas isso é raro de ver em outros ambientes de trabalho, a menos que sejam organizações musicais. No entanto, há algo na música e nas outras artes que é essencial para o trabalho de todos os tipos. A criação de Deus — a fonte da atividade econômica humana — não é apenas produtiva, é bela (por exemplo, Gênesis 3.6; Salmos 96.6; Ezequiel 31.7-9), e Deus ama belas obras (por Há lugar para a beleza em seu trabalho? Você, sua organização ou as pessoas que fazem uso de seu trabalho se beneficiariam se seu trabalho criasse mais beleza? Qual o significado de beleza para o trabalho em sua ocupação?

Avaliando o reinado de Davi (1Reis)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como devemos avaliar Davi e seu reinado? É digno de nota que, embora Salomão tenha conquistado mais riquezas, terras e renome do que seu pai, Davi ainda é aquele que os livros de Reis e Crônicas aclamam como o maior rei de Israel, o modelo pelo qual todos os outros reis foram medidos.

Podemos ganhar esperança para nós mesmos com a resposta de Deus aos pontos positivos e negativos que vemos na vida e nas ações de Davi. Ficamos impressionados com sua piedade fundamental, mesmo quando empalidecemos diante de sua manipulação política, luxúria e violência. Quando vemos uma ambivalência semelhante em nosso próprio coração e em nossas ações, buscamos consolo e esperança no Deus que perdoa todos os nossos pecados. A presença do Senhor na vida de Davi nos dá esperança de que, mesmo diante de nossa fraqueza de fé, Deus permanecerá conosco o tempo todo.

Como Saul, Davi combinou grandeza e fidelidade com pecado e erro. Podemos nos perguntar, então, por que Deus preservou o reinado de Davi, mas não o de Saul. Em parte, pode ser porque o coração de Davi permaneceu fiel a Deus (1Rs 11.4; 15.3), por mais errôneas que tenham sido suas ações. A mesma coisa nunca é dita de Saul. Ou pode ser simplesmente porque a melhor maneira de Deus cumprir seus propósitos para seu povo era colocar Davi no trono e mantê-lo lá. Quando Deus nos chama para uma tarefa ou posição, não é necessariamente em nós que ele está pensando. Ele pode nos escolher por causa do efeito que teremos sobre outras pessoas. Por exemplo, Deus deu a Ciro, rei da Pérsia, a vitória sobre a Babilônia, não para recompensar ou beneficiar Ciro, mas para libertar Israel do cativeiro (2Cr 36.22-23).

Davi prepara Salomão para suceder-lhe como rei (1Reis 1; 1Crônicas 22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Visto que Davi derramou muito sangue como rei, Deus decidiu não permitir que ele construísse um templo para o Senhor. Em vez disso, Salomão, filho de Davi, recebeu essa tarefa (1Cr 22.7-10). Assim, Davi aceitou que sua tarefa final seria preparar Salomão para o cargo de rei (1Cr 22.1-16) e cercá-lo com uma equipe capaz (1Cr 22.17-29). Davi forneceu as vastas reservas de materiais para a construção do templo de Deus em Jerusalém, dizendo: “Meu filho Salomão é jovem e inexperiente, e o templo que será construído para o Senhor deve ser extraordinariamente magnífico” (1Cr 22.5). Ele passou publicamente a autoridade a Salomão e certificou-se de que os líderes de Israel o reconhecessem como o novo rei e estivessem preparados para ajudá-lo a ter sucesso.

Davi reconheceu que a liderança é uma responsabilidade que dura mais do que a própria carreira. Na maioria dos casos, seu trabalho continuará depois que você deixá-lo (seja por promoção, aposentadoria ou por outro emprego). Você tem o dever de criar as condições necessárias para que seu sucessor seja bem-sucedido. Quando Davi preparou Salomão, vemos três elementos do planejamento sucessório. Primeiro, você precisa fornecer os recursos necessários para que seu sucessor conclua as tarefas que ficaram inacabadas. Se você foi, pelo menos, moderadamente bem-sucedido, terá aprendido como reunir os recursos necessários em sua posição. Muitas vezes, isso depende de relacionamentos que seu sucessor não herdará imediatamente. Por exemplo, o sucesso pode depender da ajuda de pessoas que não trabalham em seu departamento, mas que se dispuseram a ajudá-lo em seu trabalho. Você precisa se certificar de que seu sucessor saiba quem são essas pessoas e precisa obter delas o compromisso de continuar ajudando depois que você se for. Davi providenciou para que “especialistas em todo tipo de trabalho” com quem ele havia desenvolvido relacionamentos trabalhassem para Salomão depois que ele se foi (1Cr 22.15).

Em segundo lugar, você precisa transmitir seu conhecimento e seus relacionamentos à pessoa a quem o sucede. Em muitas situações, isso acontecerá trazendo seu sucessor para trabalhar ao seu lado muito antes de sua partida. Davi começou a incluir Salomão nas estruturas de liderança e nos rituais do reino pouco antes de sua morte, embora pareça que ele poderia ter feito um trabalho muito melhor se tivesse começado antes (1Rs 1.28-40). Em outro cenário, você pode não ter nenhum papel na designação de seu sucessor e pode não ter nenhum momento junto com ele. Nesse caso, você precisará transmitir as informações por escrito e por meio daqueles que permanecerão na organização. O que você pode fazer para preparar a obra e seu sucessor para que prosperem, para a glória de Deus, depois que você se for?

Terceiro, você precisa transferir o poder de forma definitiva para a pessoa que assume o cargo. Independentemente de você escolher seu próprio sucessor ou de outros tomarem essa decisão sem sua opinião, você ainda tem a opção de reconhecer ou não publicamente a transição e transmitir definitivamente a autoridade que tinha anteriormente. Suas palavras e ações conferirão uma bênção ou uma maldição ao seu sucessor. Um exemplo recente é a manipulação em que Vladimir Putin se envolveu para manter o poder, depois que limitações de mandato o impediram de buscar um terceiro mandato consecutivo como presidente da Rússia. Ele providenciou que alguns dos poderes do presidente fossem transferidos para o primeiro-ministro e, em seguida, usou sua influência para fazer com que um ex-subordinado fosse eleito presidente, que nomeou Putin como primeiro-ministro imediatamente depois. [1] Depois de um mandato como primeiro-ministro, Putin facilmente assumiu o cargo de presidente novamente, a convite do titular, que se afastou. [2] Como resultado, a concentração de poder nas mãos de Putin continua inabalável por décadas, exatamente o que os limites de mandato pretendiam evitar, possivelmente em detrimento da Rússia e de seus vizinhos. Em contraste, Davi providenciou para que Salomão fosse publicamente ungido como rei, transferiu os símbolos da monarquia para ele e o apresentou publicamente como o novo rei, enquanto o próprio Davi ainda estava vivo (1Rs 1.32-35,39-40).

Salomão sucede a Davi como rei (1Reis 1—11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao suceder a Davi como rei, Salomão se depara com a vastidão de seus deveres (1Rs 3.5-15). Ele está perfeitamente ciente de que é inadequado para a tarefa (1Cr 22.5). O trabalho que lhe é confiado é imenso. Além do projeto do templo, ele tem uma nação grande e complexa sob seus cuidados, “um povo tão grande que nem se pode contar” (1Rs 3.8). Mesmo quando ganha experiência no trabalho, ele percebe que a tarefa é tão complexa que ele nunca será capaz de descobrir o curso de ação certo em todas as circunstâncias. Ele precisa de ajuda divina: por isso, pede a Deus: “Dá, pois, ao teu servo um coração cheio de discernimento para governar o teu povo e capaz de distinguir entre o bem e o mal. Pois, quem pode governar este teu grande povo?” (1Rs 3.9). Deus responde à sua oração e lhe dá “a Salomão sabedoria, discernimento extraordinário e uma abrangência de conhecimento tão imensurável quanto a areia do mar” (1Rs 4.29).

Salomão constrói o templo do Senhor (1Reis 5—8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A primeira grande tarefa de Salomão foi construir o templo do Senhor. Para alcançar esse feito arquitetônico, Salomão emprega profissionais de todos os cantos de seu reino. Três capítulos (1Rs 5—7) são dedicados à descrição do trabalho de construção do templo, dos quais destacamos apenas uma pequena seleção:

Salomão tinha setenta mil carregadores e oitenta mil cortadores de pedra nas colinas, e três mil e trezentos capatazes que supervisionavam o trabalho e comandavam os operários. Por ordem do rei retiravam da pedreira grandes blocos de pedra de ótima qualidade para servirem de alicerce de pedras lavradas para o templo. (1Rs 5.15-17)
Ele fundiu duas colunas de bronze, cada uma com oito metros e dez centímetros de altura e cinco metros e quarenta centímetros de circunferência, medidas pelo fio apropriado. Também fez dois capitéis de bronze fundido para colocar no alto das colunas; cada capitel tinha dois metros e vinte e cinco centímetros de altura. Conjuntos de correntes entrelaçadas ornamentavam os capitéis no alto das colunas, sete em cada capitel. (1Rs 7.15-17)
Além desses, Salomão mandou fazer também estes outros utensílios para o templo do Senhor: O altar de ouro; a mesa de ouro sobre a qual ficavam os pães da Presença; 9os candelabros de ouro puro, cinco à direita e cinco à esquerda, em frente do santuário interno; as flores, as lâmpadas e as tenazes de ouro; as bacias, os cortadores de pavio, as bacias para aspersão, as tigelas e os incensários; e as dobradiças de ouro para as portas da sala interna, isto é, o Lugar Santíssimo, e também para as portas do átrio principal. (1Rs 7.48-51)

De profissionais talentosos a trabalhadores forçados, o povo do reino contribui com seus conhecimentos e habilidades para ajudar a construir o templo. Ao fazer isso, Salomão envolve inúmeras pessoas para ajudar a construir e sustentar seu reino. Sendo ou não a intenção de Salomão, empregar tantas pessoas de todas as esferas da vida garante que a vasta maioria dos cidadãos mantenha um investimento pessoal no bem-estar político, religioso, social e econômico do reino.

Salomão centraliza o governo do reino (1Reis 9—11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O enorme esforço nacional necessário para construir o templo deixa Salomão como governante de um reino poderoso. Durante seu reinado, o poderio militar e econômico de Israel atingiu seu auge, e o reino abrange mais território do que em qualquer outro momento da história de Israel. Ele completa a centralização do governo, da organização econômica e da adoração da nação.

Para reunir uma força de trabalho grande o suficiente, o rei Salomão recruta trabalhadores de todo o Israel, num total de trinta mil homens (1Rs 5.13-14). Salomão parece ter pago os israelitas que foram recrutados (1Rs 9.22), de acordo com Lv 25.44-46, que proíbe fazer israelitas escravos. Mas os estrangeiros residentes são simplesmente escravizados (1Rs 9.20-21). Além disso, uma multidão de trabalhadores é trazida de nações vizinhas. Seja qual for a sua origem, reúne-se uma grande variedade de profissionais altamente qualificados, incluindo os melhores artesãos da época. Os livros de Samuel, Reis e Crônicas —interessados principalmente ​​no trabalho da realeza — dizem pouco sobre esses trabalhadores, exceto no que diz respeito ao templo. Mas eles são visíveis em segundo plano, tornando possível toda a sociedade.

Salomão vê que, à medida que o governo central se expande, precisará de alimento para uma força de trabalho cada vez maior. Os servos precisam de comida (1Rs 5.9-11), ao lado dos trabalhadores em todos os projetos de construção de Salomão. A crescente burocracia também precisa ser alimentada. Então, o rei organiza a nação em doze distritos e nomeia um governador como superintendente de cada distrito. Cada governador é encarregado de fornecer todas as provisões alimentares necessárias durante um mês de cada ano (1Rs 4.7). Como resultado, as filhas da nação são recrutadas para o trabalho como “cozinheiras e padeiras” (1Sm 8.13). Israel se torna como outros reinos, com trabalho forçado, tributação pesada e uma elite central que exerce poder sobre o resto do país.

Como Samuel havia predito, os reis trazem consigo um vasto exército (1Sm 8.11-12). A militarização floresceu plenamente durante o reinado de Salomão, à medida que as forças armadas se tornaram um componente essencial da estabilidade do reino. Militares de todas as categorias, de soldados de infantaria a generais, precisam de armas, incluindo dardos, lanças, arcos e flechas, espadas, punhais, facas e fundas. Eles precisam de equipamentos de proteção, incluindo escudos, capacetes e armaduras. Para administrar um exército em tão grande escala, uma organização militar nacionalizada deve ser mantida. Em contraste com seu pai, Davi, Salomão é chamado de “um homem de paz” (1Cr 22.9), mas a paz é assegurada pela presença de uma força militar bem organizada e bem provisionada.

Vemos na história de Salomão como a sociedade depende do trabalho de uma infinidade de pessoas, juntamente com estruturas e sistemas para organizar a produção e a distribuição em larga escala. A capacidade humana de organizar o trabalho é uma evidência de nossa criação à imagem de um Deus que traz ordem ao caos em escala mundial (Gênesis 1). É muito apropriado que a Bíblia retrate essa capacidade por meio da construção do local de encontro de Deus com a humanidade. É preciso uma habilidade dada por Deus para organizar o trabalho em escala grande o suficiente para construir a casa de Deus. Poucos de nós gostariam de voltar aos métodos de organização de Salomão — recrutamento, trabalho forçado e militarização — para podermos ser gratos por Deus nos levar a métodos mais justos e eficazes hoje. Talvez o que tiremos desse episódio seja que Deus está intensamente interessado na arte de coordenar a criatividade e o trabalho humanos para cumprir os seus propósitos no mundo.

Avaliando a era de ouro de Salomão (1Reis)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A profecia de Samuel sobre os perigos de um rei se cumpriu no tempo de Salomão.

O rei que reinará sobre vocês reivindicará como seu direito o seguinte: ele tomará os filhos de vocês... Tomará as filhas de vocês... Tomará de vocês o melhor das plantações, das vinhas e dos olivais... Tomará um décimo dos cereais e da colheita das uvas... Também tomará de vocês para seu uso particular os servos e as servas, e o melhor do gado e dos jumentos. E tomará de vocês um décimo dos rebanhos, e vocês mesmos se tornarão escravos dele. Naquele dia, vocês clamarão por causa do rei que vocês mesmos escolheram, e o Senhor não os ouvirá. (1Sm 8.11-18)

À primeira vista, as campanhas de administração e construção de Salomão parecem ter sido muito bem-sucedidas. O povo fica feliz em fazer os sacrifícios necessários para construir o templo (1Rs 8.65-66), um lugar onde todos podem ir para receber a justiça de Deus (1Rs 8.12-21), o perdão (1Rs 8.33-36), cura (1Rs 8.37-40) e misericórdia (1Rs 8.46-53).

Mas, depois que o templo é concluído, Salomão constrói um palácio da mesma proporção e magnificência do templo (1Rs 9.1,10). À medida que se acostuma ao poder e à riqueza, torna-se egoísta, arrogante e infiel. Ele se apropria de grande parte da capacidade produtiva da nação para seu benefício pessoal. Seu já impressionante trono de marfim é revestido de ouro (2Cr 9.17). Ele vivia luxuosamente (1Rs 10.5). Ele renega acordos com aliados (1Rs 9.12) e mantém um harém de “setecentas princesas e trezentas concubinas” (1Rs 11.3). Esta última é sua ruína final, pois “ele amou muitas mulheres estrangeiras” (1Rs 11.1), com o resultado de que “à medida que Salomão foi envelhecendo, suas mulheres o induziram a voltar-se para outros deuses, e o seu coração já não era totalmente dedicado ao Senhor, o seu Deus” (1Rs 11.4). Ele constrói santuários para Astarote, Camos e Moloque (1Rs 11.5-7). Como a aliança previa que a fidelidade do rei ao Senhor fosse a chave para a prosperidade da nação, Israel começaria a cair rapidamente de seu auge. Deus, ao que parece, se importa profundamente se fazemos nosso trabalho para seus propósitos ou contra eles. Proezas incríveis são possíveis quando trabalhamos de acordo com os planos de Deus, mas nosso trabalho se desintegra rapidamente quando não o fazemos.

Das monarquias fracassadas ao exílio (1Reis 11—2Reis 25; 2Crônicas 10—36)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Salomão é apenas o terceiro rei de Israel, mas o reino já atingiu seu ponto alto. Nos quatrocentos anos seguintes, uma sucessão de reis maus leva a nação ao declínio, à desintegração e à derrota.

A poderosa nação de Salomão dividida em dois (1Reis 11.26—12.19)

Após a morte de Salomão, logo fica claro que a agitação estava fermentando sob o verniz de uma administração equilibrada e eficaz. Após a morte do grande rei, Jeroboão (anteriormente o chefe dos trabalhadores forçados) e “toda a assembleia de Israel” se aproxima do filho e sucessor do rei, Roboão (c. 931-914 a.C.) para pedir: “Teu pai colocou sobre nós um jugo pesado, mas agora diminui o trabalho árduo e este jugo pesado, e nós te serviremos” (1Rs 12.3-16; 2Cr 10). Eles estão prontos para prometer lealdade ao novo rei em troca da redução do trabalho forçado e dos altos impostos. [1] Mas, por quarenta anos, Roboão conheceu apenas uma vida luxuosa em palácios, recebendo funcionários e suprimentos do povo israelita. Seu senso de direito é forte demais para permitir concessões. Em vez de aliviar o fardo indevido colocado sobre o povo por seu pai, Roboão escolhe tornar o jugo ainda maior.

Cumprindo ainda mais a previsão de Samuel (1Sm 8.18), ocorre uma rebelião e a monarquia fica dividida para sempre. Por mais que o povo de Israel estivesse disposto a realizar sua parte justa do trabalho para apoiar o Estado, o surgimento de expectativas irreais e irracionais resulta em revolta e divisão. As dez tribos do norte se separam, ungindo Jeroboão (c. 931-910 a.C.) como seu rei. Embora ele tenha sido o líder da delegação que buscava isenção de impostos de Roboão, sua dinastia não se mostrou melhor para o povo.

A marcha do reino do norte em direção ao exílio (1Reis 12.25—2Reis 17.18)

Por dois séculos (910-722 aC), o reino do norte de Israel é governado por reis que fazem grande mal aos olhos do Senhor. Esses séculos foram marcados por constantes guerras, traição e assassinatos, que culminaram em uma derrota catastrófica para a nação da Assíria. Para destruir todo o senso de identidade nacional, os conquistadores assírios arrebatam a população, dispersando-a em diferentes partes de seu império e trazendo estrangeiros para povoar a terra conquistada (2Rs 17.5-24). Conforme discutido em “A desobediência de Davi a Deus causa uma praga nacional (1Crônicas 2.1-17)”, as falhas dos líderes geralmente têm um efeito devastador sobre seu povo.

Obadias salva cem pessoas trabalhando dentro de um sistema corrupto (1Reis 18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Pelo menos dois episódios durante esse período merecem nossa atenção. A primeira, a salvação de cem profetas por Obadias, pode ser útil para aqueles que enfrentam a decisão de deixar um emprego em uma organização que se tornou antiética, uma decisão que muitos enfrentam no mundo do trabalho.

Obadias é o chefe de gabinete do rei Acabe. (Acabe até hoje carrega a fama de ter sido o mais iníquo dos reis de Israel.) A rainha Jezabel, esposa de Acabe, ordena que os profetas do Senhor sejam mortos. Como alto funcionário da corte de Acabe, Obadias tem conhecimento prévio da operação, bem como dos meios para contorná-la. Ele esconde cem profetas em duas cavernas e fornece-lhes pão e água até que a crise diminua. Eles são salvos apenas porque ali havia um “homem que temia muito o Senhor” (1Rs 18.3), o qual estava em uma posição de autoridade para protegê-los. Uma situação semelhante ocorre no livro de Ester, contada com muito mais detalhes. Veja “Trabalhando dentro de um sistema caído (Ester)” em www.teologiadotrabalho.org.

É desmoralizante trabalhar em uma organização corrupta ou má. Seria muito mais fácil sair e encontrar um lugar “mais sagrado” para trabalhar. Muitas vezes, desistir é a única maneira de evitar fazer o mal. Mas nenhum ambiente de trabalho no mundo é puramente bom, e enfrentaremos dilemas éticos onde quer que trabalhemos. Além disso, quanto mais corrupto é o ambiente de trabalho, mais ele precisa de pessoas piedosas. Se há alguma maneira de permanecer no lugar sem aumentar o mal, pode ser que Deus queira que fiquemos. Durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de oficiais que se opunham a Hitler permaneceu no Abwher (inteligência militar) porque isso lhes dava uma plataforma para tentar remover Hitler. Seus planos falharam e a maioria foi executada, incluindo o teólogo Dietrich Bonhoeffer. Ao explicar por que permaneceu no exército de Hitler, ele disse: “A pergunta final para um homem responsável não é como ele deve se livrar heroicamente do caso, mas como a próxima geração deve viver”. [1] Nossa responsabilidade de fazer o que pudermos para ajudar os outros parece ser mais importante para Deus do que nosso desejo de pensar em nós mesmos como moralmente puros.

Acabe e Jezabel assassinam Nabote para obter sua propriedade (1Reis 21)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O rei Acabe abusa ainda mais de seu poder quando começa a cobiçar a vinha de seu próximo, Nabote. Acabe oferece um preço justo pela vinha, mas Nabote considera a terra como uma herança ancestral e diz que não tem interesse em vendê-la por qualquer preço. Acabe aceita desanimado essa limitação apropriada de seu poder, mas sua esposa Jezabel o impele à tirania. “É assim que você age como rei de Israel?”, ela zomba (1Rs 21.7). Se o rei não tem apetite por abuso de poder, a rainha tem. Ela paga dois vadios para fazerem uma falsa acusação de blasfêmia e traição contra Nabote, e ele é rapidamente condenado à morte e apedrejado pelos anciãos da cidade. Ficamos imaginando por que os anciãos agiram tão rapidamente, sem sequer conduzir um julgamento adequado. Eles eram cúmplices do rei? Estavam sob seu controle, com medo de enfrentá-lo? De qualquer forma, com Nabote fora do caminho, Acabe toma posse da vinha para si.

O abuso de poder, incluindo a apropriação de terras tão flagrante quanto a de Acabe, continua até hoje, como é possível notar em quase todos os jornais diários. E, como na época de Acabe, o abuso de poder exige a cumplicidade de outros, que preferem tolerar a injustiça e até o assassinato a arriscar sua própria segurança pelo bem do próximo. Somente Elias, o homem de Deus, ousa se opor a Acabe (1Rs 21.17-24). Embora seus protestos não possam fazer nada para ajudar Nabote, a oposição de Elias reprime o abuso de poder de Acabe, e nenhum outro abuso é registrado em Reis antes da morte de Acabe. Mais frequentemente do que poderíamos esperar, a oposição com princípios por parte de um pequeno grupo ou mesmo de um único indivíduo pode conter o abuso de poder. Caso contrário, por que os líderes se dariam ao trabalho de esconder seus erros? Qual você estima ser a probabilidade de tomar conhecimento de pelo menos um abuso de poder em sua vida profissional? Como você está se preparando para responder, se o fizer?

A atenção do profeta Eliseu ao trabalho comum (2Reis 2—6)

Voltar ao índice Voltar ao índice

À medida que os reis do norte mergulham cada vez mais na apostasia e na tirania, Deus levanta profetas para se opor a eles com mais força do que nunca. Os profetas eram figuras de imenso poder dado por Deus, que surgiam do nada para anunciar a verdade de Deus nos corredores do poder humano. Elias e Eliseu são, de longe, os profetas mais proeminentes nos livros de Reis e Crônicas e, dos dois, Eliseu é especialmente notável pela atenção que presta ao trabalho dos israelitas comuns. Eliseu é chamado a enfrentar os reis rebeldes de Israel durante uma longa jornada (2Rs 2.13—13.20). Suas ações mostram que ele considera a vida econômica do povo tão importante quanto as lutas dinásticas do reino, e ele tenta proteger o povo dos desastres causados ​​pelos reis.

Eliseu restaura o sistema de irrigação de uma cidade (2Reis 2.19-22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O primeiro grande ato de Eliseu é limpar o poço poluído da cidade de Jericó. A principal preocupação na passagem é a produtividade agrícola. Sem um poço saudável, “a terra é improdutiva” (2Rs 2.19). Ao restaurar o acesso à água potável, Eliseu possibilita que as pessoas da cidade retomem a missão dada por Deus à humanidade de ser frutífera, se multiplicar e produzir alimentos (Gn 1.28-30).

A restauração da solvência financeira de uma família por Eliseu (2Reis 4.1-7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Depois que um dos profetas do círculo de Eliseu morreu, sua família fica endividada. O destino de uma família carente no antigo Israel era tipicamente vender alguns ou todos os seus membros como escravos, onde pelo menos seriam alimentados (veja “Escravidão ou contrato de servidão (Êxodo 21.1-11)” em www.teologiadotrabalho.org). A viúva está prestes a vender seus dois filhos como escravos e implora a ajuda de Eliseu (2Rs 4.1). Eliseu apresenta um plano para que a família se torne economicamente produtiva e se sustente. Ele pergunta à viúva o que ela tem para trabalhar. “Nada”, diz ela, exceto “uma vasilha de azeite” (2Rs 4.2). Aparentemente, esse capital é suficiente para que Eliseu possa começar. Ele diz a ela que fale com todas as suas vizinhas para pedir vasilhas vazias emprestadas e as encher com o óleo da sua vasilha. Ela é capaz de encher todas as vasilhas com azeite antes que sua própria vasilha acabe, e o lucro da venda do azeite é suficiente para pagar as dívidas da família (2Rs 4.9). Em essência, Eliseu cria uma comunidade empreendedora, na qual a mulher é capaz de iniciar um pequeno negócio. Isso é exatamente o que alguns dos métodos mais eficazes de combate à pobreza fazem hoje, seja por meio de microfinanciamento, sociedades de crédito, cooperativas agrícolas ou programas de fornecedores para pequenas empresas, por parte de grandes empresas e governos.

As ações de Eliseu em nome dessa família refletem o amor e a preocupação de Deus pelos necessitados. Como nosso trabalho pode criar oportunidades para que as pessoas em situação de pobreza abram caminho em direção à prosperidade? De que maneiras individual e coletivamente minamos a capacidade produtiva de pessoas e economias pobres, e o que podemos fazer, com a ajuda de Deus, para mudar isso?

A restauração da saúde de um comandante militar por Eliseu (2Reis 5.1-14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Quando Eliseu cura a lepra de Naamã, comandante do exército sírio e inimigo de Israel, isso tem efeitos importantes na esfera do trabalho. “Não é pouca coisa que uma pessoa doente fique boa, especialmente um leproso”, como observa Jacques Ellul em seu perspicaz ensaio sobre essa passagem, [1] porque a cura restaura a capacidade de trabalhar. Nesse caso, a cura restaura Naamã ao seu trabalho de governo, aconselhando seu rei sobre como lidar com o rei de Israel. Curiosamente, essa cura de um estrangeiro também leva à restauração da cultura ética na própria organização de Eliseu. Naamã se oferece para recompensar Eliseu generosamente pela cura, mas Eliseu não aceita nada, pois ele considerava simplesmente estar fazendo a vontade do Senhor. No entanto, um membro da comitiva de Eliseu, chamado Geazi, vê uma oportunidade para ter um pequeno ganho extra. Geazi corre atrás de Naamã e diz que Eliseu mudou de ideia — enfim, ele aceitará um pagamento muito significativo. Depois de receber o pagamento, Geazi esconde seu ganho ilícito e mente a Eliseu para encobrir suas ações. Eliseu responde anunciando que Geazi seria atingido pela mesma lepra que havia deixado Naamã. Aparentemente, Eliseu reconhece que tolerar a corrupção em sua organização minará rapidamente todo o bem que uma vida inteira de serviço a Deus já fez.

As próprias ações de Naamã demonstram outro ponto dessa história. Naamã tem um problema — lepra. Ele precisa ser curado. Mas sua noção pré-concebida de como deveria ser a solução — aparentemente esperava algum tipo de encontro dramático com um profeta — o leva a recusar a verdadeira solução (banhar-se no rio Jordão) quando lhe é oferecida. Quando ele ouviu esse remédio simples entregue pelo mensageiro de Eliseu — em vez do próprio Eliseu — Naamã “foi embora dali furioso” (2Rs 5.12). Nem a solução nem a fonte parecem grandiosas o suficiente para que Naamã desse atenção.

No mundo de hoje, esse duplo problema se repete com frequência. Primeiro, um líder sênior não vê a solução proposta por um funcionário de nível inferior porque não está disposto a considerar a perspectiva de alguém que considera não qualificado. Jim Collins, em seu livro Bom a ótimo, identifica que o primeiro sinal do que ele chama de líder do “nível cinco” é a humildade, a disposição de ouvir muitas fontes. [2] Em segundo lugar, a solução não é aceita porque não corresponde à abordagem imaginada pelo líder. Graças a Deus, muitos líderes de hoje, como Naamã, têm subordinados dispostos a correr o risco de falar com eles. Não são apenas necessários chefes humildes nas organizações, mas também subordinados corajosos. Curiosamente, a pessoa que põe todo o episódio em movimento é a pessoa de status mais baixo de todas, uma garota estrangeira que Naamã havia capturado em um ataque e dado à sua esposa como escrava (2Rs 5.13). Este é um lembrete maravilhoso de como a arrogância e as expectativas erradas podem bloquear o discernimento, mas a sabedoria de Deus continua tentando avançar de qualquer maneira.

Eliseu restaura o machado de um lenhador (2Reis 6.1-7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Cortando lenha ao longo da margem do rio Jordão, um dos profetas companheiros de Eliseu perde a cabeça de um machado de ferro no rio. Ele havia emprestado o machado de um lenhador. O preço de um item de ferro tão substancial na idade do bronze significaria ruína financeira para o proprietário, e o profeta que o tomou emprestado está perturbado. Eliseu encara a perda econômica como uma questão de preocupação imediata e pessoal e faz com que o ferro flutue na superfície da água, onde pode ser recuperado e devolvido ao seu dono. Mais uma vez, Eliseu intervém para permitir que alguém trabalhe para viver.

O dom de um profeta é discernir os objetivos de Deus na vida cotidiana, bem como trabalhar e agir de acordo. Deus chama os profetas para restaurar a boa criação de Deus, em meio a um mundo caído, de maneiras que apontem para o poder e a glória de Deus. O aspecto teológico do trabalho de um profeta — chamar as pessoas para adorar o Deus verdadeiro — é inevitavelmente acompanhado por um aspecto prático, que restaura o bom funcionamento da ordem criada. O Novo Testamento nos diz que alguns cristãos também são chamados a ser profetas (1Co 12.28; Ef 4.11). Eliseu não é apenas uma figura histórica que demonstra a preocupação de Deus com a obra de seu povo, mas um modelo para os cristãos de hoje.

A marcha do reino do sul em direção ao exílio (1Reis 11.41—2Reis 25.26; 2Crônicas 16—36)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Seguindo os passos do reino do norte, os governantes do reino do sul logo começaram a cair em idolatria e maldade. Sob o governo de Roboão, eles “construíram para si altares idólatras, colunas sagradas e postes sagrados sobre todos os montes e debaixo de todas as árvores frondosas. Havia no país até prostitutos cultuais; o povo se envolvia em todas as práticas detestáveis das nações” (1Rs 14.23-24). Os sucessores de Roboão oscilaram entre fidelidade e pecado diante de Deus. Por um tempo, Judá teve reis bons o suficiente para evitar o desastre, mas, nos anos finais, o reino caiu para o mesmo estado em que o reino do norte estava. A nação foi conquistada e os reis e as elites foram capturados e deportados pelos babilônios (2Rs 24—25). A falta de fé dos reis que o próprio povo havia exigido centenas de anos antes, contrariando o conselho de Deus, culminou em um colapso financeiro, na destruição da força de trabalho, na fome e no assassinato em massa ou na deportação de grande parte da população. O desastre previsto dura setenta anos, até que o rei Ciro, da Pérsia, autoriza o retorno de alguns judeus para reconstruir o templo e os muros de Jerusalém (2Cr 36.22-23).

Responsabilidade financeira no templo (2Reis 12.1-12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Um exemplo da degeneração do reino serve, ironicamente, para trazer à luz um modelo de boas práticas financeiras. Como praticamente todos os líderes do reino, os sacerdotes se tornaram corruptos. Em vez de usar as doações dos fiéis para a manutenção do templo, eles desviavam o dinheiro e o dividiam entre si. Sob a direção de Joás, um dos poucos reis que faziam “o que o Senhor aprova” (2Rs 12.2), os sacerdotes elaboraram um sistema contábil eficaz. Uma caixa com um pequeno orifício na tampa foi instalada no templo para receber as doações. Quando ela ficava cheia, o sumo sacerdote e o secretário do rei abriam a caixa juntos, contavam o dinheiro e contratavam carpinteiros, construtores e pedreiros para fazer os reparos. Isso garantia que o dinheiro fosse usado para seus propósitos adequados.

O mesmo sistema ainda está em uso hoje, por exemplo, quando é contado o dinheiro depositado em caixas eletrônicos. O princípio de que mesmo indivíduos confiáveis ​​devem estar sujeitos a verificação e prestação de contas é a base da boa gestão. Sempre que uma pessoa no poder — especialmente no poder de lidar com as finanças — tenta evitar a verificação, a organização está em perigo. Como Reis inclui esse episódio, sabemos que Deus valoriza o trabalho de caixas de banco, contadores, auditores, reguladores bancários, motoristas de carros blindados, trabalhadores de segurança digital e outros que protegem a integridade das finanças. Também exorta todos os tipos de líderes a exercerem a liderança sendo um exemplo pessoal de responsabilidade pública, convidando outras pessoas a verificar seu trabalho.

Arrogância e o fim dos reinos (2Crônicas 26)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como é que rei após rei puderam cair tão facilmente no mal? A história de Uzias pode nos dar algumas dicas. Ele assume o trono aos dezesseis anos e, a princípio, “fez o que o Senhor aprova” (2Cr 26.4). Sua pouca idade prova ser uma vantagem, pois ele reconhece sua necessidade da orientação de Deus. Ele “buscou a Deus durante a vida de Zacarias, que o instruiu no temor de Deus. Enquanto buscou o Senhor, Deus o fez prosperar” (2Cr 26.5).

Curiosamente, muito do sucesso que o Senhor concede a Uzias está relacionado ao trabalho comum. “Construiu torres no deserto e cavou muitas cisternas, pois ele possuía muitos rebanhos na Sefelá e na planície. Ele mantinha trabalhadores em seus campos e em suas vinhas, nas colinas e nas terras férteis, pois gostava da agricultura” (2Cr 26.10). “Em Jerusalém construiu máquinas projetadas por peritos” (2Cr 26.15a).

“Ele foi extraordinariamente ajudado”, diz-nos a Escritura, “e assim tornou-se muito poderoso” (2Cr 26.15b). Então, sua força se torna sua ruína, porque ele passa a servir a si mesmo em vez de servir ao Senhor. “Depois que Uzias se tornou poderoso, o seu orgulho provocou a sua queda. Ele foi infiel ao Senhor, o seu Deus” (2Cr 26.16). Ele tenta usurpar a autoridade religiosa dos sacerdotes, levando a uma revolta no palácio que lhe custa o trono e o transforma num excluído pelo resto de sua vida.

A história de Uzias é preocupante para as pessoas que ocupam posições de liderança hoje. O caráter que leva ao sucesso — especialmente nossa confiança em Deus — é facilmente corroído pelos poderes e privilégios que o sucesso traz. Quantos líderes empresariais, militares e políticos passaram a acreditar que são invencíveis e, assim, perdem a humildade, a disciplina e a atitude de serviço necessárias para permanecerem bem-sucedidos? Quantos de nós, em qualquer nível de sucesso, prestamos mais atenção a nós mesmos e menos a Deus, à medida que nosso poder aumenta, mesmo que modestamente? Uzias até teve o benefício de subordinados que se opunham a ele quando ele errava, embora os ignorasse (2Cr 26.18). O que ou quem você precisa para impedir que se afaste do orgulho e se afaste de Deus, caso seu sucesso aumente?

O desprezo de Ezequias pela próxima geração (2Reis 20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O rei Ezequias, de Judá, apresenta outro exemplo da arrogância dos reis. A passagem começa com Ezequias com uma doença mortal. Ele implora a Deus que se recupere, e Deus, pela palavra do profeta Isaías, concede a ele mais quinze anos de vida. Enquanto isso, o vizinho rei da Babilônia ouve falar da doença de Ezequias e envia mensageiros para espionar se a situação em Israel é propícia para a conquista. Quando eles chegam, Ezequias está totalmente recuperado. Talvez a recuperação milagrosa tenha feito que ele se sentisse invencível, porque, em vez de provar sua saúde e despachar rapidamente os espiões, ele decide mostrar a eles as riquezas de seu tesouro. Isso torna Israel um alvo mais tentador do que nunca.

Deus responde a essa ação tola enviando Isaías para profetizar um pouco mais.

Então Isaías disse a Ezequias: “Ouça a palavra do Senhor: ‘Um dia, tudo o que se encontra em seu palácio, bem como tudo o que os seus antepassados acumularam até hoje, será levado para a Babilônia. Nada restará’, diz o Senhor. ‘Alguns dos seus próprios descendentes serão levados, e eles se tornarão eunucos no palácio do rei da Babilônia’”. (2Rs 20.16-18)

Essa passagem pode nos lembrar sobre nosso próprio trabalho. Em tempos de grande sucesso, é fácil ficar orgulhoso e imprudente. Isso pode levar a uma grande destruição, se esquecermos que dependemos da graça de Deus para nosso sucesso.

Ezequias combina seu primeiro erro com um segundo. Isaías acaba de profetizar que, depois que Ezequias se for, seus filhos serão capturados e mutilados, e o reino será destruído. Em vez de se arrepender e implorar a Deus novamente para salvar seu povo, ele não faz nada.

Respondeu Ezequias ao profeta: “Boa é a palavra do Senhor que anunciaste”, pois ele entendeu que durante sua vida haveria paz e segurança. (2Rs 20.19)

Parece que o rei está pensando apenas em si mesmo. Como essa destruição não virá durante sua vida, Ezequias não se importa com isso.

Este episódio nos desafia a pensar em como nossas ações afetam a próxima geração, em vez de pensar apenas em nossa própria vida. Marion Wade, fundador da ServiceMaster, concentrou-se em construir uma empresa duradoura, em vez de garantir seu próprio sucesso. Ele disse,

Eu não estava pedindo sucesso pessoal como indivíduo ou sucesso meramente material como corporação. Não comparo esse tipo de sucesso com o cristianismo. Tudo o que Deus quer é o que eu quero. Mas tentei construir um negócio que durasse mais do que eu no mercado, que testemunhasse sobre Jesus Cristo na maneira como o negócio era conduzido. [1]

Lewis D. Solomon observou que Wade conseguiu estabelecer uma cultura de liderança dirigida por Deus que durou muito depois de seu mandato. Durante esse longo período, a empresa foi altamente bem-sucedida. Com o tempo, no entanto, o controle passou para um CEO que adotou uma abordagem de liderança menos abertamente centrada em Deus, e o desempenho da empresa diminuiu.

A ServiceMaster, uma bem-sucedida corporação de capital aberto, listada entre as 500 maiores pela revista Fortune, cresceu de raízes humildes, liderada primeiro por um líder pregador-administrador e, depois, por uma sucessão de CEOs, que combinaram estilos de liderança pregador-administrador-servo. Mais recentemente, essa empresa em transição, agora liderada por um CEO não evangélico, segue uma abordagem inclusiva e não sectária. Coincidentemente com essa transição, as dificuldades legais da empresa aumentaram e seus resultados financeiros estagnaram. [2]

Autossuficiência no lugar da orientação de Deus (2Crônicas 16—20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mesmo com o declínio da força do reino, os reis continuam convencidos de que estão no controle de sua situação. Confiantes em suas próprias habilidades e confiando em conselheiros humanos, muitas vezes deixam de pedir a orientação de Deus, geralmente com resultados desastrosos.

Em um caso, o rei Acabe, de Israel, está prestes a entrar em batalha. O rei Josafá de Judá o lembra: “Peço-te que busques primeiro o conselho do Senhor” (2Cr 18.4). Acabe consulta os profetas da corte, mas Josafá pergunta se há um profeta genuíno de Deus disponível. Acabe responde: “Ainda há um homem por meio de quem podemos consultar o Senhor, porém eu o odeio, porque nunca profetiza coisas boas a meu respeito, mas sempre coisas ruins. É Micaías, filho de Inlá” (2Cr 18.7). Acabe não quer conselhos do Senhor porque estes não se alinham com suas intenções. Por fim, ele consulta Micaías, que de fato prediz o desastre na batalha; por causa dessa palavra, Acabe o prende e o deixo passar fome (2Cr 18.18-27). Acabe prossegue para a batalha e é morto (2Cr 19.33-34).

Da mesma forma, o rei Asa decide formar uma aliança com o rei da Síria, em vez de confiar na proteção de Deus. Depois disso, ele é desafiado por um vidente que lhe diz: “Por você ter pedido ajuda ao rei da Síria e não ao Senhor, ao seu Deus, o exército do rei da Síria escapou de suas mãos” (2Cr 16.7). Da mesma forma, quando Asa é atingido por uma grave doença nos pés, ele não busca a ajuda do Senhor, mas apenas de médicos (2Cr 16.12), levando à sua morte prematura.

Depois disso, o rei Josafá se lembra de depender da orientação de Deus. Ele instrui seus juízes: “Considerem atentamente aquilo que fazem, pois vocês não estão julgando para o homem, mas para o Senhor, que estará com vocês sempre que derem um veredicto. Agora, que o temor do Senhor esteja sobre vocês. Julguem com cuidado, pois o Senhor, o nosso Deus, não tolera nem injustiça nem parcialidade nem suborno”. (2Cr 19.6-7). Mesmo assim, quando o próprio Josafá enfrenta um vasto exército inimigo em batalha, o profeta Jaaziel precisa lembrá-lo: “Não tenham medo nem fiquem desanimados por causa desse exército enorme. Pois a batalha não é de vocês, mas de Deus” (2Cr 20.15).

Os tipos de trabalho nessas passagens — estratégia militar, medicina e sistema legal — exigem habilidade humana. No entanto, habilidade não é suficiente: a percepção de Deus também é necessária. A maioria dos tipos de trabalho moderno também exige habilidade, e podemos sentir que nossa percepção e treinamento são maiores do que nos tempos antigos. Podemos até pensar que não precisamos — ou não queremos — a orientação de Deus, então confiamos em nossas próprias forças. Deus nos presenteou com sabedoria e discernimento, mas ele quer que busquemos sua face, mesmo que pensemos ter todas as habilidades de que precisamos. Na verdade, as habilidades e o poder modernos tornam maior — não menor — nossa necessidade de confiar em Deus, porque nossa capacidade de causar danos na ausência da orientação de Deus é maior agora do que nunca. Deus nos dá talentos e habilidades por um motivo, e precisamos usá-los em consulta com ele.

A falha de Roboão em distinguir bons conselhos dos maus (2Crônicas 10.1-19)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Um exemplo do fracasso da liderança de Israel ocorre quando o rei Roboão precisa de conselhos sobre um assunto difícil. Jeroboão e todo o Israel pedem que ele alivie o fardo do trabalho forçado que seu pai, o rei Salomão, havia imposto sobre eles (2Cr 8.8). Em troca, eles prometem a ele que o serviriam (2Cr 10.5). Roboão começa sabiamente ouvindo os anciãos de seu reino, que o aconselham a reduzir o fardo, tal como o povo pede. “Se hoje fores bom para esse povo, se o agradares e lhe deres resposta favorável, eles sempre serão teus servos” (2Cr 10.7). Roboão, aparentemente, não gostou dessa resposta. Então, ele pede a opinião de seus amigos mais jovens. Eles o aconselham a dominar o povo e se gabar: “Meu dedo mínimo é mais grosso do que a cintura do meu pai. Pois bem, meu pai lhes impôs um jugo pesado; eu o tornarei ainda mais pesado. Meu pai os castigou com simples chicotes; eu os castigarei com chicotes pontiagudos” (2Cr 10.10-11). Roboão decide seguir o conselho de seus amigos mais jovens, aparentemente porque isso acaricia seu ego. Ele responde a Jeroboão e ao povo, como sugerem seus jovens amigos, e depois nomeia um novo capataz sobre o trabalho forçado (2Cr 10.18). O povo responde matando o enviado do rei e rebelando-se contra Roboão, que nunca consegue reprimir a rebelião (2Cr 10.19).

Decisões difíceis também fazem parte da liderança hoje, estejamos liderando um reino inteiro ou simplesmente a nós mesmos. Onde você procura conselhos e como faz bom uso dos conselhos? Roboão começou pedindo conselhos a pessoas que ele reconhece como espiritualmente maduras. A idade em si não torna alguém sábio, nem as pessoas devotas são necessariamente mais sábias do que os não crentes. Mas os anciãos que ele consulta demonstraram maturidade espiritual e sabedoria ao longo de muitos anos servindo ao rei Salomão. Um sinal disso é sua capacidade de resposta a novos fatos e situações. Embora tenham sido nomeados por Salomão, eles ouvem Jeroboão com a mente aberta, resultando em seu conselho para derrubar as políticas de Salomão. Em contraste, os amigos mais jovens de Roboão parecem ter apenas uma maneira de chamar sua atenção — eles são seus amigos. É fácil pedir conselhos a pessoas que já pensam como você. Mas você tem acesso a pessoas que são espiritualmente maduras, que podem ouvir com a mente aberta, que não têm medo de lhe dizer algo que você preferiria não ouvir?

Quando nos deparamos com uma decisão difícil, buscar conselho, como Roboão fez, é um grande primeiro passo. O próximo passo é discernir qual conselho aplica a Bíblia corretamente à sua situação e qual conselho apenas confirma suas próprias ideias. Encontrar a diferença requer que você analise cuidadosamente os conselhos, comparando-os com a palavra de Deus e perguntando se eles promoveriam um bem maior. Na situação de Roboão, o bom conselho teria exigido que ele exercesse paciência, bondade, generosidade, mansidão e domínio próprio. Esses são cinco dos nove aspectos do “fruto do Espírito” listados em Gálatas 5.22. Essas não são apenas virtudes que alguém pode obter pela prática e trabalho árduo, mas são dons do Espírito de Deus (Gl 5.25). Se Roboão estivesse disposto a receber o Espírito de Deus, esse bom conselho teria levado à paz para toda a nação (2Cr 10.7). Em contraste, o mau conselho tentou Roboão para que cedesse à própria inveja, à arrogância, à presunção e à maldade, gratificando seu próprio ego. Essas são quatro das coisas que não devem ser praticadas, como se vê em Romanos 1.29-31. Não é coincidência que bons conselhos muitas vezes exijam que você cresça espiritualmente, enquanto maus conselhos levam você a cair em tentação. O melhor conselheiro geralmente é alguém que pode ajudá-lo a entender e aplicar a palavra de Deus e incentivá-lo a tomar sua própria decisão de crescer no Espírito de Deus.

Conclusões de Samuel, Reis e Crônicas

Voltar ao índice Voltar ao índice

As questões de governança e liderança afetam toda a vida. Quando nações e organizações são bem governadas, as pessoas têm a oportunidade de prosperar. Quando os líderes falham e deixam de agir pelo bem de suas organizações e comunidades, o desastre ocorre. O sucesso ou fracasso dos reis de Israel e Judá, por sua vez, depende de sua adesão à aliança e às leis de Deus. Com as exceções parciais de Davi, Salomão e alguns outros, os reis optam por adorar falsos deuses, o que os leva a seguir princípios antiéticos e a enriquecer às custas de seu povo. Sua falta de fé leva à destruição final de Israel e de Judá.

Mas a culpa não recai apenas sobre os reis. O povo aceita assumir os riscos da tirania quando exige que o profeta Samuel nomeie um rei para eles. Não confiando em Deus para protegê-los, eles estão dispostos a submeter-se ao governo de um autocrata. “Cada nação tem o governo que merece”, observou Joseph de Maistre. [1] A influência corruptora do poder é um perigo sempre presente, mas nações e organizações devem ser governadas. Os antigos israelitas escolheram um governo forte às custas da corrupção e da tirania, uma tentação muito viva também hoje. Outros povos se recusaram a fazer qualquer um dos sacrifícios — pagar impostos, obedecer às leis, abrir mão de milícias tribais e pessoais — necessários para estabelecer um governo funcional e pagaram o preço com anarquia, caos e autoestrangulamento econômico. Infelizmente, isso continua até os dias atuais em vários países. É necessário um equilíbrio primoroso para produzir uma boa governança, um equilíbrio que está quase além da capacidade humana. Se há uma lição importante que podemos tirar de Samuel, Reis e Crônicas, é que somente nos comprometendo com a graça e a orientação de Deus, sua aliança e seus mandamentos, um povo pode encontrar as virtudes éticas necessárias para um governo bom e duradouro.

Esta lição se aplica não apenas a nações, mas a empresas, escolas, organizações não governamentais, famílias e todos os outros tipos de ambiente de trabalho. A boa governança e a liderança são essenciais para que as pessoas tenham sucesso e prosperem econômica, relacional, pessoal e espiritualmente. Samuel, Reis e Crônicas exploram vários aspectos de liderança e governança entre uma série de obreiros de todos os tipos. Os aspectos específicos incluem os perigos da autoridade e da riqueza herdadas, os perigos de tratar Deus como um amuleto da sorte em nosso trabalho, as oportunidades que surgem para obreiros fiéis, as alegrias e tristezas de ser pais, critérios piedosos para escolher líderes, a necessidade de humildade e colaboração na liderança, o papel essencial da inovação e da criatividade e a necessidade de planejamento de sucessão e desenvolvimento de liderança.

Os livros prestam muita atenção ao manejo de conflitos, mostrando tanto a carreira destrutiva do conflito reprimido quanto o potencial criativo da discordância aberta e respeitosa. Eles mostram a necessidade de diplomatas e conciliadores, formais e informais, e o papel essencial de subordinados com coragem de falar a verdade — respeitosamente — aos que estão no poder, apesar dos riscos para si mesmos. Nesses livros repletos de figuras de autoridade imperfeitas, os poucos líderes inequivocamente bons incluem Abigail, cujas boas habilidades de resolução de conflitos salvaram a vida de sua família e a integridade de Davi, e a escrava anônima da esposa de Naamã, cuja ousadia a serviço da própria pessoa que a escravizou (Naamã) trouxe paz entre nações em guerra.

O líder inequivocamente bom mais proeminente nos livros é Eliseu, o profeta de Deus. De todos os profetas, ele presta mais atenção à liderança na vida cotidiana, no trabalho e em questões econômicas. Ele restaura o sistema de água de uma cidade, capitaliza comunidades econômicas empreendedoras, reconcilia nações por meio de missões médicas (por instigação da escrava mencionada acima), cria uma cultura ética em sua própria organização e melhora a subsistência de viúvas, trabalhadores, comandantes e agricultores. Levar a palavra de Deus à humanidade resulta em boa governança, desenvolvimento econômico e produtividade agrícola.

Lamentavelmente, quando se trata dos próprios reis, há muito mais maus exemplos do que bons exemplos de liderança e governança. Além de lidar mal com os conflitos, como descrito acima, os reis, recrutam trabalhadores, separam famílias, promovem uma classe de elite de funcionários públicos e militares às custas do povo comum, exigem impostos insuportáveis ​​ao povo para sustentar seu estilo de vida luxuoso, assassinam aqueles que estão em seu caminho, confiscam propriedades arbitrariamente, subvertem instituições religiosas e, por fim, levam seus reinos à subjugação e ao exílio. Surpreendentemente, a causa desses males não é o fracasso e a fraqueza por parte dos reis, mas o sucesso e a força. Eles distorcem o sucesso e a força que Deus lhes dá e os transformam em arrogância e tirania; como resultado, abandonam Deus e violam sua aliança e seus mandamentos. O coração sombrio da liderança desastrosa é a adoração de falsos deuses no lugar do Deus verdadeiro. Quando vemos uma liderança ruim hoje — nos outros ou em nós mesmos — uma boa primeira pergunta pode ser: “Que falsos deuses estão sendo adorados nesta situação?”

Assim como a luz brilha mais intensamente na escuridão, os fracassos dos reis destacam alguns episódios de boa liderança. A música e as artes florescem sob o governo de Davi. A construção do templo na época de Salomão é uma maravilha de arquitetura, construção, trabalho artesanal e organização econômica. Os sacerdotes da época de Jeoás desenvolveram um sistema de responsabilidade financeira que ainda é usado hoje. Obadias modela o bem que pessoas fiéis podem realizar em sistemas corruptos e situações adversas.

Obadias é um modelo muito melhor para nós hoje do que Davi, Salomão ou qualquer um dos reis. A principal preocupação dos reis era: “Como posso adquirir e manter o poder?” A de Obadias era: “Como posso servir às pessoas tal como Deus deseja na situação em que me encontro?” Ambas são questões de liderança. Um enfoca os bens necessários para o poder, o outro, o poder necessário para o bem. Oremos para que Deus chame seu povo para posições de poder e que ele traga a cada um de nós o poder necessário para cumprir nosso chamado. Mas, antes e depois de fazermos essas orações, comecemos e terminemos com “seja feita a tua vontade”.

Introdução a Esdras, Neemias e Ester

Voltar ao índice Voltar ao índice

A maioria dos cristãos não considera seu ambiente de trabalho muito favorável à sua fé. Geralmente, há oportunidades limitadas para o testemunho e atos explicitamente cristãos. Além disso, os trabalhadores podem se sentir pressionados a violar os requisitos éticos dos padrões bíblicos, explícita ou implicitamente. Em uma sociedade pluralista, alguns desses limites podem ser apropriados, mas podem fazer com que o ambiente de trabalho pareça um território estranho para os cristãos. Os livros de Esdras, Neemias e Ester descrevem como é para o povo de Deus trabalhar em ambientes hostis. Eles mostram o povo de Deus trabalhando em empregos que vão da construção à política e ao entretenimento, sempre em meio a ambientes abertamente hostis aos valores e aos planos de Deus. No entanto, ao longo do caminho, eles recebem ajuda surpreendente de descrentes nos mais altos cargos do poder cívico. O poder de Deus parece surgir para o bem de seu povo em lugares surpreendentes, mas eles enfrentam situações e decisões extremamente desafiadoras, sobre as quais nem sempre concordam.

Esdras teve de ponderar se deveria confiar em um governante incrédulo para proteger o povo judeu quando eles voltaram a Jerusalém e começaram a reconstruir o templo. Ele teve de encontrar apoio financeiro dentro do sistema econômico corrupto do Império Persa, mas ainda assim era fiel às leis de Deus sobre integridade econômica. Neemias teve de reconstruir os muros de Jerusalém, o que exigia que ele confiasse em Deus e fosse pragmático. Ele teve de liderar pessoas cuja motivação ia do altruísmo à ganância, e levá-las a superar seus próprios interesses divergentes para trabalhar tendo um propósito comum. Ester teve de sobreviver a um sistema que oprimia as mulheres e à intriga mortal dentro da corte real persa, mas permaneceu disposta a arriscar tudo para salvar seu povo do genocídio. Nossos títulos e instituições mudaram desde aqueles dias, mas, de muitas maneiras, nossos ambientes de trabalho hoje têm muito em comum — para melhor ou para pior — com os lugares onde Esdras, Neemias e Ester trabalharam. As situações, os desafios e as escolhas da vida real encontrados nesses livros bíblicos nos ajudam a desenvolver uma teologia do trabalho que importa em como vivemos a cada dia.

Esdras e Neemias

Em 587 a.C., os babilônios, sob o governo do rei Nabucodonosor, conquistaram Jerusalém. Eles mataram os líderes de Judá, saquearam o templo antes de incendiá-lo, destruíram grande parte da cidade, incluindo seus muros, e levaram a elite dos cidadãos de Jerusalém para a Babilônia. Lá, esses judeus viveram por décadas no exílio, sempre esperando que Deus libertasse e restaurasse Israel. Suas esperanças aumentaram em 539 a.C., quando a Pérsia, liderada pelo rei Ciro, derrotou a Babilônia. Pouco depois, Ciro emitiu um decreto convidando os judeus de seu reino a retornarem a Jerusalém e reconstruírem o templo e, portanto, sua vida como povo de Deus (Ed 1.1-4).

Os livros de Esdras e Neemias, originalmente duas partes de uma única obra, [1] narram aspectos cruciais dessa história de reconstrução, começando com o decreto de Ciro, em 539 a.C. Seu propósito, no entanto, não é simplesmente descrever o que aconteceu há muito tempo, como curiosidade de um antiquário. Em vez disso, Esdras e Neemias usam fatos históricos para ilustrar o tema da restauração. Esses livros mostram como Deus uma vez restaurou seu povo e como as pessoas desempenharam um papel central nessa obra de renovação. Esdras e Neemias foram escritos por um autor desconhecido, provavelmente no século IV a.C., [2] para encorajar o povo judeu a viver fielmente, mesmo sob domínio estrangeiro, para que pudessem ser participantes da obra divina de restauração, tanto presente como futura.

Esdras e Neemias são livros altamente teológicos, mas não abordam diretamente a teologia do trabalho. Eles não incluem imperativos legais ou visões proféticas que tenham a ver com nosso trabalho diário. As narrativas de Esdras e Neemias descrevem um trabalho árduo, no entanto, colocando implicitamente o trabalho em uma estrutura teológica. Assim, encontraremos sob a superfície desses livros um solo rico, do qual pode brotar uma teologia do trabalho. Em particular, Esdras e Neemias foram chamados para restaurar o Reino de Deus (Israel), em meio a um ambiente parcialmente hostil e parcialmente favorável. Os ambientes de trabalho de hoje também são parcialmente hostis e parcialmente favoráveis ​​à obra de Deus. Isso nos encoraja a descobrir como nosso trabalho pode contribuir para a implantação do Reino de Deus no mundo de hoje.

Ester

O Livro de Ester conta a história de um episódio curioso durante a era descrita em Esdras e Neemias. O foco não está na restauração de Jerusalém, mas nos eventos que aconteceram na Pérsia, durante o reinado de Xerxes (485-465 a.C.; Xerxes é o nome grego, e ele também é conhecido pelo nome persa Assuero). A narrativa de Ester explica as origens da festa judaica de Purim. O autor não identificado deste livro escreveu, em parte, para explicar e incentivar a celebração desse feriado nacional (veja Ester 9.20-28). [3] Sua preocupação mais ampla era examinar como os judeus poderiam sobreviver e até prosperar como exilados em uma terra pagã e muitas vezes hostil. [4]

Em contraste com Esdras e Neemias, o livro de Ester não é explicitamente teológico. Na verdade, Deus mesmo nunca é mencionado. No entanto, nenhum leitor fiel poderia deixar de ver a mão de Deus por trás dos acontecimentos do livro. Isso convida o leitor a ponderar como Deus pode estar agindo no mundo, sem ser despercebido por aqueles que não têm olhos para ver.

Reconstruindo o templo (Esdras 1.1—6.22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Esdras começa com um decreto do rei Ciro, da Pérsia, permitindo que os judeus voltassem a Jerusalém para reconstruir o templo que havia sido destruído pelos babilônios em 587 a.C. (Ed 1.2-4). A introdução deste decreto especifica quando foi proclamado: “No primeiro ano do reinado de Ciro” (539-538 a.C., logo após a vitória persa sobre a Babilônia). Também nos apresenta um dos principais temas de Esdras-Neemias: a relação entre a obra de Deus e a obra humana. Ciro fez sua proclamação “a fim de que se cumprisse a palavra do Senhor falada por Jeremias” e porque “o Senhor despertou o coração de Ciro” (Ed 1.1). Ciro estava fazendo seu trabalho como rei, buscando seus objetivos pessoais e institucionais. No entanto, esse foi o resultado da obra de Deus dentro dele, promovendo os propósitos do próprio Deus. Sentimos no primeiro versículo de Esdras que Deus está no controle, mas escolhe trabalhar por meio de seres humanos, até mesmo reis gentios, para realizar sua vontade.

Hoje em dia, os cristãos no ambiente de trabalho também vivem na confiança de que Deus é ativo por meio das decisões e ações de pessoas e instituições não cristãs. Ciro foi o instrumento escolhido por Deus, quer o próprio Ciro tenha reconhecido isso ou não. Da mesma forma, as ações de nosso chefe, colegas de trabalho, clientes e fornecedores, concorrentes, reguladores ou uma infinidade de outros atores podem estar promovendo a obra do Reino de Deus sem ser reconhecida por nós ou por eles. Isso deve nos prevenir tanto do desespero quanto da arrogância. Se pessoas e valores cristãos parecem ausentes do seu ambiente de trabalho, não se desespere — ainda assim Deus está trabalhando. Por outro lado, se você é tentado a ver a si mesmo ou a sua organização como um modelo de virtude cristã, cuidado! Deus pode estar realizando mais por meio daqueles que têm menos conexão visível com ele do que você imagina. Certamente, a obra de Deus por meio de Ciro — que permaneceu rico, poderoso e incrédulo, mesmo enquanto muitos do povo de Deus estavam se recuperando lentamente da pobreza do exílio — deve nos alertar para não esperarmos riqueza e poder como uma recompensa necessária por nosso trabalho fiel. Deus está usando todas as coisas para trabalhar em direção ao seu Reino, não necessariamente em direção ao nosso sucesso pessoal.

A obra de Deus continuou, pois muitos judeus se aproveitaram do decreto de Ciro. “Todos aqueles cujo coração Deus despertou” se prepararam para retornar a Jerusalém (Ed 1.5). Quando chegaram a Jerusalém, sua primeira tarefa foi construir o altar e oferecer sacrifícios sobre ele (Ed 3.1-3). Isso resume o principal tipo de trabalho narrado em Esdras e Neemias. Está intimamente associado às práticas sacrificiais do judaísmo do Antigo Testamento, que ocorriam no templo. O trabalho descrito nesses livros reflete e apoia a centralidade do templo e de suas ofertas na vida do povo de Deus. Adoração e trabalho caminham lado a lado através das páginas de Esdras e Neemias.

Por causa do foco de Esdras na reconstrução do templo, os trabalhos das pessoas são mencionados quando são relevantes para esse esforço. Assim, a lista de pessoas que retornam a Jerusalém cita especificamente “os sacerdotes, os levitas, os cantores, os porteiros e os servidores do templo” (Ed 2.70). O texto identifica “pedreiros e carpinteiros” porque eram necessários para o projeto de construção (Ed 3.7). Pessoas cujas habilidades não as equipavam para trabalhar diretamente no templo contribuíram para a tarefa por meio do fruto de seu trabalho, na forma de “ofertas voluntárias” (Ed 2.68). Assim, em certo sentido, a reconstrução do templo foi obra de todas as pessoas, que contribuíram de uma forma ou de outra.

Esdras identifica líderes políticos, além de Ciro, por causa de seu impacto — positivo ou negativo — no esforço de construção. Por exemplo, Zorobabel é mencionado como líder do povo. Ele era o governador do território que supervisionava a reconstrução do templo (Ag 1.1). Esdras menciona “o comandante Reum e o secretário Sinsai”, oficiais que escreveram uma carta se opondo à reconstrução do templo (Ed 4.8-10). Outros reis e oficiais aparecem de acordo com sua relevância para o projeto de reconstrução.

O projeto era sobre o templo, mas seria um erro pensar que Deus abençoa os diversos tipos de trabalho apenas quando são dedicados a um propósito religioso. A visão de Esdras incluía a restauração de toda a cidade de Jerusalém (Ed 4.13), não apenas do templo. Discutiremos esse ponto mais adiante quando chegarmos a Neemias, que realmente empreendeu o trabalho além do templo.

Esdras descreve vários esforços para reprimir a construção (Ed 4.1-23). Eles foram bem-sucedidos por um tempo, interrompendo o projeto do templo por cerca de duas décadas (Ed 4.24). Finalmente, Deus encorajou os judeus, por meio das profecias de Ageu e Zacarias, a retomar e concluir o trabalho (Ed 5.1). Além disso, Dario, rei da Pérsia, financiou o esforço de construção, na esperança de que o Senhor pudesse abençoar a ele e a seus filhos (Ed 6.8-10). Assim, o templo foi finalmente concluído, graças ao fato de Deus “mudar o coração do rei da Assíria, levando-o a dar-lhes força para realizarem a obra de reconstrução do templo de Deus” (Ed 6.22).

Como esse versículo deixa claro, os judeus realmente fizeram a obra de reconstrução do templo. No entanto, seu trabalho foi bem-sucedido por causa da ajuda de dois reis pagãos, um que inaugurou o projeto e outro que pagou por sua conclusão. Por trás desses esforços humanos estava a abrangente obra de Deus, que tocava o coração dos reis e encorajava seu povo por meio dos profetas. Como vimos, Deus trabalha muito além do que seu povo vê.

Restauração da vida da aliança, fase um: a obra de Esdras (Ed 7.1—10.44)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ironicamente, o próprio Esdras só aparece no livro que leva seu nome a partir do capítulo 7. Esse homem instruído, sacerdote e mestre da lei, veio a Jerusalém com a bênção do rei persa Artaxerxes, mais de cinquenta anos após a reconstrução do templo. Sua tarefa era apresentar ofertas no templo em nome do rei e estabelecer a lei de Deus em Judá, tanto ensinando quanto designando líderes que cumprissem a lei (Ed 7.25-26).

Esdras não explicou o favor do rei em termos de boa sorte. Em vez disso, ele deu os créditos a Deus, “que pôs no coração do rei o propósito” de enviar Esdras a Jerusalém (Ed 7.27). Esdras tomou coragem e agiu de acordo com a ordem do rei, porque, como ele disse, “a mão do Senhor, meu Deus, esteva sobre mim” (Ed 7.28). Essa linguagem da mão de Deus estar sobre alguém é a favorita de Esdras, visto que aqui a expressão aparece seis vezes (Ed 7.6,9,28; 8.18,22,31), além de mais duas ocorrências no restante da Bíblia. Deus estava trabalhando em Esdras e por meio dele, e isso explica seu sucesso em seus empreendimentos.

A confiança de Esdras na ajuda de Deus foi testada quando chegou a hora de sua comitiva viajar da Babilônia a Jerusalém. “Tive vergonha”, explicou Esdras, “de pedir soldados e cavaleiros ao rei para nos protegerem dos inimigos na estrada, pois lhe tínhamos dito: ‘A mão bondosa de nosso Deus está sobre todos os que o buscam, mas o seu poder e a sua ira são contra todos os que o abandonam’” (Ed 8.22). Para Esdras, depender de uma escolta real significava não confiar na proteção de Deus. Então, ele e sua comitiva jejuaram e oraram, em vez de buscar ajuda prática do rei (Ed 8.23). Nota: Esdras não estava seguindo nenhuma lei específica do Antigo Testamento ao escolher não receber proteção real. Em vez disso, essa decisão refletiu suas convicções pessoais sobre o que significava confiar em Deus nos desafios reais da liderança. Pode-se dizer que Esdras era um “crente idealista” nessa situação, porque estava disposto a apostar sua vida na ideia da proteção de Deus, em vez de garantir proteção com ajuda humana. Como veremos mais tarde, a posição de Esdras não foi a única considerada razoável pelos líderes piedosos nos livros de Esdras e Neemias.

A estratégia de Esdras provou ser bem-sucedida. “A mão do nosso Deus esteve sobre nós”, observou ele, “e ele nos protegeu do ataque de inimigos e assaltantes pelo caminho”. (Ed 8.31). Não sabemos, no entanto, se os membros do grupo de Esdras portavam armas ou as usavam para proteção. O texto parece sugerir que Esdras e companhia completaram sua jornada sem nenhum incidente ameaçador. Mais uma vez, o livro de Esdras mostra que os esforços humanos são bem-sucedidos quando Deus está trabalhando neles.

Os dois últimos capítulos de Esdras enfocam o problema de judeus se casando com gentios. A questão do trabalho não surge aqui, exceto no exemplo de Esdras, que exerce sua liderança em fidelidade à Lei e com determinação em oração.

Reconstruindo o muro de Jerusalém (Neemias 1.1—7.73)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O primeiro capítulo do livro de Neemias introduz o livro, mostrando que Neemias vivia em Susã, a capital do Império Persa. Quando Neemias ouviu que os muros de Jerusalém ainda continuavam derrubados, mais de meio século após a conclusão da reconstrução do templo, ele se sentou e chorou, jejuando e orando diante de Deus (Ne 1.4). Implicitamente, ele estava formulando um plano para remediar a situação em Jerusalém.

Transpondo a divisão entre sagrado e secular (Neemias 1.1—1.10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A conexão entre o templo e o muro é significativa para a teologia do trabalho. O templo pode parecer uma instituição religiosa, enquanto os muros são seculares. Mas Deus levou Neemias a trabalhar nos muros, assim como levou Esdras a trabalhar no templo. Tanto o sagrado quanto o secular eram necessários para cumprir o plano de Deus de restaurar a nação de Israel. Se os muros estavam inacabados, o templo também estava inacabado. A obra era uma peça única. A razão para isso é fácil de entender. Sem um muro, nenhuma cidade no antigo Oriente Próximo estava a salvo de bandidos, gangues e animais selvagens, mesmo que o império pudesse estar em paz. Quanto mais desenvolvida econômica e culturalmente uma cidade era, maior o valor das coisas na cidade e maior a necessidade de um muro. O templo, com suas ricas decorações, estaria particularmente em risco. Em termos práticos, sem muro não há cidade, e sem cidade não há templo.

Por outro lado, a cidade e seus muros dependem do templo como fonte da provisão de Deus para lei, governo, segurança e prosperidade. Mesmo em termos estritamente militares, o templo e os muros são mutuamente dependentes. O muro é parte integrante da proteção da cidade, assim como o templo em que habita o Senhor (Ed 1.3), que reduz a nada os planos violentos dos inimigos da cidade (Ne 4.15). Isso vale também para o governo e a justiça. As portas do muro são onde os processos judiciais são julgados (Dt 21.19; Is 29.21), enquanto, ao mesmo tempo, o Senhor, de seu templo, “defende a causa do órfão e da viúva” (Dt 10.18). A falta do templo significa ausência de Deus, e a falta da presença de Deus significa ausência de força militar, justiça, civilização e necessidade de muros. O templo e os muros estão unidos em uma sociedade fundada na “aliança e misericórdia” de Deus (Ne 1.5). Esse pelo menos é o ideal pelo qual Neemias está jejuando, orando e trabalhando.

Confiar em Deus significa recorrer à oração, tomar medidas “práticas” ou ambos? (Neemias 1.11—4.23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A última linha de Neemias 1 o identifica como “copeiro do rei” (Ne 1.11). Isso significa não apenas que ele tinha acesso direto ao rei como aquele que experimentava e servia suas bebidas, mas também que Neemias era um conselheiro de confiança e um oficial de alto escalão no Império Persa. [1] Ele poderia usar sua experiência profissional e sua posição com grande vantagem ao embarcar na obra de reconstrução do muro de Jerusalém.

Quando o rei lhe concedeu permissão para supervisionar o projeto de reconstrução, Neemias pediu cartas aos governadores por cujo território ele passaria em sua viagem a Jerusalém (Ne 2.7). Na visão de Neemias, o rei concedeu esse pedido porque “a bondosa mão de Deus estava sobre mim” (Ne 2.8). Aparentemente, Neemias não acreditava que confiar em Deus significasse que ele não deveria buscar a proteção do rei para sua jornada. Além disso, ele ficou satisfeito de ter “uma escolta de oficiais do exército e de cavaleiros” acompanhando-o em segurança até Jerusalém (Ne 2.9).

O texto de Neemias não sugere que houvesse algo errado com a decisão de Neemias de buscar e aceitar a proteção do rei. Na verdade, ele afirma que a bênção de Deus foi responsável por essa ajuda real. É impressionante notar como a abordagem de Neemias a esse assunto era diferente da de Esdras. Enquanto Esdras acreditava que confiar em Deus significava que ele não deveria pedir proteção real, Neemias viu a oferta de tal proteção como uma evidência da mão graciosa de Deus. Essa discordância demonstra como é fácil para pessoas piedosas chegarem a conclusões diferentes sobre o que significa confiar em Deus em sua obra. Talvez cada um estivesse simplesmente fazendo o que estava mais familiarizado. Esdras era sacerdote, familiarizado com a habitação da presença do Senhor. Neemias era copeiro do rei, familiarizado com o exercício do poder real. Tanto Esdras quanto Neemias procuravam ser fiéis em seus trabalhos. Ambos eram líderes piedosos e fervorosos. Mas eles entendiam a confiança em Deus para prover proteção de forma diferente. Para Esdras, significava viajar sem a guarda do rei. Para Neemias, significava aceitar a oferta de ajuda real como evidência da bênção de Deus.

Em várias ocasiões encontramos sinais de que Neemias era o que poderíamos chamar de “crente pragmático”. Em Neemias 2, por exemplo, Neemias pesquisou secretamente os escombros do antigo muro antes mesmo de anunciar seus planos aos moradores de Jerusalém (Ne 2.11-17). Aparentemente, ele queria saber o tamanho e o escopo do trabalho que estava assumindo antes de se comprometer publicamente a fazê-lo. No entanto, depois de explicar o propósito de sua ida a Jerusalém e apontar para a mão graciosa de Deus sobre ele, quando algumas autoridades locais zombaram dele e o acusaram, Neemias respondeu: “O Deus dos céus fará que sejamos bem-sucedidos” (Ne 2.2.20). Deus daria esse sucesso, em parte, por meio da liderança inteligente e bem informada de Neemias. O fato de o sucesso vir do Senhor não significava que Neemias pudesse sentar e relaxar. Muito pelo contrário, Neemias estava prestes a iniciar uma tarefa árdua e exigente.

Sua liderança envolveu a delegação de partes do projeto de construção dos muros a uma ampla variedade de pessoas, incluindo “o sumo sacerdote Eliasibe e os seus colegas sacerdotes” (Ne 3.1), os “homens de Tecoa”, menos seus nobres, que “não quiseram se juntar ao serviço” (Ne 3.5), “Uziel, filho de Haraías, um dos ourives” e “Hananias, um dos perfumistas” (Ne 3.8), “Salum [...], governador da outra metade do distrito de Jerusalém [e] suas filhas”(Ne 3.12), além de muitos outros. Neemias foi capaz de inspirar cooperação entre as pessoas e de organizar o projeto de forma eficaz.

Mas então, assim como na história da reconstrução do templo em Esdras, surgiu a oposição. Os líderes dos povos locais tentaram impedir o esforço judaico por meio da zombaria, mas “o povo estava totalmente dedicado ao trabalho” (Ne 4.6). Como suas palavras não impediram que o muro fosse reconstruído, os líderes locais “todos juntos planejaram atacar Jerusalém e causar confusão” (Ne 4.8).

Então, o que Neemias levou seu povo a fazer? Orar e confiar em Deus? Ou se armar para a batalha? Previsivelmente, o crente pragmático os levou a fazer as duas coisas: “oramos ao nosso Deus e colocamos guardas de dia e de noite para proteger-nos deles” (Ne 4.9). Na verdade, quando as ameaças contra os construtores de muros aumentaram, Neemias também colocou guardas em posições-chave. Ele encorajou seu povo a não desanimar por causa de seus oponentes: “Não tenham medo deles. Lembrem-se de que o Senhor é grande e temível, e lutem por seus irmãos, por seus filhos e por suas filhas, por suas mulheres e por suas casas” (Ne 4.14). Por causa de sua fé, o povo deveria lutar. Então, não muito tempo depois, Neemias acrescentou mais uma palavra de encorajamento: “Nosso Deus lutará por nós!” (Ne 4.20). No entanto, esse não foi um convite para os judeus abaixarem suas armas e se concentrarem na construção, confiando apenas na proteção sobrenatural. Em vez disso, Deus lutaria por seu povo, ajudando-o na batalha. Ele estaria trabalhando em e por meio de seu povo, enquanto eles trabalhavam.

Nós, cristãos, às vezes parecemos agir como se houvesse um muro rígido entre buscar ativamente nossa própria agenda e esperar passivamente pela ação de Deus. Estamos cientes de que essa é uma falsa dualidade, e é por isso que, por exemplo, a teologia cristã ortodoxa/histórica rejeita a premissa da Ciência Cristã de que tratamentos médicos são atos de infidelidade a Deus. No entanto, em alguns momentos, somos tentados a nos tornar passivos enquanto esperamos que Deus aja. Se você está desempregado, sim, Deus quer que você tenha um emprego. Para conseguir o emprego que Deus quer que você tenha, você precisa escrever um currículo, procurar oportunidades, candidatar-se a cargos, fazer entrevistas e ser rejeitado dezenas de vezes antes de encontrar esse emprego, assim como todo mundo precisa fazer. Se você é pai ou mãe, sim, Deus quer que você tenha prazer em criar seus filhos. Mas você ainda terá de estabelecer e impor limites, estar disponível nos momentos em que for inconveniente, discutir assuntos difíceis com eles, chorar e sofrer com eles em meio a dificuldades, ossos quebrados e corações partidos, fazer a lição de casa com eles, pedir perdão quando você está errado e lhes oferecer perdão quando falharem. Você não tem folga como recompensa por bom comportamento, como levar seus filhos à igreja. O trabalho árduo de Neemias e companhia nos alerta que confiar em Deus não equivale a ficar sentado esperando por soluções mágicas para as dificuldades que enfrentamos.

Conectando as práticas de empréstimo ao temor do Senhor (Ne 5.1-19)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O projeto de Neemias para a construção dos muros foi ameaçado não apenas por elementos externos, mas também internos. Certos nobres e oficiais judeus ricos estavam aproveitando os tempos economicamente difíceis para encher seus próprios bolsos (Ne 5). Eles estavam emprestando dinheiro a outros judeus, esperando que fossem pagos juros sobre os empréstimos, embora isso fosse proibido na Lei judaica (por exemplo, Êx 22.25). [1] Quando os devedores não puderam pagar os empréstimos, eles perderam suas terras e foram forçados a vender seus filhos como escravos (Ne 5.5). Neemias respondeu exigindo que os ricos parassem de cobrar juros sobre empréstimos e devolvessem tudo o que haviam tirado de seus devedores.

Em contraste com o egoísmo daqueles que estavam se aproveitando de seus companheiros judeus, Neemias não usou sua posição de liderança para aumentar sua fortuna pessoal. “Por temer a Deus”, ele até se recusou a cobrar impostos do povo para pagar suas despesas pessoais, ao contrário de seus predecessores (Ne 5.14-16). Em vez disso, ele generosamente convidou muitos a comer em sua mesa, pagando essa despesa com suas economias pessoais, sem sobrecarregar o povo (Ne 5.17-18).

Em certo sentido, nobres e oficiais eram culpados do mesmo tipo de dualismo que acabamos de discutir. No caso deles, não estavam esperando passivamente que Deus resolvesse seus problemas. Em vez disso, estavam buscando ativamente seu próprio ganho, como se a vida econômica não tivesse nada a ver com Deus. Mas Neemias diz a eles que sua vida econômica é de extrema importância para Deus, porque Deus se preocupa com toda a sociedade, não apenas com seus aspectos religiosos: “Vocês devem andar no temor do nosso Deus para evitar a zombaria dos outros povos, os nossos inimigos [a quem os nobres forçaram a venda de devedores judeus como escravos]” (Ne 5.9). Neemias conecta uma questão econômica (usura) com o temor de Deus.

As questões de Neemias 5, embora surjam de um cenário legal e cultural distante do nosso, desafiam-nos a considerar o quanto devemos lucrar pessoalmente com nossa posição e privilégio, até mesmo com nosso trabalho. Devemos colocar nosso dinheiro em bancos que fazem empréstimos com juros? Devemos aproveitar as vantagens que nos são disponibilizadas em nosso ambiente de trabalho, mesmo que tenham um custo considerável para os outros? Os mandamentos específicos de Neemias (não cobrar juros, não executar garantias, não forçar a venda de pessoas como escravas) podem se aplicar de maneira diferente em nosso tempo, mas, por trás de seus mandamentos, há uma oração que ainda se aplica: “Lembra-te de mim, ó meu Deus, levando em conta tudo o que fiz por este povo” (Ne 5.19). Assim como foi com Neemias, o chamado de Deus para os trabalhadores de hoje é fazer tudo o que pudermos por nosso povo. Na prática, isso significa que cada um de nós tem diante de Deus o dever de cuidar da nuvem de pessoas que dependem de nosso trabalho: empregadores, colegas de trabalho, clientes, familiares, o público em geral e muitos outros. Neemias pode não nos dizer exatamente como lidar com as situações atuais no ambiente de trabalho, mas ele nos diz como orientar nossa mente à medida que tomamos decisões. Coloque as pessoas em primeiro lugar.

Neemias dá crédito a Deus (Neemias 6.1—7.73)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os problemas externos e internos que Neemias enfrentava não interromperam o trabalho no muro, que foi concluído em apenas cinquenta e dois dias (Ne 6.15). “Todas as nações vizinhas ficaram atemorizadas e com o orgulho ferido, pois perceberam que essa obra havia sido executada com a ajuda de nosso Deus” (Ne 6.16). Embora Neemias tenha exercido sua considerável liderança para inspirar e organizar os construtores, embora eles tenham trabalhado incansavelmente, e embora a sabedoria de Neemias tenha permitido afastar ataques e distrações, ele viu tudo isso como uma obra feita com a ajuda de Deus. Deus trabalhou por meio dele e de seu povo, usando seus dons e trabalho para cumprir seus propósitos.

Restauração da vida da aliança, fase dois: Esdras e Neemias juntos (Ne 8.1—13.31)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Depois que o muro ao redor de Jerusalém foi concluído, os israelitas se reuniram em Jerusalém para renovar sua aliança com Deus. Esdras reapareceu neste momento para ler a Lei ao povo (Ne 8.2-5). O povo chorava enquanto ouvia a lei (Ne 8.9). No entanto, Neemias os repreendeu por sua tristeza, acrescentando: “Podem sair, e comam e bebam do melhor que tiverem, e repartam com os que nada têm preparado. Este dia é consagrado ao nosso Senhor” (Ne 8.10). Por mais que o trabalho seja central para servir a Deus, a celebração também é. Nos dias santos, as pessoas devem desfrutar dos frutos de seu trabalho, bem como compartilhá-los com aqueles que não têm essas delícias.

No entanto, como Neemias 9 demonstra, também houve um tempo para a tristeza segundo Deus, quando o povo confessou seus pecados a Deus (Ne 9.2). Sua confissão veio no contexto de uma extensa recitação de todas as coisas que Deus havia feito, começando com a própria criação (Ne 9.6) e continuando ao longo dos acontecimentos cruciais do Antigo Testamento. O fracasso de Israel em ser fiel ao Senhor explicou, entre outras coisas, por que o povo escolhido de Deus era “escravo” de reis estrangeiros e por que esses reis desfrutavam dos frutos do trabalho israelita (Ne 9.36-37).

Entre as promessas feitas pelo povo ao renovar sua aliança com o Senhor estava o compromisso de honrar o sábado (Ne 10.31). Em particular, eles prometeram não fazer negócios no sábado com os povos vizinhos, que trabalhavam naquele dia. Os israelitas também prometeram cumprir sua responsabilidade de apoiar o templo e seus trabalhadores (Ne 10.31-39). Eles fariam isso dando ao templo e sua equipe uma porcentagem do fruto de seu próprio trabalho. Tanto agora como antes, o compromisso de doar uma porcentagem de nossa renda para sustentar o “serviço do templo de nosso Deus” (Ne 10.32) é um meio necessário de financiar a obra de adoração e um lembrete de que tudo o que temos vem da mão de Deus.

Depois de completar sua tarefa de construir o muro em Jerusalém e supervisionar a restauração da sociedade ali, Neemias voltou para servir ao rei Artaxerxes (Ne 13.6). Mais tarde, ele voltou a Jerusalém, onde descobriu que algumas das reformas que ele havia iniciado estavam prosperando, enquanto outras haviam sido negligenciadas. Por exemplo, ele observou algumas pessoas trabalhando no sábado (Ne 13.15). Oficiais judeus haviam permitido que comerciantes gentios levassem seus bens a Jerusalém para serem vendidos no dia de descanso (Ne 13.16). Então Neemias repreendeu aqueles que deixaram de honrar o sábado (Ne 13.7-18). Além disso, em sua abordagem tipicamente pragmática, ele fechou os portões da cidade antes do início do sábado, mantendo-os fechados até que o dia de descanso tivesse passado. Ele também colocou alguns de seus servos nos portões, para que pudessem dizer aos vendedores em potencial que saíssem (Ne 13.19).

A questão sobre se e/ou como os cristãos devem guardar o sábado não pode ser respondida por Neemias. É necessária uma discussão teológica muito mais ampla. [1] No entanto, este livro nos lembra da centralidade da guarda do sábado para o povo da primeira aliança de Deus e da ameaça representada pela interação econômica com aqueles que não honram o sábado. Em nosso próprio contexto, certamente era mais fácil para os cristãos guardarem o dia do descanso quando os shoppings estavam fechados no Dia do Senhor. No entanto, nossa cultura contemporânea de comércio 24 horas por dia nos coloca na situação de Neemias, na qual é necessária uma decisão consciente — e potencialmente custosa — sobre a guarda do sábado.

Trabalhando dentro de um sistema caído (Ester)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Ester começa com o rei Xerxes (este é seu nome grego, mas ele também é conhecido pelo nome persa Assuero) dando uma festa luxuosa para exibir sua glória (Et 1.1-8). Tendo consumido grande quantidade de vinho, Xerxes ordenou a seus servos que trouxessem a rainha Vasti diante dele, a fim de que ele pudesse exibi-la aos outros participantes da festa (Et 1.10-11). Mas Vasti, sentindo a indignidade do pedido, recusou-se a ir (Et 1.12). Sua recusa perturbou os homens presentes, que temiam que seu exemplo encorajasse outras mulheres no reino a enfrentar seus maridos (Et 1.13-18). Assim, Vasti foi “demitida”, por assim dizer, e um processo foi iniciado para encontrar uma nova rainha para Xerxes (Et 1.21—2.4). Para ficar claro, este episódio retrata um assunto de família. Mas toda família real também é um ambiente de trabalho político. Portanto, a situação de Vasti também é uma questão que se refere ao ambiente de trabalho, em que o chefe procura explorar uma mulher por causa de seu gênero e, em seguida, a demite quando ela não corresponde às fantasias dele.

Mas quem sucederia a rainha Vasti? Um concurso de beleza foi realizado para localizar as virgens mais bonitas de todas as 127 províncias da Pérsia, e Ester estava entre as que foram levadas ao palácio para passar pelo tratamento de beleza de um ano, exigido antes da apresentação ao rei. No final, Ester terminou o concurso em primeiro lugar e foi coroada como rainha. O único fato sobre ela que permaneceu oculto, a pedido de seu primo e tutor Mardoqueu, era sua origem judaica (Et 2.8-14). Mesmo aparentemente sendo a “vencedora” da disputa, ela se encontra em um sistema opressivo e sexista, e logo enfrentará a exploração sexual nas mãos de um tirano egoísta.

Embora Ester permaneça sujeita a esse sistema opressor, ela agora entra no palácio e tem acesso ao alto poder e à influência. Ela não parece interessada em saber se Deus tem algum plano ou propósito para ela ali. Na verdade, Deus nem é mencionado no livro de Ester. Mas isso não significa que Deus não tenha plano ou propósito para ela na corte de Xerxes. Por acaso, seu primo Mardoqueu, depois de algum tempo, entra em conflito com o mais alto oficial de Xerxes, Hamã (Et 3.1-6). Hamã responde planejando matar não apenas Mardoqueu, mas todo o povo judeu (Et 3.7-15). Devido à complexidade da lei dos medos e dos persas, uma vez que a aprovação do decreto foi assinada por Xerxes (sem saber que sua rainha era judia, o povo odiado por Hamã), nada poderia anular a lei.

O decreto é proclamado em várias cidades e províncias, causando a morte de muitos judeus. Quando Mardoqueu soube disso, ele se sentou à porta do rei, vestido de pano de saco e cinza. Ao saber disso, Ester envia um oficial para descobrir o que há de errado com ele, e ele responde mencionando o decreto e pedindo que ela intervenha (Et 4.1-9).

Ester protesta, dizendo que envolver-se poderia comprometer sua posição e até sua vida (Et 4.11). Ela já parece perceber que o rei está perdendo o interesse nela, pois ela não havia sido chamada à sua presença nos últimos 30 dias. É inconcebível que o rei esteja dormindo sozinho; portanto, alguma outra mulher ou mulheres eram chamadas para estar com o rei (Et 4.11). Intervir em nome de seu povo seria muito arriscado. Mardoqueu responde com dois argumentos. Primeiro, sua vida está em risco, independentemente de ela intervir ou não. “Não pense que pelo fato de estar no palácio do rei, você será a única entre os judeus que escapará, pois, se você ficar calada nesta hora, socorro e livramento surgirão de outra parte para os judeus, mas você e a família do seu pai morrerão” (Et 4.13-14a). E segundo: “Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha?” (Et 4.14b). Juntos, esses argumentos levam a uma notável reviravolta de Ester. Mesmo tendo o título de “rainha”, ainda estava sujeita ao capricho absoluto do rei. Por isso Ester não consegue imaginar que possa fazer algo a respeito do decreto. Mas ela finalmente concorda em ir ao rei, afirmando a Mardoqueu: “Se eu tiver que morrer, morrerei” (Et 4.16). Ester precisa fazer uma escolha. Ela pode continuar a esconder sua condição de judia e passar o resto de seus dias como primeira-dama do harém de Xerxes, ou pode arriscar sua vida e fazer o possível para salvar seu povo. Ela passa a entender que sua alta posição não é apenas um privilégio a ser desfrutado, mas uma grande responsabilidade a ser usada para salvar outros. Seu povo está em perigo, e o problema deles se tornou o problema dela, porque ela está na melhor posição para fazer algo a respeito.

Observe que os dois argumentos de Mardoqueu apelam para instintos diferentes. O primeiro argumento apela à autopreservação: “Você, Ester, é judia e, se todos os judeus forem condenados à morte, você será descoberta e morta”. O segundo argumento apela ao destino, com sua sugestão de serviço divino: “Se você se pergunta, Ester, por que, de todas as jovens, acabou sendo a esposa do rei, talvez seja porque há um propósito maior em sua vida”.

Finalmente, Ester se identifica com seu povo. Nesse sentido, ela dá o mesmo passo que Jesus deu em seu nascimento, a identificação de si mesmo com a humanidade. E talvez esse passo seja o que abre seu coração para os propósitos de Deus. Identificando-se agora com o perigo mortal que ameaçava seu povo, Ester assume a tarefa de intervir junto ao rei. Ela arrisca sua posição, suas posses, sua vida. Sua alta posição agora se torna um meio de serviço ao povo, em vez de serviço pessoal. [1]

O serviço de Ester corresponde ao ambiente de trabalho de hoje de várias maneiras:

  • Muitas pessoas — cristãs ou não — se veem eticamente comprometidas como resultado de seu histórico de trabalho. Como todos nos colocamos no lugar de Ester, todos temos a oportunidade — e a responsabilidade — de deixar que Deus nos use de qualquer maneira. Você trapaceou para conseguir seu emprego? No entanto, Deus pode usar você para pôr fim às práticas enganosas em seu ambiente de trabalho. Você fez uso indevido de ativos corporativos? Deus ainda pode usá-lo para arrumar registros falsificados em seu departamento. A acomodação do passado a um sistema pecaminoso não é desculpa para deixar de atender ao que Deus precisa de você agora. O mau uso anterior de suas habilidades dadas por Deus não é razão para acreditar que você não pode empregá-las para os bons propósitos de Deus hoje. Ester é o modelo para todos nós que carecemos da glória de Deus, seja por escolha ou por necessidade. Você não pode dizer: “Se você soubesse quantos desvios éticos cometi para chegar aqui... Não posso ter nenhuma utilidade para Deus agora...”.
  • Deus faz uso das circunstâncias reais de nossa vida. A posição de Ester lhe dá oportunidades únicas de servir a Deus. A posição de Mardoqueu lhe dá diferentes oportunidades. Devemos abraçar as oportunidades específicas que temos. Em vez de dizer: “Se tivesse oportunidade, eu faria algo grande para Deus”, devemos dizer: “Talvez eu tenha chegado a essa posição para um momento como este”.
  • Nossas posições são espiritualmente perigosas. Podemos chegar a igualar nosso valor e nossa própria existência com nossas posições. Quanto mais altas nossas posições, maior o perigo. Se tornar-se CEO, conseguir estabilidade ou manter um bom emprego se tornar tão importante a ponto de cortarmos o resto de nós mesmos, então já nos perdemos.
  • Servir a Deus requer arriscar nossas posições. Se você usar sua posição para servir a Deus, poderá perder sua posição e suas perspectivas futuras. Isso é duplamente assustador se você se identificou com seu trabalho ou sua carreira. No entanto, a verdade é que nossas posições também estarão em risco se não servirmos a Deus. O caso de Ester é extremo. Ela pode ser morta se arriscar sua posição intervindo, e será morta se não intervir. Nossas posições são realmente mais seguras do que as de Ester? Não é tolice arriscar o que você não pode manter para ganhar o que não pode perder. O trabalho feito a serviço de Deus nunca pode ser verdadeiramente perdido.

Para Ester e os judeus, a história teve um final feliz. Ester corre o risco ao se aproximar do rei sem ser convidada, mas recebe seu favor (Et 5.1-2). Ela emprega uma tática inteligente para agradá-lo ao longo de dois banquetes (Et 5.4-8; 7.1-5) e para manipular Hamã a expor sua própria hipocrisia ao procurar aniquilar os judeus (Et 7.6-10). O rei emite um novo julgamento libertando os judeus do esquema de Hamã (Et 8.11-14) e recompensa Mardoqueu e Ester com riquezas, honra e poder (Et 8. 1-2; 10.1-3). Eles, por sua vez, melhoram a sorte dos judeus em todo o Império Persa (Et 10.3). Hamã e os inimigos dos judeus são massacrados (Et 7.9-10; 9.1-17). As datas da libertação dos judeus — 14 e 15 de adar — são marcadas posteriormente como a festa de Purim (Et 9.17-23).

A mão oculta de Deus e a resposta humana (Ester)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como observado anteriormente, Deus não é mencionado no livro de Ester. No entanto, o livro faz parte da Bíblia. Os comentaristas, portanto, procuram a presença velada de Deus em Ester e geralmente apontam para o versículo crucial: “Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha?” (Et 4.14). A implicação é que ela chegou a essa posição não por sorte ou destino, nem por suas próprias artimanhas, mas pela vontade de um ator invisível. Podemos ver a caligrafia divina na parede aqui. Ester chegou à sua posição real porque “a bondosa mão de Deus estava sobre [ela]”, como Esdras e Neemias poderiam ter dito (Ed 8.18; Ne 2.18).

Isso nos desafia a refletir sobre como Deus pode estar operando de maneiras que não reconhecemos. Quando uma empresa secular elimina o preconceito em promoções e escalas salariais, Deus está trabalhando lá? Quando um cristão é capaz de acabar com a prática de registros enganosos, ele precisa anunciar que agiu assim porque é cristão? Se os cristãos têm a chance de se juntar a judeus e muçulmanos para defender acomodações religiosas razoáveis ​​em uma corporação, eles devem ver isso como uma obra de Deus? Se você pode fazer o bem aceitando um emprego em uma administração política comprometida, Deus poderia estar chamando você para aceitar a oferta? Se você ensina em uma escola que o leva aos limites de sua consciência, deve procurar sair ou redobrar seu compromisso de ficar?

Conclusões a Esdras, Neemias e Ester

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os livros de Esdras, Neemias e Ester têm várias características em comum. Todos os três são narrativas relativamente curtas sobre fatos que aconteceram durante o reinado do Império Persa. Todos os três envolvem reis persas e outros funcionários do governo. Todos os três se concentram nas atividades de judeus que buscam prosperar em um ambiente que é, de muitas maneiras, hostil ao exercício da fé em Deus. Todos os três livros testemunham o fato de que um rei persa poderia ser útil aos judeus em seu esforço para sobreviver e prosperar. Todos os três apresentam líderes-chave cujas ações são apresentadas como modelos a serem seguidos. E todos os três livros mostram pessoas trabalhando, oferecendo assim uma oportunidade para refletirmos sobre como esses livros afetam nossa compreensão do trabalho e seu relacionamento com Deus.

No entanto, todos os três livros representam uma grande diferença de opinião sobre questões cruciais. Isso é verdade até mesmo para Esdras e Neemias, que originalmente eram duas partes de um livro. Em Esdras, confiar em Deus exige que o povo de Deus viaje por território perigoso sem escolta real. Em Neemias, a oferta de uma escolta real é tida como evidência da bênção de Deus. Esdras pratica o que pode ser chamado de “fé idealista”, enquanto Neemias representa a “fé pragmática”. Em Ester, a mão de Deus está oculta, revelada principalmente no uso sagaz que Ester faz de sua inteligência e posição a serviço de seu povo. Poderíamos chamar de “fé inteligente”.

No entanto, Esdras e Neemias defendem uma visão semelhante da obra de Deus no mundo. Deus está envolvido na vida de todas as pessoas, não apenas de seus escolhidos. Deus se move no coração dos reis pagãos, levando-os a apoiar os propósitos de Deus. O Senhor inspira seu povo a dedicar seu trabalho a ele, usando uma ampla variedade de líderes fortes e vozes proféticas para cumprir seus propósitos. Em Esdras, Deus usa um sacerdote fiel para reconstruir seu templo. Em Neemias, Deus usa um leigo fiel para reconstruir os muros de sua capital. Em Ester, Deus usa um judeu profundamente comprometido para salvar o povo judeu do genocídio. Da perspectiva dos três livros, Deus está operando em todo o mundo, fazendo uso do trabalho de todos os tipos de pessoas.

Versículos e temas-chave em Esdras, Neemias e Ester

Voltar ao índice Voltar ao índice

Versículo(s)

Tema

Esdras 1.1 No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia, a fim de que se cumprisse a palavra do Senhor falada por Jeremias, o Senhor despertou o coração de Ciro, rei da Pérsia, para redigir uma proclamação e divulgá-la em todo o seu reino, nestes termos...

Deus está trabalhando em todo o mundo, mesmo em e por meio de um rei pagão.

Esdras 7.28b Como a mão do Senhor, o meu Deus, esteve sobre mim, tomei coragem e reuni alguns líderes de Israel para me acompanharem.

O trabalho humano é bem-sucedido quando Deus abençoa o trabalho.

Esdras 8.22 Tive vergonha de pedir soldados e cavaleiros ao rei para nos protegerem dos inimigos na estrada, pois lhe tínhamos dito: “A mão bondosa de nosso Deus está sobre todos os que o buscam, mas o seu poder e a sua ira são contra todos os que o abandonam”.

Às vezes, confiar em Deus significa não confiar na ajuda humana.

Neemias 2.8b-9 Visto que a bondosa mão de Deus estava sobre mim, o rei atendeu os meus pedidos. Com isso fui aos governadores do Trans-Eufrates e lhes entreguei as cartas do rei. Acompanhou-me uma escolta de oficiais do exército e de cavaleiros que o rei enviou comigo.

Às vezes, confiar em Deus significa reconhecer sua provisão de ajuda humana.

Neemias 4.9 Mas nós oramos ao nosso Deus e colocamos guardas de dia e de noite para proteger-nos deles.

A confiança em Deus não deve levar à passividade.

Neemias 5.19 Lembra-te de mim, ó meu Deus, levando em conta tudo o que fiz por este povo.

A chave para determinar a coisa certa a fazer é como isso afeta as pessoas envolvidas.

Neemias 13.19 Quando as sombras da tarde cobriram as portas de Jerusalém na véspera do sábado, ordenei que estas fossem fechadas e só fossem abertas depois que o sábado tivesse terminado. Coloquei alguns de meus homens de confiança junto às portas, para que nenhum carregamento pudesse ser introduzido no dia de sábado.

Guardar o sábado é ordenado, mesmo quando isso coloca os crentes em desvantagem econômica.

Ester 2.14 À tarde ela ia para lá e de manhã voltava para outra parte do harém, que ficava sob os cuidados de Saasgaz, oficial responsável pelas concubinas. Ela não voltava ao rei, a menos que dela ele se agradasse e a mandasse chamar pelo nome.

As pessoas — especialmente as mulheres — podem se encontrar em circunstâncias econômicas em que não há uma solução completamente virtuosa. No entanto, Deus continua presente.


Ester 4.13b Não pense que pelo fato de estar no palácio do rei, você será a única entre os judeus que escapará.

É uma ilusão pensar que poder, posição ou riqueza nos protege dos perigos da vida.

Ester 4.14b Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha?

A obra de Deus entre nós às vezes é sutil e, às vezes, nem pode ser identificada especificamente.

Ester 4.16b Se eu tiver que morrer, morrerei.

A única maneira de servir a Deus é reconhecer que não podemos controlar os resultados de nossas ações.

Introdução a Jó

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Jó explora a relação entre prosperidade, adversidade e fé em Deus. Nós realmente acreditamos que Deus é a fonte de todas as coisas boas? Então, o que significa se as coisas boas desaparecem de nossa vida? Abandonamos nossa fé em Deus ou em sua bondade? Ou consideramos isso um sinal de que Deus está nos castigando? Como podemos permanecer fiéis a Deus em tempos de sofrimento? Que esperança podemos ter quanto ao futuro?

Essas perguntas surgem em todas as esferas da vida. Mas eles têm uma conexão especial com o trabalho, porque uma das principais razões pelas quais trabalhamos é alcançar algum nível de prosperidade. Trabalhamos — entre muitas outras razões — para ter um teto sobre nossa cabeça, colocar comida na mesa e fornecer coisas boas para nós mesmos e para as pessoas que amamos. A adversidade pode ameaçar qualquer prosperidade que tenhamos encontrado, e é difícil manter a fé em tempos de adversidade econômica. O personagem principal do livro de Jó começa na prosperidade e passa por adversidades quase inimagináveis, incluindo a perda de seu sustento e riqueza. Ao longo do livro, sua fé é severamente testada, à medida que ele experimenta um sucesso impressionante e uma derrota esmagadora em seu trabalho e em sua vida.

Vamos explorar as muitas aplicações do livro no ambiente de trabalho. Vemos o sucesso econômico como um sinal de nossas habilidades ou da bênção de Deus? O que a perda ou o fracasso no emprego nos diz sobre a avaliação de Deus quanto a nosso trabalho? Como a fé em Deus pode nos ajudar a lidar com fracassos e perdas? Como o estresse no ambiente de trabalho afeta nossa vida familiar e nossa saúde? O que os cristãos podem fazer para apoiar uns aos outros nas adversidades do ambiente de trabalho? Como podemos lidar quando sentimos raiva de Deus, se ele permite que soframos tratamento injusto no trabalho? Aprofundaremos o tratado prático de Jó sobre as relações entre superiores e subordinados, baseadas no respeito igual devido a cada pessoa criada pelo único Deus. Por fim, consideraremos a notável contribuição de Jó aos direitos econômicos das mulheres.

Contexto e esboço (Jó)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A autoria de Jó é anônima. Jó não parece ser um israelita, porque se diz que ele era da terra de Uz (Jó 1.1), que a maioria dos estudiosos sugere que ficava a sudeste do antigo Israel. Pelo fato de ser citado no livro de Ezequiel (Ez 14.14,20), parece que é melhor datar sua história como sendo anterior à vida de Ezequiel (século 6 a.C.). Sua história, em todo caso, é atemporal.

O livro contém uma grande variedade de gêneros literários (narrativa, poesia, visões, diálogos e outros) entrelaçados em uma obra-prima literária. O esboço mais comumente aceito identifica dois ciclos de lamento, diálogo e revelação, intercalados entre um prólogo e um epílogo:

Jó 1.1—2.11

Prólogo — A prosperidade de Jó é perdida

Jó 3.1-26

O primeiro lamento de Jó

Jó 4.1—27.23

Diálogo com os três amigos

Jó 28.1-28

Sabedoria revelada

Jó 29.1—31.40

O segundo lamento de Jó

Jó 32.1—37.24

Diálogo com Eliú

Jó 38.1—42.6

Deus revelado

Jó 42.7-17

Epílogo — A prosperidade de Jó é restaurada

Teologia e temas (Jó)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mais conhecido pelos leitores da Bíblia como o homem justo que sofreu injustamente, Jó exemplifica a pessoa que questiona por que as pessoas boas sofrem. A fé que Jó tinha em Deus é posta à extrema prova, e a história sugere que o compromisso de Jó com Deus diminui. Como veremos, os problemas de Jó começam no trabalho, e o livro nos dá perspectivas valiosas sobre como um seguidor de Deus pode agir fielmente nos altos e baixos da vida profissional.

Prólogo (Jó 1—2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No início do livro de Jó, somos apresentados a um fazendeiro excepcionalmente próspero chamado Jó.

A prosperidade de Jó é reconhecida como uma bênção de Deus (Jó 1.1-12)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No início do livro de Jó, somos apresentados a um fazendeiro excepcionalmente próspero chamado Jó. Ele é descrito como “o homem mais rico do oriente” (Jó 1.3). Como os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, sua riqueza era medida por seus muitos milhares de cabeças de gado, seus numerosos servos e sua família numerosa. Seus sete filhos e três filhas (Jó 1.2) são uma alegria pessoal para ele e um importante alicerce de sua riqueza. Nas sociedades agrícolas, os filhos fornecem a parte mais confiável do trabalho necessário em uma casa. Eles são a melhor esperança para uma aposentadoria confortável, o único plano de previdência disponível no Antigo Oriente Próximo, como é ainda hoje em muitas partes do mundo.

Jó considera seu sucesso como resultado da bênção de Deus. Somos informados de que Deus havia “abençoado tudo o que ele faz, de modo que os seus rebanhos estão espalhados por toda a terra” (Jó 1.10). O reconhecimento de Jó de que ele deve tudo à bênção de Deus é destacado por um detalhe incomum. Ele se preocupa que seus filhos possam inadvertidamente ofender a Deus. Embora Jó tenha o cuidado de permanecer “íntegro e justo” (Jó 1.1), ele se preocupa que seus filhos possam não ser tão meticulosos. E se um deles, entorpecido por muita bebida durante seus frequentes dias de festa, viesse a pecar, amaldiçoando a Deus (Jó 1.4)? Portanto, depois de cada festa, para evitar qualquer ofensa a Deus, “Jó mandava chamá-los e fazia com que se purificassem. De madrugada ele oferecia um holocausto em favor de cada um deles” (Jó 1.5).

Deus reconhece a fidelidade de Jó. Ele observa a Satanás (uma palavra hebraica que significa simplesmente “acusador” [1]): “Reparou em meu servo Jó? Não há ninguém na terra como ele, irrepreensível, íntegro, homem que teme a Deus e evita o mal” (Jó 1.8). O acusador vê uma abertura para a malícia e responde: “Será que Jó não tem razões para temer a Deus?” (Jó 1.9). Ou seja, Jó ama a Deus apenas porque Deus o abençoou tão ricamente? O louvor de Jó e suas ofertas queimadas “em favor de cada um” dos filhos são apenas um esquema calculado para manter a prosperidade? Ou, para usar uma imagem moderna, a fidelidade de Jó nada mais é do que uma moeda inserida na máquina de venda automática das bênçãos de Deus?

Poderíamos aplicar essa pergunta a nós mesmos. Nós nos relacionamos com Deus principalmente para que ele nos abençoe com as coisas que queremos? Ou, pior ainda, para que ele não estrague o sucesso que pensamos estar alcançando por conta própria? Nos bons tempos, isso pode não ser um problema evidente. Acreditamos em Deus. Nós o reconhecemos — pelo menos teoricamente — como a fonte de todas as coisas boas. Ao mesmo tempo, trabalhamos diligentemente, de modo que a bondade de Deus e nosso trabalho andam de mãos dadas. Quando os tempos são bons e prosperamos, é natural agradecer a Deus e louvá-lo por isso.

Deus permite que Satanás destrua a prosperidade de Jó (Jó 1.13-22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O problema da dor surge quando os tempos são difíceis. Quando somos preteridos para uma promoção ou perdemos o emprego, quando adquirimos uma doença crônica, quando perdemos pessoas que amamos, o que acontece então? Enfrentamos a pergunta: “Se Deus estava me abençoando durante os bons tempos, agora ele está me castigando?” Essa é uma pergunta extremamente importante. Se Deus está nos castigando, precisamos mudar nossos caminhos para que ele pare. Mas, se nossas dificuldades não são resultado de um castigo de Deus, seria tolice mudar nossos caminhos. Pode até ir contra ao que Deus quer que façamos.

Imagine o caso de uma professora que é demitida durante um corte no orçamento da escola. Ela pensa: “Este é o castigo de Deus, porque eu não me tornei missionária”. Tomando a demissão como um sinal, ela se matricula no seminário e toma dinheiro emprestado para pagar. Três anos depois, ela se forma e começa a tentar buscar apoio para sua missão. Se, de fato, Deus causou a demissão como castigo por ela não se tornar uma missionária, ela agora cessaria a ofensa. As contas estavam acertadas.

Mas e se sua demissão não fosse um castigo de Deus? E se Deus realmente não tiver intenção de que ela se torne uma missionária? Enquanto estiver no seminário, ela pode perder a oportunidade de servir a Deus como professora. Pior ainda, o que acontece se ela não conseguir apoio para seu trabalho como missionária? Ela não terá emprego e ainda poderá ter uma grande dívida por causa dos estudos. Ela se sentirá abandonada por Deus se seu plano de missão não der certo? Ela pode até perder a fé ou se tornar amarga em relação a Deus? Nesse caso, ela não seria a primeira. No entanto, isso tudo teria acontecido porque ela erroneamente presumiu que sua demissão era um sinal do castigo de Deus. A questão de saber se a adversidade é um sinal do desfavor de Deus não é algo fácil.

O acusador — Satanás — espera preparar exatamente essa armadilha para Jó. Satanás diz a Deus que, se ele remover as bênçãos que tão ricamente concedeu a Jó, “com certeza ele te amaldiçoará na tua face” (Jó 1.11; 2.4). Se Satanás conseguir fazer com que Jó acredite que está sendo punido por Deus, Jó pode ser pego em uma das duas armadilhas. Ele pode abandonar seus hábitos justos na suposição errônea de que são ofensivos a Deus. Ou, melhor ainda do ponto de vista do acusador, ele se tornará amargo com Deus por seu castigo imerecido e o abandonará completamente. De qualquer forma, será uma maldição jogada na face de Deus.

Deus permite que Satanás leve seu plano adiante. Não nos é dito o motivo. Em um dia angustiante, quase tudo o que Jó valorizava é roubado e as pessoas que ele ama — incluindo todos os seus filhos — são assassinadas ou mortas em tempestades violentas (Jó 1.13-16). Mas Jó não assume que Deus o está castigando nem fica amargo com o tratamento de Deus. Em vez disso, ele adora a Deus (Jó 1.20). Mesmo em seu pior momento, Jó abençoa a autoridade de Deus sobre todas as circunstâncias da vida, boas ou más. “O Senhor o deu, o Senhor o levou; louvado seja o nome do Senhor” (Jó 1.21).

A atitude perfeitamente equilibrada de Jó é notável. Ele entende corretamente sua prosperidade anterior como uma bênção de Deus. Ele não imagina que algum dia tenha merecido a bênção de Deus, embora reconheça que era justo (algo implícito em Jó 1.1,5 e declarado explicitamente em Jó 6.24-30, entre outros). Por saber que não merecia suas bênçãos anteriores, ele sabe que não merece necessariamente seus sofrimentos atuais. Ele não considera sua condição como uma medida do favor de Deus. Consequentemente, ele não finge saber por que Deus o abençoou com prosperidade em um momento e não em outro.

Jó é uma repreensão ao chamado “evangelho da prosperidade”, que afirma que aqueles que têm um relacionamento correto com Deus são sempre abençoados com prosperidade. Isso simplesmente não é verdade, e Jó é a maior prova disso. No entanto, Jó também é uma repreensão ao “evangelho da pobreza”, que afirma o oposto, que um relacionamento correto com Deus implica uma vida de pobreza. A ideia de que os crentes devem intencionalmente imitar a perda de Jó é exagero demais para aparecer mesmo à margem da discussão em Jó. Deus pode nos chamar a desistir de tudo, se tais circunstâncias forem necessárias, para servi-lo ou segui-lo. Mas o livro de Jó não sugere que Deus deseja inerentemente que alguém viva na pobreza. A prosperidade original de Jó foi uma bênção genuína de Deus, assim como sua extrema pobreza é uma calamidade genuína.

Jó pode permanecer fiel sob a adversidade porque entende a prosperidade com precisão. Por ter experimentado a prosperidade como uma bênção de Deus, ele está preparado para sofrer adversidades sem tirar conclusões precipitadas. Ele sabe o que não sabe, ou seja, por que Deus nos abençoa com prosperidade ou permite que soframos adversidades. E ele sabe o que sabe: que Deus é fiel, mesmo quando Deus permite que experimentemos grande dor e sofrimento. Eis o resultado: “Em tudo isso Jó não pecou e não culpou a Deus de coisa alguma” (Jó 1.22).

Deus permite que Satanás destrua a saúde de Jó (Jó 2.1-11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Jó é capaz de suportar perdas avassaladoras sem comprometer sua “integridade” ou irrepreensibilidade [1] (Jó 2.3). Mas Satanás não desiste. Talvez Jó simplesmente não tenha enfrentado dor e sofrimento suficientes. Satanás agora o acusa de servir a Deus apenas porque ainda tem saúde (Jó 2.4). Portanto, Deus permite que o acusador aflija Jó “com feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça” (Jó 2.7). Isso é especialmente irritante para a esposa de Jó, a ponto de ela lhe perguntar: “Você ainda mantém a sua integridade? Amaldiçoe a Deus, e morra!” (Jó 2.9). Ela aceita que Jó seja irrepreensível aos olhos de Deus, mas, diferentemente dele, não vê sentido em ser irrepreensível se isso não traz as bênçãos de Deus. Jó responde com um dos versículos clássicos das Escrituras: “Aceitaremos o bem dado por Deus, e não o mal?” (Jó 2.10).

Mais uma vez, encontramos Jó atribuindo todas as circunstâncias da vida a Deus. Enquanto isso, Jó não tem conhecimento da atividade celestial que está por trás de sua situação. Ele não pode ver o funcionamento interno do céu, e é apenas a integridade de sua fé que o impede de amaldiçoar a Deus. E nós? Assim como Jó, conseguimos reconhecer que não entendemos os mistérios do céu que moldam nossa prosperidade e nossa adversidade? Nós nos preparamos para a adversidade praticando fidelidade e ação de graças durante os bons tempos? O inabalável hábito de Jó de oração e sacrifício pode ter parecido estranho ou até obsessivo quando o encontramos em Jó 1.5. Mas agora podemos ver que uma vida inteira de práticas fiéis forjou sua capacidade de permanecer fiel em circunstâncias extremas. A fé em Deus pode vir em um instante. A integridade é formada ao longo da vida.

A adversidade de Jó surge em seu ambiente de trabalho, com a perda de seus meios de subsistência. Ela se espalha para sua família e, por fim, ataca sua saúde. Esse padrão nos é familiar. Podemos facilmente nos identificar tanto com nosso trabalho que os contratempos no ambiente de trabalho se espalham para nossa família e nossa vida pessoal. Os problemas no ambiente de trabalho ameaçam nossa identidade e até mesmo nossa integridade. Isso, somado à tensão prática de perder renda e segurança, pode prejudicar gravemente os relacionamentos familiares. Embora raramente causem mortes violentas, o estresse relacionado ao trabalho pode levar à destruição permanente de famílias. Por fim, podemos experimentar problemas de saúde física e mental debilitantes. Podemos não mais conseguir encontrar paz, descanso ou mesmo uma boa noite de sono (Jó 3.26). Em meio a tudo isso, Jó mantém sua integridade. Pode ser tentador traçar uma moral do tipo: “Não se envolva tanto com seu trabalho que os problemas dele afetem sua família ou sua saúde”. Mas isso não faria justiça à profundidade da história de Jó. Os problemas de trabalho afetaram sua família e sua saúde, além de seu trabalho. A sabedoria de Jó não é sobre como minimizar a adversidade mantendo limites sábios, mas sobre como manter a fidelidade mesmo nas piores circunstâncias da vida.

Os amigos de Jó chegam para consolá-lo (Jó 2.11-13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Com Satanás tendo feito o seu pior, Jó realmente precisava de algum apoio. Os três amigos de Jó entram na história e são descritos como homens sensíveis, piedosos e solidários. Eles chegam a sentar-se com Jó por sete dias e sete noites (Jó 2.13). Eles são sábios o suficiente — naquele momento — para não dizer nada. O conforto vem da presença dos amigos na adversidade, não de qualquer coisa que eles possam dizer para melhorar as coisas. Nada que eles viessem a dizer poderia melhorar as coisas.

O primeiro lamento de Jó (Jó 3)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Não resta nada para Jó além de lamentar. Ele se recusa a se incriminar falsamente e se recusa a culpar ou abandonar Deus. Mas ele não hesita em expressar sua angústia nos termos mais fortes. “Pereça o dia do meu nascimento e a noite em que se disse: ‘Nasceu um menino!’” (Jó 3.3). “Por que não morri ao nascer, e não pereci quando saí do ventre?” (Jó 3.11). “Por que não me sepultaram como criança abortada, como um bebê que nunca viu a luz do dia?” (Jó 3.16). “Por que se dá vida àquele cujo caminho é oculto, e a quem Deus fechou as saídas?” (Jó 3.23). Observe que o lamento de Jó é quase inteiramente na forma de perguntas. A causa de seu sofrimento é um mistério. Na verdade, pode ser o maior mistério da fé. Por que Deus permite que as pessoas que ele ama sofram? Jó não sabe a resposta; portanto, a coisa mais honesta que ele pode fazer é externar tais perguntas.

Os amigos de Jó o acusam de fazer o mal (Jó 4—23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Lamentavelmente, os amigos de Jó não são capazes de suportar o mistério de seu sofrimento, então tiram conclusões precipitadas sobre sua origem. O primeiro dos três, Elifaz, reconhece que Jó tem sido uma fonte de força para os outros (Jó 4.3-4). Mas então ele se vira e coloca a culpa pelo sofrimento de Jó diretamente no próprio Jó. “Reflita agora”, diz ele, “Qual foi o inocente que chegou a perecer? Onde os íntegros sofreram destruição? Pelo que tenho observado, quem cultiva o mal e semeia maldade, isso também colherá” (Jó 4.7-8). O segundo amigo de Jó, Bildade, diz a mesma coisa. “Pois o certo é que Deus não rejeita o íntegro, e não fortalece as mãos dos que fazem o mal” (Jó 8.20). O terceiro amigo, Zofar, repete o refrão. “Se afastar das suas mãos o pecado e não permitir que a maldade habite em sua tenda, então você levantará o rosto sem envergonhar-se; será firme e destemido. ... A vida será mais refulgente que o meio-dia” (Jó 11.14-15,17).

O raciocínio deles é um silogismo. Deus envia calamidades apenas sobre pessoas iníquas. Você sofreu uma calamidade. Portanto, você deve ser iníquo. O próprio Jó evita esse falso silogismo. Mas é algo muito comumente aceito pelos cristãos. É chamada de teologia da retribuição divina e pressupõe que Deus abençoa aqueles que são fiéis a ele e castiga aqueles que pecam. Não é algo totalmente sem apoio bíblico. Existem muitos casos em que Deus envia calamidade como punição, como, por exemplo, no caso de Sodoma (Gn 19.1-29). Muitas vezes, nossas experiências confirmam essa posição teológica. Na maioria das situações, as coisas ficam melhores quando seguimos os caminhos de Deus do que quando os abandonamos. No entanto, Deus não trabalha sempre dessa forma. O próprio Jesus salientou que o desastre não é necessariamente um sinal do juízo de Deus (Lc 13.4). No caso de Jó, sabemos que a teologia da retribuição divina não é verdadeira, porque Deus diz que Jó é um homem justo (Jó 1.8, 2.3). O erro devastador dos amigos de Jó é aplicar uma generalização à situação de Jó, sem saber do que estão falando.

Qualquer pessoa que tenha passado um tempo com um amigo em sofrimento sabe como é difícil permanecer presente sem tentar dar respostas. É excruciante sofrer em silêncio com um amigo que deve reconstruir a vida pedaço por pedaço, sem nenhuma certeza sobre o resultado. Nosso instinto é investigar o que deu errado e identificar uma solução. Então imaginamos que podemos ajudar nosso amigo a eliminar a causa e voltar ao normal o mais rápido possível. Conhecendo a causa, saberemos pelo menos como evitar o mesmo destino. Preferimos dar uma razão para o sofrimento — seja ela certa ou errada — em vez de aceitar o mistério em meio ao sofrimento.

Os amigos de Jó sucumbem a essa tentação. Seria tolice imaginar que nunca faríamos o mesmo. Quanto dano os cristãos bem-intencionados causaram ao dar respostas que soam piedosas ao sofrimento, mesmo que não tenhamos ideia do que estamos falando? “É tudo para o melhor.” “Faz parte do plano de Deus.” “Deus nunca envia às pessoas mais adversidade do que elas podem suportar.” Como é arrogante imaginar que conhecemos o plano de Deus. Que tolice pensar que sabemos a razão do sofrimento de outra pessoa. Nem mesmo sabemos a razão de nosso sofrimento. Seria mais verdadeiro — e muito mais útil — admitir: “Não sei por que isso aconteceu com você. Ninguém deveria ter de passar por isso.” Se pudermos fazer isso, e então permanecer presentes, podemos nos tornar agentes da compaixão de Deus.

Os amigos de Jó não podem lamentar com Jó ou mesmo reconhecer que não têm base para julgá-lo. Eles estão determinados (literalmente, dado o papel de Satanás) a defender Deus, colocando a culpa em Jó. À medida que os discursos dos amigos continuam, sua retórica se torna cada vez mais hostil. Confrontados com a escolha autoimposta de culpar Jó ou culpar Deus, eles endurecem o coração contra seu ex-amigo. “Não são infindos os seus pecados?”, diz Elifaz (Jó 22.5), e então inventa algumas iniquidades para acusar Jó. “Você não deu água ao sedento e reteve a comida do faminto” (Jó 22.7). “Você mandou embora de mãos vazias as viúvas e quebrou a força dos órfãos” (Jó 22.9).

O último discurso de Zofar observa que os iníquos não desfrutarão de suas riquezas porque “Deus fará seu estômago lançá-las fora” (Jó 20.15) e que cada um “terá que devolver aquilo pelo que lutou, sem aproveitá-lo, e não desfrutará dos lucros do seu comércio” (Jó 20.18). Esta é uma correção apropriada da transgressão do ímpio, que “tem oprimido os pobres e os tem deixado desamparados; apoderou-se de casas que não construiu” (Jó 20.19). O leitor sabe que isso não se aplica a Jó. Por que Zofar está tão ansioso para culpar Jó? Será que às vezes também não estamos ansiosos demais para seguir os passos de Zofar quando nossos amigos enfrentam fracassos no trabalho e na vida?

O livro de Jó exige que nos olhemos no rosto dos amigos de Jó. Nós também — presumivelmente — sabemos distinguir o certo do errado e temos alguma noção dos caminhos de Deus. Mas não sabemos tudo dos caminhos de Deus, nem como eles se aplicam em todos os tempos e lugares. “Tal conhecimento é maravilhoso demais e está além do meu alcance; é tão elevado que não o posso atingir” (Sl 139.6). Os caminhos de Deus são muitas vezes um mistério além de nossa compreensão. É possível que também sejamos culpados de julgamentos ignorantes contra nossos amigos e colegas de trabalho?

Mas não precisam ser os amigos que nos acusam. Ao contrário de Jó, a maioria de nós está pronta para acusar a si mesmo. Qualquer um que tenha provado o fracasso provavelmente já pensou: “O que eu fiz para merecer isso?” É natural e não totalmente incorreto. Às vezes, por pura preguiça, informações incorretas ou incompetência, tomamos decisões ruins que nos levam a fracassar no trabalho. No entanto, nem todos os fracassos são o resultado direto de nossas próprias falhas. Muitos são o resultado de circunstâncias fora de nosso controle. Os ambientes de trabalho são complexos, com muitos fatores competindo por nossa atenção, muitas situações ambíguas e muitas decisões em que os resultados são impossíveis de prever. Como sabemos se estamos seguindo os caminhos de Deus o tempo todo? Como nós ou qualquer outra pessoa poderíamos saber genuinamente se nossos sucessos e fracassos se devem a nossas próprias ações ou a fatores além de nosso controle? Como alguém de fora poderia julgar a correção de nossas ações sem conhecer os detalhes íntimos de nossas situações? Na verdade, como poderíamos até mesmo julgar a nós mesmos, dar os limites de nosso próprio conhecimento?

Os amigos de Jó o acusam de abandonar a Deus (Jó 8—22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em certo momento, os amigos de Jó deixam de questionar o que Jó fez de errado e passam a questionar se Jó abandonou a Deus (Jó 15.4; 20.5). Ao longo do caminho, os amigos encorajam Jó a voltar para Deus. Bildade instrui Jó a “implorar junto ao Todo-poderoso” (Jó 8.5), para que seu futuro seja “de grande prosperidade” (Jó 8.7) e cheio de “riso” e “brados de alegria” (Jó 8.21). Elifaz o exorta: “Se você voltar para o Todo-poderoso, voltará ao seu lugar” (Jó 22.23). Novamente, em termos gerais, esse é um bom conselho. Frequentemente nos afastamos de Deus e precisamos ser chamados de volta a ele. No entanto, nós, leitores, sabemos que Jó não fez nada para merecer seu sofrimento, e o efeito dos ataques de seus amigos é fazer com que Jó comece a duvidar de si mesmo. Justamente quando ele precisa que seus amigos acreditem nele, eles o impedem de acreditar em si mesmo. Como eles podem apoiá-lo quando já se decidiram quanto a ele?

Jó defende seu caso a Deus (Jó 5—13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em contraste, Jó tem a sabedoria que muitos cristãos não têm. Ele sabe direcionar suas emoções para Deus, e não para si mesmo ou para os que o cercam. Ele acredita que a fonte das bênçãos — e até das adversidades — é Deus, então leva sua reclamação à fonte. “Mas desejo falar ao Todo-poderoso e defender a minha causa diante de Deus. ... Quantos erros e pecados cometi? Mostra-me a minha falta e o meu pecado. Por que escondes o teu rosto e me consideras teu inimigo?” (Jó 13.3,23-24). Ele reconhece que não entende os caminhos de Deus. “Ele realiza maravilhas insondáveis, milagres que não se pode contar” (Jó 5.9). Ele sabe que nunca poderá prevalecer em uma discussão contra Deus. “Ainda que quisesse discutir com ele, não conseguiria argumentar nem uma vez em mil. Sua sabedoria é profunda, seu poder é imenso. Quem tentou resistir-lhe e saiu ileso?” (Jó 9.3-4). Mas ele sabe que sua angústia precisa sair de algum lugar. “Por isso não me calo; na aflição do meu espírito desabafarei, na amargura da minha alma farei as minhas queixas” (Jó 7.11). É melhor direcioná-la a Deus, que pode lidar com isso facilmente, do que contra si mesmo ou contra aqueles que ele ama, que não podem.

Os amigos de Jó tentam proteger Deus (Jó 22—23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Todos nós conhecemos os demônios que nos atormentam após o fracasso. Duvidamos de nós mesmos durante noites sem dormir, em momentos de autotortura. Parece até a coisa sagrada a se fazer — proteger Deus culpando a nós mesmos. Se duvidamos de nós mesmos assim, imagine como duvidamos de nossos amigos, embora raramente tenhamos consciência disso. Os amigos de Jó nos mostram como se faz. Em sua ânsia de proteger Deus dos protestos de Jó, eles aumentam seus ataques a Jó. No entanto, ao longo dos séculos, a leitura cristã de Jó viu os amigos como ferramentas de Satanás, não de Deus. Deus não precisa de proteção. Ele pode cuidar de si mesmo. Satanás gostaria de provar a Deus que Jó serviu a Deus apenas porque este o abençoou tão ricamente. Se Jó admitisse ter feito algo errado, quando na realidade não fez, estaria dando o primeiro passo para validar o ataque do acusador.

Por exemplo, o último discurso de Elifaz se concentra em colocar Deus acima de qualquer suspeita. “Pode alguém ser útil a Deus? Mesmo um sábio, pode ser-lhe de algum proveito?” (Jó 22.2). “Não está Deus nas alturas dos céus?” (Jó 22.12). “Sujeite-se a Deus, fique em paz com ele” (Jó 22.21). “O Todo-poderoso será o seu ouro, será para você prata seleta. É certo que você achará prazer no Todo-poderoso e erguerá o rosto para Deus. A ele orará, e ele o ouvirá, e você cumprirá os seus votos” (Jó 22.25-27).

Jó, no entanto, não está tentando culpar a Deus. Ele está tentando aprender com Deus. Apesar da horrível adversidade que Deus permitiu que afligisse Jó, ele acredita que Deus pode usar a experiência para moldar sua alma para melhor. “Se me puser à prova, aparecerei como o ouro”, diz Jó (Jó 23.10). “Executa o seu decreto contra mim, e tem muitos outros planos semelhantes” (Jó 23.14). Paul Stevens e Alvin Ung apontaram quantos eventos que moldam a alma ocorrem no trabalho. [1] As forças das trevas do mundo caído ameaçam minar nossa alma lá, mas Deus deseja que nossa alma saia como ouro, refinada e moldada à semelhança particular de Deus que ele tem em mente para cada um de nós. Imagine como seria a vida se pudéssemos encontrar crescimento espiritual não apenas quando estamos na igreja, mas em todas as horas que passamos trabalhando. Para isso, precisaríamos de conselheiros espirituais sábios e sensíveis quando enfrentarmos provações no trabalho. Os amigos de Jó, atolados em repetir inconscientemente máximas espirituais convencionais, não o ajudam em nada a esse respeito.

As queixas de Jó assumem um significado especial para o nosso trabalho (Jó 24)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Tal como Jó, nosso sofrimento geralmente começa com dificuldades no trabalho. Mas raramente o povo de Deus está equipado — ou mesmo disposto — a ajudar uns aos outros a lidar com falhas e perdas no ambiente de trabalho. Podemos procurar um pastor ou um amigo cristão em busca de ajuda em um problema familiar ou de saúde, e eles podem ser realmente úteis. Mas, se/quando temos problemas no ambiente de trabalho, pedimos ajuda a eles? Se o fizermos, quanta ajuda provavelmente receberemos?

Por exemplo, imagine que você tenha sido tratado injustamente por sua chefe, talvez apontado como culpado pelo erro dela ou humilhado durante uma discussão legítima. Não seria apropriado revelar seus sentimentos a clientes, fornecedores, alunos, pacientes ou outras pessoas a quem você atende em seu trabalho. Seria prejudicial reclamar com seus colegas de trabalho, até mesmo com seus amigos. Se a comunidade cristã estivesse equipada para ajudá-lo a lidar com a situação, isso poderia ser uma bênção única. Mas nem toda igreja está totalmente equipada para ajudar as pessoas a lidar com dificuldades relacionadas ao trabalho. Seria esta uma área em que as igrejas precisam melhorar?

Vimos que Jó não tem medo de levar suas reclamações a Deus, incluindo reclamações relacionadas ao trabalho. A série de denúncias em Jó 24.1-12,22-25 diz respeito particularmente ao trabalho. Jó reclama que Deus permite que pessoas más escapem da injustiça no trabalho e na atividade econômica. As pessoas se apropriam de recursos públicos para ganho pessoal e roubam a propriedade privada dos outros (Jó 24.2). Exploram os fracos e impotentes para obter lucros enormes para si mesmas (Jó 24.3). Os arrogantes conseguem o que querem no trabalho, enquanto os honestos e humildes são lançados na terra (Jó 24.4). Os mais pobres não têm oportunidade de ganhar a vida e são reduzidos a catar lixo e até roubar dos ricos para alimentar suas famílias (Jó 24.5-8). Outros trabalham arduamente, mas não ganham o suficiente para desfrutar dos frutos de seu trabalho. “Carregam os feixes, mas continuam famintos. Espremem azeitonas dentro dos seus muros; pisam uvas nos lagares, mas assim mesmo sofrem sede” (Jó 24.10-11).

Jó sabe que toda bênção vem de Deus e que toda adversidade é permitida — se não causada — por Deus. Portanto, podemos sentir a dor aguda na queixa de Jó: “Sobem da cidade os gemidos dos que estão para morrer, e as almas dos feridos clamam por socorro. Mas Deus não vê mal nisso” (Jó 24.12). Os amigos de Jó o acusam de abandonar a Deus, mas a evidência parece mostrar que os justos são abandonados por Deus. Enquanto isso, os ímpios parecem levar uma vida encantadora. “Mas Deus, por seu poder, os arranca; embora firmemente estabelecidos, a vida deles não tem segurança. Ele poderá deixá-los descansar, sentindo-se seguros, mas atento os vigia nos caminhos que seguem” (Jó 24.22-23). Jó acredita que os ímpios serão abatidos. “Por um breve instante são exaltados, e depois se vão, colhidos como todos os demais, ceifados como espigas de cereal” (Jó 24.24). Mas por que Deus permite que os ímpios prosperem?

Não há resposta no livro de Jó, e não há resposta conhecida pela humanidade. A adversidade econômica é uma dor muito real que muitos cristãos enfrentam por anos ou mesmo por toda a vida. Talvez tenhamos de abandonar nossa educação quando somos jovens devido a dificuldades financeiras, e isso pode impedir que alcancemos nosso potencial no ambiente de trabalho. Podemos ser explorados por outros ou usados ​​como bodes expiatórios para a ruína de nossas carreiras. Podemos nascer, lutar para sobreviver e morrer sob o domínio de um governo corrupto que mantém seu povo na pobreza e na opressão. Esses são apenas alguns exemplos relacionados ao trabalho. De muitas outras maneiras, podemos sofrer danos graves, dolorosos e injustos que nunca poderemos entender — muito menos remediar — nesta vida. Pela graça de Deus, esperamos nunca nos tornar complacentes diante da injustiça e do sofrimento. No entanto, há momentos em que não podemos consertar as coisas, pelo menos não imediatamente. Nessas situações, temos apenas três opções: inventar uma explicação plausível, mas falsa, sobre como Deus permitiu que isso acontecesse, como fazem os amigos de Jó; abandonar Deus; ou permanecer fiel a Deus mesmo sem receber uma resposta.

Sabedoria revelada (Jó 28)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A escolha de Jó é permanecer fiel a Deus. Ele entende que a sabedoria de Deus está muito além de sua compreensão. Jó 28 emprega a mineração como uma analogia para a busca de sabedoria. Ela revela que a sabedoria “não se encontra na terra dos viventes” (Jó 28.13), mas na mente de Deus. “Deus conhece o caminho para ela e conhece o seu lugar” (Jó 28.23). Este é um lembrete de que conhecimento técnico e habilidade prática não são suficientes para um trabalho verdadeiramente significativo. Também precisamos do espírito de Deus ao realizarmos nossas tarefas. Precisamos da orientação de Deus muito além do reino das coisas que comumente consideramos “espirituais”. Quando um professor tenta discernir como um aluno aprende, quando um líder tenta se comunicar com clareza, quando um júri tenta determinar a intenção de um réu, quando um analista tenta avaliar os riscos de um projeto, todos precisam da sabedoria de Deus. Seja qual for o objetivo de nosso trabalho, “Deus conhece o caminho; só ele sabe onde ela habita” (Jó 28.23).

No entanto, nem sempre podemos entrar em contato com a sabedoria de Deus. “Escondida está dos olhos de toda criatura viva, até das aves dos céus” (Jó 28.21). Apesar de nossas melhores tentativas — ou, às vezes, por causa de nossos esforços medíocres — podemos não encontrar a orientação de Deus para cada ação e decisão. Nesse caso, é melhor reconhecer nossa ignorância do que apostar na especulação ou na falsa sabedoria. Às vezes, a humildade é a melhor maneira de honrar a Deus. “No temor do Senhor está a sabedoria, e evitar o mal é ter entendimento” (Jó 28.28).

O segundo lamento de Jó (Jó 29—42)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como observado na introdução, Jó 29—42 marca um segundo ciclo de lamentação-discurso-revelação que recapitula o primeiro. Por exemplo, em Jó 29, a lembrança de Jó dos bons velhos tempos nos traz de volta à sua cena idílica no capítulo 1. Em Jó 30, a angústia de Jó por ter sofrido rejeição de muitos nos lembra do distanciamento de sua esposa no capítulo 2. O lamento de Jó nos capítulos 30—31 são versões prolongadas de seu lamento no capítulo 3. No entanto, cada fase do segundo ciclo traz uma nova ênfase.

Jó cai em nostalgia e autojustificação (Jó 29—30)

Voltar ao índice Voltar ao índice

As novas ênfases no segundo lamento de Jó (Jó 29—42) são nostalgia e autojustificação. Jó diz: “Como tenho saudade dos meses que se passaram, dos dias em que Deus cuidava de mim” (Jó 29.2) e “quando a amizade de Deus abençoava a minha casa” (Jó 29.4). Ele se lembra de quando “minhas veredas se embebiam em nata e a rocha me despejava torrentes de azeite” (Jó 29.6). Ele se lembra de como era respeitado na comunidade, o que, na linguagem do Antigo Testamento, é retratado de maneira mais dramática por seu “assento na praça”, perto da “porta da cidade” (Jó 29.7). Jó era bem recebido por jovens e idosos (Jó 29.8) e tratado com respeito incomum pelos líderes e nobres (Jó 29.10). Ele era respeitado porque atendia às necessidades dos pobres, órfãos, viúvas, cegos, coxos, necessitados, estrangeiros e moribundos (Jó 29.12-16). Ele era seu defensor contra os ímpios (Jó 29.17).

A nostalgia de Jó aprofunda seu sentimento de perda quando ele percebe que muito do respeito que recebia no trabalho e na vida civil era superficial. “Agora que Deus afrouxou a corda do meu arco e me afligiu, eles ficam sem freios na minha presença” (Jó 30.11). “E agora os filhos deles zombam de mim com suas canções” (Jó 30.9). Algumas pessoas experimentam uma sensação semelhante de perda devido à aposentadoria, revés na carreira, perda financeira ou qualquer tipo de falha percebida. Podemos questionar nossa identidade e duvidar de nosso valor. Outras pessoas nos tratam de maneira diferente quando falhamos ou, pior ainda, simplesmente ficam longe de nós. (Pelo menos, os amigos de Jó foram vê-lo.) Ex-amigos agem com cautela quando precisam estar ao nosso redor, falam em voz baixa, como se esperassem que ninguém os visse perto de nós. Talvez eles pensem que o fracasso é uma doença contagiosa, ou talvez ser visto perto de um fracasso também os rotule como fracassados. “Eles me detestam e se mantêm à distância”, lamenta Jó (Jó 30.10).

Isso não quer dizer que todas as amizades sociais e no ambiente de trabalho sejam superficiais. É verdade que algumas pessoas fazem amizade conosco apenas porque somos úteis a elas, e então nos abandonam quando deixamos de ser úteis. O que realmente dói é a perda do que pareciam ser amizades genuínas.

Em contraste com seu primeiro lamento (Jó 3), Jó apresenta uma grande parte de autojustificação nesta rodada. “A justiça era o meu manto e o meu turbante” (Jó 29.14). “Eu era o pai dos necessitados” (Jó 29.16). Jó alardeia sua pureza sexual impecável (Jó 31.1,9-10). Sempre soubemos que Jó não estava sendo castigado por nenhuma falta. Ele pode ser preciso em sua autoavaliação, mas a autojustificação não é necessária nem agradável. A adversidade nem sempre traz o melhor de nós. No entanto, Deus permanece fiel, embora Jó não seja capaz de ver isso no momento, “pois”, como ele diz mais tarde, “eu tinha medo que Deus me destruísse” (Jó 31.23).

As práticas éticas de Jó se aplicam ao ambiente de trabalho (Jó 31)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No meio do segundo lamento de Jó (Jó 29—42), ele revela um tratado significativo sobre comportamento ético, que de certa forma antecipa o “Sermão do Monte” de Jesus (Mt 5—7). Mesmo querendo justificar suas próprias práticas, Jó fornece alguns princípios que se aplicam a muitas áreas de nossa vida profissional:

  1. Evite a falsidade e o engano (Jó 31.5)

  2. Não permita que os fins justifiquem os meios, ou seja, não permita que o coração (princípios) seja enganado pelos olhos (oportunismo) (Jó 31.7)

  3. Pratique a generosidade (Jó 31.16-23)

  4. Não se torne complacente em tempos de prosperidade (Jó 31.24-28)

  5. Não faça seu sucesso depender do fracasso dos outros (Jó 31.29)

  6. Admita seus erros (Jó 31.33)

  7. Não tente obter algo por nada, mas pague adequadamente pelos recursos que consumir (Jó 31.38-40)

De particular interesse é esta passagem sobre como ele trata seus funcionários:

Se neguei justiça aos meus servos e servas, quando reclamaram contra mim, que farei quando Deus me confrontar? Que responderei quando chamado a prestar contas? Aquele que me fez no ventre materno não os fez também? Não foi ele que nos formou, a mim e a eles, no interior de nossas mães? (Jó 31.13-15).

Um empregador piedoso tratará os funcionários com respeito e dignidade. Isso é particularmente evidente na maneira como Jó leva a sério as queixas de seus servos, especialmente aquelas que eram direcionadas ao modo como ele os tratava. Jó aponta corretamente que aqueles que estão no poder terão de se apresentar diante de Deus para defender o tratamento que dispensam aos que estão sob eles. “Que farei quando Deus me confrontar? Que responderei quando chamado a prestar contas?” (Jó 31.14). Deus perguntará aos subordinados como seus superiores os trataram. Os superiores seriam sábios em fazer a mesma pergunta a seus subordinados, enquanto ainda é possível remediar seus erros. A marca dos verdadeiros e humildes seguidores de Deus é sua abertura à possibilidade de estarem errados, o que é mais evidenciado por sua disposição de responder a todas e quaisquer queixas legítimas. A sabedoria é necessária para discernir quais queixas realmente merecem atenção. No entanto, o objetivo principal é cultivar um ambiente no qual os subordinados saibam que os superiores acolherão apelos ponderados e racionais. Embora Jó esteja falando sobre si mesmo e seus servos, seu princípio se aplica a qualquer situação de autoridade: oficiais e soldados, empregadores e funcionários, pais e filhos (criar filhos também é uma ocupação), líderes e seguidores.

Nosso tempo tem visto grandes lutas por igualdade no ambiente de trabalho com relação a raça, religião, nacionalidade, sexo, classe e outros fatores. O livro de Jó antecipa essas lutas em milhares de anos. No entanto, Jó vai além da mera igualdade formal das categorias demográficas. Ele vê a dignidade igual de todas as pessoas em sua casa. Seremos como Jó quando tratarmos cada pessoa com toda a dignidade e o respeito devidos a um filho de Deus, independentemente de nossos sentimentos pessoais ou do sacrifício exigido de nossa parte.

É claro que essa verdade não impede que os chefes cristãos estabeleçam e exijam altos padrões no ambiente de trabalho. No entanto, exige que a ética de qualquer relacionamento no ambiente de trabalho seja caracterizado por respeito e dignidade, especialmente por parte dos poderosos.

Diálogo com Eliú (Jó 32—37)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Nesse ponto, um jovem espectador chamado Eliú entra na discussão. Seu diálogo com Jó é paralelo ao discurso entre Jó e seus amigos nos capítulos 4—27. De acordo com Eliú, o novo elemento é que ele é inspirado a falar a sabedoria que faltava aos amigos de Jó. “Quem está com você é a perfeição no conhecimento”, ele anuncia (Jó 36.4). Eliú então denuncia os amigos por sua incapacidade de derrotar Jó (Jó 32.8,18). Por causa de seu orgulho — e lembrando que, quanto mais confiantes os amigos de Jó falavam contra ele, mais imprecisas se tornavam suas acusações —, não devemos esperar muita sabedoria de Eliú. Na maioria das vezes, ele simplesmente reitera os argumentos apresentados anteriormente. Seu plano é o mesmo dos amigos, que é primeiro convencer Jó de que ele fez algo para merecer essa punição, depois encorajar Jó a se arrepender a fim de receber bênçãos restauradas de Deus (Jó 36.10-11). Ele introduz um novo princípio relacionado ao trabalho, mostrando que é errado aceitar suborno (Jó 36.18). É uma declaração verdadeira, discutida mais profundamente em outras partes das Escrituras, mas erroneamente aplicada como uma falsa acusação contra Jó.

Deus aparece (Jó 38.1—42.9)

Voltar ao índice Voltar ao índice

No primeiro ciclo do livro, os discursos dos amigos de Jó foram interrompidos pela revelação da sabedoria de Deus. O novo elemento no segundo ciclo é que o discurso de Eliú é interrompido pela dramática aparição do próprio Deus (Jó 38.1). Por fim, Deus cumpre o desejo de Jó de um encontro face a face. O leitor estava esperando para ver se Jó finalmente se deixaria levar e amaldiçoaria Deus na própria cara. Em vez disso, Jó se mantém firme, mas recebe uma instrução adicional sobre como a sabedoria de Deus está além do conhecimento humano.

Quem pode compreender a sabedoria de Deus? (Jó 38.4—42.6)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A primeira pergunta de Deus a Jó dá o tom de sua conversa, em sua maioria de mão única: “Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Responda-me, se é que você sabe tanto” (Jó 38.4). Empregando uma das mais espetaculares linguagens sobre a criação na Bíblia, Deus revela sua autoria exclusiva das maravilhas da criação. Isso ressoa fortemente no trabalho. Nosso trabalho reflete nossa criação à imagem de Deus, o grande Criador (Gn 1—2). Mas aqui Deus discorre sobre um trabalho que somente ele é capaz de fazer. “E os seus fundamentos, sobre o que foram postos? E quem colocou sua pedra de esquina, enquanto as estrelas matutinas juntas cantavam e todos os anjos se regozijavam?” (Jó 38.6-7). “Quem represou o mar pondo-lhe portas, quando ele irrompeu do ventre materno” (Jó 38.8). “É graças à inteligência que você tem que o falcão alça voo e estende as asas rumo ao sul? É por sua ordem, que a águia se eleva e no alto constrói o seu ninho?” (Jó 39.26-27).

Curiosamente, embutida em meio à autoridade de Deus sobre o mundo natural, há uma visão profunda da condição humana. Deus pergunta a Jó: “Quem foi que deu sabedoria ao coração e entendimento à mente?” (Jó 38.36). A resposta, claro, aponta para Deus. Ao mesmo tempo, isso afirma nossa busca por compreensão e demonstra seus limites. A sabedoria que Deus põe em nosso interior torna possível ansiarmos por uma resposta para o mistério do sofrimento. No entanto, nossa sabedoria vem apenas de Deus; portanto, não podemos ser mais espertos do que Deus com nossa própria sabedoria. Na verdade, ele implantou em nós apenas uma pequena fração de sua sabedoria, de modo que nunca teremos a capacidade de compreender todos os seus caminhos. Como vimos, pode ser bom para nossa alma expressar nossas queixas contra Deus. Mas seria tolice esperar que ele respondesse: “Sim, agora posso ver que eu estava errado”.

Buscando ainda mais esse encontro desigual, Deus lança um desafio impossível a Jó: “Aquele que contende com o Todo-poderoso poderá repreendê-lo? Que responda a Deus aquele que o acusa!” (Jó 40.2). Como Jó anteriormente já havia reconhecido que “não sei” costuma ser a resposta mais sábia, sua humilde resposta não é surpreendente. “Sou indigno; como posso responder-te? Ponho a mão sobre a minha boca” (Jó 40.4).

A maioria dos comentaristas sugere que Deus está dando a Jó uma visão mais ampla de suas circunstâncias. Assim como alguém que fica muito perto de uma pintura e não consegue apreciar a perspectiva do artista, Jó precisa dar alguns passos para trás para poder vislumbrar com mais clareza — se não entender completamente — os propósitos maiores de Deus.

Deus continua com um ataque frontal contra aqueles que o acusam de transgressão na administração de sua criação. Deus repudia as tentativas de Jó de se justificar. “Você vai pôr em dúvida a minha justiça? Vai condenar-me para justificar-se?” (Jó 40.8) A tentativa de Jó de transferir a culpa remonta à resposta de Adão, quando Deus perguntou se ele comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal. “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3.12).

Levar nossas queixas a Deus é algo bom se tomarmos os livros de Jó, Salmos e Habacuque como modelos inspirados de como nos aproximarmos de Deus em tempos de angústia. No entanto, acusar Deus para encobrir nossas próprias falhas é o cúmulo da arrogância (Jó 40.11-12). Deus repudia Jó por fazer isso. No entanto, mesmo assim, Deus não condena Jó por expressar sua queixa contra Deus. A acusação de Jó contra Deus é errada além da razão, mas não além do perdão.

Jó consegue a audiência com Deus que ele estava pedindo. Isso não responde à sua pergunta se ele merecia o sofrimento que experimentou. Jó percebe que a culpa é dele, por esperar saber a resposta, e não de Deus, por não providenciá-la. “Certo é que falei de coisas que eu não entendia, coisas tão maravilhosas que eu não poderia saber” (Jó 42.3). Talvez seja apenas porque ele está tão impressionado com a presença de Deus que não precisa mais de uma resposta.

Se estivermos procurando uma razão para o sofrimento de Jó, também não a encontraremos. Por um lado, a provação de Jó deu a ele uma apreciação ainda maior pela bondade de Deus. “Sei que podes fazer todas as coisas; nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42.2). O relacionamento de Jó com Deus parece ter se aprofundado e, como resultado, ele se tornou mais sábio. Mais do que nunca, ele reconhece que sua prosperidade anterior não se devia à sua própria força e poder. Mas a diferença é apenas uma questão de grau. A melhoria incremental valeu a perda indescritível? Não recebemos uma resposta para essa pergunta de Jó ou de Deus.

Deus denuncia os amigos de Jó (Jó 42.7-9)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus denuncia os três amigos, cuja arrogante proclamação de falsa sabedoria tanto atormentou Jó. Em uma reviravolta satisfatória e irônica, ele declara que, se Jó interceder em nome deles, ele não os punirá por seus discursos ignorantes em lugar de Deus (Jó 42.7-8). Eles, que erroneamente exortaram Jó a se arrepender, agora dependiam de Jó para aceitar o arrependimento deles, bem como de Deus para cumprir a súplica de Jó em favor deles. O ato de Jó orar em nome deles nos lembra do primeiro capítulo, em que Jó ora pela proteção de seus filhos. Jó é um homem de oração, em todo e qualquer momento.

Como parte de nossa recuperação do fracasso, faríamos bem em orar por aqueles que nos atormentaram ou duvidaram de nós durante nossa dor. Mais tarde, Jesus nos chamou para orar por nossos inimigos (Mt 5.44, Lc 6.27-36), e esse ensino é visto em ambos os contextos como mais do que simplesmente terapêutico. Se pudermos orar por aqueles que nos perseguiram, podemos transcender as circunstâncias passageiras da vida e começar a apreciar a situação da perspectiva de Deus.

Epílogo — A prosperidade de Jó foi restaurada (Jó 42.7-17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A seção que encerra Jó contém um final digno de livros de histórias, no qual muitas das fortunas de Jó são restauradas. Muitas, mas não todas. Ele recebe o dobro da riqueza que tinha antes (Jó 42.10), além de uma nova geração de sete filhos e três filhas (Jó 42.13). Mas seus primeiros filhos se foram para sempre, o que é algo ruim em qualquer hipótese. Assim, embora leiamos que o final da vida de Jó foi mais abençoado do que seu começo (Jó 42.12), sabemos que ainda deve haver um gosto agridoce em sua boca. Após a ressurreição do Filho de Deus, sabemos aquilo que Jó não poderia saber, a saber, que a redenção final de Deus vem somente quando Cristo voltar para estabelecer seu Reino.

Jó deixa uma herança para suas filhas (Jó 42.13-15)

Jó faz algo impressionante após sua provação. Ele deixa uma herança para suas filhas, junto com seus filhos (Jó 42.15). Deixar uma herança para as filhas era algo inédito no Antigo Oriente Próximo, assim como era ilegal em grande parte da Europa até os tempos modernos. O que poderia ter levado Jó a dar esse passo sem precedentes? Sua tristeza por não poder fazer nada por suas filhas falecidas lhe deu a determinação de fazer tudo o que pudesse por suas filhas vivas? Sua dor foi o motor que o levou a superar as barreiras sociais contra a igualdade das mulheres nesse sentido? Seu sofrimento abriu seu coração para o sofrimento dos outros? Ou suas exigências abusivas de conhecer a justiça de Deus foram respondidas por uma compreensão mais elevada do amor de Deus por mulheres e homens? Não podemos saber a causa, mas podemos ver os resultados. Se nada mais nesta vida, o resultado de nosso sofrimento pode ser a libertação dos outros.

O livro chega ao fim (Jó 42.7-17)

E, assim, finalizamos o livro de Jó com observações e perguntas, em vez de conclusões claras. Jó se mostra fiel a Deus na prosperidade e na adversidade. Isso certamente é um modelo para nós. Mas os julgamentos odiosos feitos por seus amigos nos alertam contra a aplicação muito certa de qualquer modelo à nossa própria vida.

Deus se mostra fiel a Jó. Essa é a nossa esperança e conforto supremos. Mas não podemos prever como sua fidelidade se manifestará em nossa vida até que suas promessas sejam cumpridas no novo céu e nova terra. Seria tolice julgar os outros, ou mesmo a nós mesmos, com base nas evidências fracionárias disponíveis para nós, na sabedoria insignificante que somos capazes de compreender e nas perspectivas minúsculas que mantemos. Para as perguntas mais difíceis sobre as circunstâncias de nossa vida, a resposta mais sábia muitas vezes pode ser: “Não sei”.

Versículos e temas-chave em Jó

Voltar ao índice Voltar ao índice

Versículo

Tema

Jó 1.9-10 “Será que Jó não tem razões para temer a Deus?”, respondeu Satanás. “Acaso não puseste uma cerca em volta dele, da família dele e de tudo o que ele possui? Tu mesmo tens abençoado tudo o que ele faz, de modo que os seus rebanhos estão espalhados por toda a terra”.

Se a lealdade a Deus depende da prosperidade que ele nos dá, nossa fé será, na melhor das hipóteses, superficial e, na pior, questionável.

Jó 1.20-21 Ao ouvir isso, Jó levantou-se, rasgou o manto e rapou a cabeça. Então prostrou-se, rosto em terra, em adoração, e disse: “Saí nu do ventre da minha mãe, e nu partirei. O Senhor o deu, o Senhor o levou; louvado seja o nome do Senhor”.

A resposta mais apropriada às falhas em nossa vida profissional é reconhecer a autoridade de Deus sobre todas as áreas da vida, sejam elas boas ou más.

Jó 28.28 No temor do Senhor está a sabedoria, e evitar o mal é ter entendimento.

Todo sucesso significativo na economia de Deus deve começar com um temor saudável ao Senhor.

Jó 31.13-15 “Se neguei justiça aos meus servos e servas, quando reclamaram contra mim, que farei quando Deus me confrontar? Que responderei quando chamado a prestar contas? Aquele que me fez no ventre materno não os fez também? Não foi ele que nos formou, a mim e a eles, no interior de nossas mães?”

Tratar nossos funcionários como iguais — uma vez que eles também foram criados à imagem de Deus — necessariamente produz respeito e dignidade no relacionamento.

Jó 38.36 Quem foi que deu sabedoria ao coração e entendimento à mente?

Deus é o criador e sustentador de todas as nossas habilidades. A falha em reconhecer o papel de Deus no sucesso de nossa carreira reduz nossa perspectiva e nos prepara para lutas espirituais.

Introdução aos Salmos

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Salmos pode ser visto, em partes, como hinário, livro de orações, literatura sapiencial e antologia de poemas sobre Israel e Deus. Sua gama de assunto é surpreendentemente ampla. Por um lado, proclama louvor pelo Deus Altíssimo e lhe dirige orações (Sl 50.14-15) e, por outro, abrange experiências humanas tão íntimas quanto lamentar a perda de uma mãe (Sl 35.14). O livro dos Salmos é distinto no Antigo Testamento, pois a maior parte consiste em pessoas falando com Deus. Em outros lugares, o Antigo Testamento retrata principalmente Deus falando com as pessoas (como na Lei e nos Profetas), ou então é uma narrativa.

Embora tenham milhares de anos, praticamente todos os salmos, de uma forma ou de outra, refletem nossas próprias lutas e alegrias de hoje. Seja qual for o assunto de um salmo em particular, cada um dá voz às emoções que sentimos ao lidar com os problemas da vida. Alguns salmos capturam nosso deleite em Deus, à medida que experimentamos a presença divina conosco em uma situação difícil que teve um bom final. Outros expressam emoções cruas de raiva ou tristeza em uma luta para entender por que Deus não agiu como esperávamos que agisse, enquanto os ímpios continuam triunfando (Sl 94.3). Em alguns, Deus fala. Em outros, Deus está em silêncio. Alguns encontram uma solução, enquanto outros nos deixam com perguntas sem resposta.

Os salmos não foram todos escritos por uma só pessoa e nem ao mesmo tempo, como indica a variedade de atribuições em seus títulos descritivos. De fato, o estudo da autoria do livro dos Salmos — bem como suas datas de composição, contextos, propósitos, usos e transmissão — é um campo importante nos estudos bíblicos. As ferramentas da crítica da forma e da análise literária comparativa (especialmente comparações com a literatura ugarítica) têm grande presença nos estudos de Salmos. [1] Não tentaremos nos aprofundar nesses estudos em geral, mas contaremos com essas pesquisas, conforme necessário, para nos ajudar a entender e aplicar os salmos ao trabalho.

O trabalho nos salmos

Ao longo dos 150 salmos, o trabalho aparece com regularidade. Às vezes, o interesse dos salmos pelo trabalho está na ética individual, incluindo integridade e obediência a Deus em nosso trabalho, maneiras de lidar com oponentes e a ansiedade sobre o aparente sucesso de pessoas antiéticas. Outros salmos se interessam pela ética das organizações — sejam elas tão pequenas quanto uma família, ou tão grandes quanto uma nação. Há alguns temas modernos aos quais esses salmos se aplicam, como ética nos negócios, maneiras de lidar com a pressão institucional, globalização e as consequências de falhas no ambiente de trabalho e transgressões nacionais. Outro tema importante relacionado ao trabalho em Salmos é a presença de Deus conosco em nosso trabalho. Aqui encontramos tópicos como a orientação de Deus, a criatividade humana fundamentada em Deus (que sustenta toda a produtividade), a importância de fazer um trabalho verdadeiramente valioso e a graça de Deus em nosso trabalho. Os salmos têm um interesse particular no trabalho envolvido no casamento, na criação dos filhos e no cuidado dos pais. Por trás de todos os tópicos específicos está a proclamação dos Salmos sobre a glória de Deus em toda a criação. A grande variedade de temas relacionados ao trabalho em Salmos não é surpresa.

Os cinco livros de Salmos

A característica estrutural mais óbvia do Saltério é sua divisão em cinco livros: Livro 1 (Sl 1—41), Livro 2 (Sl 42—72), Livro 3 (Sl 73—89), Livro 4 (Sl 90—106) e Livro 5 (Sl 107—150). As razões e a história dessa divisão não são totalmente conhecidas. O Livro 1 concentra-se fortemente nas experiências de Davi, e o Livro 2 fala de Davi e do seu reino. O Livro 3 é mais sombrio, com muitas lamentações e reclamações. O livro termina no Salmo 89 com a aliança davídica em frangalhos e a nação em ruínas. O Livro 4 fala sobriamente da mortalidade humana (Sl 90), mas também fala triunfantemente de Deus como o grande rei que governa tudo (Sl 93; 95—99). O Livro 5 é mais variado, mas termina em celebração, pois as nações e toda a criação adoram o Deus de Israel (veja Sl 148).

Assim, vemos um movimento geral que vai do homem Davi para o reino de Davi, então mostra a proximidade do fim da dinastia de Davi, seguido pelo louvor do próprio Deus como rei da terra e, finalmente, o triunfo do reino de Deus. Isso dá uma direção narrativa ao Saltério como um todo. Mas muitos salmos da coleção não se encaixam nesse arranjo. Até certo ponto, o motivo da ordem atual dos salmos permanece um mistério. Se existe uma estrutura única e grandiosa, ou não a entendemos completamente ou ela não é seguida rigidamente.

Estratégias interpretativas para os Salmos

A natureza singular dos salmos pode tornar difícil entendê-los em seu contexto original, assim como sua aplicação à vida e ao trabalho de hoje. Salmos é uma coleção altamente diversificada, por isso fica difícil qualquer generalização. Devemos estudar os salmos como fonte de instrução? Lê-los como relatos históricos? Orar ou cantá-los individualmente ou com outras pessoas? A própria Bíblia não nos dá a resposta a essas perguntas. Antes de nos aprofundarmos na aplicação dos salmos ao trabalho, precisamos desenvolver estratégias interpretativas que nos ajudem a tirar o máximo proveito dos salmos.

Nossa abordagem aqui será explorar uma seleção de salmos escolhidos porque parecem dizer algo significativo sobre o trabalho ou algo significativo sobre a vida que se aplica significativamente ao trabalho. Na prática, isso geralmente quer dizer que os salmos foram selecionados porque os colaboradores, o comitê diretor ou os revisores do Projeto Teologia do Trabalho os consideraram particularmente significativos em seu próprio estudo ou experiência. Esse é um método de seleção reconhecidamente não sistemático. O comentário resultante não pretende ser exaustivo, nem mesmo necessariamente certo. Em vez disso, pretende ser uma série de exemplos de como grupos ou indivíduos cristãos podem empregar fielmente os salmos, à medida que buscam integrar sua fé e seu trabalho.

Livro 1 (Salmos 1—41)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro 1 consiste em grande parte de salmos falados por Davi individualmente, e não por Israel como nação. Eles abordam assuntos que dizem respeito a Davi pessoalmente, e isso os torna aplicáveis ​​às situações que enfrentamos no trabalho por conta própria. Livros posteriores destacam os aspectos sociais e comunitários da vida e do trabalho.

Integridade pessoal no trabalho (Salmos 1)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os dois salmos iniciais estabelecem temas que percorrem todo o saltério. O salmo 1 descreve a integridade pessoal, indicando que é assim que todo leitor deve viver. Aplica isso especificamente ao trabalho e ao nosso desejo de sucesso. Ele diz que o justo “é como árvore plantada à beira de águas correntes: Dá fruto no tempo certo e suas folhas não murcham. Tudo o que ele faz prospera!” (Sl 1.3). O trabalho feito de maneira ética tende a prosperar. Essa é uma verdade geral e não uma regra infalível. Às vezes, as pessoas sofrem por agirem eticamente, no trabalho ou em qualquer outro lugar. Mas ainda é verdade que as pessoas que temem a Deus e são íntegras provavelmente se sairão bem. Isso ocorre porque eles vivem com sabedoria e porque a bênção de Deus está sobre eles.

Obediência a Deus (Salmos 2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo 2 centra-se na casa de Davi. Deus escolheu este reino e seu templo, Sião, para serem o foco do reino de Deus. Algum dia, os gentios se submeterão a ele ou enfrentarão a ira de Deus. Assim, Salmos 2.11-12 diz: “Adorem o Senhor com temor; exultem com tremor. Beijem o filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de repente, pois num instante acende-se a sua ira. Como são felizes todos os que nele se refugiam!”. Jesus cumpriu as promessas feitas a Davi. Para nós, a lição é que devemos valorizar o Reino de Cristo acima de todas as coisas. Uma boa ética de trabalho é valiosa, mas não podemos fazer da prosperidade nossa prioridade. Não podemos servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6.24).

Trazendo nossos inimigos e oponentes a Deus (Salmos 4; 6; 7; 17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Depois dos salmos 1 e 2, o Livro 1 tem muitos salmos nos quais Davi reclama com Deus sobre seus inimigos. Esses salmos podem ser difíceis para os leitores de hoje, visto que Davi às vezes parece vingativo. Mas não devemos ignorar o fato de que, quando os inimigos estão ao seu redor, ele entrega o problema a Deus. Ele não procura resolver o assunto com suas próprias mãos.

Esses salmos têm aplicação no ambiente de trabalho. Frequentemente, conflitos e rivalidades aparecerão entre as pessoas no trabalho e, às vezes, essas brigas podem ser cruéis. Disputas no trabalho podem levar à depressão e à perda de sono. Salmos 4.8 é uma oração sobre inimigos pessoais, e diz: “Quando vocês ficarem irados, não pequem; ao deitar-se reflitam nisso, e aquietem-se”. Quando entregamos um assunto a Deus, podemos ter tranquilidade. Quando estamos no meio de uma batalha como essa, no entanto, nossas orações por ajuda podem parecer fúteis. Mas Deus ouve e responde: “Afastem-se de mim todos vocês que praticam o mal, porque o Senhor ouviu o meu choro” (Sl 6.8). Por outro lado, devemos ter o cuidado de manter nossa integridade em meio a tais conflitos. De nada adianta clamarmos a Deus se estivermos sendo mesquinhos, desonestos ou antiéticos no trabalho. “Senhor, meu Deus, se assim procedi, se nas minhas mãos há injustiça, se fiz algum mal a um amigo ou se poupei sem motivo o meu adversário, persiga-me o meu inimigo até me alcançar, no chão me pisoteie e aniquile a minha vida, lançando a minha honra no pó” (Sl 7.3-5). Salmos 17.3 faz o mesmo.

Autoridade (Salmos 8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo 8 é uma exceção no Livro 1, pois não se refere especificamente a Davi. Sua preocupação é com toda autoridade humana, não apenas o governo de Davi. Embora Deus tenha criado todo o universo (Sl 8.1-3), ele escolheu designar seres humanos para governar a criação (Sl 8.5-8). Este é um chamado elevado. “Tu o fizeste um pouco menor do que os seres celestiais e o coroaste de glória e de honra. Tu o fizeste dominar sobre as obras das tuas mãos; sob os seus pés tudo puseste” (Sl 8.5-6). Quando exercemos autoridade e liderança, fazemos isso como representantes de Deus. Nosso governo não pode ser arbitrário ou egoísta, mas deve servir aos propósitos de Deus. O principal deles é cuidar das criaturas da terra (Sl 8.7-8) e proteger os fracos e vulneráveis, especialmente as crianças (Sl 8.2).

Se conquistamos autoridade no trabalho, é tentador encarar nossa posição como uma recompensa por nosso trabalho árduo ou nossa inteligência e explorar nossa autoridade para ganho pessoal. Mas o salmo 8 nos lembra que a autoridade não vem como uma recompensa, mas como uma obrigação. É certo que devemos prestar contas aos superiores, aos conselhos de administração, aos curadores, aos eleitores ou a quaisquer outras formas terrenas de governança sob as quais servimos, mas isso por si só não é suficiente. Também devemos prestar contas a Deus. Os líderes políticos, por exemplo, têm o dever de prestar atenção à melhor ciência ambiental e econômica disponível ao considerar a política energética, esteja ela de acordo ou não com os ventos políticos atuais. Da mesma forma, os líderes empresariais são chamados a prever e evitar possíveis danos às crianças — sejam eles físicos, mentais, culturais ou espirituais — causados ​​por seus produtos e serviços. Isso se aplica não apenas a brinquedos, filmes, televisão e alimentos, mas também a varejo, transporte, telecomunicações e serviços financeiros, entre outros.

Ética nos negócios (Salmos 15; 24; 34)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Saltério diz muito sobre ética no ambiente de trabalho. Em Salmos 15.1,5 lemos: “Senhor, quem habitará no teu santuário? Quem poderá morar no teu santo monte? [... Aquele] que não empresta o seu dinheiro visando lucro nem aceita suborno contra o inocente. Quem assim procede nunca será abalado!”. Se admitirmos que os juros não são necessariamente proibidos no contexto contemporâneo (veja “A Bíblia proíbe a cobrança de juros?” em www.teologiadotrabalho.org), a aplicação desse salmo é que não devemos tirar vantagem dos outros no ambiente de trabalho. Empréstimos que aumentam as dívidas dos mutuários em dificuldades seriam um exemplo, assim como os cartões de crédito que intencionalmente aprisionam titulares inexperientes com taxas inesperadas e aumentos nas taxas de juros. Em um sentido mais amplo, qualquer produto ou serviço que tenha como alvo pessoas vulneráveis ​​(ou “inocentes”) e as deixe em situação pior é uma violação da ética do Saltério. A boa ética nos negócios — e suas contrapartes em outros campos de trabalho — exige que os clientes se beneficiem genuinamente dos bens e serviços oferecidos a eles.

Salmos 24.4-5 acrescenta a isso que Deus aceita “aquele que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por deuses falsos. Ele receberá bênçãos do Senhor, e Deus, o seu Salvador lhe fará justiça”. A falsidade descrita aqui é perjúrio. Como no mundo moderno, também no mundo antigo era difícil se envolver em negócios sem, às vezes, ser envolvido em ações judiciais. A passagem nos leva a testemunhar honestamente e a não perverter a justiça por meio de fraude. Quando outros são inescrupulosos, nossa honestidade pode custar em promoções perdidas, transações comerciais, eleições, notas e publicações. Mas, a longo prazo, tais contratempos são triviais em comparação com a bênção e a justiça recebidas de Deus (Sl 24.5).

A ética também vem à tona em Salmos 34.12-13: “Quem de vocês quer amar a vida e deseja ver dias felizes? Guarde a sua língua do mal e os seus lábios da falsidade”. Isso pode se referir a qualquer tipo de engano, calúnia ou fraude. A referência a “dias felizes” simplesmente aponta que, se você enganar as pessoas ou caluniá-las, provavelmente criará inimigos. Em casos extremos, isso pode levar à sua morte nas mãos deles, mas, mesmo que não seja, a vida cercada por inimigos não é agradável. Se a vida é seu principal desejo, amigos confiáveis ​​são muito mais lucrativos do que ganhos ilícitos. É possível que uma vida de integridade seja onerosa em termos mundanos. Em um país corrupto, um empresário que não dá subornos ou um funcionário público que não os aceita podem ser incapazes de obter uma renda estável. “O justo passa por muitas adversidades”, reconhece o salmo, “mas o Senhor o livra de todas”, acrescenta (Sl 34.19). Trabalhar com integridade pode ou não resultar em prosperidade, mas a integridade aos olhos de Deus é sua própria recompensa.

Confiando em Deus diante da pressão institucional (Salmos 20)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo 20 nos ensina a confiar em Deus em vez de confiar no poder humano, como o poderio militar. “Alguns confiam em carros e outros em cavalos, mas nós confiamos no nome do Senhor, o nosso Deus” (Sl 20.7). Os ativos financeiros, tanto quanto os militares, podem ser a base para uma falsa confiança no poder humano. A propósito, devemos lembrar que, no mundo antigo, apenas os soldados da classe alta tinham cavalos e carros. Os soldados comuns seriam recrutados entre os camponeses e estariam a pé. É uma realidade perturbadora que a riqueza e o poder, mesmo que modestos, muitas vezes nos afastam de Deus.

A presença de Deus em nossas lutas no trabalho (Salmos 23)

Voltar ao índice Voltar ao índice

“O Senhor é o meu pastor” (Sl 23.1). Se confiarmos em Deus, teremos a tranquilidade de saber que Deus cuida de nós, como um pastor cuida de suas ovelhas. Este é um lembrete para vermos nosso trabalho da perspectiva de Deus — não principalmente como um instrumento para nossa gratificação, mas como nossa parte na missão de Deus no mundo. “Guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome” (Sl 23.3, ênfase adicionada). Trabalhamos para honrá-lo e não para nossa própria glória — um lembrete poderoso que precisamos ouvir regularmente.

Uma perspectiva tão piedosa sobre nosso trabalho geralmente nos leva para nosso trabalho mais profundamente, não para longe dele. No salmo 23, vemos isso na maneira como a narrativa do salmo é impulsionada pelos detalhes do trabalho de pastoreio. Os pastores encontram água, boas pastagens e caminhos no deserto. Eles afastam os predadores com varas e cajados e confortam as ovelhas com suas palavras e sua presença. O salmo 23 é, antes de tudo, uma representação precisa do trabalho do pastor. Isso lhe dá a base necessária na realidade para ser significativo como meditação espiritual.

Embora procuremos honrar a Deus em nosso trabalho, isso não significa que o caminho será fácil. Às vezes, podemos nos encontrar no “vale de trevas” (Sl 23.4). Isso pode acontecer de várias maneiras, como a perda de um contrato, uma tarefa acadêmica que deu errado ou sentimentos de isolamento e falta de sentido em nosso trabalho. Ou pode vir como uma luta de longo prazo, como um ambiente de escritório tóxico ou a incapacidade de encontrar um emprego. Essas são coisas que preferimos evitar. Mas o salmo 23 nos lembra que Deus está próximo em todas as circunstâncias. “Não temerei perigo algum, pois tu estás comigo” (Sl 23.4a). O trabalho de Deus em nosso favor não é hipotético, mas tangível e real. Um pastor tem uma vara e um cajado, e Deus tem todos os instrumentos necessários para nos conduzir em segurança mesmo no pior da vida (Sl 23.4b). Deus cuidará de nós, mesmo em um mundo às vezes hostil, em que estamos “à vista dos meus inimigos” (Sl 23.5). É fácil lembrar disso quando as coisas estão calmas, mas aqui somos chamados a lembrar disso em meio ao desafio e à adversidade. Embora muitas vezes nem queremos pensar nisso, é por meio dos desafios de nossa vida que Deus opera seus propósitos em nós.

O salmo 23 conclui lembrando-nos do destino de nossa jornada com Deus. “E voltarei à [ou ‘habitarei na’] casa do Senhor enquanto eu viver” (Sl 23.6b). Como no Salmo 127 e em outros lugares, a casa ou o lar não é apenas um abrigo onde as pessoas comem e dormem, mas a unidade básica de trabalho e produção econômica. Assim, habitar na casa do Senhor não significa esperar até morrer para que possamos parar de trabalhar e receber nossa recompensa. Em vez disso, promete que está chegando o tempo em que encontraremos um lugar onde nosso trabalho e nossa vida possam prosperar. A primeira metade do versículo nos diz diretamente que essa é uma promessa para nossa vida presente e para a eternidade. “A bondade e a fidelidade me acompanharão todos os dias da minha vida” (Sl 23.6). A promessa de que Deus estará conosco, trazendo bondade e amor em todas as circunstâncias de nossa vida e trabalho, é um tipo de conforto mais profundo do que jamais poderemos obter ao esperar evitar todas as adversidades que possam nos acontecer.

A orientação de Deus em nosso trabalho (Salmos 25)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A vida humana é uma série de escolhas, e muitas delas envolvem vocação. Devemos desenvolver o hábito de levar todas essas decisões a Deus. Lemos em Salmos 25.12: “Quem é o homem que teme o Senhor? Ele o instruirá no caminho que deve seguir”. Como Deus nos ensina o caminho a ser escolhido? O salmo 25 observa várias maneiras, começando com: “Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas; guia-me com a tua verdade e ensina-me” (Sl 25.4-5). Isso requer a leitura regular da Bíblia, a principal maneira pela qual conhecemos os caminhos de Deus e aprendemos sua verdade. Uma vez que conhecemos os caminhos de Deus, precisamos colocá-los em prática, sem precisar de orientação especial de Deus, na maioria dos casos. “Todos os caminhos do Senhor são amor e fidelidade para com os que cumprem os preceitos da sua aliança” (Sl 25.10). Sua aliança e seus decretos são encontrados, é claro, na Bíblia.

“Não te lembres dos pecados e transgressões da minha juventude”, acrescenta Salmos 25.7. Confessar nossos pecados e pedir a misericórdia de Deus é outra maneira de recebermos orientação de Deus. Quando somos honestos com Deus — e conosco mesmos — sobre nossos pecados, isso abre a porta para a orientação de Deus em nosso coração. “Perdoa todos os meus pecados”, o salmo pede (Sl 25.11,18). Quando somos perdoados por Deus, isso nos liberta para parar de tentar justificar a nós mesmos, o que, de outra forma, é uma poderosa barreira à orientação de Deus. Da mesma forma, a humildade em nosso trato com Deus e com as pessoas nos leva além da defensiva que bloqueia a orientação de Deus. “Conduz os humildes na justiça e lhes ensina o seu caminho”, como Salmos 25.9 nos informa.

“Os meus olhos estão sempre voltados para o Senhor”, continua o salmo (Sl 25.15). Recebemos a orientação de Deus quando procuramos evidências sobre as coisas com as quais Deus se importa, como justiça, fidelidade, reconciliação, paz, fé, esperança e amor. (O salmo não cita esses itens específicos, mas são exemplos de outras partes da Bíblia.) “Que a integridade e a retidão me protejam”, diz o texto (Sl 25.21). Integridade significa viver toda a vida sob um conjunto coerente de valores, em vez de, por exemplo, ser honesto e compassivo com nossas famílias, mas enganoso e cruel com nossos clientes ou colegas de trabalho. Pensar claramente sobre como aplicar nossos valores mais elevados no trabalho acaba sendo um meio de orientação de Deus, pelo menos na medida em que nossos valores mais elevados são formados pelas Escrituras e pela fidelidade a Cristo.

Embora esses meios de orientação possam parecer abstratos, eles podem ser muito práticos quando os colocamos em prática em situações de trabalho. A chave é ser específico em nosso estudo da Bíblia, confissão, oração e raciocínio moral. Quando levamos nossas situações reais e específicas de trabalho a Deus e à palavra de Deus, podemos encontrar Deus respondendo com a orientação específica de que precisamos. Para obter mais informações sobre a orientação de Deus em relação à nossa vocação ou chamado no trabalho, veja “Discernindo a orientação de Deus para um tipo específico de trabalho” em Visão geral sobre vocação em www.teologiadotrabalho.org.

Livro 2 (Salmos 42—72)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Todos nós enfrentamos sentimentos de insegurança, e a ruína financeira está no topo de nossa lista de preocupações. No segundo livro do Saltério, vemos vários textos que se relacionam com os medos que assediam as pessoas e os caminhos a que elas recorrem em busca de ajuda. Assim, aprendemos sobre os verdadeiros e os falsos fundamentos da esperança em um mundo de incertezas.

A presença de Deus em meio ao desastre (Salmos 46)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Às vezes, o desastre ameaça nosso ambiente de trabalho, o trabalho em si ou nossa sensação de bem-estar. Esses desastres incluem os naturais (furacões, tornados, inundações, tufões, incêndios florestais), os econômicos (recessões, falências, colapso das principais instituições financeiras) e os políticos (mudanças repentinas na política, prioridades, guerra). O salmo 46 destaca a amplitude mundial que um desastre pode levar, e vemos isso hoje na economia global. As decisões cambiais tomadas em Londres e Pequim afetam o preço que os agricultores dos Estados Unidos ou da Indonésia obtêm por suas colheitas. A turbulência política no Oriente Médio pode afetar o preço da gasolina em uma pequena cidade em qualquer lugar do mundo, e isso, por sua vez, por meio de uma cadeia de acontecimentos, pode determinar se um restaurante local continuará funcionando. Mesmo que as economias antigas não fossem tão “globais”, as pessoas sabiam muito bem que aquilo que acontecia entre as nações poderia, mais cedo ou mais tarde, mudar suas vidas. O derretimento da terra implica que algum dia todos os poderes das nações serão vistos como tão efêmeros quanto castelos feitos de cera. A turbulência no mundo significa incerteza para o comércio, o governo, as finanças e todo tipo de trabalho.

Não importa quão grande possa ser o desastre, Deus é ainda maior.

Deus é o nosso refúgio e a nossa fortaleza,
auxílio sempre presente na adversidade.
Por isso não temeremos,
ainda que a terra trema e os montes afundem no coração do mar,
ainda que estrondem as suas águas turbulentas
e os montes sejam sacudidos pela sua fúria. (Sl 46.1-3)

Em meio a circunstâncias difíceis e ameaçadoras, podemos abordar nosso trabalho e nossos colegas de trabalho com calma, confiança e até alegria. Nossa confiança suprema está em Deus, cujo próprio ser fornece um refúgio de força e bem-estar quando nossas forças se esgotam. Não apenas nós individualmente, mas nossas comunidades e o mundo inteiro estão sob a graça de Deus. O desastre global não é páreo para a providência de Deus. Revisar a maneira como Deus cuidou de nós em circunstâncias anteriores — as nossas e as do povo de Deus — nos garante que Deus está conosco no meio da cidade (Sl 46.5) e em todos os lugares da terra (Sl 46.10). Às vezes, podemos até ter o privilégio de servir como um dos meios de Deus para ajudar outras pessoas em meio ao desastre.

Ansiedade quando pessoas sem escrúpulos têm sucesso (Salmos 49; 50; 52; 62)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Às vezes, os piedosos têm uma perspectiva distorcida sobre como Deus governa, e isso lhes causa ansiedade desnecessária. Eles pensam que os justos devem obviamente se sair bem na vida, enquanto os ímpios obviamente devem cair em ruína. Mas as coisas nem sempre seguem esse roteiro. Quando os ímpios prosperam, os cristãos sentem que o mundo virou de cabeça para baixo e que sua fé se mostrou vã. Salmos 49.16-17 responde o seguinte: “Não se aborreça quando alguém se enriquece e aumenta o luxo de sua casa; pois nada levará consigo quando morrer; não descerá com ele o seu esplendor”. A piedade não garante o sucesso comercial, e a impiedade não garante o fracasso. Aqueles que dedicam sua vida a ganhar dinheiro devem finalmente fracassar, pois fizeram um tesouro de algo que é possível perder (Lc 12.16-21). Veja “Preocupação para os ricos (Lc 6.25; 12.13-21; 18.18-30)” em Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org

Não se trata apenas de os ímpios terem de enfrentar o julgamento de Deus após a morte. Quando alguém que é mau, mas bem-sucedido, finalmente cai em ruínas, as pessoas percebem. Eles entendem a conexão entre como essa pessoa viveu e a calamidade que, em última análise, tomou conta dela. Salmos 52.7 descreve tal situação: ““Veja só o homem que rejeitou a Deus como refúgio; confiou em sua grande riqueza e buscou refúgio em sua maldade!” Por esta razão, Salmos 62.10 nos diz para não buscarmos segurança seguindo o caminho dos ímpios ou na aquisição de riquezas: “Não confiem na extorsão, nem ponham a esperança em bens roubados; se as suas riquezas aumentam, não ponham nelas o coração”. Em tempos difíceis, tendemos a olhar para aqueles que prosperaram por meio de práticas corruptas ou de clientelismo e acreditar que devemos fazer o mesmo, se quisermos escapar da pobreza. Mas, na verdade, apenas garantimos que compartilharemos sua desgraça diante das pessoas e sua condenação diante de Deus.

Por outro lado, se decidirmos confiar em Deus, devemos fazê-lo de forma plena e não superficial. Salmos 50.16 declara: “Mas ao ímpio Deus diz: ‘Que direito você tem de recitar as minhas leis ou de ficar repetindo a minha aliança?’ É uma coisa ruim alguém usar de fraude para ganhar riqueza. É uma coisa terrível fazer isso enquanto finge lealdade a Deus.

Faríamos bem em perguntar o que os outros veem quando observam nosso trabalho e a maneira como o fazemos. Por acaso damos justificativas quando tomamos atalhos éticos, discriminamos ou tratamos mal as pessoas, murmurando que aquilo é “bênção”, “favor” ou “vontade de Deus”? Talvez devêssemos ser mais relutantes em atribuir nossos aparentes sucessos à vontade de Deus e estar mais prontos para dizer simplesmente: “Eu não mereço isso”.

Livro 3 (Salmos 73—89)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro 3 de Salmos contém muita lamentação e queixa. O julgamento divino — positivo e negativo — vem à tona em muitos dos salmos aqui. Contemplar esses salmos nos dá um espelho no qual podemos explorar nossa própria fidelidade — ou a falta dela —, bem como expressar nossos sentimentos reais ao Deus que é capaz de reconciliar tudo consigo mesmo.

As consequências de falhas pessoais no ambiente de trabalho (Salmos 73)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo 73 retrata uma jornada quádrupla de tentação e fidelidade, desempenhando-a na obra do salmista. [1] No primeiro estágio, ele reconhece que o julgamento favorável de Deus é uma fonte de força. “Certamente Deus é bom para Israel, para os puros de coração” (Sl 73.1). No entanto, rapidamente (estágio dois), ele é tentado a abandonar os caminhos de Deus. “Quanto a mim, os meus pés quase tropeçaram; por pouco não escorreguei. Pois tive inveja dos arrogantes” (Sl 73.2-3). Ele se vê preocupado com o aparente sucesso dos ímpios, que descreve em detalhes obsessivos nos dez versículos seguintes. Ele observa em particular aqueles que “falam com más intenções” e “ameaçam com opressão” (Sl 73.8). Em sua inveja, ele começa a pensar que sua própria integridade havia sido inútil: “Certamente foi-me inútil manter puro o coração” (Sl 73.13), ele diz, observando que chegou ao limite de se juntar aos ímpios (Sl 73.14-15).

No último minuto, porém, ele entra “no santuário de Deus”, o que significa que ele começa a “compreender” as coisas do ponto de vista de Deus (Sl 73.17). Ele vê que Deus fará os ímpios “cair em ruínas” (Sl 73.18). Isso inicia o terceiro estágio, no qual ele vê que o sucesso de pessoas que não têm integridade é apenas temporário. Todos eles, no fim, “são destruídos de repente” e se tornam “como um sonho que se vai quando acordamos” (Sl 73.19-20). Ele percebe que, quando estava pensando em se juntar aos ímpios, ele havia sido “insensato e ignorante” (Sl 73.22). No quarto estágio, ele se compromete novamente com os caminhos de Deus. “Sempre estou contigo”, diz ele, e “tu me diriges com o teu conselho” (Sl 73.23,24).

Também nós, até certo ponto, seguimos essa jornada de quatro estágios? Talvez também comecemos com integridade e fidelidade a Deus. Então, vemos que os outros parecem estar prosperando com engano e opressão. Às vezes, ficamos impacientes com o tempo que Deus está levando para executar seu julgamento. Enquanto Deus demora, os ímpios parecem estar “sempre despreocupados” e “aumentam suas riquezas”, enquanto o justo parece ser “afligido” e “castigado” pela injustiça da vida (Sl 73.12,14). Mas o tempo do julgamento de Deus é assunto do próprio Deus, não nosso. De fato, visto que não somos perfeitos, não devemos ficar ansiosos para que Deus julgue os ímpios.

Quando damos muita atenção ao sucesso imerecido dos outros, ficamos tentados a buscar vantagens injustas para nós mesmos. É especialmente tentador sucumbir a esse impulso no trabalho, onde pode parecer que há um conjunto diferente de regras. Vemos pessoas arrogantes (Sl 73.3) ganharem reconhecimento e intimidarem outros para que lhes deem uma parte indevida das recompensas (Sl 73.6). Vemos pessoas cometerem fraudes, mas prosperarem por anos. Aqueles que têm poder sobre nós no trabalho parecem tolos (Sl 73.7), mas são promovidos. Talvez devêssemos fazer o mesmo. Talvez Deus realmente não saiba ou não se importe com a maneira como agimos (Sl 73.11), pelo menos não no trabalho.

Como o salmista, nosso remédio é lembrar que trabalhar ao lado de Deus — ou seja, estar de acordo com seus caminhos — é um prazer em si mesmo. “Para mim, bom é estar perto de Deus” (Sl 73.28). Quando fazemos isso, nos abrimos novamente ao conselho de Deus e voltamos aos seus caminhos. Por exemplo, pode ser que possamos subir a escada do sucesso mais rapidamente — pelo menos no início — levando o crédito pelo trabalho dos outros, culpando os outros por nossos erros ou fazendo com que outros façam nosso trabalho por nós. Mas a promoção e a renda extra valerão a sensação de vazio e o medo de ser exposto como uma fraude? O sucesso compensará a perda de amizades e a incapacidade de confiar em alguém ao nosso redor? Se cuidarmos das pessoas ao nosso redor, compartilharmos o crédito pelo sucesso e assumirmos nossa parcela de culpa pelos fracassos, pode parecer que começamos mais devagar. Mas nosso trabalho não será mais agradável? E, quando precisarmos de apoio, quando precisarmos de confiança nos colegas de trabalho, e eles em nós, não estaremos em uma posição melhor do que os arrogantes e abusivos? Na verdade, Deus é bom para com os justos.

As consequências econômicas dos erros nacionais (Salmos 81; 85)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Apesar da atenção ao julgamento pessoal que vimos no salmo 73, na maior parte do livro 3 é a nação de Israel que está sob julgamento. O tópico do julgamento nacional, por si só, é relevante para este artigo, na medida em que estabelece o contexto para as pessoas que realizam seu trabalho naquela nação. Também sugere um tipo importante de trabalho em que os cristãos podem se engajar enquanto representam o Reino de Deus, a saber, a formulação de políticas nacionais. Mas podemos notar que, quando um governo nacional se torna maligno, a economia do país sofre. O salmo 81 é um exemplo disso, pois começa com o julgamento de Deus contra a nação de Israel. “Mas o meu povo não quis ouvir-me; Israel não quis obedecer-me. Por isso os entreguei ao seu coração obstinado, para seguirem os seus próprios planos” (Sl 81.11-12). Em seguida, passa a descrever as consequências econômicas. “Se o meu povo apenas me ouvisse... eu sustentaria Israel com o melhor trigo, e com o mel da rocha eu o satisfaria” (Sl 81.13.16). Aqui, vemos como as violações nacionais da aliança de Deus causam escassez e dificuldades econômicas. Se o povo tivesse sido fiel aos caminhos de Deus, teria experimentado prosperidade. Em vez disso, eles abandonaram os caminhos de Deus e passaram fome (Sl 81.10).

Da mesma forma, o salmo 85 descreve os benefícios econômicos que se acumulam quando Israel é fiel aos mandamentos de Deus. O povo experimenta paz e segurança, trabalho produtivo e maior prosperidade (Sl 85.10-13). Sem um bom governo, nenhum de nós pode esperar prosperidade por muito tempo. Em muitos lugares, os cristãos são altamente visíveis na oposição a políticas governamentais com as quais discordamos, mas também é necessário um engajamento construtivo. O que você pode fazer para ajudar a estabelecer ou preservar um bom governo em sua cidade, região ou nação?

A graça de Deus em meio ao juízo (Salmos 86)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Embora o julgamento de Deus tenha destaque no livro 3 dos Salmos, também encontramos a graça de Deus. No salmo 86, o salmista implora: “Misericórdia, Senhor”, pois “Tu és bondoso e perdoador, Senhor, rico em graça para com todos os que te invocam” (Sl 86.2,5). O salmo vem de alguém que se sente desgastado pela oposição dos mais poderosos. “Sou pobre e necessitado” (Sl 86.1). “Os arrogantes estão me atacando, ó Deus; um bando de homens cruéis, gente que não faz caso de ti procura tirar-me a vida” (Sl 86.14). “Os meus inimigos” são uma ameaça constante (Sl 86.17). “Salva o filho da tua serva” (Sl 86.16b).

O salmo não reivindica justiça, mas se regozija por Deus ser “muito paciente” (Sl 86.15). O que o salmo pede apenas é a graça de Deus: “Volta-te para mim! Tem misericórdia de mim!” (Sl 86.16a). “No dia da minha angústia clamarei a ti, pois tu me responderás” (Sl 86.7).

Há momentos em que todos nós enfrentamos oposição no trabalho. Às vezes, é algo diretamente pessoal e perigoso. Podemos ser oprimidos por outros, podemos ter culpa ou pode ser uma mistura de ambos. Podemos nos sentir indignos em nosso trabalho, não amados em nossos relacionamentos, incapazes de mudar nossas circunstâncias ou a nós mesmos. Não importa a fonte de oposição a nós — mesmo que tenhamos visto que o inimigo somos nós mesmos — podemos pedir a graça de Deus para nos salvar. A graça de Deus corta a ambiguidade que envolve nossa vida e nosso trabalho e nos mostra um sinal do favor de Deus (Sl 86.17) além do que merecemos.

É claro que Deus não salva ninguém — nem a nós mesmos nem a nossos inimigos — com o propósito de infligir mais danos. Com a graça vem a reforma. “Ensina-me o teu caminho, Senhor, para que eu ande na tua verdade” (Sl 86.11a). A petição do salmista é para si mesmo, mas aceitar a graça de Deus significa nos voltarmos para ele antes de nós mesmos. “Dá-me um coração inteiramente fiel, para que eu tema o teu nome. De todo o meu coração te louvarei, Senhor, meu Deus” (Sl 86.11-12).

Com o coração de Deus, também nos tornamos misericordiosos, mesmo com aqueles que se opõem a nós. O salmo pede que os oponentes “sejam humilhados” (Sl 86.17) pelo ódio que têm, mas que, ao fazê-lo, eles “virão e te adorarão, Senhor” (Sl 86.9), entrando assim na graça de Deus. Graça significa misericórdia não apenas para nós, mas também para nossos oponentes, para que o poder de Deus seja manifesto a seus inimigos, para que seu nome seja glorificado (Sl 86.9).

Livro 4 (Salmos 90—106)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Livro 4 de Salmos coloca o quebrantamento do mundo — incluindo a mortalidade humana — no contexto da soberania de Deus. Nenhum de nós é capaz de construir a própria vida — muito menos o mundo inteiro — como deveria ser. Sofremos e não podemos proteger do sofrimento aqueles que amamos. No entanto, Deus continua no comando, e nossa esperança de que todas as coisas sejam corrigidas repousa nele.

Trabalhando em um mundo decaído (Salmos 90; 101)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Livro 4 começa com o sombrio Salmo 90. “Fazes os homens voltarem ao pó”; “todos os nossos dias ... vão-se como um murmúrio” (Sl 90.3,9). Esse salmo concentra nossa atenção na dificuldade e na brevidade da vida. “Os anos de nossa vida chegam a setenta, ou a oitenta para os que têm mais vigor; entretanto, são anos difíceis e cheios de sofrimento, pois a vida passa depressa, e nós voamos!” (Sl 90.10). A brevidade da vida obscurece todos os aspectos de nossa vida e trabalho. Temos poucos anos para ganhar o suficiente para sustentar nossa família, economizar algo para tempos de dificuldades ou velhice, contribuir para o bem comum, fazer nossa parte na obra de Deus no mundo. Quando jovens, podemos ser inexperientes demais para conseguir o tipo de trabalho que queremos. Quando envelhecemos, enfrentamos capacidades e habilidades em declínio e, às vezes, discriminação por idade. Nesse meio tempo, ficamos preocupados se estamos no caminho certo o suficiente para alcançar nossos objetivos. O trabalho deveria ser uma colaboração criativa com Deus (Gn 2.19). Mas a pressão do tempo faz com que o trabalho pareça “difícil e cheio de sofrimento”.

O que devemos fazer então? Convide Deus para habitar em nosso trabalho, por mais árduo que possa parecer. “Sejam manifestos os teus feitos [de Deus] aos teus servos... Consolida, para nós, a obra de nossas mãos; consolida a obra de nossas mãos!” (Sl 90.16-17). Isso não significa apenas colocar lembretes de nosso Senhor em nosso ambiente de trabalho. Significa colocar Deus na “obra de nossas mãos”. Isso inclui nossa consciência da presença de Deus no trabalho, nosso reconhecimento do propósito de Deus para nosso trabalho, nosso compromisso de trabalhar de acordo com os princípios de Deus e nosso serviço às pessoas ao nosso redor — que, afinal, são feitas à imagem de Deus (Gn 1.27; 9.6; Tg 3.9).

Salmos 101.2 ilustra como nos tornamos equipados para fazer a obra de Deus. “Seguirei o caminho da integridade; quando virás ao meu encontro? Em minha casa viverei de coração íntegro”. Cultivar um bom caráter diante de Deus e das pessoas é nossa primeira tarefa. Se temos filhos, uma de nossas tarefas é ajudá-los a aprender o conhecimento dos caminhos de Deus e a crescer em um caráter piedoso. Estamos fazendo a obra de Deus quando administramos bem nosso lar e damos a nossos filhos a chance de crescerem fortes e estarem preparados para as dificuldades da vida. Para o niilista e o cínico, a crueldade da vida justifica a imoralidade e o egoísmo. Para o crente, é mais uma razão para cultivar o caráter.

Criatividade humana com Deus (Salmos 104)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Desde o início, Deus pretendia que o trabalho humano fosse uma forma de criatividade sob ou ao lado da própria criatividade de Deus (Gn 1.26-31; 2.5,15-18). O trabalho humano destina-se a cumprir a intenção criativa de Deus, levar cada pessoa a um relacionamento com outras pessoas e com Deus e glorificar a Deus. O salmo 104 dá uma descrição encantadora dessa parceria criativa. Começa com uma ampla tela da glória da criação de Deus (Sl 104.1-9). Isso leva naturalmente à obra ativa de Deus em sustentar o mundo dos animais, pássaros e criaturas marinhas (Sl 104.10-12,14,16-18,20-22,25). Deus também provê ricamente para os seres humanos (Sl 104.13-15,23). A obra de Deus torna possível a fecundidade da natureza e da humanidade. “Dos teus aposentos celestes regas os montes; sacia-se a terra com o fruto das tuas obras!” (Sl 104.13).

O trabalho dos seres humanos é construir ainda mais, usando o que Deus dá. Temos de colher e usar as plantas. “É o Senhor que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva” (Sl 104.14). Fazemos o vinho e o pão e extraímos o óleo das plantas que Deus faz crescer (Sl 104.15). Deus provê tão ricamente, em parte, povoando sua criação com pessoas que trabalham seis dias por semana. Assim, embora este salmo fale de todas as criaturas que buscam alimento em Deus, e Deus abre sua mão para suprir o necessário (Sl 104.27-28), as pessoas ainda precisam trabalhar com afinco para processar e usar as boas dádivas de Deus. O salmo 104 vai tão longe a ponto de citar algumas das ferramentas usadas para a obra do mundo de Deus: roupas, tendas, vigas, vento, navios (Sl 104.2,3,4,26, respectivamente). Curiosamente, o salmo alegremente atribui o uso de tais ferramentas ao próprio Deus, bem como aos seres humanos. Nós trabalhamos com Deus, e a ampla provisão de Deus vem, em parte, por meio do esforço humano.

Mesmo assim, lembre-se de que somos os parceiros menores na criação de Deus. Assim como em Gênesis, os seres humanos são as últimas criaturas mencionadas no Salmo 104. Mas, diferentemente de Gênesis, entramos em cena aqui com pouca pompa. Somos apenas mais uma das criaturas de Deus, cuidando de seus negócios ao lado do gado, das aves, dos bodes selvagens, dos coelhos e dos leões (Sl 104.14-23). Cada um tem sua atividade própria — para os seres humanos, é trabalho e labuta até a noite — mas, por baixo de cada atividade, é Deus quem fornece tudo o que é necessário (Sl 104.21). O salmo 104 nos lembra que Deus fez sua obra extremamente bem. Nele, nosso trabalho também pode ser feito extremamente bem, se apenas trabalharmos humildemente na força que seu Espírito fornece, cultivando o belo mundo em que ele nos colocou por sua graça.

Livro 5 (Salmos 107—150)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os salmos do Livro 5 têm menos tema ou cenário em comum do que os dos outros livros. No entanto, em meio à diversidade de formas e ambientes, o trabalho aparece mais diretamente entre esses salmos do que em outras partes do Saltério. Nestes salmos encontramos questões de criatividade econômica, ética nos negócios, empreendedorismo, produtividade, o trabalho de criar os filhos e administrar uma casa, o uso adequado do poder e a glória de Deus no mundo material e por meio dele.

Deus sustenta todo trabalho e produtividade (Salmos 107)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo 107 relaciona os esforços econômicos humanos com o mundo da criação de Deus. Vale a pena citar um trecho.

Fizeram-se ao mar em navios, para negócios na imensidão das águas, e viram as obras do Senhor, as suas maravilhas nas profundezas. Deus falou e provocou um vendaval que levantava as ondas. Subiam aos céus e desciam aos abismos; diante de tal perigo, perderam a coragem. Cambaleavam, tontos como bêbados, e toda a sua habilidade foi inútil. Na sua aflição, clamaram ao Senhor, e ele os tirou da tribulação em que se encontravam. Reduziu a tempestade a uma brisa e serenou as ondas. As ondas sossegaram, eles se alegraram, e Deus os guiou ao porto almejado. Que eles deem graças ao Senhor por seu amor leal e por suas maravilhas em favor dos homens. (Sl 107.23-31)

Tanto naquela época quanto agora, as pessoas iam para o mar para pescar e fazer comércio. Seus navios eram frágeis e eles não tinham como prever com antecedência a chegada de uma tempestade. A vida e seus meios de subsistência dependiam do clima. Apesar de nossas vantagens tecnológicas, também dependemos de uma infinidade de fatores que estão além de nosso controle em grande parte de nosso trabalho. Aa coisa mais honesta que alguém pode dizer sobre o sucesso no trabalho talvez seja isso: “Eu tive sorte”. Como Bill Gates observou sobre o incrível sucesso da Microsoft: “Eu nasci no lugar certo e no momento certo”. [1] Para o crente, o fator “sorte” é visto como a provisão constante de Deus para nossas necessidades. Para obter sucesso mesmo com as incertezas inerentes ao nosso trabalho, dependemos um pouco da habilidade (um dom de Deus em si), um pouco do trabalho árduo e muito da providência de Deus. Seja qual for nosso “porto almejado” na vida e no trabalho, que possamos das “graças ao Senhor por seu amor leal e por suas maravilhas em favor dos homens”. Talvez Tiago tivesse esse salmo em mente quando disse: “Vocês devem dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’” (Tg 4.15).

Um pouco mais tarde, o Salmo 107 acrescenta mais ideias sobre isso.

[Deus] transforma o deserto em açudes e a terra ressecada, em fontes. Ali ele assenta os famintos, para fundarem uma cidade habitável, semearem lavouras, plantarem vinhas e colherem uma grande safra. Ele os abençoa, e eles se multiplicam; e não deixa que os seus rebanhos diminuam (Sl 107.35-38).

Deus cria as condições para que a vida prospere na terra. Ele pode transformar um deserto em pastagem (ou uma pastagem em deserto). A agricultura, incluindo a semeadura e o manejo do gado, depende do crescimento dado por Deus. Onde a agricultura prospera, surgem as cidades. Com o surgimento das cidades, todo tipo de trabalho aparece. A economia urbana fornece todos os tipos de bens e serviços a uma população crescente e diversificada. Em uma economia antiga, além de agricultores e pastores, uma comunidade precisaria de oleiros, metalúrgicos e escribas (para registrar acordos e transações comerciais, bem como leis e textos religiosos). Toda a economia de qualquer cidade, passada ou presente, depende da abundância agrícola, seja ela cultivada internamente ou por meio do comércio. Quando o agricultor do mundo pode cultivar mais do que suas necessidades para sua própria subsistência, comunidades complexas podem prosperar. E isso vem de Deus, que rega a terra seca (Sl 65.9, Gn 2.5).

Assim, o salmo 107 abrange a atividade econômica em terra e no mar, e afirma que Deus está acima de tudo. E Deus não é hostil ao nosso trabalho. O salmo fala de como ele salva e provê. Nosso sustento depende do governo beneficente de Deus sobre as forças naturais.

Virtudes para quem está nos negócios (Salmos 112)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo 112 declara as bênçãos de Deus sobre aquele que “conduz os seus negócios” e “empresta com generosidade” (para usar os termos do versículo 5), de acordo com os mandamentos de Deus. “Grande riqueza há em sua casa”, observa o salmo, e “não temerá más notícias” (Sl 112.3,7). As virtudes que trazem tais bênçãos incluem graça, misericórdia, retidão, generosidade e justiça (Sl 112.4-5). Retidão e justiça podem não nos surpreender. As pessoas querem comprar e vender de empresas que são retas e justas, de modo que se pode esperar que essas virtudes, em geral, tragam prosperidade.

Mas e quanto à misericórdia, compaixão e justiça (v. 4)? Misericórdia pode significar informar um cliente sobre uma solução de custo mais baixo, mesmo que isso traga menos lucro para nós mesmos ou para nossa empresa. Compaixão pode significar dar outra chance a um fornecedor depois que ele perde uma entrega. Justiça pode significar compartilhar especificações com outras pessoas do setor, para que possam criar produtos que operem em conjunto com os nossos — o que é bom para os clientes, mas pode até mesmo criar concorrência para nós mesmos. O salmo 112 diz que essas coisas levam a uma maior prosperidade, não a uma menor, certo? Aparentemente sim. “Reparte generosamente”, diz o salmo, e quem o faz é mais firme, mais seguro, mais estável e, em última análise, mais bem-sucedido do que aquele que não pratica tais virtudes (Sl 112.7-10). O salmo atribui isso ao Senhor (Sl 112.1,7), mas não diz se isso ocorre porque ele intervém em seu favor ou porque criou e manteve o mundo de tal forma que essas virtudes tendem a trazer prosperidade. Talvez ele faça as duas coisas.

Por outro lado, talvez o Senhor abençoe os justos, dando-lhes uma ideia diferente do que é prosperidade. Riquezas e bens estão incluídos (Sl 112.3, como acima), mas o quadro geral inclui muito mais do que riqueza. Terá descendentes prósperos (Sl 112.2), será lembrado (Sl 112.6) e honrado (Sl 112.9), terá relacionamentos estáveis ​​(Sl 112.6), paz sincera (Sl 112.7) e a capacidade de enfrentar o futuro sem medo (Sl 112.8) — tudo isso é igualmente importante na visão de Deus sobre a prosperidade. Será possível que, quando seguimos os mandamentos do Senhor nos negócios, não apenas nossa sorte mude, mas também nossos desejos? Se pudéssemos desejar para nós mesmos o que Deus deseja para nós, não teríamos a garantia de encontrar uma felicidade que duraria para sempre?

Participando da obra de Deus (Salmos 113)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo 113 nos informa: “Do nascente ao poente, seja louvado o nome do Senhor!” (Sl 113.3). O salmista está sugerindo que devemos ficar no templo (ou na igreja) o dia todo para louvar ao Senhor? Ou está sugerindo que, em tudo o que fizermos, incluindo nosso trabalho diário, o façamos em louvor ao Senhor? Dos versículos 7 a 9, vemos claramente que é a segunda opção. “Ele levanta do pó o necessitado e ergue do lixo o pobre, para fazê-los sentar-se com príncipes, com os príncipes do seu povo” (Sl 113.7-8). Embora o salmo não nos diga como Deus realiza isso, sabemos — assim como o salmista — que geralmente significa por meio do trabalho. A oportunidade de um trabalho bem remunerado tira os pobres da pobreza e, em geral, Deus cria essas oportunidades por meio do trabalho de seu povo — pessoas com negócios que criam oportunidades econômicas, pessoas no governo que garantem justiça, pessoas na educação que incutem as habilidades necessárias para bons empregos. Com sua ênfase em ajudar os pobres e necessitados, o Salmo 113 clama por uma vida inteira de louvor prático a Deus.

Embora o salmo pudesse ter nomeado milhares de tipos de trabalho para ilustrar seu ponto, ele seleciona apenas um: o trabalho de dar à luz e criar filhos “Dá um lar à estéril, e dela faz uma feliz mãe de filhos” (Sl 113.9). Talvez isso ocorra porque a falta de filhos no antigo Israel praticamente condenava uma mulher (e seu marido) à pobreza na velhice. Ou talvez seja por algum outro motivo. De qualquer maneira, isso nos lembra de dois assuntos importantes hoje. Mais obviamente, quando mães (e pais) concebem, alimentam, limpam, protegem, brincam, ensinam, educam, perdoam, treinam e amam as crianças, isso dá trabalho! No entanto, muitas mães sentem que ninguém — nem mesmo a igreja — reconhece que o que elas fazem é tão valioso quanto o trabalho que os outros fazem, porque os outros são pagos. Em segundo lugar, o alívio de Deus para adultos que não têm filhos e para crianças que não tem adultos responsáveis por elas geralmente ocorre por meio do trabalho de outras pessoas. Profissionais médicos podem restaurar a fertilidade. Profissionais de adoção e agentes de assistência social procuram reunir candidatos a pais e crianças que precisam de pais, acompanhando as famílias para fornecer treinamento e supervisão, conforme necessário. Todas as famílias dependem do apoio de uma ampla comunidade de outras pessoas, incluindo o povo de Deus. Para saber mais sobre o trabalho das famílias, consulte “O trabalho do casamento, da criação dos filhos e do cuidado dos pais (Salmos 127; 128; 139)”.

Produzindo verdadeiro valor no trabalho (Salmos 127 e 128)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como o salmo 107 fala de atividade econômica em larga escala, assim os salmos 127 e 128 falam do lar, a unidade básica de produção econômica até a época da Revolução Industrial. O salmo 127 começa com um lembrete de que toda boa obra está fundamentada em Deus.

Se não for o Senhor o construtor da casa, será inútil trabalhar na construção. Se não é o Senhor que vigia a cidade, será inútil a sentinela montar guarda. Será inútil levantar cedo e dormir tarde, trabalhando arduamente por alimento. O Senhor concede o sono àqueles a quem ele ama. (Sl 127.1-2)

Tanto a “casa” quanto a “cidade” referem-se à mesma coisa: o objetivo de fornecer bens e segurança para os moradores. Em última análise, toda atividade econômica visa permitir que as famílias prosperem. A passagem obviamente afirma que o trabalho diligente por si só não é suficiente (veja Provérbios 26.13-16, que fala sobre preguiça). Além do óbvio, há um significado mais profundo. O trabalho árduo pode produzir uma casa grande e bonita, mas não pode criar um lar feliz. Um empreendedor zeloso pode criar um negócio de sucesso, mas não pode, apenas com o trabalho, criar uma vida boa. Só Deus pode fazer tudo valer a pena.

Na maioria das economias de hoje, o trabalho que não seja a agricultura geralmente não é realizado nas famílias, mas em organizações maiores. Mas a mensagem do salmo 127 se aplica aos ambientes de trabalho institucionalizados de hoje, tanto quanto aos lares antigos. Para prosperar, todo ambiente de trabalho deve produzir algo de valor. Trabalhar horas não é suficiente — o trabalho precisa resultar em bens ou serviços de que os outros precisam.

Os crentes podem oferecer algo de especial significado a esse respeito. Em todos os ambientes de trabalho, há a tentação de produzir itens que possam render muito dinheiro, mas que não ofereçam nenhum valor duradouro. As empresas podem aumentar os lucros — no curto prazo — reduzindo a qualidade dos materiais. Os vendedores podem aproveitar a falta de familiaridade dos compradores para vender produtos e acessórios duvidosos. As instituições educacionais podem oferecer aulas que atraem alunos sem desenvolver capacidades duradouras. E assim por diante. Quanto mais entendermos as necessidades genuínas das pessoas que usam nossos bens e serviços, e quanto mais contribuirmos para o verdadeiro valor do que produzimos, mais poderemos ajudar nossas instituições de trabalho a resistir a essas tentações. Como o verdadeiro valor está, em última análise, fundamentado em Deus, podemos ter uma capacidade única de servir a esse papel. Mas isso deve ser feito com humildade e escuta constante. Não adiantará de nada anunciar em voz alta nossas opiniões imaturas, pois as pessoas ficarão cansadas de nos ouvir.

O trabalho do casamento, da criação dos filhos e do cuidado dos pais (Salmos 127; 128; 139)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O trabalho presente no casamento, na criação filhos e no cuidado dos pais vem à tona novamente nos salmos 127, 128 e 139. (O trabalho de ter filhos é um elemento importante do Salmo 113; veja “Participando da obra de Deus (Salmos 113)”). “Sua mulher será como videira frutífera em sua casa; seus filhos serão como brotos de oliveira ao redor da sua mesa” (Sl 128.3). Maridos e esposas juntos se envolvem na produção do tipo mais fundamental — a reprodução! É desnecessário dizer que a esposa realiza mais trabalho nessa empreitada do que o marido. Na Bíblia, esse papel não é desprezado — é entendido como essencial para a sobrevivência e foi honrado no antigo Israel. Além da geração de filhos, as esposas normalmente administravam a casa, incluindo a produção doméstica e comercial (Pv 31.10-31).

A Bíblia honra aqueles que navegam pelo mar e aqueles que pastoreiam as ovelhas (ocupações tradicionalmente masculinas), bem como aqueles que administram a casa (uma ocupação tradicionalmente feminina). Hoje, as funções de trabalho são muito menos divididas de acordo com o sexo — exceto a administração da casa da família, que ainda é desempenhada principalmente por mulheres [1] — mas a honra concedida ao casamento e ao trabalho das famílias ainda se aplica.

Como toda forma de trabalho — e ter filhos é trabalho! — ter filhos também vem de Deus. “Tu [Deus] criaste o íntimo do meu ser e me teceste no ventre de minha mãe” (Sl 139.13). Da mesma forma, como acontece com qualquer outra forma de trabalho, isso não significa que, quando a tragédia ocorre, é uma punição ou um abandono de Deus. Em vez disso, ter filhos é um ponto da graça comum de Deus para a humanidade em todo o mundo. No ventre, Deus nos cria, e ele nos cria para um propósito. Nosso direito de nascimento é fazer obras de valor para o próprio Deus.

Voltamos ao salmo 127 como elemento final deste tema, isto é, que o trabalho doméstico inclui cuidar daqueles cuja capacidade para o trabalho é diminuída por causa da idade. “Os filhos são herança do Senhor, uma recompensa que ele dá” (Sl 127.3). No mundo antigo, as pessoas não tinham planos de pensão institucionalizados, nem seguro de saúde. À medida que ficavam mais velhos, passavam a ser sustentadas por seus filhos. (O texto fala de “filhos” porque, em geral, as filhas se casavam e entravam na casa das famílias de seus maridos.) Na verdade, os filhos eram o plano de aposentadoria de um casal, e isso unia intimamente as gerações.

Pode parecer difícil colocar o valor da criação dos filhos em termos econômicos. Hoje, podemos nos sentir mais à vontade falando sobre as recompensas emocionais de criar filhos. Seja como for, esse versículo ensina que os adultos precisam de crianças tanto quanto as crianças precisam de adultos, e que as crianças são um presente de Deus, não um fardo. Também nos lembra de todo tipo de investimentos que nossos pais fizeram em nós — emocional, físico, intelectual, criativo, econômico e muito mais. À medida que crescemos e nossos pais passam a depender de nós, é certo que assumamos o trabalho de cuidar deles. Isso pode ser feito de uma variedade de maneiras. O ponto é simplesmente que o mandamento de Deus de honrar nossos pais (Êx 20.12) não é apenas uma questão de atitude, mas também de trabalho e cuidado econômico.

O uso correto do poder (Salmos 136)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O poder é essencial para a maioria das obras e deve ser exercido corretamente. O salmo 136 expõe o uso adequado do poder, mostrando quatro exemplos de como Deus usa o poder.

O primeiro exemplo vem nos versículos 4-9. Ele mostra o uso do poder de Deus para criar o mundo, visto que ele “com habilidade fez os céus” e “estendeu a terra sobre as águas” (Sl 136.5-6). Isso nos leva de volta a Gênesis 1 — ao Deus da criação, que dá ao mundo tudo o que é preciso para florescer. Mas observe a ordem em que Deus trabalha, primeiro criando sistemas (terra e água, noite e dia, sol e lua) que foram necessários para a sobrevivência de todo o que foi criado posteriormente (plantas, animais terrestres, criaturas que nadam e voam). Deus não criou os animais até que houvesse terra seca e vegetação para sustentá-los. Quando está em nosso poder criar tarefas ou sistemas, o poder é corretamente usado quando criamos ambientes nos quais nós e aqueles ao nosso redor não apenas sobrevivemos, mas prosperamos. Para mais informações sobre a provisão de Deus na criação, veja “ Provisão (Gênesis 1.29-30; 2.8-14) ” em Gênesis 1—11 e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org

O segundo exemplo está em Salmos 136.10-15, quando Deus libertar seu povo da escravidão no Egito. A terceira vem imediatamente depois, quando Deus derruba os reis cananeus que se opõem a Israel em sua jornada para estabelecer a terra prometida (Sl 136.16-22). Juntos, eles nos mostram que Deus usa o poder para libertar as pessoas da opressão e para se opor àqueles que impedem os outros do bem que Deus deseja para eles. Quando nosso trabalho libera outros para cumprirem seu destino no desígnio de Deus, estamos usando o poder da maneira correta. Quando nosso trabalho escraviza novamente os trabalhadores ou se opõe à obra de Deus neles e por meio deles, estamos abusando do poder.

O quarto exemplo vem no final do salmo. Deus “se lembrou de nós quando fomos humilhados ... e nos livrou dos nossos adversários ... [Ele] dá alimento a todos os seres vivos” (Sl 136.23-25). Deus amorosamente reconhece nossa fraqueza e supre nossas necessidades. Quando usamos o poder para fazer um trabalho que beneficie os outros, estamos usando o poder como Deus o usaria.

Finalmente, para o uso adequado do poder, cada versículo do salmo 136 nos lembra de dar graças a Deus, pois “o seu amor dura para sempre”.

A glória de Deus em toda a criação (Salmos 146—150)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os cinco salmos finais começam cada um com o grito “Aleluia” (que significa “Louvado seja o Senhor!”). Como nossa pesquisa dos salmos mostrou, o trabalho deve ser uma forma de louvor a Deus. Esses cinco salmos descrevem uma variedade de maneiras pelas quais nosso trabalho pode louvar ao Senhor. Em todas elas, vemos que nosso trabalho está fundamentado na obra do próprio Deus. Quando trabalhamos como Deus deseja, estamos imitando, estendendo e cumprindo a obra de Deus.

Salmo 146

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus executa justiça pelos oprimidos (Sl 146.7a). Nós fazemos o mesmo quando trabalhamos de acordo com os mandamentos de Deus, pela graça de Deus. Deus dá comida aos famintos (Sl 146.7b). Nós também. Deus liberta pessoas acorrentadas, assim como fazem os legisladores, advogados, juízes e júris. Deus restaura a visão aos cegos, assim como fazem os oftalmologistas e os oculistas. Deus levanta aqueles que não podem se levantar sozinhos, assim como fazem os fisioterapeutas, enfermeiros, fabricantes de elevadores e pais de crianças (Sl 146.8). O Senhor cuida de estranhos, assim como é feito por policiais e agentes de segurança, comissários de bordo, salva-vidas, inspetores de saúde e forças de paz. Ele cuida de órfãos e viúvas (Sl 146.9), assim como pais adotivos, cuidadores de idosos, advogados de família e assistentes sociais, planejadores financeiros e funcionários de internatos. Louvado seja o Senhor! (Sl 146.10).

Salmo 147

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus reúne os exilados (Sl 147.2), assim como as entidades de caridade, os professores nas prisões e os líderes comunitários. Ele cura os quebrantados de coração (Sl 147.3), assim como fazem os conselheiros de luto, casamenteiros, humoristas e cantores de blues. Ele conta as estrelas e lhes dá nomes (Sl 147.4), como fazem os astrônomos, navegadores e contadores de histórias. Ele é abundante em poder (Sl 147.5a), assim como presidentes, CEOs, almirantes, pais e prisioneiros políticos que se tornaram estadistas. Ele tem uma compreensão profunda (Sl 147.5b), assim como professores, poetas, pintores, maquinistas, operadores de sonar e pessoas cujo autismo lhes dá poderes extraordinários de concentração nos detalhes. Ele levanta os oprimidos, assim como ativistas de direitos civis e doadores, e quebra o poder dos ímpios, assim como promotores de justiça, denunciantes e todos aqueles que se afastam das fofocas e defendem colegas de trabalho que são tratados injustamente (Sl 147.6).

Deus prepara a terra para o tempo vindouro (Sl 147.8), assim como meteorologistas, pesquisadores do clima, arquitetos, construtores e controladores de tráfego aéreo. Ele alimenta os animais (Sl 147.9), como fazem fazendeiros e pastores, bem como meninos e meninas nas aldeias rurais. Ele fortalece os portões, protege as crianças e preserva a paz nas fronteiras (Sl 147.13-14a), assim como engenheiros, soldados, despachantes aduaneiros e diplomatas. Ele prepara os melhores alimentos (Sl 147.14b), assim como cozinheiros, chefes de cozinha, padeiros, vinicultores, cervejeiros, agricultores, donas de casa e pessoas com dupla jornada (principalmente as mulheres), blogueiros de receitas, mercearias, caminhoneiros e — do seu próprio jeito — trabalhadores de fast food, atendentes de lanchonetes e cozinheiros de comida congelada. Ele declara sua palavra — seus decretos e ordenanças (Sl 147.19). Louvado seja o Senhor! (Sl 147.20).

Salmo 148

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao contrário dos salmos 146, 147 e 149, os salmos 148 e 150 não retratam Deus em ação, mas pulam diretamente para nossa resposta de louvor pelo trabalho que ele já fez. O salmo 148 fala da criação de Deus, como se a própria existência da criação fosse um louvor a Deus. “Louvem o Senhor, vocês que estão na terra, serpentes marinhas e todas as profundezas, relâmpagos e granizo, neve e neblina, vendavais que cumprem o que ele determina, todas as montanhas e colinas, árvores frutíferas e todos os cedros, todos os animais selvagens e os rebanhos domésticos, todos os demais seres vivos e as aves” (Sl 148.7-10). Sua criação torna nosso trabalho frutífero, por isso é apropriado que ofereçamos todo o trabalho que fazemos como louvor a ele. “Moços e moças, velhos e crianças. Louvem todos o nome do Senhor” (Sl 148.12-13). Louvado seja o Senhor! (Sl 148.14).

Salmo 149

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Senhor tem prazer em cânticos, danças e na música dos instrumentos (Sl 149.2-3), assim como se vê nos músicos, dançarinos, compositores, arranjadores, coreógrafos, compositores de filmes, arquivistas musicais, professores, trabalhadores de organizações artísticas e doadores, membros de corais, musicoterapeutas, bandas, corais e orquestras de estudantes, bandas de garagem, folcloristas, trabalhadores que cantam em seu trabalho, produtores e editores musicais, YouTubers, rappers, letristas, fabricantes de áudio, afinadores de piano, instrumentistas, acústicos, criadores de aplicativos de música e todos os que cantam no chuveiro. Talvez nenhuma forma de esforço humano seja mais universal, embora mais variada, do que fazer música, e tudo isso deriva do amor de Deus pela música.

O Senhor tem prazer em seu povo (Sl 149.4a), assim como todos os bons líderes, membros da família, profissionais de saúde mental, pastores, vendedores, guias turísticos, treinadores, organizadores de festas e todos os que servem aos outros. Se as situações oprimem pessoas ou se sistemas impossibilitam que as pessoas tenham prazer saudável nos outros, o Senhor vence os opressores e reforma os sistemas (Sl 149.4b-9a), assim como é feito por reformadores sociais e corporativos, jornalistas, mulheres e homens comuns que se recusam a aceitar o status quo, psicólogos organizacionais e profissionais de recursos humanos e — se as condições forem extremas e não houver outro caminho — exércitos, marinhas, forças aéreas e seus comandantes. Quando a justiça e o bom governo forem restaurados, a música poderá começar de novo (Sl 149.6). Louvado seja o Senhor! (Sl 149.9b).

Salmo 150

Voltar ao índice Voltar ao índice

O salmo final retorna à música como nossa resposta aos “feitos poderosos” de Deus, sobre as quais toda a nossa atividade e todo trabalho se baseiam. Louve a Deus com trombetas, liras, harpas, tamborins, cordas, flautas, címbalos — tanto sonoros quanto retumbantes — e dançando. Vindo como o clímax de cinco canções cheias de trabalho, e como o fim último de toda a coleção de salmos, temos a impressão de que a música é realmente um trabalho muito importante. Não a música em si, no entanto, mas porque nos permite louvar ao Senhor mais alto. Podemos entender isso literal e metaforicamente. Da perspectiva literal, podemos considerar a música, a dança e as outras artes com um pouco mais de consideração do que o habitual na comunidade cristã, que nem sempre é receptiva à música (exceto dentro de limites bem claros) e às artes (em geral). Ou, pelo menos, podemos manter nossa própria música e arte em uma estima um pouco maior. Se não conseguimos encontrar tempo para expressar nossa própria criatividade artística, é possível que estejamos perdendo o valor das canções que Deus coloca em nosso coração?

Metaforicamente, será que o salmo 150 está nos convidando a fazer nosso trabalho como se fosse um tipo de música? Todos nós provavelmente poderíamos ter mais harmonia em nossos relacionamentos, um ritmo mais constante de trabalho e descanso, uma atenção à beleza do trabalho que fazemos e das pessoas com quem trabalhamos. Se pudéssemos ver a beleza em nosso trabalho, será que isso nos ajudaria a superar os desafios do trabalho, como tentações éticas, tédio, relacionamentos ruins, frustração e, às vezes, baixa produtividade? Por exemplo, imagine que você está tão frustrado com seu chefe que se sente tentado a parar de fazer seu trabalho da melhor maneira. Ajudaria se você pudesse ver a beleza em seu trabalho além do relacionamento com seu chefe? Que tipo de beleza seu trabalho traz ao mundo? Que beleza Deus vê no que você faz? Isso é suficiente para sustentá-lo em tempos difíceis ou para levá-lo a fazer as mudanças necessárias em seu trabalho ou na maneira como o faz?

De qualquer forma, não importa como percebamos nosso trabalho, Deus deseja que nosso trabalho o louve. Os 150 salmos da Bíblia cobrem todos os aspectos da vida e da obra, desde os terrores mais sombrios até as esperanças mais brilhantes. Alguns falam de morte e desespero, outros de prosperidade e esperança. Mas a conclusão final do livro dos Salmos é o louvor. “Tudo o que tem vida louve o Senhor! Aleluia!” (Sl 150.6).

Introdução a Provérbios

Voltar ao índice Voltar ao índice

Qual é a diferença entre ser inteligente e ser sábio? A sabedoria vai além do conhecimento. É mais do que um catálogo de fatos. É uma compreensão magistral da vida, uma arte prática de viver e uma experiência em tomar boas decisões. Provérbios nos desafia a adquirir conhecimento, a aplicar esse conhecimento em nossa vida e a compartilhar a sabedoria que adquirimos com os outros.

Para onde podemos ir em busca de sabedoria? O livro afirma que a sabedoria vai além do conhecimento, mas deve começar com o conhecimento dos provérbios. [1] “Estes são os provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel. Eles ajudarão a experimentar a sabedoria e a disciplina; a compreender as palavras que dão entendimento” (Pv 1.1-2). Para produzir sabedoria, o conhecimento deve ser misturado com o temor do Senhor. [2] “Temor [em hebraico yare] do Senhor” é frequentemente usado no Antigo Testamento como sinônimo de “viver em resposta a Deus”. O livro de Provérbios declara que “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é entendimento” (Pv 9.10). Conhecimento sem compromisso com o Senhor é tão inútil quanto cimento sem água para fazer argamassa. Paradoxalmente, aceitar os provérbios pela fé no coração produz o temor do Senhor. “Meu filho, se você aceitar as minhas palavras e guardar no coração os meus mandamentos... então você entenderá o que é temer o Senhor e achará o conhecimento de Deus” (Pv 2.1,5).

A verdadeira sabedoria para o cristão envolve toda a revelação de Deus, especialmente como é conhecida em seu Filho, o Senhor Jesus Cristo. Começa com a percepção de quem é o Senhor, o que ele fez e o que ele deseja para nós e para o mundo em que vivemos. À medida que crescemos em nossa compreensão do Senhor, aprendemos a cooperar com ele enquanto ele sustenta e redime o mundo. Isso muitas vezes nos torna mais frutíferos, de maneiras que beneficiam a nós mesmos e de maneiras que ajudam os outros. Isso nos leva a reverenciar o Senhor em nossa vida e trabalho diários. “O temor do Senhor conduz à vida: quem o teme pode descansar em paz, livre de problemas” (Pv 19.23).

Em Provérbios, adquirir sabedoria também nos torna bons e vice-versa. Não adquirimos verdadeiramente sabedoria até que a apliquemos em nossa vida. “Os sábios são cautelosos e se desviam do mal” (Pv 14.16). “A boca do justo produz sabedoria” (Pv 10.31). Provérbios antecipa a admoestação de Jesus: “Sede sábios como as serpentes e inocentes como as pombas” (Mt 10.16). A sabedoria vem do Senhor. “Eu lhes ensinei o caminho da sabedoria; Eu os guiei pelas veredas da retidão”, declara o Senhor (Pv 4.11). Em Provérbios, o mental e o moral se unem, e a sabedoria reflete a verdade de que um Deus bom ainda está no comando.

O livro de Provérbios também adverte aqueles que negligenciam o crescimento em sabedoria. A sabedoria, personificada em todo o livro como uma mulher, [3] fala: “Todo aquele que me encontra, encontra a vida e recebe o favor do Senhor. Mas aquele que de mim se afasta, a si mesmo se agride; todos os que me odeiam amam a morte” (Pv 8.35-36). A sabedoria traz uma vida maior e mais plena. A falta de sabedoria diminui a vida e, em última análise, leva à morte.

O livro de Provérbios nos diz ainda que a sabedoria que adquirimos não é apenas para nós mesmos, mas também para compartilharmos com os outros, a fim de ajudar “a dar prudência aos inexperientes e conhecimento e bom senso aos jovens” (Pv 1.4). Também somos recomendados a “instruir o homem sábio” e “ensinar o homem justo” (Pv 9.9). Provérbios 26.4-5 aconselha o leitor quanto a compartilhar sabedoria com um tolo. Compartilhamos sabedoria não apenas ensinando, mas também vivendo com sabedoria, transmitindo sabedoria àqueles que nos veem e seguem nosso exemplo. O oposto também é verdadeiro. Se vivermos tolamente, outros podem ser tentados a fazer a mesma tolice, e prejudicaremos não apenas a nós mesmos, mas a eles mesmos. Muitas vezes, o progresso no trabalho de nossa vida nos torna cada vez mais visíveis, e os efeitos de nossa sabedoria ou loucura influenciam cada vez mais pessoas. Com o tempo, isso pode ter as consequências mais profundas, pois “o ensino dos sábios é fonte de vida, e afasta o homem das armadilhas da morte” (Pv 13.14).

Sobre o livro de Provérbios

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em todo o Antigo Oriente Próximo, os governantes costumavam incumbir sábios para que reunissem a sabedoria aceita em sua nação, a fim de instruir os jovens que ingressavam em profissões ou serviços governamentais na corte real. [1] Esses dizeres sábios, destilados da observação da vida e das realidades da experiência humana, tornavam-se o texto para as gerações futuras, à medida que atingiam a idade adulta. O livro de Provérbios, no entanto, reivindica o próprio rei Salomão como seu principal autor (Pv 1.1) e reivindica que sua inspiração vem do Senhor. “Pois o Senhor é quem dá sabedoria; de sua boca procedem o conhecimento e o discernimento” (Pv 2.6). O livro exige fé no Senhor, não na experiência humana.

“Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio entendimento” (Pv 3.5). “Não seja sábio aos seus próprios olhos; tema o Senhor e evite o mal” (Pv 3.7). Outros manuais antigos do Oriente Próximo implicam ou assumem uma origem divina da sabedoria que ensinam, mas Provérbios é enfático ao atribuir sabedoria única e diretamente ao Senhor. [2] A mensagem central do livro é que a verdadeira sabedoria é baseada em nosso relacionamento com Deus: não podemos ter verdadeira sabedoria sem um relacionamento vivo com o Senhor.

Assim, os provérbios deste livro são mais do que mero senso comum ou bons conselhos; eles nos ensinam não apenas a conexão entre nossas ações e nosso destino, mas também como criar uma comunidade pacífica e próspera sob o Senhor, a fonte da verdadeira sabedoria.

Ao mesmo tempo, esses ditos curtos e concisos que chamamos de provérbios são generalizações sobre a vida, não promessas atomizadas. Deus trabalha por meio deles para guiar nosso pensamento, mas devemos ter cuidado para não transformar a coleção de provérbios em um saco de biscoitos da sorte. Nenhum provérbio isolado pode ser tomado como expressão de toda a verdade; ele deve ser considerado à luz do contexto mais amplo de todo o livro. [3] Somente um tolo leria “Instrua a criança segundo os objetivos que você tem para ela, e mesmo com o passar dos anosa não se desviará deles” (Pv 22.6) e concluiria que uma criança é um robô programado. O provérbio ensina que o treinamento dos pais tem seu efeito, mas deve ser trabalhado em conjunto com outros provérbios que reconhecem a responsabilidade de cada pessoa por sua própria conduta, como: “Os olhos de quem zomba do pai, e, zombando, nega obediência à mãe, serão arrancados pelos corvos do vale, e serão devorados pelos filhotes do abutre” (Pv 30.17). Dominar os provérbios requer tecer um manto de sabedoria a partir de toda a coleção. Obter sabedoria do livro de Provérbios requer estudo ao longo da vida.

Essa não é uma tarefa simples. Alguns dos provérbios estão em tensão uns com os outros, embora não em oposição direta. Outros são apresentados com uma ambiguidade que força o leitor a refletir sobre várias interpretações possíveis. Deve-se prestar muita atenção a quem o provérbio se dirige. A advertência: “Não ame o sono” (Pv 20.13) é um provérbio dirigido a todos os filhos de Deus (veja Pv 1.4-5), mas a garantia: “O seu sono será tranquilo” (Pv 3.24) é dirigida àqueles que não perdem de vista a sabedoria e o entendimento (Pv 3.21). O livro de Provérbios é atemporal, mas a aplicação de provérbios deve ser oportuna, como o livro de Jó ilustra (veja Jó e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org). Os provérbios são pedras de toque no lento desenvolvimento da virtude e levam muito tempo para serem entendidos. “Se o sábio lhes der ouvidos, aumentará seu conhecimento, e quem tem discernimento obterá orientação para compreender provérbios e parábolas, ditados e enigmas dos sábios” (Pv 1.5-6).

O livro de Provérbios contém sete coleções. A coleção 1 (Pv 1.1—9.18) contém extensos discursos que buscam preparar o coração do discípulo para as palavras sucintas nas coleções que seguintes. A coleção 2 (Pv 10.1—22.16) são “provérbios de Salomão”. A coleção 3 (Pv 22.17—24.22) abrange os “ditados dos sábios”, que provavelmente são adotados e adaptados por Salomão, [4] e a coleção 4 (Pv 24.23-34) estende isso com “outros ditados dos sábios”. A coleção 5 (Pv 25.1—29.27) abrange “outros provérbios de Salomão, compilados pelos servos de Ezequias, rei de Judá”, após vasculhar registros antigos do tempo de Salomão. (Ezequias reinou cerca de 300 anos depois de Salomão.) A coleção 6 (Pv 30.1-33) e a coleção 7 (Pv 31.1-31) são atribuídas a Agur e a Lemuel, respectivamente, sobre os quais pouca coisa se sabe. [5] O resultado final é uma única obra de ditos, conselhos, instruções e advertências, estruturada como um manual para jovens que estão começando sua vida profissional, bem como e pessoas de todas as idades, desafiando cada um a buscar a sabedoria do Senhor (Pv 1. 2-7).

Os provérbios mais frequentemente são dispostos em duplas contrastantes: diligência x preguiça, honestidade x desonestidade, planejamento x decisões tomadas às pressas, agir com justiça x tirar vantagem dos vulneráveis, buscar bons conselhos x arrogância, e assim por diante. Os provérbios no livro falam mais sobre nosso discurso sábio do que sobre qualquer outro assunto, com o segundo maior número abrangendo trabalho e seu correlato, o dinheiro. Embora o livro se divida nas sete coleções mencionadas acima, os provérbios dessas coleções voltam repetidamente aos mesmos tópicos. Por esse motivo, este artigo discutirá os ensinamentos relacionados ao trabalho por tópico, em vez de percorrer cada coleção na ordem em que aparecem no livro. Uma tabela de versículos, com links para os locais em que são discutidos no artigo, pode ser encontrada ao final desse artigo. Isso tem como objetivo ajudar os leitores a localizarem em que parte do artigo um versículo ou passagem específica é discutido, não encorajar os leitores a ler versículos individuais de forma isolada.

Uma prática que muitos cristãos no ambiente de trabalho acham útil é ler um capítulo do livro por dia, correspondente ao dia do mês. (Provérbios tem 31 capítulos.) Muitos tópicos do livro são cobertos por vários provérbios, espalhados por todo o livro, o que significa que cada um deles será encontrado em vários dias diferentes de cada mês. Esse tipo de repetição é uma ajuda para o aprendizado. Além disso, nossa receptividade aos tópicos muda de acordo com o que está acontecendo em nossa vida. À medida que nossas circunstâncias mudam ao longo do mês, um tópico que não chamou nossa atenção em um dia pode se tornar significativo em outro. Com o tempo, somos capazes de extrair mais sabedoria do que se encontrássemos cada tópico apenas uma vez. Por exemplo, no dia 14 de um determinado mês, você leria o capítulo 14, mas talvez não notasse o tópico da opressão dos pobres no versículo 31. (“Oprimir o pobre é ultrajar o seu Criador.”). Mas talvez, ao longo do mês, você note um morador de rua, veja uma notícia sobre pobreza ou mesmo fique sem dinheiro. Você pode estar preparado para prestar atenção ao assunto quando ele surgir novamente no dia 17 (“Quem zomba dos pobres mostra desprezo pelo Criador deles”; Pv 17.5), ou o no dia 21 (“Quem fecha os ouvidos ao clamor dos pobres também clamará e não terá resposta”; Pv 21.13), ou no dia 22 (“Não explore os pobres por serem pobres”; Pv 22.22), ou ainda no dia 28 (“Quem aumenta sua riqueza com juros exorbitantes ajunta para algum outro, que será bondoso com os pobres”; Pv 28.8). Além disso, o assunto é abordado de forma um pouco diferente a cada vez, dando a oportunidade de obter perspectivas mais profundas sempre que é repetido.

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

Voltar ao índice Voltar ao índice

A preocupação central do livro é o chamado para viver a vida em reverência a Deus. Esse chamado abre (Pv 1.7), permeia (Pv 9.10) e encerra o livro (Pv 31.30). Os provérbios nos dizem que bons hábitos de trabalho honram a Deus, crescem a partir do caráter formado por nosso temor a Deus e geralmente levam à prosperidade. De fato, o temor do Senhor e a sabedoria são diretamente equiparados. “Você entenderá o que é temer o Senhor e achará o conhecimento de Deus. Pois o Senhor é quem dá sabedoria; de sua boca procedem o conhecimento e o discernimento” (Pv 2.5-6).

Os provérbios, em outras palavras, têm a intenção de formar o caráter divino (ou piedoso) naqueles que os leem. Essa é a razão pela qual muitos dos provérbios se fundamentam explicitamente no caráter divino, o que é mostrado tanto pelo que Deus odeia quanto pelo que ele se deleita:

Há seis coisas que o Senhor odeia ... (Pv 6.16)
O Senhor repudia balanças desonestas, mas os pesos exatos lhe dão prazer. (Pv 11.1)
Os olhos do Senhor estão em toda parte. (Pv 15.3)

O caráter piedoso — isto é, a sabedoria — é essencial em toda a vida, incluindo o trabalho. Uma olhada nos provérbios demonstra que o livro tem muito a contribuir para o trabalho. Muitos dos provérbios falam diretamente sobre as atividades no ambiente de trabalho do Antigo Oriente Próximo, incluindo agricultura, pecuária, fabricação de tecidos e roupas, comércio, transporte, assuntos militares, governança, tribunais, tarefas domésticas, criação dos filhos, educação, construção e outros. O dinheiro — que está intimamente relacionado ao trabalho — também é um tópico de destaque. Muitos outros provérbios cobrem tópicos que se aplicam significativamente ao trabalho, como prudência, honestidade, justiça, perspicácia e bons relacionamentos.

A Mulher Valente (Provérbios 31.10-31)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Uma conexão notável entre o livro de Provérbios e o mundo do trabalho ocorre no final do livro. A Sabedoria, que encontramos no início do livro (Pv 1.20-33; 8.1—9.12), reaparece com roupas comuns nos 22 versículos finais do livro (Pv 31.10-31) como uma mulher de carne e osso, comumente conhecida como “a mulher virtuosa” (ARA). Alguns tradutores usam “esposa” em vez de “mulher”, provavelmente porque o marido e os filhos da mulher são mencionados na passagem. (Tanto “esposa” quanto “mulher” são traduções possíveis do hebraico ishshah.) De fato, ela encontra realização em sua família: “Seu marido é respeitado na porta da cidade, onde toma assento entre as autoridades da sua terra” (Pv 31.23). Mas o texto enfoca o trabalho da mulher como empresária que tem uma indústria caseira com seus servos/empregados para administrar (Pv 31.15). [1] O texto de Provérbios 31.10-31 não se aplica apenas ao ambiente de trabalho; ele se passa em um ambiente de trabalho.

O livro de Provérbios é resumido, então, em um poema que elogia uma mulher que é a sábia gerente de diversos empreendimentos, desde a tecelagem até a produção de vinho e o comércio no mercado. Os tradutores usam palavras como “virtuosa” (ARA), “exemplar” (NVI) e “excelente” (ESV) para descrever o caráter dessa mulher em Provérbios 31.10. Mas esses termos não conseguem capturar o elemento de força ou poder presente na palavra hebraica utilizada (chayil). Quando aplicado a um homem, esse mesmo termo é traduzido como “força”, como em Provérbios 31.3. Na grande maioria de suas 246 aparições no Antigo Testamento, a palavra se aplica a homens que lutam (por exemplo, os “homens de combate” de Davi, 1Cr 7.2). Os tradutores tendem a minimizar o elemento de força quando a palavra é aplicada a uma mulher, como no caso de Rute (Rt 3.11), a quem as traduções descrevem como “virtuosa” (NVI, NVT, ARA), “corajosa” (BPT) ou “direita” (NTLH). Mas a palavra é a mesma, seja aplicada a homens ou mulheres. Ao descrever a mulher de Provérbios 31.10-31, seu significado é melhor entendido como forte ou valente, conforme indicado por Pv 31.17: “Entrega-se com vontade ao seu trabalho; seus braços são fortes e vigorosos”. Al Wolters argumenta, por causa dessa linguagem bélica, que a tradução mais apropriada é “Mulher Valente”. [2] Portanto, nos referiremos à mulher de Provérbios 31.10-31 como a “Mulher Valente”, que capta tanto a força quanto a virtude carregadas pela expressão hebraica chayil.

A passagem final do livro de Provérbios caracteriza essa mulher forte como uma trabalhadora sábia em cinco conjuntos de práticas em seu ambiente de trabalho. A alta importância desta seção é sinalizada de duas maneiras. Primeiro, está na forma de um poema acróstico, o que significa que seus versos começam com as 22 letras do alfabeto hebraico, em ordem, tornando-o de fácil memorização. Segundo, ele é colocado como o clímax e o resumo de todo o livro. Consequentemente, os cinco conjuntos de práticas que observamos na Mulher Valente servirão como estrutura para explorar todo o livro.

Para algumas pessoas no Antigo Oriente Próximo, e até mesmo para algumas atualmente, seria surpreendente retratar uma mulher como um modelo de empreendedorismo sábio. Apesar do fato de que Deus deu o dom do trabalho a homens e mulheres igualmente (Gênesis 1—2), o trabalho das mulheres tem sido frequentemente diminuído e tratado com menos dignidade do que o dos homens. Seguindo o exemplo do livro, vamos nos referir a essa trabalhadora sábia como “ela”, pois entendemos que a sabedoria de Deus está disponível igualmente para homens e mulheres. Ela funciona no livro como uma afirmação da dignidade do trabalho de cada pessoa.

Como sempre no livro de Provérbios, o caminho da sabedoria flui do temor do Senhor. Depois que todas as habilidades e virtudes da Mulher Valente são descritas e honradas, a fonte de sua sabedoria é revelada. “A mulher que teme o Senhor será elogiada” (Pv 31.30).

O trabalhador sábio é confiável (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A primeira característica do caminho da sabedoria personificada na Mulher Valente é a confiabilidade. “Seu marido tem plena confiança nela” (Pv 31.11). A confiabilidade é a base da sabedoria e da virtude. Deus criou as pessoas para trabalharem em conjunto (Gn 2.15), e sem confiança isso não é possível. A confiança requer adesão a princípios éticos, começando pela fidelidade em nossos relacionamentos. Quais são as implicações de ser confiável no ambiente de trabalho descritas no livro de Provérbios?

O trabalhador confiável é fiel às suas responsabilidades fiduciárias (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O primeiro requisito da confiabilidade é que nosso trabalho traga o bem para aqueles que confiam em nós. A Mulher Valente trabalha não apenas para si mesma, mas também para o benefício daqueles que estão a seu redor. Seu trabalho beneficia seus clientes (Pv 31.14), sua comunidade (Pv 31.20), sua família imediata (Pv 31.12,28) e seus colaboradores (Pv 31.15). Na economia do Antigo Oriente Próximo, todas essas esferas de responsabilidade se reúnem em uma entidade econômica chamada “a família”. Como em grande parte do mundo de hoje, a maioria das pessoas trabalhava no mesmo lugar em que vivia. Alguns membros da família trabalhavam como cozinheiros, faxineiros, cuidadores ou artesãos de tecidos, metais, madeira e pedra em cômodos da própria casa. Outros trabalhavam nos campos próximos do lado de fora, como agricultores, pastores ou operários. A “família” refere-se a todo o complexo de empreendimentos produtivos, bem como à família extensa, incluindo trabalhadores empregados e, talvez, escravos que ali trabalhavam e viviam. Como gerente de uma casa, a Mulher Valente é muito parecida com uma empresária moderna ou uma executiva sênior. Quando ela “cuida dos negócios de sua casa” (Pv 31.27), ela está cumprindo um dever fiduciário de confiança para com todos aqueles que dependem de sua empresa.

Isso não significa que não podemos trabalhar para nosso próprio benefício também. O dever da Mulher Valente para com sua família é correspondido por seu dever para com ela. É apropriado que ela receba uma parte do lucro da família para seu próprio uso. A passagem instrui seus filhos, seu marido e toda a comunidade a honrá-la e louvá-la. “Seus filhos se levantam e a elogiam; seu marido também a elogia... Que ela receba a recompensa merecida, e as suas obras sejam elogiadas à porta da cidade” (Pv 31.28,31).

Nosso dever fiduciário exige que não façamos mal a nossos empregadores na busca de atender às nossas próprias necessidades. Podemos discutir com eles ou lutar contra o tratamento que eles nos dão, mas não podemos lhes fazer mal. Por exemplo, não podemos roubar (Pv 29.24), vandalizar (Pv 18.9) ou caluniar (Pv 10.18) nossos empregadores, a fim de expor nossas queixas. Algumas aplicações disso são óbvias. Não podemos cobrar de um cliente por horas em que não trabalhamos. Não podemos destruir a propriedade de nossos empregadores ou acusá-los falsamente. A reflexão sobre esse princípio pode nos levar a implicações e perguntas mais profundas. É legítimo causar danos à produtividade ou à harmonia da organização, deixando de ajudar nossos rivais internos? O acesso a benefícios pessoais — viagens, prêmios, gratuidades e similares — está nos levando a direcionar os negócios para determinados fornecedores em detrimento dos melhores interesses de nosso empregador? O dever mútuo que empregados e empregadores devem uns aos outros é um assunto sério.

O mesmo dever se aplica às organizações quando elas têm um dever fiduciário para com outras organizações. É legítimo que uma empresa negocie com seus clientes para obter um preço mais alto. Mas não é legítimo lucrar tirando vantagem secreta de um cliente, como vários bancos de investimento fizeram quando instruíram seus representantes a recomendar um certo seguro hipotecário aos clientes como sendo um investimento sólido, enquanto, ao mesmo tempo, vendiam tais seguros na expectativa de que seu valor caísse. [1]

O temor do Senhor é a pedra de toque da responsabilidade fiduciária. “Não seja sábio aos seus próprios olhos; tema o Senhor e evite o mal” (Pv 3.7). Todas as pessoas são tentadas a servir a si mesmas às custas dos outros. Essa é a consequência da queda em pecado. No entanto, esse provérbio nos diz que o temor do Senhor — lembrar sua bondade para conosco, sua providência sobre todas as coisas e sua justiça quando prejudicamos os outros — nos ajuda a cumprir nosso dever para com os outros.

O trabalhador confiável é honesto (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A honestidade é outro aspecto essencial da confiabilidade. Isso é tão importante, que um provérbio iguala a verdade à própria sabedoria. “Compre a verdade e não a venda; compre a sabedoria, a instrução e o entendimento” (Pv 23.23, NAA). A honestidade consiste tanto em dizer a verdade como em praticar a verdade.

Palavras honestas

O capítulo 6 contém uma lista bem conhecida de sete coisas que Deus odeia. Duas das sete são formas de desonestidade: “língua mentirosa” e “testemunha falsa que espalha mentiras” (Pv 6.16-19). Em todo o livro de Provérbios, a importância de dizer a verdade é uma ênfase constante.

Ouçam, pois tenho coisas importantes para dizer; os meus lábios falarão do que é certo. Minha boca fala a verdade, pois a maldade causa repulsa aos meus lábios. (Pv 8.6-7)
A testemunha que fala a verdade salva vidas, mas a testemunha falsa é enganosa. (Pv 14.25)
A fortuna obtida com língua mentirosa é ilusão fugidia e armadilha mortal. (Pv 21.6)
A testemunha falsa não ficará sem castigo, e aquele que despeja mentiras não sairá livre. (Pv 19.5)
Não testemunhe sem motivo contra o seu próximo nem use os seus lábios para enganá-lo. (Pv 24.28)
Quem esconde o ódio tem lábios mentirosos, e quem espalha calúnia é tolo. Quando são muitas as palavras, o pecado está presente, mas quem controla a língua é sensato. (Pv 10.18-19)
A testemunha fiel dá testemunho honesto, mas a testemunha falsa conta mentiras. Há palavras que ferem como espada, mas a língua dos sábios traz a cura. Os lábios que dizem a verdade permanecem para sempre, mas a língua mentirosa dura apenas um instante. O engano está no coração dos que maquinam o mal, mas a alegria está entre os que promovem a paz. (Pv 12.17-20)
O Senhor odeia os lábios mentirosos, mas se deleita com os que falam a verdade. (Pv 12.22)
Como um pedaço de pau, uma espada ou uma flecha aguda é o que dá falso testemunho contra o seu próximo. (Pv 25.18)
Quem odeia disfarça as suas intenções com os lábios, mas no coração abriga a falsidade. Embora a sua conversa seja mansa, não acredite nele, pois o seu coração está cheio de maldade. (Pv 26.24-25)

Embora a Bíblia tolere a mentira e o engano em circunstâncias excepcionais (por exemplo: o caso da prostituta Raabe, em Josué 2.1; as mentiras das parteiras hebreias ao faraó, em Êxodo 1.15-20; a mentira de Davi ao sacerdote, em 1Sm 21.1-3), Provérbios não permite que a mentira ou o engano tenham um papel na vida e no trabalho diários. A questão não é apenas que mentir é errado, mas também que dizer a verdade é essencial. Evitamos mentir, não apenas porque haja uma regra contra isso, mas porque, em nosso temor a Deus, amamos a verdade.

Mentir é destrutivo e leva, em última análise, à punição e à morte. [1] Somos advertidos não apenas a evitar o engano, mas a ter cuidado com os enganadores ao nosso redor. Não devemos nos permitir ser enganados por suas mentiras. Mesmo aqui, reconhecemos que nós mesmos podemos estar propensos a acreditar nas mentiras que ouvimos. Como a fofoca (que geralmente é uma mentira envolta em uma aura de verdade), encontramos uma mentira nos atraindo para o círculo daqueles que parecem saber das coisas e gostamos disso. Ou descobrimos que, em nossa própria perversidade, queremos acreditar na mentira. Mas os provérbios nos advertem vigorosamente para nos afastarmos daqueles que mentem. Um ambiente de trabalho onde apenas a verdade é dita (em amor, veja Ef 4.15) é utópico, mas Deus nos chama para estar entre aqueles que evitam a língua mentirosa.

Cerca de metade desses provérbios proíbem o falso testemunho em particular, ecoando o nono mandamento (Êx 20.16). Se enganar os outros em geral é algo ímpio, então falsificar um relato das ações de outra pessoa é um crime que “não ficará sem castigo” (Pv 19.5). Um falso testemunho é um ataque direto a uma pessoa inocente. No entanto, pode ser a forma mais comum de mentira no ambiente de trabalho, perdendo apenas, talvez, para a propaganda enganosa. Enquanto a propaganda enganosa é, pelo menos, direcionada contra pessoas de fora (clientes) que sabem ser cautelosas com os discursos de vendas e geralmente têm outras fontes de informação, um falso testemunho geralmente é um ataque a um colega de trabalho e provavelmente será aceito sem questionamentos dentro da empresa. Isso ocorre quando tentamos transferir a culpa ou o crédito ao distorcer os papéis e as ações dos outros. Ela prejudica não apenas aqueles cujas ações relatamos incorretamente, mas toda a organização, pois uma organização que não consegue entender com precisão as razões de seus sucessos e fracassos atuais não será capaz de fazer as mudanças necessárias para melhorar e se adaptar. É como atirar em alguém em um submarino. Não apenas acerta a vítima, mas também afunda o submarino e afoga toda a tripulação.

Para uma discussão mais completa sobre honestidade na Bíblia, veja o artigo Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org.

Ações honestas

Não apenas palavras, mas também ações podem ser verdadeiras ou falsas. “Os justos odeiam o que é falso, mas os ímpios trazem vergonha e desgraça” (Pv 13.5, ênfase adicionada). A forma mais proeminente de ação desonesta nos provérbios é o uso de pesos e medidas falsos. “Balanças e pesos honestos vêm do Senhor; todos os pesos da bolsa são feitos por ele” (Pv 16.11). Por outro lado, “o Senhor repudia balanças desonestas, mas os pesos exatos lhe dão prazer” (Pv 11.1). “O Senhor detesta pesos adulterados, e balanças falsificadas não o agradam” (Pv 20.23). Pesos e medidas falsos se referem a fraudar um cliente sobre o produto que está sendo vendido. Rotular incorretamente um produto, reduzir a qualidade prometida e deturpar a fonte ou a origem — além de falsificar descaradamente a quantidade — são exemplos desse tipo de desonestidade. Tais práticas são uma abominação para Deus.

Existem razões práticas para agir com honestidade. No curto prazo, atos desonestos podem produzir uma renda maior, mas, no longo prazo, clientes ou consumidores vão entender a situação e procurar outro fornecedor. No entanto, em última análise, é o temor de Deus que nos encurrala, mesmo quando pensamos que poderíamos nos livrar da desonestidade em termos humanos. “Pesos adulterados e medidas falsificadas são coisas que o Senhor detesta” (Pv 20.10).

Além de pesos e medidas falsos, existem outras maneiras de ser desonesto no ambiente de trabalho. Um exemplo do Antigo Testamento diz respeito à propriedade da terra, que era certificada com marcadores de fronteira. Uma pessoa desonesta poderia mudar furtivamente esses marcos de fronteira para aumentar suas propriedades às custas de seu próximo. Os provérbios condenam atos desonestos como esse. “Não mude de lugar os antigos marcos de propriedade, nem invada as terras dos órfãos, pois aquele que defende os direitos deles é forte. Ele lutará contra você para defendê-los” (Pv 23.10-11). Os provérbios não enumeram todo tipo de ato desonesto que poderia ser cometido no antigo Israel, muito menos em nosso mundo de hoje. Mas eles estabelecem o princípio de que atos desonestos são tão repugnantes ao Senhor quanto palavras desonestas.

Como se manifesta a honestidade — tanto em palavras quanto em ações — no ambiente de trabalho de hoje? Se lembrarmos que a honestidade é um aspecto da confiabilidade, o critério de honestidade deveria ser o seguinte: “As pessoas podem confiar no que eu digo e faço?”, e não: “Isso é tecnicamente verdade?” Existem maneiras de quebrar a confiança sem cometer fraude total. Os contratos podem ser alterados ou ofuscados para dar vantagem injusta à parte com os advogados mais sofisticados. Os produtos podem ser descritos em termos enganosos, como quando um rótulo de alimento promete que “aumenta a energia”, mas em não significa nada além de “contém mais calorias”. No final, de acordo com os provérbios, Deus defenderá a causa daqueles que foram enganados e não tolerará essas práticas (Pv 23.11). Enquanto isso, trabalhadores sábios — isto é, piedosos — evitarão tais práticas.

Os provérbios voltam repetidas vezes ao tema da honestidade. “A integridade dos justos os guia, mas a falsidade dos infiéis os destrói” (Pv 11.3). “Saborosa é a comida que se obtém com mentiras, mas depois dá areia na boca” (Pv 20.17). Um provérbio divertido aponta outra forma de engano: “‘Não vale isso! Não vale isso!’, diz o comprador, mas, quando se vai, gaba-se do bom negócio” (Pv 20.14). Falar mal deliberadamente de um produto que queremos, a fim de reduzir o preço, e depois se vangloriar de nossa “pechincha” também é uma forma de desonestidade. No campo da barganha entre compradores e vendedores experientes, essa prática pode ser mais um entretenimento do que um abuso. Mas, em seu disfarce moderno de spin doctoring — como quando um candidato político tenta convencer um grupo de eleitores dizendo que está do lado deles, ao mesmo tempo em que tenta convencer os eleitores do grupo oposto que de que lhes é favorável —, isso revela a fraude por trás da deturpação intencional da realidade.

O trabalhador sábio é diligente (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Mulher Valente é diligente. Provérbios retrata sua diligência de três maneiras: 1) Trabalho árduo; 2) Planejamento de longo prazo; 3) Rentabilidade. Como resultado de sua diligência nesse sentido, ela está confiante em relação ao futuro.

O trabalhador diligente é esforçado (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Mulher Valente “trabalha de boa vontade com as suas mãos” (Pv 31.13, ARC), o que significa que ela escolhe, por sua própria vontade, trabalhar incansavelmente em busca dos objetivos da família. “Antes de clarear o dia ela se levanta” (Pv 31.15). “Ela faz roupas de linho e as vende” (Pv 31.24). “Com o que ganha planta uma vinha” (Pv 31.16). Com isso, há muito trabalho a ser feito.

Em uma economia agrária, é fácil ver a conexão entre trabalho árduo e bem-estar. Desde que tenham acesso à terra para cultivar, os agricultores que se esforçam no trabalho se saem muito melhor do que os preguiçosos. Os provérbios mostram claramente que um trabalhador preguiçoso sairá perdendo no final.

As mãos preguiçosas empobrecem o homem, porém as mãos diligentes lhe trazem riqueza. Aquele que faz a colheita no verão é filho sensato, mas aquele que dorme durante a ceifa é filho que causa vergonha. (Pv 10.4-5)

Passei pelo campo do preguiçoso, pela vinha do homem sem juízo; havia espinheiros por toda parte, o chão estava coberto de ervas daninhas e o muro de pedra estava em ruínas. Observei aquilo, e fiquei pensando; olhei, e aprendi esta lição: “Vou dormir um pouco”, você diz. “Vou cochilar um momento; vou cruzar os braços e descansar mais um pouco”, mas a pobreza lhe sobrevirá como um assaltante, e a sua miséria como um homem armado. (Pv 24.30-34)

No Antigo Oriente Próximo, o trabalho árduo trazia prosperidade, mas mesmo uma semana de relaxamento durante a colheita poderia significar um inverno com fome.

As economias modernas (pelo menos no mundo desenvolvido) podem mascarar esse efeito no curto prazo. Em tempos de prosperidade, quando praticamente todos podem encontrar trabalho, o trabalhador preguiçoso pode ter um emprego e parecer se sair quase tão bem quanto o trabalhador diligente. Da mesma forma, em crises econômicas (e em todos os momentos em muitas economias emergentes), uma pessoa que trabalha arduamente pode não ter mais sucesso do que uma preguiçosa em encontrar um emprego. E, em todos os momentos, as recompensas pelo trabalho árduo podem ser atenuadas por discriminação, regras de antiguidade, contratos sindicais, favoritismo dos chefes, nepotismo, acordos rescisórios, indicadores de desempenho falhos, ignorância por parte dos gerentes e muitos outros fatores.

Isso torna obsoletos os provérbios sobre a diligência e o trabalho árduo? Não, de modo algum, por duas razões. Primeiro, mesmo nas economias modernas, a diligência geralmente é recompensada ao longo de uma vida profissional. Quando os empregos são escassos, são os trabalhadores diligentes que têm maior probabilidade de manter seus empregos ou encontrar novos empregos mais rapidamente. Em segundo lugar, a principal motivação para a diligência não é a prosperidade pessoal, mas o temor do Senhor, como vimos com as outras virtudes nos provérbios. Somos diligentes porque o Senhor nos chama para nossas tarefas, e nosso temor a ele nos motiva a ser diligentes em nosso trabalho.

A preguiça ou a falta de diligência no ambiente de trabalho é destrutiva. Todos os que já experimentaram colegas de trabalho preguiçosos podem apreciar este provérbio pungente: “Como o vinagre para os dentes e a fumaça para os olhos, assim é o preguiçoso para aqueles que o enviam” (Pv 10.26). Detestamos ficar presos no mesmo time de pessoas que não carregam sua parte do fardo.

O trabalhador diligente planeja a longo prazo (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Mulher Valente planeja com antecedência. “Ela traz de longe as suas provisões” (Pv 31.14), o que significa que ela não depende de compras de última hora, de qualidade e custo questionáveis. Ela “avalia um campo” (Pv 31.16) antes de comprá-lo, investigando seu potencial de longo prazo. Ela está planejando plantar uma vinha neste campo específico (Pv 31.16), e as vinhas só produzem sua primeira safra cerca de dois ou três anos após o plantio. [1] O ponto é que ela toma decisões com base em suas consequências a longo prazo. Provérbios 21.5 nos diz que “os planos de quem é esforçado conduzem à fartura, mas a pressa excessiva leva à pobreza”.

Um planejamento sábio requer a tomada de decisões de longo prazo, como visto, por exemplo, no ciclo de gestão de atividades agrícolas.

Esforce-se para saber bem como suas ovelhas estão, dê cuidadosa atenção aos seus rebanhos, pois as riquezas não duram para sempre, e nada garante que a coroa passe de uma geração a outra. Quando o feno for retirado, surgirem novos brotos e o capim das colinas for colhido, os cordeiros lhe fornecerão roupa, e os bodes lhe renderão o preço de um campo. Haverá fartura de leite de cabra para alimentar você e sua família, e para sustentar as suas servas. (Pv 27.23-27)

Como a Mulher Valente que planta um vinhedo, o pastor sábio pensa anos à frente. Da mesma forma, o sábio rei ou governador tem uma visão de longo prazo. “Quando os justos florescem, o povo se alegra” (Pv 28.2). Os provérbios também se voltam para a formiga como um exemplo de diligência a longo prazo.

Observe a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio! Ela não tem nem chefe, nem supervisor, nem governante, e ainda assim armazena as suas provisões no verão e na época da colheita ajunta o seu alimento. Até quando você vai ficar deitado, preguiçoso? Quando se levantará de seu sono? Tirando uma soneca, cochilando um pouco, cruzando um pouco os braços para descansar, a sua pobreza o surpreenderá como um assaltante, e a sua necessidade lhe sobrevirá como um homem armado. (Pv 6.6-11)

O planejamento antecipado assume muitas formas nos ambientes de trabalho. O planejamento financeiro é mencionado em Provérbios 24.27 (NAA): “Cuide dos seus negócios lá fora, apronte a lavoura no campo e, depois, edifique a sua casa”. Em outras palavras, não comece a construir sua casa até que seus campos estejam produzindo os fundos necessários para concluir seu projeto de construção. Jesus captou isso em Lucas 14.28-30: “Qual de vocês, se quiser construir uma torre, primeiro não se assenta e calcula o preço, para ver se tem dinheiro suficiente para completá-la? Pois, se lançar o alicerce e não for capaz de terminá-la, todos os que a virem rirão dele, dizendo: ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de terminar’”.

Existem muitas outras formas de planejamento, e não podemos esperar que os provérbios sirvam como um manual de planejamento para uma empresa moderna. Mas novamente podemos notar a ligação nos provérbios entre a sabedoria, na forma de planejamento, e o caráter de Deus.

Ao homem pertencem os planos do coração, mas do Senhor vem a resposta da língua. (Pv 16.1)
Muitos são os planos no coração do homem, mas o que prevalece é o propósito do Senhor. (Pv 19.21)

Deus planeja a muito longo prazo, e também é prudente planejar com antecedência. Mas devemos permanecer humildes sobre nossos planos. Ao contrário de Deus, não temos o poder de fazer com que todos os nossos planos se realizem. “Não se gabe do dia de amanhã, pois você não sabe o que este ou aquele dia poderá trazer” (Pv 27.1). Planejamos com sabedoria, falamos com humildade e vivemos na expectativa de que os planos de Deus sejam nosso desejo final.

A atenção às consequências de longo prazo pode ser a habilidade mais importante que podemos cultivar para o sucesso. Por exemplo, pesquisas psicológicas mostraram que a capacidade de adiar a gratificação — ou seja, a capacidade de tomar decisões com base em resultados de longo prazo — é um indicador muito melhor de sucesso na escola do que o QI. [2] Lamentavelmente, os cristãos às vezes parecem entender passagens como “Não se preocupem com o amanhã” (Mt 6.34) como significando: “Não planeje o amanhã com antecedência”. Os provérbios — ao lado das próprias palavras de Jesus — mostram que isso é incorreto e autocomplacente. Na verdade, toda a vida cristã, com sua expectativa do retorno de Cristo para aperfeiçoar o Reino de Deus, é uma vida de planejamento a longo prazo.

O trabalhador diligente contribui para a lucratividade da empresa (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Mulher Valente garante que o trabalho de suas mãos seja comercializável. Ela sabe o que os mercadores estão comprando (Pv 31.24), escolhe seus materiais com cuidado (Pv 31.13) e trabalha incansavelmente para garantir um produto de qualidade (Pv 31.18b). Como recompensa, tem um “comércio lucrativo” (Pv 31.18a), fornecendo os recursos necessários para a família e a comunidade. Os provérbios são claros em mostrar que a diligência de um trabalhador individual contribui para a lucratividade de todo o empreendimento. “Os planos de quem é esforçado conduzem à fartura, mas a pressa excessiva leva à pobreza” (Pv 21.5, NAA). O exemplo inverso é mostrado em outro provérbio: “Quem relaxa em seu trabalho é irmão do que o destrói” (Pv 18.9). Um trabalhador preguiçoso não é melhor do que alguém que deliberadamente se propõe a destruir a empresa. Tudo isso antecipa a parábola dos talentos de Jesus (Mt 25.14-30).

Quando temos em mente que esses provérbios sobre o lucro se baseiam no caráter de Deus, vemos que Deus quer que trabalhemos de forma lucrativa. Não é suficiente concluir as tarefas que nos foram atribuídas. Devemos nos preocupar se nosso trabalho realmente agrega valor aos materiais, ao capital e à mão de obra consumidos. Em economias abertas, a concorrência determina que obter lucro pode ser muito desafiador. Os não diligentes — preguiçosos, complacentes ou dissolutos — podem rapidamente decair em perdas, falências e ruínas. Os diligentes — esforçados, criativos, focados — prestam um serviço piedoso quando possibilitam que seus negócios operem de forma lucrativa.

Os cristãos nem sempre reconheceram a importância do lucro na perspectiva bíblica. Na verdade, o lucro é frequentemente visto com suspeita e discutido em uma retórica de “pessoas x lucros”. Há uma suspeita de que o lucro não vem de pegar insumos e criar algo mais valioso a partir deles, mas de enganar compradores, trabalhadores ou fornecedores. Isso surge de uma compreensão inadequada de negócios e economia. Uma crítica verdadeiramente bíblica aos negócios faria perguntas como: “Que tipo de lucro?”; “Qual é a origem do lucro?”; “O lucro é extraído por monopólio, intimidação ou fraude?”; e “Como o lucro é compartilhado entre trabalhadores, gerentes, proprietários, credores, fornecedores, clientes e impostos?” Isso encorajaria e traria reconhecimento a trabalhadores e empresas que trazem uma lucratividade saudável ao seu trabalho.

Nem todos os trabalhadores estão em condições de saber se seu trabalho é lucrativo. Os funcionários de uma grande corporação podem ter pouca ideia se seu trabalho específico contribui positivamente para a lucratividade da empresa. A lucratividade, no sentido contábil, não desempenha um papel na educação, no governo, nas corporações sem fins lucrativos e nos lares. Mas todos os trabalhadores podem prestar atenção em como seu trabalho contribui para o cumprimento da missão da organização, e se o valor que agregam é maior do que a remuneração e outros recursos que extraem. Fazer isso é uma forma de serviço ao Senhor.

A gestão lucrativa de sua casa por parte da Mulher Valente atrai uma palavra de exaltado elogio. Ela “é muito mais valiosa que os rubis” (Pv 31.10). Esta não é uma metáfora sentimental. É literalmente verdade. Uma empresa bem administrada certamente pode gerar lucros ao longo dos anos que excedem em muito o valor de joias e outras reservas de riqueza.

O trabalhador diligente pode sorrir para o futuro (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A diligência da Mulher Valente lhe dá uma ânsia pelo futuro. “Reveste-se de força e dignidade; sorri diante do futuro” (Pv 31.25). Embora os provérbios não sejam promessas de prosperidade pessoal, em geral, nossa diligência leva a um futuro melhor.

Quem trabalha a sua terra terá fartura de alimento, mas quem vai atrás de fantasias não tem juízo. (Pv 12.11)
Quem lavra sua terra terá comida com fartura, mas quem persegue fantasias se fartará de miséria. (Pv 28.19)
As mãos diligentes governarão, mas os preguiçosos acabarão escravos. (Pv 12.24)

A diligência não é uma garantia contra problemas futuros ou mesmo desastres (veja Jó e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org). No entanto, a pessoa sábia confia em Deus para o futuro, e o diligente pode descansar na confiança de que fez o que Deus pede para si, para sua casa e para sua comunidade.

O trabalhador sábio é perspicaz (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Mulher Valente é um exemplo de perspicácia excepcional em seu trabalho. Os provérbios descrevem essa virtude como “prudência” (Pv 19.14) ou “bom senso” (Pv 1.4). Podemos tender a pensar em pessoas perspicazes como astutas, querendo tiram vantagem dos outros, mas em Provérbios a ideia presente é de aproveitar ao máximo os recursos e as circunstâncias. Se entendermos essa astúcia como “consciência inteligente e perspicaz” e “perspicácia obstinada” [1], então veremos o tipo de sabedoria perspicaz que Deus deseja para os trabalhadores.

O trabalhador perspicaz emprega consciência e julgamento aguçados

A perspicácia dessa Mulher Valente é exibida na consciência aguçada com a qual ela obtém seus materiais. “Escolhe lã e linho... como os navios mercantes” (Pv 31.13-14). O fabricante ou artesão de hoje pode ser perspicaz na seleção de materiais ou pode se contentar imprudentemente com materiais que não resistirão bem. Investimentos em pesquisa e desenvolvimento, análise de mercado, logística, parcerias estratégicas e envolvimento da comunidade podem gerar grandes retornos no futuro. Em um nível individual, o bom senso é inestimável. Um consultor de investimentos que pode atender às necessidades futuras de um cliente com os riscos e recompensas inerentes a vários tipos de investimento está prestando um serviço piedoso.

O trabalhador perspicaz se prepara para todas as contingências conhecidas

A Mulher Valente “não teme por seus familiares quando chega a neve, pois todos eles vestem agasalhos. Faz cobertas para a sua cama; veste-se de linho fino e de púrpura” (Pv 31.21-22). Seus preparativos materiais cobrem todas as eventualidades do inverno que se aproxima. Ela prepara a variedade de roupas e “cobertas” de que sua família pode precisar, independentemente da estação do ano. As descrições indicam material fino ou rico (“linho fino e púrpura”), e a palavra hebraica traduzida na NVI como “agasalho” (sanim, também “escarlate”) pode ser o erro de um copista para “duplo” (shenayim), isto é, referindo-se a algo em camadas e quente. [2]

Essa mulher está atenta a possíveis problemas e trabalha em busca de soluções antes que os problemas surjam. Considere seus preparativos para o marido. Em meio aos preparativos de suas roupas e cobertas, ela mantém em mente o papel do marido como figura pública: “Seu marido é respeitado na porta da cidade, onde toma assento entre as autoridades da sua terra” (Pv 31.23). O que aconteceria se nevasse enquanto seu marido estivesse no meio de um caso civil? Não se preocupe, pois “todos eles” — toda a família, incluindo o marido — estão vestidos adequadamente para qualquer ocasião. Uma imagem moderna pode tornar isso um pouco mais claro. Imagine um estadista proeminente exposto de repente a uma tempestade casual. Ele pega imediatamente seu chapéu de feltro, que combina com seu casaco e botas, enquanto aqueles ao seu redor cobrem a cabeça com jornais surrados e seus sapatos arruinados deixam os pés gelados e encharcados de lama.

O trabalhador perspicaz procura um bom conselho

Um mito persistente em alguns círculos é que os líderes mais perspicazes desprezam conselhos. Sua própria perspicácia consiste em ver oportunidades que os outros não conseguem vislumbrar. É verdade que o fato de muitas pessoas aconselharem algo não significa que aquilo seja sábio. “Não há sabedoria alguma, nem discernimento algum, nem plano algum que possa opor-se ao Senhor” (Pv 21.30). Se uma ideia é ruim ou errada (“que possa opor-se ao senhor”), nenhum coro de homens falando bem daquilo pode tornar tal ideia boa ou sábia.

Mas o mito do gênio que vence contra todos os conselhos raramente se mostra verdadeiro na realidade. A criatividade e a excelência se baseiam em vários pontos de vista. A inovação leva em conta o conhecido para entrar no desconhecido, e grandes líderes que rejeitam a sabedoria convencional geralmente a dominam primeiro, antes de ir além. “Os planos fracassam por falta de conselho, mas são bem-sucedidos quando há muitos conselheiros” (Pv 15.22). E em Provérbios 20.18 lemos: “Os conselhos são importantes para quem quiser fazer planos, e quem sai à guerra precisa de orientação”. A pessoa sábia usa os pontos fortes complementares dos outros, mesmo quando entra em um novo território.

O trabalhador perspicaz aprimora suas habilidades e seu conhecimento

A Mulher Valente “entrega-se com vontade ao seu trabalho; seus braços são fortes e vigorosos” (Pv 31.17). Ou seja, ela toma medidas para melhorar sua capacidade de fazer seu trabalho. Ela fortalece seus braços; ela se cinge de força. Uma pessoa perspicaz age para melhorar seu conjunto de habilidades ou conhecimento.

À medida que a economia industrial no mundo desenvolvido deu lugar a uma economia tecnológica, o treinamento e a educação contínuos tornaram-se indispensáveis ​​para empregadores e empregados. Na verdade, isso está se tornando o caso também em muitas economias emergentes. O trabalho para o qual você está preparado hoje provavelmente não será o trabalho que você fará daqui a 10 anos. Um trabalhador perspicaz reconhece isso e se recicla para a próxima oportunidade no ambiente de trabalho. Da mesma forma, está se tornando mais difícil para os empregadores encontrar trabalhadores com as habilidades necessárias para muitos dos empregos atuais. Os indivíduos, organizações e sociedades com melhor desempenho serão aqueles que desenvolverem sistemas eficazes de aprendizagem ao longo da vida.

O trabalhador sábio é generoso (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Mulher Valente é generosa. “Acolhe os necessitados e estende as mãos aos pobres” (Pv 31.20). Estamos acostumados a ouvir a generosidade ser elogiada na Bíblia, e aqui a Mulher Valente é elogiada por isso. Mas não devemos reduzir sua generosidade a uma peculiaridade aprazível de sua personalidade. Sua generosidade é parte integrante de seu trabalho, como podemos ver na relação entre os textos de Pv 31.19 e Pv 31.20.

Estende as mãos [heb. yade] ao fuso, e as palmas das suas mãos [kappe] pegam na roca. (Pv 31.19, ARC)
Abre a mão [kap] ao aflito; e ao necessitado estende as mãos [yade]. (Pv 31.20, ARC)

Duas palavras hebraicas diferentes são traduzidas como “mão” (ou “mãos”, no plural) nesses dois versículos. Se olharmos para o original em hebraico, veremos que elas ocorrem na ordem Yade, kappe no primeiro versículo, e na ordem inversa kap, yade no segundo versículo (kappe é o plural de kap). Essa estrutura “quiástica” do ABBA é comum na Bíblia e indica que toda a estrutura forma uma única unidade de pensamento. Em outras palavras, seu trabalho é inseparável de sua generosidade. Como ela é bem-sucedida no fiar, ela tem algo a dar aos pobres e, inversamente, seu espírito generoso é um elemento essencial de sua capacidade como empreendedora/executiva.

Em outras palavras, Provérbios afirma que generosidade e dever fiduciário não entram em conflito. Usar os recursos da família para ser generoso com os necessitados não reduz a riqueza do proprietário, mas a aumenta. Esse argumento contraintuitivo aparece em Provérbios. A maioria das pessoas reprime sua generosidade por medo de que, se doarem demais, não sobrará o suficiente para si mesmas. Mas os provérbios ensinam exatamente o oposto:

Há quem dê generosamente, e vê aumentar suas riquezas; outros retêm o que deveriam dar, e caem na pobreza. O generoso prosperará; quem dá alívio aos outros, alívio receberá. O povo amaldiçoa aquele que esconde o trigo, mas a bênção coroa aquele que logo se dispõe a vendê-lo. (Pv 11.24-26)
Quem trata bem os pobres empresta ao Senhor, e ele o recompensará. (Pv 19.17)
Quem dá aos pobres não passará necessidade, mas quem fecha os olhos para não vê-los sofrerá muitas maldições. (Pv 28.27)

O trabalhador sábio é justo (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os provérbios não se limitam a recomendar a generosidade, mas vão além, ao afirmar que cuidar dos pobres é uma questão de justiça. Primeiro, os provérbios reconhecem que as pessoas geralmente são pobres porque os ricos e poderosos as defraudam ou as oprimem. Ou, se já eram pobres, tornaram-se alvos fáceis de mais fraude e opressão. Isso é abominável para Deus e ele trará julgamento contra aqueles que o fazem.

Oprimir o pobre é ultrajar o seu Criador, mas tratar com bondade o necessitado é honrar a Deus. (Pv 14.31)
Tanto quem oprime o pobre para enriquecer-se como quem faz cortesia ao rico, com certeza passarão necessidade. (Pv 22.16)
Não explore os pobres por serem pobres, nem oprima os necessitados no tribunal, pois o Senhor será o advogado deles, e despojará da vida os que os despojarem. (Pv 22.22-23)
Quem semeia a injustiça colhe a maldade; o castigo da sua arrogância será completo. Quem é generoso será abençoado, pois reparte o seu pão com o pobre. (Pv 22.8-9)
Quem aumenta sua riqueza com juros exorbitantes ajunta para algum outro, que será bondoso com os pobres. (Pv 28.8)

O resumo é encontrado em Provérbios 16.8: “É melhor ter pouco com retidão do que muito com injustiça”.

Em segundo lugar, mesmo que você não tenha defraudado ou oprimido os pobres, a justiça de Deus exige que você faça o que puder para endireitar as coisas para eles, começando por atender às suas necessidades imediatas.

Quem fecha os ouvidos ao clamor dos pobres também clamará e não terá resposta. (Pv 21.13)
Quem despreza o próximo comete pecado, mas como é feliz quem trata com bondade os necessitados! (Pv 14.21)
Quanto lhe for possível, não deixe de fazer o bem a quem dele precisa. Não diga ao seu próximo: “Volte amanhã, e eu lhe darei algo”, se pode ajudá-lo hoje. (Pv 3.27-28)
Quem zomba dos pobres mostra desprezo pelo Criador deles; quem se alegra com a desgraça não ficará sem castigo. (Pv 17.5)

Não é surpresa considerar a ajuda aos necessitados como uma questão de justiça, não apenas de generosidade, se lembrarmos que a sabedoria repousa no temor do Senhor. Ou seja, a sabedoria consiste em viver em reverência ao nosso Deus, de modo que procuremos fazer o que ele deseja para o mundo. Deus é justo. Deus deseja que os pobres sejam cuidados e que a pobreza seja eliminada. Se realmente amarmos a Deus, cuidaremos daqueles a quem Deus ama. Portanto, socorrer os pobres e trabalhar para eliminar a pobreza são questões de justiça.

Observe que muitos desses provérbios pressupõem um contato pessoal entre ricos e pobres. A generosidade não é apenas uma questão de enviar uma doação, mas de trabalhar e talvez até de viver ao lado de pessoas pobres. Pode significar trabalhar para acabar com a segregação entre os pobres e a classe média e os ricos no que tange a moradia, compras, educação, trabalho e política. Você entra em contato com pessoas de status socioeconômico mais alto ou mais baixo diariamente? Se não, seu mundo pode ser muito estreito.

Responsabilidade social empresarial?

Podemos ver como a generosidade e a justiça são importantes para um trabalhador individual, mas será que elas têm alguma aplicação para as corporações? A maior parte de Provérbios lida com indivíduos, mas a seção sobre a Mulher Valente a trata como a gerente de um negócio doméstico. E, como vimos, sua generosidade não é um obstáculo ao seu trabalho, mas um elemento essencial dele.

Lamentavelmente, algumas empresas hoje parecem não ter a imaginação ou a habilidade necessária para operar de maneira a beneficiar os acionistas e, ao mesmo tempo, beneficiar as pessoas ao seu redor. Os exemplos incluem empresas que tentam fraudar ou oprimir os pobres, pressionar pessoas pobres e impotentes a vender propriedades abaixo de seu valor real, tirar vantagem da ignorância ou desinformação para vender produtos questionáveis ​​e obter lucros excessivos de curto prazo daqueles que são vulneráveis ​​ou que não têm alternativas.

Por que essas empresas acreditam que tirar riqueza de outras pessoas é a única — ou a melhor — maneira de lucrar? Existe alguma evidência de que uma abordagem de soma-zero para os negócios realmente melhore o retorno dos acionistas? Quantas dessas práticas realmente levam a uma maior lucratividade ou poder num longo prazo? Muito pelo contrário: os melhores negócios são bem-sucedidos porque encontram uma maneira sustentável de produzir bens e serviços que beneficiem os clientes e a sociedade, ao mesmo tempo em que proporcionam um excelente retorno aos funcionários, acionistas e credores. As empresas e outras organizações que atendem às necessidades sociais têm vantagem quando precisam de apoio da comunidade, compromisso dos trabalhadores e proteção social contra ameaças econômicas, políticas e competitivas.

Política governamental?

Provérbios também exige justiça de outras instituições que não as empresas. Em particular, a esfera do governo recebe atenção nos muitos versículos que tratam de reis. A mensagem para eles é a mesma que para as empresas. Os governos só podem sobreviver a longo prazo se cuidarem dos pobres e vulneráveis ​​e fizerem justiça a eles.

Se o rei julga os pobres com justiça, seu trono estará sempre seguro. (Pv 29.14)
O rei que exerce a justiça dá estabilidade ao país, mas o que gosta de subornos o leva à ruína. (Pv 29.4)
Quando os ímpios são retirados da presença do rei, a justiça firma o seu trono. (Pv 25.5)
O rei se agrada dos lábios honestos, e dá valor ao homem que fala a verdade. (Pv 16.13)
Os reis detestam a prática da maldade, porquanto o trono se firma pela justiça. (Pv 16.12)
Como acontece com toda sabedoria, o fundamento do governo sábio é o temor do Senhor. “Por meu intermédio os reis governam” (Pv 8.15).

Ao falar com reis, os provérbios parecem se aplicar principalmente a líderes políticos e funcionários públicos na sociedade moderna. Mas, nas sociedades democráticas, todos os cidadãos têm um papel no governo e nas políticas públicas. Entrar em contato com nossos representantes, votar em candidatos e propostas que levem justiça aos pobres e vulneráveis ​​são maneiras pelas quais hoje podemos promulgar a justiça que vem da sabedoria.

Concorrência?

Os Provérbios até estendem as demandas de generosidade e justiça à concorrência e à luta. “Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele, e o Senhor recompensará você” (Pv 25.21-22). O apóstolo Paulo cita esse provérbio palavra por palavra em Rm 12.20 e conclui com o desafio: “Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem” (Rm 12.21). Além disso, “não se alegre quando o seu inimigo cair, nem exulte o seu coração quando ele tropeçar” (Pv 24.17). O quê? Devemos ser generosos até com um inimigo? Paulo e os autores dos provérbios estão convencidos de que, quando fizermos isso, o Senhor nos recompensará.

Será que isso se aplica à nossa atitude em relação aos concorrentes, seja individualmente (por exemplo, alguém que compete conosco por uma promoção) ou corporativamente (por exemplo, empresas concorrentes)? Os provérbios não discutem a concorrência moderna. Mas, se promovem o serviço até mesmo a um inimigo, é razoável inferir que também promovem o serviço aos concorrentes. Isso não é a mesma coisa que conluio ou oligarquia. A ascendência quase universal das economias de mercado se deve, sem dúvida, aos benefícios da concorrência. Mas os negócios, a política e outras formas de concorrência são, no fundo, formas de cooperação, embora com aspectos competitivos significativos. A sociedade fomenta a competição para que todos possam prosperar. A penalidade adequada para o fracasso na competição não é ser esmagado ou levado à pobreza, mas ser transformado ou conduzido para um trabalho mais produtivo. As empresas fecham as portas, mas seus rivais bem-sucedidos não se tornam monopólios. As eleições têm vencedores e perdedores, mas os vencedores não reescrevem a Constituição para banir os perdedores. Carreiras sobem e descem, mas a penalidade adequada para o fracasso não é “Você nunca mais trabalhará nesta cidade”, mas “De que ajuda você precisa para encontrar algo mais adequado aos seus talentos?” Os indivíduos e as organizações mais sábios aprendem a se envolver em competições que aproveitam ao máximo a participação de cada pessoa e oferecem um pouso suave para aqueles que perdem a competição de hoje, mas podem dar uma contribuição valiosa amanhã.

O trabalhador sábio guarda a língua (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A Mulher Valente tem cuidado com o que diz e com o modo como fala. Os provérbios nos lembram: “Quem é cuidadoso no que fala evita muito sofrimento” (Pv 21.23). Às vezes, ironicamente, eles também nos lembram que “Até o insensato passará por sábio, se ficar quieto, e, se contiver a língua, parecerá que tem discernimento” (Pv 17.28).

Há mais provérbios sobre a língua do que sobre qualquer outro tópico. (Veja Pv 6.17; 6.24; 10.20; 10.31; 12.18; 12.19; 15.2; 15.4; 16.1; 17.4; 17.20; 18.21; 21.6; 21.23; 25.15; 25.23; 26.28; 28.23; além de Pv 31.26). Uma língua justa e mansa traz sabedoria (Pv 10.31), cura (Pv 12.18), conhecimento (Pv 15.2), vida (Pv 15.4; 18.21) e a palavra do Senhor (Pv 16.1). Uma língua perversa e descuidada derrama sangue inocente (Pv 6.17), quebra o espírito (Pv 15.4), encoraja o mal (Pv 17.4), traz calamidade (Pv 17.20), problemas (Pv 21.23 ) e ira (Pv 25.23), quebra ossos (Pv 25.15), arruína (Pv 26.28) e se torna “armadilha mortal” (Pv 21.6).

A comunicação, de alguma forma, é parte integrante de quase todos os trabalhos. Além disso, a conversa social no trabalho pode melhorar as relações de trabalho ou prejudicá-las. O que os provérbios ensinam sobre o uso sábio da língua?

O trabalhador sábio evita fofocas

A fofoca é realmente um problema no ambiente de trabalho ou não passa de conversa inocente? Os provérbios apontam para seu perigo. “Quem vive contando casos não guarda segredo; por isso, evite quem fala demais” (Pv 20.19). A fofoca causa conflitos. “As palavras do tolo provocam briga, e a sua conversa atrai açoites. A conversa do tolo é a sua desgraça, e seus lábios são uma armadilha para a sua alma. As palavras do caluniador são como petiscos deliciosos; descem até o íntimo do homem” (Pv 18.6-8). “Sem lenha a fogueira se apaga; sem o caluniador morre a contenda. O que o carvão é para as brasas e a lenha para a fogueira, o amigo de brigas é para atiçar discórdias” (Pv 26.20-21). “O homem sem caráter maquina o mal; suas palavras são um fogo devorador. O homem perverso provoca dissensão, e o que espalha boatos afasta bons amigos” (Pv 16.27-28). A fofoca é uma violação da confiança, a virtude fundadora de uma pessoa sábia. “O homem que não tem juízo ridiculariza o seu próximo, mas o que tem entendimento refreia a língua. Quem muito fala trai a confidência, mas quem merece confiança guarda o segredo” (Pv 11.12-13).

A fofoca lança outras pessoas sob uma luz questionável, levantando dúvidas sobre a integridade de uma pessoa ou a validade de uma decisão. A fofoca projeta o mal nos motivos de outra pessoa, mostrando-se, assim, filha do Pai da Mentira. A fofoca tira as palavras do contexto, deturpa as intenções de quem fala, revela o que deveria ter sido mantido em sigilo e tenta elevar o fofoqueiro às custas de outros que não estão presentes para falar por si mesmos. Não é difícil ver o quanto isso pode ser destrutivo em um ambiente de trabalho. Se a fofoca coloca um ponto de interrogação sobre a reputação de uma pessoa, o valor de um projeto ou a posição tomada por um superior, a sombra lançada por essas palavras faz com que todos ao redor do fofoqueiro sejam mais cautelosos e desconfiados. Além de não ajudar em nada, isso gera divisão entre os trabalhadores, seja em um escritório, no chão de fábrica ou em uma sala executiva. Não é de surpreender que o apóstolo Paulo tenha incluído a fofoca em sua lista de pecados que são uma abominação para Deus (Rm 1.29).

O trabalhador sábio fala com bondade, não com raiva

A Mulher Valente “fala com sabedoria e ensina com amor” (Pv 31.26). Ninguém gosta de ser alvo de uma explosão de raiva, por isso reconhecemos facilmente o perigo observado em vários provérbios: “A resposta calma desvia a fúria, mas a palavra ríspida desperta a ira” (Pv 15.1). “A sabedoria do homem lhe dá paciência; sua glória é ignorar as ofensas” (Pv 19.11). “O homem irritável provoca dissensão, mas quem é paciente acalma a discussão” (Pv 15.18). “Melhor é o homem paciente do que o guerreiro, mais vale controlar o seu espírito do que conquistar uma cidade” (Pv 16.32).

A beleza desses provérbios é que eles também fornecem uma imagem da pessoa que pode ser bem-sucedida ao lidar com a raiva. Devemos ficar “irados” (moralmente indignados) contra o pecado, mas não devemos permitir que nossa “ira” (ou raiva) nos controle. “‘Quando vocês ficarem irados, não pequem’. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha” (Ef 4.26). A pessoa sábia dá uma resposta branda, ignora uma ofensa e acalma a contenda. O ensino da bondade está na língua da Mulher Valente. Uma pessoa assim é “melhor... do que o guerreiro”. No ambiente de trabalho, essas pessoas são essenciais quando as irritações aumentam ou os ânimos se exaltam. [1] Como seguidores de Jesus Cristo, podemos viver o fruto do Espírito de Deus quando controlamos nossa língua, não apenas evitando falar com raiva, mas também sendo uma influência de calma em uma atmosfera às vezes contenciosa.

O trabalhador sábio abençoa os outros

As bênçãos de uma língua sábia repousam sobre a realidade de que “A palavra proferida no tempo certo é como frutas de ouro incrustadas numa escultura de prata. Como brinco de ouro e enfeite de ouro fino é a repreensão dada com sabedoria a quem se dispõe a ouvir” (Pv 25.11-12). No ambiente de trabalho, muitas vezes estamos cercados por colegas de trabalho ansiosos, e uma boa palavra pode ser exatamente o que eles precisam. “O coração ansioso deprime o homem, mas uma palavra bondosa o anima” (Pv 12.25). Estamos prontos para dar essa boa palavra, porque “o falar amável é árvore de vida” (Pv 15.4). Verdadeiramente, “a língua tem poder sobre a vida e sobre a morte; os que gostam de usá-la comerão do seu fruto” (Pv 18.21).

No ambiente de trabalho eletrônico de hoje, a “língua” não se limita às nossas palavras audíveis. Fofocas, mentiras e palavras iradas podem viajar na velocidade da luz por e-mails, blogs, tweets e mídias sociais. Somos chamados a ter discernimento, a reconhecer que morte e vida realmente estão nas palavras que usamos com ou contra outra pessoa no ambiente de trabalho.

O trabalhador sábio é modesto (Provérbios)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os provérbios recomendam a modéstia, tanto na atitude (evite o orgulho excessivo) quanto no uso do dinheiro (evite gastos excessivos). Essas virtudes não aparecem na descrição da Mulher Valente. Mas aparecem com tanta força em outros lugares de Provérbios e se aplicam tão diretamente ao trabalho, que não podemos fazer justiça ao livro sem mencioná-los.

O trabalhador modesto não é orgulhoso

“O orgulho vem antes da destruição; o espírito altivo, antes da queda. Melhor é ter espírito humilde entre os oprimidos do que partilhar despojos com os orgulhosos” (Pv 16.18-19). O versículo 18 pode ser o provérbio mais famoso de todos. Existem outros.

Quando vem o orgulho, chega a desgraça, mas a sabedoria está com os humildes. (Pv 11.2)
A vida de pecado dos ímpios se vê no olhar orgulhoso e no coração arrogante. (Pv 21.4)
O orgulho do homem o humilha, mas o de espírito humilde obtém honra. (Pv 29.23).

Esses provérbios são mandamentos contra o respeito próprio? Não, eles nos chamam para viver em tal reverência a Deus (o “temor do Senhor”) que podemos nos ver como realmente somos e podemos ser honestos conosco mesmos a respeito de nós mesmos. Se temermos ao Senhor, não precisaremos mais temer nossa autoimagem e podemos deixar de tentar nos orgulhar. É descansar no conhecimento de que Deus finalmente triunfará sobre este mundo marcado pelo pecado e destruição. O Senhor conhece o caminho dos justos — mesmo no ambiente de trabalho. No final, Deus levanta aqueles que confiam nele.

O trabalhador modesto não é movido pela atração da riqueza

O antigo sábio Agur — a fonte da penúltima coleção de ditos do livro — nos deixou uma oração sábia. “Duas coisas peço que me dês antes que eu morra: Mantém longe de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem pobreza nem riqueza; dá-me apenas o alimento necessário. Se não, tendo demais, eu te negaria e te deixaria, e diria: ‘Quem é o Senhor?’ Se eu ficasse pobre, poderia vir a roubar, desonrando assim o nome do meu Deus” (Pv 30.7-9). Estas são palavras sábias para nós no ambiente de trabalho: “Não me dês nem pobreza nem riqueza”.

Trabalhamos para ganhar a vida, desfrutar de certa medida de conforto e segurança, sustentar nossa família e contribuir com algo para os pobres e a comunidade em geral. Isso é suficiente ou somos levados a lutar por mais? Agur mostra que esse desejo de ter mais está ligado a deixar Deus de fora de nossa vida, a ignorar nosso Criador e seus propósitos para nós. Agur também ora para que ele não viva na pobreza, mas que Deus forneça o alimento de que precisa. Esta é uma oração legítima. Jesus nos ensinou a orar: “Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia” (Mt 6.11).

Mas, se transformarmos nosso trabalho em uma busca por riqueza cada vez maior — ganância, em outras palavras —, deixamos o caminho da sabedoria. Podemos buscar riqueza — conscientemente ou não — porque ela parece oferecer evidências concretas de nosso sucesso e autoestima. Mas o conforto da riqueza é imaginário. “A riqueza dos ricos é a sua cidade fortificada, eles a imaginam como um muro que é impossível escalar” (Pv 18.11). “O rico pode até se julgar sábio, mas o pobre que tem discernimento o conhece a fundo” (Pv 28.11). Na realidade, a riqueza não acaba com os problemas. Ela meramente substitui os problemas da pobreza pelos problemas da riqueza. “As riquezas de um homem servem de resgate para a sua vida, mas o pobre nunca recebe ameaças” (Pv 13.8). A riqueza não pode realmente nos fazer sentir mais seguros. “Quem confia em suas riquezas certamente cairá” (Pv 11.28). Devemos estar atentos, especialmente contra o sacrifício da riqueza da vida para obter as riquezas do dinheiro. “O invejoso é ávido por riquezas, e não percebe que a pobreza o aguarda” (Pv 28.22). “Não esgote suas forças tentando ficar rico; tenha bom senso!” (Pv 23.4). Em particular, os sábios se preocupam mais com sua reputação honesta do que com suas contas bancárias. “A boa reputação vale mais que grandes riquezas; desfrutar de boa estima vale mais que prata e ouro” (Pv 22.1).

Os provérbios não se opõem à riqueza em si. Na verdade, a riqueza pode ser uma bênção. “A bênção do Senhor traz riqueza, e não inclui dor alguma” (Pv 10.22). É a obsessão pela riqueza que causa danos.

No mínimo, os provérbios da modéstia nos lembram que nossa análise do livro pelas lentes da Mulher Valente pode ser um guia útil, mas não esgota as contribuições do livro para a teoria e a prática do trabalho. Todos os provérbios merecem um estudo mais aprofundado, além dos vislumbres vistos neste artigo! Incentivamos aqueles que acharem este artigo útil a continuar lendo os provérbios para descobrir outros significados e aplicações e a refletir sobre sua própria experiência à luz da sabedoria de Deus.

Conclusão de Provérbios

Voltar ao índice Voltar ao índice

No final, nossos hábitos de trabalho são moldados por nosso caráter, que, por sua vez, é moldado pelo conhecimento da revelação de nosso Senhor e por nosso temor por ele. À medida que passamos a conhecer nosso Senhor mais intimamente, nosso caráter é transformado para se tornar semelhante ao caráter de Deus. De fato, “o temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Pv 9.10). A sabedoria traz vida a todas as esferas da vida, incluindo o ambiente de trabalho, onde a maioria de nós passa a maior parte de nossas horas de vigília. A sabedoria nos leva a ações confiáveis, à diligência, à perspicácia saudável, à generosidade e à justiça para com os necessitados, ao controle do que dizemos e a uma vida humilde. Em sabedoria, confiamos em Deus para moldar nosso destino e assumir o controle de nossos objetivos. “Consagre ao Senhor tudo o que você faz, e os seus planos serão bem-sucedidos” (Pv 16.3).

Índice de temas e versículos-chave em Provérbios

Voltar ao índice Voltar ao índice

Versículos

Link para a seção

Versículos do livro de Provérbios

Pv 1.1-2 Estes são os provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel. Eles ajudarão a experimentar a sabedoria e a disciplina; a compreender as palavras que dão entendimento.

Introdução

Sobre o livro

Pv 1.2-7 Eles ajudarão a experimentar a sabedoria e a disciplina; a compreender as palavras que dão entendimento ... O temor do Senhor é o princípio do conhecimento, mas os insensatos desprezam a sabedoria e a disciplina.

Sobre o livro

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

Pv 1.4 Ajudarão a dar prudência aos inexperientes e conhecimento e bom senso aos jovens.

Sobre o livro

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 1.4-5 Ajudarão a dar prudência aos inexperientes e conhecimento e bom senso aos jovens. Se o sábio lhes der ouvidos, aumentará seu conhecimento, e quem tem discernimento obterá orientação...

Sobre o livro

Pv 1.5-6 Se o sábio lhes der ouvidos, aumentará seu conhecimento, e quem tem discernimento obterá orientação para compreender provérbios e parábolas, ditados e enigmas dos sábios.

Sobre o livro

Pv 1.20-33 A sabedoria clama em alta voz nas ruas, ergue a voz nas praças públicas ... quem me ouvir viverá em segurança e estará tranquilo, sem temer nenhum mal.

A Mulher Valente

Pv 2.1,5 Meu filho, se você aceitar as minhas palavras e guardar no coração os meus mandamentos... então você entenderá o que é temer o Senhor e achará o conhecimento de Deus.

Introdução

Pv 2.5-6 Você entenderá o que é temer o Senhor e achará o conhecimento de Deus. Pois o Senhor é quem dá sabedoria; de sua boca procedem o conhecimento e o discernimento.

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

Pv 2.6 Pois o Senhor é quem dá sabedoria; de sua boca procedem o conhecimento e o discernimento.

Sobre o livro

Pv 3.5 Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio entendimento.

Sobre o livro

Pv 3.7 Não seja sábio aos seus próprios olhos; tema o Senhor e evite o mal.

Sobre o livro

O trabalhador confiável é fiel

Pv 3.21 Meu filho, guarde consigo a sensatez e o equilíbrio, nunca os perca de vista.

Sobre o livro

Pv 3.24 Seu sono será tranquilo.

Sobre o livro

Pv 3.27-28 Quanto lhe for possível, não deixe de fazer o bem a quem dele precisa. Não diga ao seu próximo: “Volte amanhã, e eu lhe darei algo”, se pode ajudá-lo hoje.

O trabalhador sábio é justo

Pv 4.11 Eu o conduzi pelo caminho da sabedoria e o encaminhei por veredas retas.

Introdução

Pv 6.6-11 Observe a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio! ... Tirando uma soneca, cochilando um pouco, cruzando um pouco os braços para descansar, a sua pobreza o surpreenderá como um assaltante, e a sua necessidade lhe sobrevirá como um homem armado.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 6.16 Há seis coisas que o odeia...

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

Pv 6.16-19 Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos.

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

O trabalhador confiável é honesto

Pv 6.17 ... olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 6.24 ... eles o protegerão da mulher imoral, e dos falsos elogios da mulher leviana.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 8.6-7 Ouçam, pois tenho coisas importantes para dizer; os meus lábios falarão do que é certo. Minha boca fala a verdade, pois a maldade causa repulsa aos meus lábios.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 8.15 Por meu intermédio os reis governam, e as autoridades exercem a justiça.

O trabalhador sábio é justo

Pv 8.35-36 Pois todo aquele que me encontra, encontra a vida e recebe o favor do Senhor. Mas aquele que de mim se afasta, a si mesmo se agride; todos os que me odeiam amam a morte.

Introdução

Pv 9.10 O temor do Senhor é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é entendimento.

Introdução

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

Pv 10.4-5 As mãos preguiçosas empobrecem o homem, porém as mãos diligentes lhe trazem riqueza. Aquele que faz a colheita no verão é filho sensato, mas aquele que dorme durante a ceifa é filho que causa vergonha.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 10.18 Quem esconde o ódio tem lábios mentirosos, e quem espalha calúnia é tolo.

O trabalhador confiável é fiel

O trabalhador confiável é honesto

Pv 10.18-19 Quem esconde o ódio tem lábios mentirosos, e quem espalha calúnia é tolo. Quando são muitas as palavras, o pecado está presente, mas quem controla a língua é sensato.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 10.20 A língua dos justos é prata escolhida, mas o coração dos ímpios quase não tem valor.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 10.22 A bênção do Senhor traz riqueza, e não inclui dor alguma.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 10.26 Como o vinagre para os dentes e a fumaça para os olhos, assim é o preguiçoso para aqueles que o enviam.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 10.31 A boca do justo produz sabedoria, mas a língua perversa será extirpada.

Introdução

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 11.1 O Senhor repudia balanças desonestas, mas os pesos exatos lhe dão prazer.

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

O trabalhador confiável é honesto

Pv 11.2 Quando vem o orgulho, chega a desgraça, mas a sabedoria está com os humildes.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 11.3 A integridade dos justos os guia, mas a falsidade dos infiéis os destrói.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 11.12-13 O homem que não tem juízo ridiculariza o seu próximo, mas o que tem entendimento refreia a língua. Quem muito fala trai a confidência, mas quem merece confiança guarda o segredo.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 11.24-26 Há quem dê generosamente, e vê aumentar suas riquezas; outros retêm o que deveriam dar, e caem na pobreza. ... O povo amaldiçoa aquele que esconde o trigo, mas a bênção coroa aquele que logo se dispõe a vendê-lo.

O trabalhador sábio é generoso

Pv 11.28 Quem confia em suas riquezas certamente cairá, mas os justos florescerão como a folhagem verdejante.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 12.11 Quem trabalha a sua terra terá fartura de alimento, mas quem vai atrás de fantasias não tem juízo.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 12.17-20 A testemunha fiel dá testemunho honesto, mas a testemunha falsa conta mentiras. Há palavras que ferem como espada, mas a língua dos sábios traz a cura. Os lábios que dizem a verdade permanecem para sempre, mas a língua mentirosa dura apenas um instante. O engano está no coração dos que maquinam o mal, mas a alegria está entre os que promovem a paz.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 12.18 Há palavras que ferem como espada, mas a língua dos sábios traz a cura.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 12.19 Os lábios que dizem a verdade permanecem para sempre, mas a língua mentirosa dura apenas um instante.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 12.22 O Senhor odeia os lábios mentirosos, mas se deleita com os que falam a verdade.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 12.24 As mãos diligentes governarão, mas os preguiçosos acabarão escravos.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 12.25 O coração ansioso deprime o homem, mas uma palavra bondosa o anima.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 13.5 Os justos odeiam o que é falso, mas os ímpios trazem vergonha e desgraça.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 13.8 As riquezas de um homem servem de resgate para a sua vida, mas o pobre nunca recebe ameaças.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 14.16 O sábio é cauteloso e evita o mal, mas o tolo é impetuoso e irresponsável.

Introdução

Pv 14.21 Quem despreza o próximo comete pecado, mas como é feliz quem trata com bondade os necessitados!

O trabalhador sábio é justo

Pv 14.25 A testemunha que fala a verdade salva vidas, mas a testemunha falsa é enganosa.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 14.31 Oprimir o pobre é ultrajar o seu Criador, mas tratar com bondade o necessitado é honrar a Deus.

O trabalhador sábio é justo

Pv 15.1 A resposta calma desvia a fúria, mas a palavra ríspida desperta a ira.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 15.2 A língua dos sábios torna atraente o conhecimento, mas a boca dos tolos derrama insensatez.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 15.3 Os olhos do Senhor estão em toda parte.

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

Pv 15.4 O falar amável é árvore de vida, mas o falar enganoso esmaga o espírito.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 15.18 O homem irritável provoca dissensão, mas quem é paciente acalma a discussão.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 15.22 Os planos fracassam por falta de conselho, mas são bem-sucedidos quando há muitos conselheiros.

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 16.1 Ao homem pertencem os planos do coração, mas do Senhor vem a resposta da língua.

O trabalhador sábio é diligente

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 16.3 Consagre ao Senhor tudo o que você faz, e os seus planos serão bem-sucedidos.

Conclusão

Pv 16.8 É melhor ter pouco com retidão do que muito com injustiça.

O trabalhador sábio é justo

Pv 16.11 Balanças e pesos honestos vêm do Senhor; todos os pesos da bolsa são feitos por ele.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 16.12 Os reis detestam a prática da maldade, porquanto o trono se firma pela justiça.

O trabalhador sábio é justo

Pv 16.13 O rei se agrada dos lábios honestos, e dá valor ao homem que fala a verdade.

O trabalhador sábio é justo

Pv 16.18-19 O orgulho vem antes da destruição; o espírito altivo, antes da queda. Melhor é ter espírito humilde entre os oprimidos do que partilhar despojos com os orgulhosos.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 16.27-28 O homem sem caráter maquina o mal; suas palavras são um fogo devorador. O homem perverso provoca dissensão, e o que espalha boatos afasta bons amigos.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 16.32 Melhor é o homem paciente do que o guerreiro, mais vale controlar o seu espírito do que conquistar uma cidade.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 17.4 O ímpio dá atenção aos lábios maus; o mentiroso dá ouvidos à língua destruidora.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 17.5 Quem zomba dos pobres mostra desprezo pelo Criador deles; quem se alegra com a desgraça não ficará sem castigo.

O trabalhador sábio é justo

Pv 17.20 O homem de coração perverso não prospera, e o de língua enganosa cai na desgraça.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 17.28 Até o insensato passará por sábio, se ficar quieto, e, se contiver a língua, parecerá que tem discernimento.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 18.6-8 As palavras do tolo provocam briga, e a sua conversa atrai açoites. A conversa do tolo é a sua desgraça, e seus lábios são uma armadilha para a sua alma. As palavras do caluniador são como petiscos deliciosos; descem até o íntimo do homem.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 18.9 Quem relaxa em seu trabalho é irmão do que o destrói.

O trabalhador sábio é diligente

O trabalhador confiável é fiel

Pv 18.11 A riqueza dos ricos é a sua cidade fortificada, eles a imaginam como um muro que é impossível escalar.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 18.21 A língua tem poder sobre a vida e sobre a morte; os que gostam de usá-la comerão do seu fruto.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 19.5 A testemunha falsa não ficará sem castigo, e aquele que despeja mentiras não sairá livre.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 19.11 A sabedoria do homem lhe dá paciência; sua glória é ignorar as ofensas.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 19.14 Casas e riquezas herdam-se dos pais, mas a esposa prudente vem do Senhor.

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 19.17 Quem trata bem os pobres empresta ao Senhor, e ele o recompensará.

O trabalhador sábio é generoso

Pv 19.21 Muitos são os planos no coração do homem, mas o que prevalece é o propósito do Senhor.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 19.23 O temor do Senhor conduz à vida: quem o teme pode descansar em paz, livre de problemas.

Introdução

Pv 20.10 Pesos adulterados e medidas falsificadas são coisas que o Senhor detesta.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 20.13 Não ame o sono.

Sobre o livro

Pv 20.14 “Não vale isso! Não vale isso!”, diz o comprador, mas, quando se vai, gaba-se do bom negócio.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 20.17 Saborosa é a comida que se obtém com mentiras, mas depois dá areia na boca.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 20.18 Os conselhos são importantes para quem quiser fazer planos, e quem sai à guerra precisa de orientação.

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 20.19 Quem vive contando casos não guarda segredo; por isso, evite quem fala demais.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 20.23 O Senhor detesta pesos adulterados, e balanças falsificadas não o agradam.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 21.4 A vida de pecado dos ímpios se vê no olhar orgulhoso e no coração arrogante.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 21.5 Os planos bem elaborados levam à fartura; mas o apressado sempre acaba na miséria.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 21.6 A fortuna obtida com língua mentirosa é ilusão fugidia e armadilha mortal.

O trabalhador confiável é honesto

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 21.13 Quem fecha os ouvidos ao clamor dos pobres também clamará e não terá resposta.

O trabalhador sábio é justo

Pv 21.23 Quem é cuidadoso no que fala evita muito sofrimento.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 21.30 Não há sabedoria alguma, nem discernimento algum, nem plano algum que possa opor-se ao Senhor.

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 22.1 A boa reputação vale mais que grandes riquezas; desfrutar de boa estima vale mais que prata e ouro.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 22.6 (NAA) Ensine a criança no caminho em que deve andar, e ainda quando for velho não se desviará dele.

Sobre o livro

Pv 22.8-9 Quem semeia a injustiça colhe a maldade; o castigo da sua arrogância será completo. Quem é generoso será abençoado, pois reparte o seu pão com o pobre.

O trabalhador sábio é justo

Pv 22.16 Tanto quem oprime o pobre para enriquecer-se como quem faz cortesia ao rico, com certeza passarão necessidade.

O trabalhador sábio é justo

Pv 22.22-23 Não explore os pobres por serem pobres, nem oprima os necessitados no tribunal, pois o Senhor será o advogado deles, e despojará da vida os que os despojarem.

O trabalhador sábio é justo

Pv 23.4 Não esgote suas forças tentando ficar rico; tenha bom senso!

O trabalhador sábio é modesto

Pv 23.10-11 Não mude de lugar os antigos marcos de propriedade, nem invada as terras dos órfãos, pois aquele que defende os direitos deles é forte. Ele lutará contra você para defendê-los.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 23.23 Compre a verdade e não abra mão dela, nem tampouco da sabedoria, da disciplina e do discernimento.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 24.17 Não se alegre quando o seu inimigo cair, nem exulte o seu coração quando ele tropeçar,

O trabalhador sábio é justo

Pv 24.27 Termine primeiro o seu trabalho a céu aberto; deixe pronta a sua lavoura. Depois constitua família.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 24.28 Não testemunhe sem motivo contra o seu próximo nem use os seus lábios para enganá-lo.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 24.30-34 Passei pelo campo do preguiçoso, pela vinha do homem sem juízo ... “Vou dormir um pouco”, você diz. “Vou cochilar um momento; vou cruzar os braços e descansar mais um pouco”, mas a pobreza lhe sobrevirá como um assaltante, e a sua miséria como um homem armado.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 25.5 Quando os ímpios são retirados da presença do rei, a justiça firma o seu trono.

O trabalhador sábio é justo

Pv 25.11-12 A palavra proferida no tempo certo é como frutas de ouro incrustadas numa escultura de prata. Como brinco de ouro e enfeite de ouro fino é a repreensão dada com sabedoria a quem se dispõe a ouvir.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 25.15 Com muita paciência pode-se convencer a autoridade, e a língua branda quebra até ossos.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 25.18 Como um pedaço de pau, uma espada ou uma flecha aguda é o que dá falso testemunho contra o seu próximo.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 25.21-22 Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele, e o Senhor recompensará você.

O trabalhador sábio é justo

Pv 25.23 Como o vento norte traz chuva, assim a língua fingida traz o olhar irado.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 26.20-21 Sem lenha a fogueira se apaga; sem o caluniador morre a contenda. O que o carvão é para as brasas e a lenha para a fogueira, o amigo de brigas é para atiçar discórdias.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 26.24-25 Quem odeia disfarça as suas intenções com os lábios, mas no coração abriga a falsidade. Embora a sua conversa seja mansa, não acredite nele, pois o seu coração está cheio de maldade.

O trabalhador confiável é honesto

Pv 26.28 A língua mentirosa odeia aqueles a quem fere, e a boca lisonjeira provoca a ruína.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 27.1 Não se gabe do dia de amanhã, pois você não sabe o que este ou aquele dia poderá trazer.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 27.23-27 Esforce-se para saber bem como suas ovelhas estão, dê cuidadosa atenção aos seus rebanhos, pois as riquezas não duram para sempre, e nada garante que a coroa passe de uma geração a outra. ... Haverá fartura de leite de cabra para alimentar você e sua família, e para sustentar as suas servas.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 28.2 A ordem se mantém com um líder sábio e sensato.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 28.8 Quem aumenta sua riqueza com juros exorbitantes ajunta para algum outro, que será bondoso com os pobres.

O trabalhador sábio é justo

Pv 28.11 O rico pode até se julgar sábio, mas o pobre que tem discernimento o conhece a fundo.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 28.19 Quem lavra sua terra terá comida com fartura, mas quem persegue fantasias se fartará de miséria.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 28.22 O invejoso é ávido por riquezas, e não percebe que a pobreza o aguarda.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 28.23 Quem repreende o próximo obterá por fim mais favor do que aquele que só sabe bajular.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 28.27 Quem dá aos pobres não passará necessidade, mas quem fecha os olhos para não vê-los sofrerá muitas maldições.

O trabalhador sábio é generoso

Pv 29.4 O rei que exerce a justiça dá estabilidade ao país, mas o que gosta de subornos o leva à ruína.

O trabalhador sábio é justo

Pv 29.14 Se o rei julga os pobres com justiça, seu trono estará sempre seguro.

O trabalhador sábio é justo

Pv 29.23 O orgulho do homem o humilha, mas o de espírito humilde obtém honra.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 29.24 O cúmplice do ladrão odeia a si mesmo; posto sob juramento, não ousa testemunhar.

O trabalhador confiável é fiel

Pv 30.7-9 Duas coisas peço que me dês antes que eu morra: Mantém longe de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem pobreza nem riqueza; dá-me apenas o alimento necessário. Se não, tendo demais, eu te negaria e te deixaria, e diria: ‘Quem é o Senhor?’ Se eu ficasse pobre, poderia vir a roubar, desonrando assim o nome do meu Deus.

O trabalhador sábio é modesto

Pv 30.17 Os olhos de quem zomba do pai, e, zombando, nega obediência à mãe, serão arrancados pelos corvos do vale, e serão devorados pelos filhotes do abutre.

Sobre o livro

Pv 31.3 Não gaste sua força com mulheres, seu vigor com aquelas que destroem reis.

A Mulher Valente

Pv 31.10 Uma esposa exemplar; feliz quem a encontrar! É muito mais valiosa que os rubis.

A Mulher Valente

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.11 Seu marido tem plena confiança nela.

A Mulher Valente

O trabalhador sábio é confiável

Pv 31.12,28 Ela só lhe faz o bem, e nunca o mal, todos os dias da sua vida. ... Seus filhos se levantam e a elogiam; seu marido também a elogia.

O trabalhador confiável é fiel

Pv 31.13 Escolhe a lã e o linho e com prazer trabalha com as mãos.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.13-14 Escolhe a lã e o linho e com prazer trabalha com as mãos. Como os navios mercantes, ela traz de longe as suas provisões.

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 31.14 Como os navios mercantes, ela traz de longe as suas provisões.

O trabalhador confiável é fiel

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.15 Antes de clarear o dia ela se levanta, prepara comida para todos os de casa, e dá tarefas às suas servas.

A Mulher Valente

O trabalhador confiável é fiel

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.16 Ela avalia um campo e o compra; com o que ganha planta uma vinha.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.17 Entrega-se com vontade ao seu trabalho; seus braços são fortes e vigorosos.

A Mulher Valente

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 31.18 Administra bem o seu comércio lucrativo, e a sua lâmpada fica acesa durante a noite.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.19 Nas mãos segura o fuso e com os dedos pega a roca.

O trabalhador sábio é generoso

Pv 31.20 Acolhe os necessitados e estende as mãos aos pobres.

O trabalhador confiável é fiel

O trabalhador sábio é generoso

Pv 31.21-22 Não teme por seus familiares quando chega a neve, pois todos eles vestem agasalhos. Faz cobertas para a sua cama; veste-se de linho fino e de púrpura.

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 31.23 Seu marido é respeitado na porta da cidade, onde toma assento entre as autoridades da sua terra.

A Mulher Valente

O trabalhador sábio é perspicaz

Pv 31.24 Ela faz vestes de linho e as vende, e fornece cintos aos comerciantes.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.25 Reveste-se de força e dignidade; sorri diante do futuro.

O trabalhador sábio é diligente

Pv 31.26 Fala com sabedoria e ensina com amor.

O trabalhador sábio guarda a língua

Pv 31.27 Cuida dos negócios de sua casa.

O trabalhador confiável é fiel

Pv 31.30 A beleza é enganosa, e a formosura é passageira; mas a mulher que teme o Senhor será elogiada.

O que os provérbios têm a ver com trabalho?

A Mulher Valente

Pv 31.31 Que ela receba a recompensa merecida, e as suas obras sejam elogiadas à porta da cidade.

O trabalhador confiável é fiel

Versículos de outros livros da Bíblia

Gn 2.15 O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo.

O trabalhador sábio é confiável

Êx 1.15-20 O rei do Egito ordenou às parteiras dos hebreus, que se chamavam Sifrá e Puá: “Quando vocês ajudarem as hebreias a dar à luz, verifiquem se é menino. Se for, matem-no; se for menina, deixem-na viver”. Todavia, as parteiras temeram a Deus e não obedeceram às ordens do rei do Egito; deixaram viver os meninos. Então o rei do Egito convocou as parteiras e lhes perguntou: “Por que vocês fizeram isso? Por que deixaram viver os meninos?” Responderam as parteiras ao faraó: “As mulheres hebreias não são como as egípcias. São cheias de vigor e dão à luz antes de chegarem as parteiras”. Deus foi bondoso com as parteiras; e o povo ia se tornando ainda mais numeroso, cada vez mais forte.

O trabalhador confiável é honesto

Êx 20.16 Não darás falso testemunho contra o teu próximo.

O trabalhador confiável é honesto

Js 2.1 Então Josué, filho de Num, enviou secretamente de Sitim dois espiões e lhes disse: “Vão examinar a terra, especialmente Jericó”. Eles foram e entraram na casa de uma prostituta chamada Raabe, e ali passaram a noite.

O trabalhador confiável é honesto

1Sm 21.1-3 Davi foi falar com o sacerdote Aimeleque, em Nobe. Aimeleque tremia de medo quando se encontrou com ele, e perguntou: “Por que você está sozinho? Ninguém veio com você?” Respondeu Davi: “O rei me encarregou de uma certa missão e me disse: ‘Ninguém deve saber coisa alguma sobre sua missão e sobre as suas instruções’. ... Dê-me cinco pães ou algo que tiver”.

O trabalhador confiável é honesto

1Cr 7.2 Estes foram os filhos de Tolá: Uzi, Refaías, Jeriel, Jamai, Ibsão e Samuel, chefes dos seus clãs. No reinado de Davi, os descendentes de Tolá alistados em suas genealogias como homens de combate eram 22.600.

A Mulher Valente

Mt 6.11 Dá-nos hoje o nosso pão de cada dia.

O trabalhador sábio é modesto

Mt 6.34 Não se preocupem com o amanhã.

O trabalhador sábio é diligente

Mt 10.16 Sejam astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas.

Introdução

Mt 25.14-30 E também será como um homem que, ao sair de viagem, chamou seus servos e confiou-lhes os seus bens. A um deu cinco talentos, a outro dois, e a outro um; a cada um de acordo com a sua capacidade. ... ‘A quem tem, mais será dado, e terá em grande quantidade. Mas a quem não tem, até o que tem lhe será tirado. E lancem fora o servo inútil, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes’.

O trabalhador sábio é diligente

Lc 14.28-30 Qual de vocês, se quiser construir uma torre, primeiro não se assenta e calcula o preço, para ver se tem dinheiro suficiente para completá-la? Pois, se lançar o alicerce e não for capaz de terminá-la, todos os que a virem rirão dele, dizendo: “Este homem começou a construir e não foi capaz de terminar”.

O trabalhador sábio é diligente

Rm 1.29 Tornaram-se cheios de toda sorte de injustiça, maldade, ganância e depravação. Estão cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e malícia. São bisbilhoteiros...

O trabalhador sábio guarda a língua

Rm 12.21 Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem.

O trabalhador sábio é justo

Ef 4.15 Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo.

O trabalhador confiável é honesto

Ef 4.26 “Quando vocês ficarem irados, não pequem”. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha.

O trabalhador sábio guarda a língua

Introdução a Eclesiastes

Voltar ao índice Voltar ao índice

Eclesiastes captura de forma brilhante o esforço e a alegria, o sucesso passageiro e as perguntas sem resposta que todos experimentamos em nosso trabalho. É um dos livros bíblicos favoritos de muitos trabalhadores cristãos, e seu narrador — chamado de Mestre, Pregador ou Sábio nas traduções em português — tem muito a dizer sobre o trabalho. Muito do que ele ensina é sucinto, prático e inteligente. Qualquer pessoa que já tenha trabalhado em equipe pode apreciar o valor de uma máxima como: “É melhor ter companhia do que estar sozinho, porque maior é a recompensa do trabalho de duas pessoas” (Eclesiastes 4.9). A maioria de nós passa a maior parte de nossa vida trabalhando, e encontramos afirmação quando o Mestre diz: “Por isso recomendo que se desfrute a vida, porque debaixo do sol não há nada melhor para o homem do que comer, beber e alegrar-se. Sejam esses os seus companheiros no seu duro trabalho durante todos os dias da vida que Deus lhe der debaixo do sol!” (Ec 8.15).

No entanto, a imagem do trabalho do Mestre também é profundamente preocupante. “Quando avaliei tudo o que as minhas mãos haviam feito e o trabalho que eu tanto me esforçara para realizar, percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento” (Ec 2.11). A preponderância quase esmagadora de observações negativas sobre o trabalho ameaça sufocar o leitor. O Mestre começa com “Que grande inutilidade!” (Ec 1.2) ou “Vaidade de vaidades” (NAA) e termina com “Nada faz sentido” (Ec 12.8) ou “Tudo é vaidade” (NAA). As palavras e frases que ele repete com mais frequência são “inútil”, “vaidade”, “absurdo” e “correr atrás do vento”, além de ideias como “não encontrar” e “não saber”. A menos que haja uma perspectiva mais ampla para moderar suas observações, Eclesiastes pode ser realmente um livro muito triste.

A tarefa de dar sentido ao livro como um todo é difícil. Será que Eclesiastes realmente retrata o trabalho como vaidade, ou será que o Mestre vasculha as muitas maneiras vãs de trabalhar para encontrar um conjunto central de maneiras significativas? Ou, pelo contrário, será que as muitas máximas e observações positivas são negadas por uma avaliação geral do trabalho como “correr atrás do vento”? A resposta depende, em grande parte, de como abordamos o livro.

Uma maneira de ler Eclesiastes é considerá-lo simplesmente uma salada de observações sobre a vida, incluindo o trabalho. Sob essa abordagem, o Mestre é principalmente um observador realista que relata os altos e baixos da vida à medida que os encontra. Cada observação é por si só um pouco de sabedoria. Se extrairmos conselhos úteis de algo como: “Para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho” (Ec 2.24), não precisamos ficar muito preocupados com o fato de que ele seja seguido em breve por: “Isso também é inútil, é correr atrás do vento” (Ec 2.26).

O leitor que deseja adotar essa abordagem está em boa companhia. A maioria dos estudiosos de hoje não reconhece um argumento abrangente em Eclesiastes e, mesmo entre aqueles que o reconhecem, “dificilmente há um comentarista que concorde com outro”. [1] Mas há algo de insatisfatório nessa abordagem fragmentada. Queremos saber: “Qual é a mensagem geral de Eclesiastes?” Se quisermos descobrir isso, devemos procurar uma estrutura que reúna a ampla gama de observações que vivem lado a lado no livro.

Seguiremos a estrutura proposta pela primeira vez por Addison Wright, em 1968, que divide o livro em unidades de pensamento. [2] A estrutura de Wright é recomendada por três razões: 1) baseia-se objetivamente na repetição de frases e ideias principais ao longo do texto de Eclesiastes, e não em interpretações subjetivas do conteúdo; 2) é aceito por mais estudiosos — reconhecidamente ainda uma pequena minoria — do que qualquer outro; [3] e 3) traz tópicos relacionados ao trabalho para o primeiro plano. Não temos tempo para reproduzir os argumentos de Wright, mas indicaremos as frases e ideias que se repetem e que delineiam as unidades de pensamento que ele propõe. Na primeira metade do livro, a frase “correr atrás do vento” marca o final de cada unidade. Na segunda metade, a ideia de “não encontrar” (ou “quem consegue encontrar?”) desempenha a mesma função. A estrutura de Wright contribuirá diretamente para nossa compreensão geral do livro.

Há outra expressão, “debaixo do sol”, que não pode passar despercebida quando lemos Eclesiastes. Ela ocorre 29 vezes na Bíblia, todas elas em Eclesiastes. [4] É uma reminiscência do termo “no mundo caído”, derivado de Gênesis 3, que descreve o mundo em que a criação de Deus ainda é boa, mas severamente marcada por males. Por que o Mestre usa essa expressão com tanta frequência? Ele pretende reforçar a inutilidade do trabalho evocando uma imagem do sol circulando infinitamente pelo céu, enquanto nada muda? Ou ele imagina que possa haver um mundo além da Queda, não “debaixo do sol”, onde o trabalho não seria em vão? É uma pergunta que vale a pena ter em mente ao lermos Eclesiastes.

Em contraste com a vida humana debaixo do sol, o Mestre nos dá vislumbres de Deus no céu. Nossa luta aqui é passageira, mas “tudo o que Deus faz permanecerá para sempre” (Ec 3.14). Esses vislumbres começam a nos dar uma compreensão do caráter de Deus, o que, talvez, nos ajude a dar sentido à vida. Observaremos o que Eclesiastes revela sobre o caráter de Deus à medida que os aspectos surgirem, e depois os examinaremos juntos no final do livro.

De qualquer forma, Eclesiastes faz uma contribuição vital para a teologia do trabalho por meio de seu olhar honesto e franco sobre a realidade do trabalho. Qualquer pessoa atenciosa que esteja engajada em seu trabalho, seja um seguidor de Cristo ou não, se conectará com ele. Sua honestidade revigorante abre as portas para conversas profundas sobre trabalho, mais do que as prescrições ordenadas para fazer negócios à maneira de Deus, tão comumente encontradas nos círculos cristãos.

Trabalhando debaixo do sol (Ec 1.1-11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O trabalho é a atividade principal explorada em Eclesiastes. É chamado de “trabalho em que se esforça” (Hebr. amal), indicando as dificuldades do trabalho. O tópico é apresentado no início do livro, em Eclesiastes 1.3: “O que o homem ganha com todo o seu trabalho em que tanto se esforça debaixo do sol?” A avaliação que o Mestre faz de todo esforço é que é “inútil” (Ec 2.1), “sem sentido” (cf. NVT) ou “vaidade” (cf. NAA). Em hebraico, esta palavra é hebel e domina Eclesiastes. A palavra hebel, na verdade, significa “respiração”, mas daí passa a se referir a algo que é insubstancial, passageiro e sem valor permanente. Ela é mais que adequada para ser a palavra-chave deste livro, porque uma respiração é, por natureza, breve, de pouca substância discernível e se dissipa rapidamente. No entanto, nossa sobrevivência depende dessas breves inalações e exalações de sopros de ar. Em breve, porém, a respiração cessará e a vida terminará. A palavra hebel, da mesma forma, descreve algo de valor passageiro que logo chegará ao fim. Em certo sentido, “vaidade” é uma tradução enganosa, pois parece afirmar que tudo é totalmente inútil. Mas o verdadeiro ponto de hebel é algo que tem apenas um valor passageiro e efêmero. Uma única respiração pode não ter valor permanente, mas, em seu único momento, ela nos mantém vivos. Da mesma forma, o que somos e fazemos nesta vida transitória tem um significado real, embora temporário.

Considere o trabalho de construir um navio. Pela boa criação de Deus, a terra contém as matérias-primas de que precisamos para construir navios. A engenhosidade humana e o trabalho árduo — também criados por Deus — podem criar navios seguros, eficazes e até belos. Eles se juntam à frota e transportam alimentos, recursos, produtos manufaturados e pessoas para onde são necessários. Quando um navio é lançado e a garrafa de champanhe é quebrada na proa, todos os envolvidos podem celebrar sua conquista. No entanto, uma vez que sai do pátio, os construtores não têm mais controle sobre ele. O navio pode ser capitaneado por um tolo que o deixa encalhar nos bancos de areia. Pode ser fretado para contrabandear drogas, armas ou até mesmo escravos. Sua tripulação pode ser tratada com severidade. Ele pode servir nobremente por muitos anos, mas mesmo assim se desgastará e se tornará obsoleto. É quase certo que seu destino final será um estaleiro de desmanche de navios, provavelmente localizado em um país onde a segurança dos trabalhadores e a poluição ambiental são tratadas com descaso. Os navios passam, como as rajadas de vento que antes os moviam. Primeiro ele se torna uma carcaça enferrujada, depois uma mistura de metal reciclado e lixo descartado e, finalmente, sai do conhecimento humano. Os navios são bons, mas não duram para sempre. Enquanto vivermos, devemos trabalhar nessa tensão.

Isso nos leva à imagem do sol correndo ao redor da terra, que discutimos na introdução (Ec 1.5). A atividade incessante desse grande objeto no céu traz a luz e o calor dos quais dependemos todos os dias, mas não muda nada com o passar dos tempos. “Não há nada novo debaixo do sol” (Ec 1.9). Essa é uma observação nada sentimental, embora não uma condenação eterna, sobre nosso trabalho.

Trabalhar é correr atrás do vento (Ec 1.12—6.9)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Tendo declarado seu tema de que o esforço é inútil (ou vaidade) em Eclesiastes 1.1-11, o Mestre, no entanto, passa a investigar várias possibilidades para tentar viver bem a vida. Ele considera, em ordem, realização, prazer, sabedoria, riqueza, oportunidade, amizade e encontrar alegria nos dons de Deus. Em algumas delas, ele encontra certo valor, menos nas primeiras investigações e mais nas últimas. No entanto, nada parece permanente, e a conclusão característica em cada seção é que trabalhar é “correr atrás do vento”.

Realização (Ec 1.12-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Primeiro, o Mestre investiga a realização. Ele era tanto um rei como um sábio — um superdotado, para usar os termos de hoje — alguém que podia afirmar: “ultrapassei em sabedoria todos os que governaram Jerusalém antes de mim” (Ec 1.16). E o que toda essa conquista significou para ele? Não muito. “Que fardo pesado Deus pôs sobre os homens! Tenho visto tudo o que é feito debaixo do sol; tudo é inútil, é correr atrás do vento!” (Ec 1.13-14). Nenhuma conquista duradoura parece possível. “O que é torto não pode ser endireitado; o que está faltando não pode ser contado” (Ec 1.15). Alcançar seus objetivos não lhe deu felicidade, pois apenas o fez perceber o quão vazio e limitado deveria ser tudo o que ele pudesse realizar. Em suma, ele diz novamente: “Aprendi que isso também é correr atrás do vento” (Ec 1.17-18).

Prazer (Ec 2.1-11)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em seguida, ele diz a si mesmo: “Venha. Experimente a alegria. Descubra as coisas boas da vida!” (Ec 2.1). Ele adquire riqueza, casas, jardins, álcool, servos (escravos), joias, entretenimento e pronto acesso ao prazer sexual. “Não me neguei nada que os meus olhos desejaram; não me recusei a dar prazer algum ao meu coração” (Ec 2.10a).

Ao contrário da realização, ele encontra algum valor na busca de prazer. “Na verdade, eu me alegrei em todo o meu trabalho; essa foi a recompensa de todo o meu esforço” (Ec 2.10). Suas supostas conquistas acabaram não sendo nada de novo, mas seus prazeres, pelo menos, eram agradáveis. Parece que o trabalho realizado como meio para um fim — neste caso, o prazer — é mais satisfatório do que o trabalho realizado como uma obsessão. Sem necessariamente dispor de “um harém” (Ec 2.8), os trabalhadores de hoje podem fazer bem em reservar um tempo para parar tudo e relaxar. Se deixamos de trabalhar em direção a um objetivo além do trabalho, se não podemos mais desfrutar dos frutos de nosso trabalho, acabamos nos tornando escravos do trabalho, e não seus senhores.

No entanto, trabalhar apenas para obter prazer é, em última análise, insatisfatório. Esta seção termina com a avaliação negativa: “percebi que tudo foi inútil, foi correr atrás do vento” (Ec 2.11).

Sabedoria (Ec 2.12-17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Talvez seja bom buscar um objeto fora do próprio trabalho, mas é necessário um objetivo maior do que o prazer. Assim, o Mestre relata: “passei a refletir na sabedoria, na loucura e na insensatez” (Ec 2.12). Em outras palavras, ele se torna algo semelhante ao professor ou pesquisador de hoje. Ao contrário da conquista pela conquista, a sabedoria pode, pelo menos, ser alcançada até certo ponto. “Percebi que a sabedoria é melhor que a insensatez, assim como a luz é melhor do que as trevas” (Ec 2.13). Mas, além de encher a cabeça com pensamentos exaltados, isso não faz diferença real na vida, pois o sábio morre, assim como o tolo (Ec 2.16). Buscar sabedoria levou o Mestre à beira do desespero (Ec 1.17), um resultado que permanece muito comum nas atividades acadêmicas de hoje. O Mestre conclui: “Tudo era inútil, era correr atrás do vento” (Ec 2.17).

Riqueza (Ec 2.18-26)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Então, o Mestre se volta para a riqueza, que pode ser adquirida como resultado do trabalho árduo. E quanto ao acúmulo de riqueza como o propósito maior por trás do trabalho? Isso acaba sendo pior do que gastar riqueza para obter prazer. A riqueza traz o problema da herança. Quando você morrer, a riqueza que acumulou passará para outra pessoa que pode ser completamente indigna. “Algumas pessoas trabalham com sabedoria, conhecimento e habilidade, mas terão de deixar o resultado de seu trabalho para alguém que não se esforçou. Isso também não faz sentido; é uma grande tragédia” (Ec 2.21). Isso é tão perturbador que o Mestre diz: “Cheguei a me desesperar” (Ec 2.20).

Nesse ponto, temos nosso primeiro vislumbre do caráter de Deus. Deus é um doador. “Deus concede sabedoria, conhecimento e alegria àqueles que lhe agradam” (Ec 2.26). Esse aspecto do caráter de Deus é repetido várias vezes em Eclesiastes, e seus dons incluem comida, bebida e alegria (Ec 5.18; 8.15), riqueza e posses (Ec 5.19; 6.20), honra (Ec 6.2), integridade (Ec 7.29), o mundo em que habitamos (Ec 11.5) e a própria vida (Ec 12.7).

Assim como o Mestre, muitas pessoas que acumulam grandes riquezas acham isso extremamente insatisfatório. Enquanto estamos fazendo fortuna, não importa o quanto tenhamos, isso nunca parece ser suficiente. Quando conquistamos nossa fortuna e começamos a apreciar nossa mortalidade, doar nossa riqueza com sabedoria parece se tornar um fardo quase intolerável. Andrew Carnegie observou o peso desse fardo quando disse: “Resolvi parar de acumular e começar a tarefa infinitamente mais séria e difícil de uma distribuição sábia”. [1] No entanto, se Deus é um doador, não é surpresa que a distribuição de riqueza, em vez de sua acumulação, possa ser mais satisfatória.

Mas o Mestre não encontra satisfação em dar riquezas mais do que em ganhá-las (Ec 2.18-21). A satisfação que Deus no céu tem em dar, de alguma forma, escapa ao Mestre debaixo do sol. Ele não parece considerar a possibilidade de investir a riqueza ou doá-la para um propósito maior. A menos que haja de fato um propósito mais elevado, além de qualquer coisa que o Mestre descubra, o acúmulo e a distribuição de riqueza “também é inútil, é correr atrás do vento” (Ec 2.26).

Tempo (Ec 3.1—4.6)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Se o trabalho não tem um propósito único e imutável, talvez ele tenha uma infinidade de propósitos, cada um significativo em seu próprio tempo. O Mestre analisa isso no início do famoso capítulo: “há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu” (Ec 3.1). A chave é que toda atividade é governada pelo tempo.

Um trabalho que é completamente errado em um momento pode ser certo e necessário em outro. Em um momento é certo chorar e errado dançar; em outro momento, o oposto é que é verdadeiro.

Nenhuma dessas atividades ou condições é permanente. Não somos anjos em felicidade atemporal. Somos criaturas deste mundo passando pelas mudanças e estações do tempo. Essa é outra lição difícil. Enganamos a nós mesmos sobre a natureza fundamental da vida se pensarmos que nosso trabalho pode trazer paz, prosperidade ou felicidade permanentes. Algum dia, tudo o que construímos será justamente demolido (Ec 3.3). Se nosso trabalho tem algum valor eterno, o Mestre não vê sinal dele “debaixo do sol” (Ec 4.1). Nossa condição é duplamente difícil, pois somos criaturas do momento; porém, ao contrário dos animais, temos um senso de passado e futuro em nossa mente (Ec 3.11). Assim, o Mestre anseia por aquilo que tem valor permanente, mesmo que não possa encontrá-lo.

Além disso, até mesmo o bem oportuno que as pessoas tentam fazer pode ser frustrado pela opressão. “Vi as lágrimas dos oprimidos, mas não há quem os console; o poder está do lado dos seus opressores, e não há quem os console” (Ec 4.1). O pior de tudo é a opressão por parte do governo. “Descobri também que debaixo do sol: No lugar da justiça havia impiedade” (Ec 3.16). No entanto, aqueles que não têm poder não são necessariamente melhores. Uma resposta comum ao sentimento de impotência é a inveja. Invejamos aqueles que têm poder, riqueza, status, relacionamentos, posses ou outras coisas que nos faltam. O Mestre reconhece que a inveja é tão ruim quanto a opressão. “Descobri que todo trabalho e toda realização surgem da competição que existe entre as pessoas. Mas isso também é absurdo, é correr atrás do vento” (Ec 4.4). O desejo de obter realizações, prazer, sabedoria ou riqueza, seja por opressão ou inveja, é uma total perda de tempo. No entanto, quem nunca caiu nessas duas loucuras?

Mas o Mestre não se desespera, pois o tempo é uma dádiva do próprio Deus. “Ele fez tudo apropriado ao seu tempo” (Ec 3.11a). É certo chorar no funeral de um ente querido, e é bom se alegrar com o nascimento de um filho. E não devemos recusar os prazeres legítimos que nosso trabalho pode trazer. “Descobri que não há nada melhor para o homem do que ser feliz e praticar o bem enquanto vive. Descobri também que poder comer, beber e ser recompensado pelo seu trabalho é um presente de Deus” (Ec 3.12-13).

Essas lições de vida se aplicam especialmente ao trabalho. “Concluí que não há nada melhor para o homem do que desfrutar do seu trabalho, porque esta é a sua recompensa” (Ec 3.22a). O trabalho é realizado sob a maldição, mas o trabalho não é em si uma maldição. Mesmo a visão limitada que temos do futuro é uma espécie de bênção, pois nos alivia do fardo de tentar prever todos os fins. “Quem poderá fazê-lo ver o que acontecerá depois de morto?” (Ec 3.22b). Se nosso trabalho servir ao momento em que se pode prever, então é um dom de Deus.

Nesse ponto, temos dois vislumbres do caráter de Deus. Primeiro, Deus é incrível, eterno, onisciente. “Deus assim faz para que os homens o temam” (Ec 3.14). Embora estejamos limitados pelas condições da vida debaixo do sol, Deus não está. Há mais em Deus do que se aparenta. A transcendência de Deus — para lhe dar um nome teológico — aparece novamente em Eclesiastes 7.13-14 e 8.12-13.

O segundo vislumbre nos mostra que Deus é um Deus de justiça. “Deus investigará o passado” (Ec 3.15). “O justo e o ímpio, Deus julgará ambos” (Ec 3.17). Essa ideia é repetida mais adiante, em Eclesiastes 8.13; 11.9; 12.14. Podemos não ver a justiça de Deus na aparente injustiça da vida, mas o Mestre nos garante que isso acontecerá.

Como observamos, Eclesiastes é uma investigação realista da vida no mundo caído. O trabalho é penoso. No entanto, mesmo em meio ao esforço, nossa sina é ter prazer em nosso esforço e desfrutar de nosso trabalho. Essa não é uma resposta para os enigmas da vida, mas um sinal de que Deus está no mundo, mesmo que não vejamos claramente o que exatamente isso significa para nós. Apesar dessa nota um tanto esperançosa, a investigação do tempo termina com uma dupla repetição de “correr atrás do vento”, uma vez em Eclesiastes 4.4 (como discutido acima) e novamente em Eclesiastes 4.6.

Amizade (Ec 4.7—4.16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Talvez os relacionamentos ofereçam um significado real no trabalho. O Mestre exalta o valor das amizades no trabalho. “É melhor ter companhia do que estar sozinho, porque maior é a recompensa do trabalho de duas pessoas” (Ec 4.9, ênfase adicionada).

Quantas pessoas encontram suas amizades mais próximas no local de trabalho? Mesmo que não precisássemos do pagamento, mesmo que o trabalho não nos interessasse, poderíamos encontrar um significado profundo em nossos relacionamentos profissionais. Essa é uma das razões pelas quais muitas pessoas acham a aposentadoria decepcionante. Sentimos falta de nossos amigos do trabalho depois que saímos e achamos difícil formar novas amizades profundas sem os objetivos comuns que nos uniam aos colegas de trabalho.

Construir bons relacionamentos no trabalho requer abertura e desejo de aprender com os outros. “Melhor é um jovem pobre e sábio, do que um rei idoso e tolo, que já não aceita repreensão” (Ec 4.13). Arrogância e poder são frequentemente barreiras para o desenvolvimento de relacionamentos dos quais o trabalho eficaz depende (Ec 4.14-16), uma verdade explorada no artigo da Harvard Business School, “How Strength Becomes a Weakness” [“Como a força se torna uma fraqueza”]. [1] Tornamo-nos amigos no trabalho, em parte porque é preciso trabalhar em equipe para fazer um bom trabalho. Essa é uma das razões pelas quais muitas pessoas são melhores em fazer amizades no trabalho do que em ambientes sociais em que não há um objetivo compartilhado.

A investigação sobre a amizade pelo Mestre é mais otimista do que suas investigações anteriores. Mesmo assim, as amizades de trabalho são necessariamente temporárias. As atribuições de trabalho mudam, as equipes são formadas e dissolvidas, colegas se demitem, são demitidos ou se aposentam, e entram novos trabalhadores de quem podemos não gostar. O Mestre o compara a um novo e jovem rei, cujos súditos o recebem com prazer a princípio, mas cuja popularidade cai à medida que uma nova geração de jovens passa a considerá-lo apenas mais um velho rei. No final, nem o avanço na carreira nem a fama oferecem satisfação. “Isso também não faz sentido, é correr atrás do vento” (Ec 4.16).

Alegria (Ec 5.1—6.9)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A busca do Mestre por significado no trabalho termina com muitas lições curtas que têm aplicação direta no trabalho. Primeiro, ouvir é mais sábio do que falar. “Quem se aproxima para ouvir é melhor do que os tolos que oferecem sacrifício sem saber que estão agindo mal” (Ec 5.1). Em segundo lugar, cumpra seus votos e promessas, especialmente quando se dirigem a Deus (Ec 5.4). Terceiro, espere que o governo seja corrupto. Isso não é bom, mas é universal e é melhor que a anarquia (Ec 5.8-9). Quarto, a obsessão pela riqueza é um vício e, como qualquer outro vício, consome aqueles a quem aflige (Ec 5.10-12), mas não satisfaz (Ec 6.7-8). Quinto, a riqueza é passageira. Ela pode desaparecer nesta vida e certamente desaparecerá na morte. Não construa sua vida sobre isso (Ec 5.13-17).

No meio desta seção, o Mestre investiga novamente o dom de Deus, que nos permite desfrutar de nosso trabalho e da riqueza, posses e honra que ele pode trazer por um tempo. “Descobri que, para o homem, o melhor e o que mais vale a pena é comer, beber, e desfrutar o resultado de todo o esforço que se faz debaixo do sol durante os poucos dias de vida que Deus lhe dá” (Ec 5.18). Embora o prazer seja passageiro, é real. “Raramente essa pessoa fica pensando na brevidade de sua vida, porque Deus o mantém ocupado com a alegria do coração” (Ec 5.20). Essa alegria não vem de se esforçar com mais sucesso do que os outros, mas de receber a vida e o trabalho como um presente de Deus. Se a alegria em nosso trabalho não vem como um dom de Deus, ela não vem de forma alguma (Ec 6.1-6).

Como na seção sobre amizade, o tom do Mestre é relativamente positivo nesta seção. No entanto, o resultado final ainda é frustração. Pois vemos claramente que todas as vidas terminam na sepultura, e mesmo a vida vivida com sabedoria não chega a nada maior do que a vida vivida de forma insensata. É melhor ver isso claramente do que tentar viver em uma ilusão de conto de fadas. “Melhor é contentar-se com o que os olhos veem do que sonhar com o que se deseja” (Ec 6.9a). Mas o resultado final de nossa vida continua sendo algo que “não faz sentido; é correr atrás do vento” (Ec 6.9b).

Não há como descobrir o que é bom fazer (Ec 6.10—8.17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Uma vida de esforços equivale a correr atrás do vento, pois os resultados do trabalho não são permanentes no mundo como o Mestre o conhece. Então, ele começa uma busca para descobrir o que é melhor fazer com o tempo que tem. Como visto anteriormente neste livro, esse bloco de material é dividido em seções demarcadas por uma ideia repetida ao final de cada investigação. Na frustração da esperança do Mestre, essa ideia é “não encontrar”, ou sua pergunta retórica equivalente, “quem pode encontrar?”.

Os resultados finais de nossas ações (Ec 7.1-14)

Nossos esforços terminam com nossa morte. Eclesiastes, portanto, recomenda que passemos algum tempo sério no cemitério (Ec 7.1-6). Podemos ver alguma vantagem real que um túmulo tenha sobre o outro? Algumas pessoas passam assobiando pelo cemitério, recusando-se a considerar suas lições. O riso deles é como o crepitar de espinhos ardentes, que é consumido pelas chamas (Ec 7.6).

Como nosso tempo é curto, não podemos descobrir que impacto podemos ter no mundo. Não podemos nem mesmo descobrir por que hoje é diferente de ontem (Ec 7.10), muito menos o que o amanhã pode trazer. Faz sentido desfrutar de qualquer bem que venha de nosso esforço enquanto vivemos, mas não temos promessa de que o verdadeiro fim seja bom, pois “Deus fez tanto um quanto o outro [os dias bons e os ruins], para evitar que o homem descubra alguma coisa sobre o seu futuro” (Ec 7.14).

Uma aplicação que podemos tirar de nossa ignorância quanto a nosso legado é que bons fins não justificam meios ruins. Afinal, não podemos ver os fins de todas as ações que tomamos, e o poder de mitigar as consequências de nossos meios pode vir a qualquer momento. Políticos que apaziguam a opinião pública agora às custas do dano público mais tarde, executivos do setor financeiro que escondem perdas num trimestre na esperança de compensar no próximo trimestre, recém-formados que mentem em uma solicitação de emprego com a esperança de ter sucesso em empregos para os quais não são qualificados — todos eles estão contando com futuros que não têm o poder de trazer. Enquanto isso, eles estão causando um mal que nunca poderá ser realmente apagado, mesmo que suas esperanças se tornem realidade.

O bem e o mal (Ec 7.15-28)

Portanto, devemos tentar agir agora de acordo com o bem. No entanto, não podemos realmente saber se qualquer ação que tomamos é totalmente boa ou totalmente má. Quando imaginamos que estamos agindo com justiça, a iniquidade pode se infiltrar e vice-versa (Ec 7.16-18). Pois “não há um só justo na terra, ninguém que pratique o bem e nunca peque” (Ec 7.20). A verdade do bem e do mal “está bem distante e é muito profunda; quem pode descobri-la?” (Ec 7.24, ênfase adicionada). Como que para enfatizar essa dificuldade, a ideia característica de “não encontrar” é repetida novamente duas vezes em Eclesiastes 7.28.

O melhor que podemos fazer é temer a Deus (Ec 7.18), isto é, para evitar a arrogância e a justiça própria. Um bom autodiagnóstico é examinar se temos de recorrer a lógicas distorcidas e esquemas complicados para justificar nossas ações. “Deus fez os homens justos, mas eles foram em busca de muitas intrigas” (Ec 7.29). O trabalho tem muitas complexidades, muitos fatores que devem ser levados em conta, e a certeza moral geralmente é impossível. Mas buscar ética na “lógica do pretzel” é quase sempre um mau sinal (a “lógica do pretzel” é um raciocínio falho ou circular que não resiste a um exame minucioso).

Poder e justiça (Ec 8.1-17)

O exercício do poder é um fato da vida, e temos o dever de obedecer àqueles que têm autoridade sobre nós (Ec 8.2-5). No entanto, não sabemos se eles usarão sua autoridade com justiça. Muito possivelmente, eles usarão seu poder para prejudicar os outros (Ec 8.9). A justiça é pervertida. Os justos são punidos e os ímpios são recompensados ​​(Ec 8.10-14).

Em meio a essa incerteza, o melhor que podemos fazer é temer a Deus (Ec 8.13) e aproveitar as oportunidades de felicidade que ele nos dá. “Por isso recomendo que se desfrute a vida, porque debaixo do sol não há nada melhor para o homem do que comer, beber e alegrar-se. Sejam esses os seus companheiros no seu duro trabalho durante todos os dias da vida que Deus lhe der debaixo do sol!” (Ec 8.15).

Como na seção anterior, a ideia de “não encontrar” é repetida três vezes no final deste tópico. “Ninguém é capaz de entender o que se faz debaixo do sol. Por mais que se esforce para descobrir o sentido das coisas, o homem não o encontrará. O sábio pode até afirmar que entende, mas, na realidade, não o consegue encontrar” (Ec 8.17). Isso encerra a busca do Mestre para descobrir o que é bom fazer com o tempo limitado que temos. Embora ele tenha descoberto algumas boas práticas, o resultado geral é que ele não conseguiu descobrir o que é realmente significativo.

Não há como saber o que vem depois (Ec 9.1—11.6)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Talvez fosse possível descobrir o que é melhor fazer na vida, se fosse possível saber o que vem depois. Assim, o Mestre busca conhecimento sobre a morte (Ec 9.1-6), o Sheol [“sepultura”] (Ec 9.7-10), o tempo da morte (Ec 9.11-12), o que vem após a morte (Ec 13-10.15), o mal que pode vir após a morte (Ec 10.16—11.2) e o bem que pode vir (Ec 11.3-6). Mais uma vez, uma ideia marcadora é repetida — neste caso, “não saber” e seu equivalente “não ter conhecimento” — divide o material em seções.

O Mestre descobre que simplesmente não é possível saber o que está por vir. “Os mortos nada sabem” (Ec 9.5). “Na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria” (Ec 9.10). “Ninguém sabe quando virá a sua hora” (Ec 9.12). “ Ninguém sabe o que está para vir; quem poderá dizer a outrem o que lhe acontecerá depois?” (Ec 10.14). “Você não sabe que desgraça poderá cair sobre a terra” (Ec 11.2). “Você não sabe o que acontecerá, se esta ou aquela produzirá, ou se as duas serão igualmente boas” (Ec 11.5-6).

Apesar de nossa colossal ignorância sobre o futuro, o Mestre descobre algumas coisas que são boas para se fazer enquanto temos chance. Investigaremos apenas as passagens que são particularmente relevantes para o trabalho.

Jogue-se em seu trabalho de todo o coração (Ec 9.10)

“O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria” (Ec 9.10). Embora não possamos saber o resultado final de nosso trabalho, não faz sentido deixar que isso nos paralise. Os seres humanos foram criados para trabalhar (Gn 2.15). Precisamos trabalhar para sobreviver e, sendo assim, devemos trabalhar com toda força. O mesmo vale para aproveitar os frutos de nosso trabalho, sejam eles quais forem. “Portanto, vá, coma com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz” (Ec 9.7).

Aceite o sucesso e o fracasso como parte da vida (Ec 9.11-12)

Primeiro, não devemos nos enganar pensando que nosso sucesso se deve a nossos próprios méritos ou que nosso fracasso se deve a nossas próprias deficiências. “Percebi ainda outra coisa debaixo do sol: Os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos” (Ec 9.11). O sucesso ou o fracasso podem ser devidos ao acaso. Isso não quer dizer que trabalho árduo e engenhosidade não sejam importantes. Eles nos preparam para aproveitar ao máximo as oportunidades da vida e podem criar oportunidades que, de outra forma, não existiriam. No entanto, alguém que é bem-sucedido no trabalho pode não ser mais merecedor do que outro que falha. Por exemplo, a Microsoft teve uma chance de sucesso em grande parte por causa da decisão improvisada da IBM de usar o sistema operacional MS-DOS para um projeto que estava atrasado, chamado de computador pessoal. Bill Gates refletiu mais tarde: “Nosso tempo para criar a primeira empresa de software voltada para computadores pessoais foi essencial para nosso sucesso. O momento não foi inteiramente de sorte, mas, sem muita sorte, não poderia ter acontecido.” Questionado sobre por que havia fundado uma empresa de software exatamente na época em que a IBM estava se arriscando com um computador pessoal, ele respondeu: “Nasci no lugar e no momento certos”. [1]

Trabalhe com diligência e invista com sabedoria (Ec 10.18—11.6)

Essa passagem contém o conselho financeiro mais direto que pode ser encontrado em qualquer parte da Bíblia. Primeiro, seja diligente, caso contrário, a economia de sua família entrará em colapso como um telhado podre e com goteiras (Ec 10.18). Segundo, entenda que, nesta vida, o bem-estar financeiro importa. “Tudo se paga com dinheiro” (Ec 10.19) pode ser lido de maneira cínica, mas o texto não diz que o dinheiro é a única coisa que importa. A questão é simplesmente que o dinheiro é necessário para lidar com todos os tipos de questões. Para colocar em termos modernos, se meu carro precisar de um reparo na transmissão, se minha filha precisar quitar as mensalidades na faculdade ou se eu quiser levar minha família de férias, tudo isso exigirá dinheiro. Não se trata de ganância ou materialismo; é bom senso. Terceiro, tenha cuidado com as pessoas em posição de autoridade (Ec 10.20). Se você menosprezar seu chefe ou até mesmo um cliente, poderá se arrepender. Quarto, diversifique seus investimentos (Ec 11.1-2). “Atire o seu pão sobre as águas” não se refere a doações de caridade, mas a investimentos; nesse caso, as “águas” representam um empreendimento no comércio exterior. Assim, repartir com “sete” ou “oito” refere-se a investimentos diversos, “pois você não sabe que desgraça poderá cair sobre a terra” (Ec 11.2). Quinto, não seja excessivamente tímido ao investir (Ec 11.3-5). O que há de acontecer vai mesmo acontecer, e você não tem como controlar isso (Ec 11.3). Mas isso não deve nos assustar a ponto de colocarmos dinheiro debaixo do colchão, onde ele não rende nada. Em vez disso, devemos encontrar coragem para assumir riscos razoáveis. “Quem fica observando o vento não plantará, e quem fica olhando para as nuvens não colherá” (Ec 11.4). Sexto, entenda que o sucesso está nas mãos de Deus. Mas você não sabe quais planos ou propósitos ele tem; portanto, não tente duvidar dele (Ec 11.5). Sétimo, seja persistente (Ec 11.6). Não trabalhe arduamente por um tempo e depois diga: “Eu tentei isso e não funcionou”.

A busca do Mestre por conhecimento sobre o futuro termina em Ec 11.5-6 com uma repetição tripla da ideia de “não saber”. Isso nos lembra que, embora trabalhar de todo o coração, aceitar o sucesso e o fracasso como parte da vida, trabalhar com diligência e investir com sabedoria sejam boas práticas, estas são apenas adaptações para lidar com nossa ignorância sobre o futuro. Se realmente soubéssemos como nossas ações se desenrolariam, poderíamos planejar com confiança o sucesso. Se soubéssemos quais investimentos dariam certo, não precisaríamos diversificar como proteção contra perdas sistêmicas. É difícil saber se devemos abaixar a cabeça entristecidos pelos desastres que podem nos acontecer neste mundo caído, ou se devemos louvar a Deus por ainda ser possível sobreviver — e talvez até se sair bem — em um mundo assim. Ou, na verdade, será que não é um pouco dos dois?

Um poema sobre a juventude e a velhice (Ec 11.7—12.8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Mestre conclui com um poema exortando os jovens a terem bom ânimo (Ec 11.7—12.1) e relatando os problemas da velhice (Ec 12.2-8). Ele recapitula o padrão encontrado nas seções anteriores do livro. Há muita coisa boa a ser encontrada em nossa vida e trabalho, mas, em última análise, tudo é passageiro. O Mestre termina no mesmo tom que começou: “Nada faz sentido! Nada faz sentido!” (Ec 12.8).

Epílogo de louvor ao Mestre (Ec 12.9-14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Segue-se um epílogo a respeito do Mestre, e não escrito por ele. O epílogo elogia sua sabedoria e repete sua admoestação de temer a Deus. Acrescenta novos elementos não encontrados anteriormente no livro, como a sabedoria de seguir os mandamentos de Deus à luz do julgamento futuro de Deus.

Tema a Deus e obedeça aos seus mandamentos, porque isso é o essencial para o homem. Pois Deus trará a julgamento tudo o que foi feito, inclusive tudo o que está escondido, seja bom, seja mau. (Ec 12.13-14)

O julgamento futuro de Deus é visto como a chave para separar a mistura de bem e mal que permeia o trabalho no mundo caído. Os vislumbres do caráter de Deus que vimos no livro — a generosidade, a justiça e a transcendência de Deus além dos limites do mundo — retratam uma bondade subjacente nos fundamentos do mundo, se pudéssemos viver de acordo com isso. Isso começa a sugerir que, no tempo de Deus, as tensões tão vividamente descritas pelo Mestre serão trazidas para uma harmonia que não é visível nos dias do Mestre, debaixo do sol. Será que o epílogo está prevendo um dia em que as condições da Queda não dominem nossa vida e nosso trabalho?

Conclusões a Eclesiastes

Voltar ao índice Voltar ao índice

O que devemos fazer com essa mistura de bem e mal, significado e vaidade, ação e ignorância, que o Mestre encontra na vida e no trabalho? O trabalho é “correr atrás do vento”, como o Mestre nos lembra continuamente. Como o vento, o trabalho é real e tem impacto enquanto dura. Ela nos mantém vivos e oferece oportunidades de alegria. No entanto, é difícil avaliar o efeito total de nosso trabalho, prever as consequências não intencionais para o bem e para o mal. E é impossível saber a que nosso trabalho pode levar além do momento presente. Será que o trabalho equivale a algo duradouro, eterno ou, em última análise, bom? O Mestre diz que realmente não é possível saber nada com certeza debaixo do sol.

Mas podemos ter uma perspectiva diferente. Ao contrário do Mestre, os seguidores de Jesus Cristo hoje veem uma esperança concreta além do mundo caído. Pois somos testemunhas da vida, morte e ressurreição de um novo Mestre, Jesus, cujo poder não morreu com o fim de seus dias debaixo do sol (Lc 23.44). Ele anuncia que “chegou a vocês o Reino de Deus” (Mt 12.28). O mundo em que vivemos agora está em processo de ser colocado sob o governo de Cristo e redimido por Deus. O que o escritor de Eclesiastes não sabia — não podia saber, como ele estava tão profundamente ciente — é que Deus enviaria seu Filho não para condenar o mundo, mas para restaurar o mundo da maneira que Deus pretendia que fosse (Jo 3.17). Os dias do mundo caído debaixo do sol estão passando em favor do Reino de Deus na terra, onde os filhos de Deus “não precisarão de luz de candeia, nem da luz do sol, pois o Senhor Deus os iluminará” (Ap 22.5). Por causa disso, o mundo em que vivemos não é apenas o remanescente do mundo caído, mas também a vanguarda do Reino de Cristo, que desce “dos céus, da parte de Deus” (Ap 21.2).

O trabalho que fazemos como seguidores de Cristo, portanto, tem — ou pelo menos poderia ter —um valor eterno que não poderia ter sido visível ao Mestre de Eclesiastes. Trabalhamos não apenas no mundo debaixo do sol, mas também no Reino de Deus. Isso não significa se envolver em uma tentativa equivocada de corrigir Eclesiastes com uma dose do Novo Testamento. Em vez disso, é apreciar Eclesiastes como um presente de Deus para nós, tal como se apresenta. Pois nós também vivemos a vida cotidiana sob as mesmas condições que o Mestre viveu. Como Paulo nos lembra: “Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos interiormente, esperando ansiosamente nossa adoção como filhos, a redenção do nosso corpo” (Rm 8.22-23). Gememos sob o mesmo peso que o Mestre, porque ainda estamos esperando pelo cumprimento do Reino de Deus na terra.

Eclesiastes, então, oferece duas percepções incomparáveis ​​em outras partes das Escrituras: 1) um relato franco do trabalho sob as condições da Queda; e 2) um testemunho de esperança nas circunstâncias mais sombrias do trabalho.

Um relato franco e aberto do trabalho sob a Queda (Eclesiastes)

Se sabemos que o trabalho em Cristo tem um valor duradouro, algo que não era visível ao Mestre de Eclesiastes, como suas palavras ainda podem ser úteis para nós? Para começar, suas palavras afirmam que o esforço, a opressão, o fracasso, a falta de sentido, a tristeza e a dor que experimentamos no trabalho são reais. Cristo veio, mas a vida para seus seguidores ainda não se tornou um passeio pelo jardim. Se sua experiência de trabalho é árdua e dolorosa — apesar das boas promessas de Deus — você não está louco, afinal. As promessas de Deus são verdadeiras, mas nem todas são cumpridas no momento presente. Somos pegos na realidade de que o Reino de Deus veio à terra agora (Mt 12.28), mas ainda não foi concluído (Ap 21.2). No mínimo, pode ser um consolo que as Escrituras ousem descrever as duras realidades da vida e do trabalho, enquanto proclamam que Deus é o Senhor.

Se Eclesiastes serve de conforto para aqueles que trabalham em condições difíceis, também pode servir de desafio para aqueles que são abençoados com boas condições de trabalho. Não se torne complacente! Até que o trabalho se torne uma bênção para todos, o povo de Deus é chamado a lutar pelo bem de todos os trabalhadores. De fato, devemos comer, beber e encontrar prazer em todo o trabalho com que somos abençoados. Mas fazemos isso enquanto lutamos — e também oramos — para que venha o Reino de Deus.

Um testemunho de esperança nas circunstâncias mais sombrias do trabalho (Eclesiastes)

Eclesiastes também dá um exemplo de como manter a esperança em meio às duras realidades do trabalho no mundo caído. Apesar do pior que vê e vive, o Mestre não abandona a esperança no mundo de Deus. Ele encontra os momentos de alegria, as faíscas de sabedoria e as maneiras de lidar com um mundo que é efêmero, mas não absurdo. Se Deus tivesse abandonado a humanidade às consequências da Queda, não haveria qualquer sentido ou mesmo algo de bom no trabalho. Em vez disso, o Mestre descobre que há significado e bondade no trabalho. Sua queixa é que eles são sempre transitórios, incompletos, incertos, limitados. Dada a alternativa — um mundo completamente sem Deus — esses são, na verdade, sinais de esperança.

Esses sinais de esperança podem ser um conforto para nós em nossas experiências mais sombrias de vida e trabalho. Além disso, eles nos dão uma compreensão de nossos colaboradores que não receberam as boas-novas do Reino de Cristo. Sua experiência de trabalho pode ser muito semelhante à do Mestre. Se pudermos imaginar suportar as dificuldades que enfrentamos, mas sem a promessa da redenção de Cristo, poderemos ter um vislumbre do fardo que a vida e o trabalho podem ser para nossos cooperadores. Ore a Deus para que isso pelo menos nos dê mais compaixão. Talvez isso também nos dê um testemunho mais eficaz. Pois, se quisermos testemunhar as boas-novas de Cristo, devemos começar entrando na realidade daqueles a quem testemunhamos. Caso contrário, nosso testemunho é sem sentido, superficial, egoísta e vão.

O brilhantismo de Eclesiastes pode ser precisamente o fato de ele ser tão perturbador. A vida é perturbadora, e Eclesiastes encara a vida com honestidade. Precisamos ficar chateados quando nos tornamos muito acomodados à vida “debaixo do sol”, muito dependentes dos confortos que podemos encontrar em situações de prosperidade e facilidade. Precisamos ficar chateados na direção oposta quando caímos no cinismo e no desespero por causa das dificuldades que enfrentamos. Sempre que transformamos em ídolos as conquistas transitórias de nosso trabalho e a arrogância que ele produz em nós — e, inversamente, sempre que deixamos de reconhecer o significado transcendente de nosso trabalho e o valor das pessoas com quem trabalhamos —, precisamos ficar chateados. Eclesiastes pode ser singularmente capaz de nos perturbar para a glória de Deus.

Introdução a Cântico dos Cânticos

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Cântico dos Cânticos, também conhecido como Cantares de Salomão, é uma poesia de amor. No entanto, é também uma representação profunda do significado, do valor e da beleza do trabalho. O livro retrata dois amantes que namoram, depois se casam e então trabalham juntos em uma imagem ideal de vida, família e trabalho. Trataremos de temas como dificuldade, beleza, diligência, prazer, paixão, família e alegria, conforme descritos na grande variedade de trabalhos vistos em Cântico dos Cânticos.

No mundo antigo, toda a poesia era cantada, e Cântico dos Cânticos é, de fato, a letra de uma coleção de canções. Foi executada por um grupo de cantores que consiste de um protagonista masculino, um protagonista feminino e um coro. Cântico dos Cânticos provavelmente deve ser pensado como uma peça de concerto criada para um público aristocrático na corte de Salomão. Ele tem fortes analogias com as canções de amor do antigo Egito, que também eram destinadas a esse público e que foram compostas nos séculos anteriores à era de Salomão. [1] As letras da poesia egípcia, embora em muitos aspectos fossem bastante semelhantes às de Cântico dos Cânticos, são bastante alegres e muitas vezes se concentram no êxtase e nas aflições de jovens amantes. A letra de Cântico dos Cânticos, no entanto, não é irreverente ou casual, mas profunda e teológica, e provoca uma reflexão séria, incluindo uma reflexão sobre o trabalho.

Existem inúmeras interpretações de Cântico dos Cânticos [2], mas vamos abordar o livro como uma coleção de canções que se concentram no amor entre um homem e uma mulher. Esse é o sentido claro do texto. É a maneira mais frutífera de analisar os significados que realmente surgem do texto, em vez de impor algo a ele. A poesia de amor celebra a beleza de um casamento e a alegria do amor entre homem e mulher.

A dificuldade e a beleza do trabalho (Cântico dos Cânticos 1.1-8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro começa com a mulher falando de seu amor por seu homem e, no decorrer disso, ela fala de como sua pele escureceu porque seus irmãos a fizeram trabalhar na vinha da família (Ct 1.6). Nesta canção sobre o amor, o trabalho é mencionado apenas a partir do sexto verso. No mundo antigo, as pessoas tendiam a menosprezar a pele escura não por razões raciais, mas por razões econômicas: pele escura significava que alguém estava na classe camponesa e tinha de trabalhar ao sol. A pele clara significava que alguém estava na aristocracia e, portanto, a pele pálida (não a pele bronzeada!) era especialmente valorizada como uma marca de beleza nas mulheres. Mas aqui, o trabalho árduo da mulher realmente não diminuiu sua beleza (Ct 1.5: “Estou escura, mas sou bela” [1]). Além disso, seu trabalho a preparou para o futuro, quando ela cuidará de sua própria vinha (Ct 8.12). Uma mulher que trabalha com as mãos pode não ser uma aristocrata, mas é linda e digna de elogios.

A beleza do trabalho e das pessoas que trabalham é frequentemente ofuscada por noções concorrentes de beleza. O mundo grego, cuja influência ainda está profundamente presente na cultura contemporânea, via o trabalho como inimigo da beleza. Mas a perspectiva bíblica é que o trabalho tem uma beleza intrínseca. Salomão constrói para si uma liteira (ou palanquim, que é um assento carregado por meio de varas) e os Cânticos exaltam a beleza da obra. É literalmente um trabalho de amor (Ct 3.10). Ele usa a beleza desta obra a serviço do amor — transportando a pessoa amada para seu casamento (Ct 3.11) — mas a obra já era bela por si só. O trabalho não é apenas um meio para um fim — transporte, colheita ou salário — mas uma fonte de criatividade estética. E os crentes são encorajados a ver e louvar a beleza no trabalho dos outros — incluindo o dos cônjuges.

Diligência (Cântico dos Cânticos 1.7-8)

A mulher procura seu amado, a quem considera o melhor dos homens. Seus amigos lhe dizem que o lugar óbvio para encontrá-lo é no trabalho, onde ele cuida das ovelhas. No entanto, seu trabalho é organizado de forma a possibilitar a interação com sua amada. Não há noção de que o tempo de trabalho pertence ao empregador, enquanto o tempo livre pertence à família. Talvez a realidade do trabalho moderno torne impossível, em muitos casos, a interação familiar no trabalho. Os caminhoneiros não devem enviar mensagens de texto para suas famílias enquanto dirigem, e os advogados não devem receber a visita de seus cônjuges durante as alegações finais. Mas talvez não seja totalmente ruim que a separação entre trabalho e família, que surgiu com o sistema fabril no século 19, esteja começando a desaparecer em muitos setores.

Quando o trabalho é um prazer (Cântico dos Cânticos 1.9—2.17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em Cântico dos Cânticos 1.9—2.7, o homem e a mulher cantam sobre sua devoção um ao outro. Ele fala de como ela é linda, e ela proclama como está feliz no amor. Então, em Cântico dos Cânticos 2.8–17, eles cantam as glórias da chegada da primavera, e ele a convida a ir embora com ele. Isso está no contexto da economia agrícola do antigo Israel, e uma viagem ao campo na primavera não é simplesmente um piquenique. Envolve trabalho. Especificamente, a poda deve ser feita para garantir uma boa colheita (Ct 2.12-13; “o tempo de cantar” também pode ser traduzido como “o tempo de poda”, como diz a nota textual da NVI). Além disso, Cântico dos Cânticos 2.15 diz que as raposas, animais que gostam de comer uvas jovens, devem ser mantidas longe das vinhas, para que não estraguem a colheita. Mas o homem e a mulher têm corações leves. Eles transformam essa tarefa em um jogo, afugentando as “raposas”. Seu trabalho é tão receptivo a jogos de amor que leva ao duplo sentido: “nossas vinhas estão floridas”. Essa imagem gloriosa da vida agrícola na primavera remonta ao Jardim do Éden, onde cuidar das plantas deveria ser um prazer. Gênesis 3.17–19 nos diz que, por causa do pecado, esse trabalho se tornou enfadonho. Mas esse não é o significado original ou adequado de trabalho. Esse episódio em Cântico dos Cânticos é um vislumbre de como Deus deseja que a vida seja para nós, quase como se o pecado nunca tivesse acontecido. É como se as palavras de Isaías 65.21 já tivessem sido cumpridas: “Construirão casas e nelas habitarão; plantarão vinhas e comerão do seu fruto”. O Reino de Deus não traz a eliminação do trabalho, mas a restauração da alegria e de relacionamentos agradáveis ​​no trabalho. Veja o artigo Apocalipse e o trabalho no Projeto Teologia do Trabalho para saber mais sobre o trabalho no Reino supremo de Deus.

Paixão, família e trabalho (Cântico dos Cânticos 3.1—8.5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em uma série de canções, o texto descreve o casamento do homem e da mulher e sua união. A mulher anseia pelo homem (Ct 3.1-5) e então ela vem a ele em uma linda liteira (Ct 3.6-11). [1] O homem, usando uma coroa, a recebe (Ct 3.11). Em um casamento israelita, uma noiva chegou em uma liteira cercada por uma escolta (Ct 3.7) e foi recebida por seu noivo, que usava uma coroa. Cântico dos Cânticos 3.11 confirma que este texto celebra “o dia de seu casamento”. [2]

O homem então canta sobre seu amor por sua noiva (Ct 4.1-15) e sua noite de núpcias é descrita em imagens e metáforas vívidas (Ct 4.16—5.8). A mulher então canta sobre seu amor por seu amado (Ct 5.9—6.3) e outra canção sobre a beleza da mulher segue (Ct 6.4-9). O casal então canta sobre seu amor um pelo outro (Ct 6.10—8.4). O texto é francamente sexual, e pregadores e escritores cristãos tendem a evitar o livro ou a alegorizá-lo por preocupação de que seja ousado demais para uma sociedade religiosa piedosa.

Mas o sexo no texto é intencional. Uma canção sobre a paixão entre dois amantes no dia do casamento estaria faltando algo se não mencionasse sexo! E, em Cântico dos Cânticos, o sexo está intimamente ligado à família e ao trabalho. Após o casamento, os amantes criam uma família, a principal unidade de atividade econômica no mundo antigo. Sem sexo, não haveria como aumentar a população de trabalhadores (isto é, crianças). Além disso, a paixão (incluindo o sexo) entre os cônjuges é uma cola que mantém a família unida em meio à prosperidade e à adversidade, à alegria e ao estresse que caracterizam a vida e o trabalho de uma família. Hoje, muitos casais relatam insatisfação com a quantidade de tempo que têm para fazer sexo e fazer amor. Um grande culpado é que um ou ambos os parceiros estão muito ocupados trabalhando. [3] Cântico dos Cânticos deixa claro que uma pessoa não deve deixar que o trabalho afaste o tempo para intimidade e sexo com seu cônjuge.

Ao longo desses versículos, vemos imagens extraídas da paisagem de Israel e sua agricultura e pastoreio. O corpo da mulher é um “jardim” (Ct 5.1). No homem, “suas faces são como um jardim de especiarias” (Ct 5.13). Desfrutando de sua noiva, ele é como um homem que colhe lírios em um jardim (Ct 6.2). Ela é “bela como Jerusalém” (Ct 6.4). “Seu cabelo é como um rebanho de cabras que descem de Gileade” (Ct 6.5). “Seus dentes são como um rebanho de ovelhas” (Ct 6.6). “Seu porte é como o da palmeira” (Ct 7.7). Eles desejam ir para as “vinhas” (Ct 7.12). Ela desperta seu amado “debaixo da macieira” (Ct 8.5). A alegria de seu amor está intimamente ligada ao mundo de seu trabalho. Eles expressam sua felicidade com imagens extraídas do que veem em seus jardins e rebanhos.

Isso sugere que família e trabalho devem estar juntos. Em Cântico dos Cânticos, toda a vida está integrada. Antes da Revolução Industrial, a maioria das pessoas trabalhava com membros da família nas casas em que moravam. Isso ainda é verdade em grande parte do mundo. Cântico dos Cânticos pinta uma visão idílica desse arranjo. A realidade do trabalho doméstico tem sido marcada pela pobreza, pelo trabalho árduo, pela humilhação, por servidão e escravidão, além de relacionamentos abusivos. No entanto, o livro expressa nosso desejo — e o desígnio de Deus — de que nosso trabalho seja tecido na trama de nossos relacionamentos, a começar pela família.

Nas economias desenvolvidas, a maior parte do trabalho remunerado ocorre fora do lar. Cântico dos Cânticos não oferece meios específicos para integrar o trabalho com a família e outros relacionamentos nas sociedades de hoje. Não deve ser encarado como um apelo para que todos nós nos mudemos para o campo e afastemos as raposinhas! Mas sugere que os locais de trabalho modernos não devem ignorar a vida e as necessidades familiares de seus trabalhadores. Muitos locais de trabalho oferecem creches para os filhos dos trabalhadores, desenvolvimento de carreira que respeita as necessidades dos pais, tempo de afastamento para cuidar da família e — em países com assistência médica privada — seguro médico para as famílias dos trabalhadores. No entanto, esses benefícios não estão disponíveis em todos os locais de trabalho, e alguns foram cortados pelos empregadores. A maioria dos locais de trabalho modernos fica muito aquém do modelo de cuidado familiar que vemos em Cântico dos Cânticos. A tendência recente de transferir o trabalho dos escritórios para as residências pode ou não melhorar a situação, dependendo de como são distribuídos custos, receitas, serviços de suporte e riscos.

Cântico dos Cânticos pode ser um convite à criatividade à medida que o ambiente de trabalho do século 21 toma forma. As famílias podem iniciar negócios nos quais os membros da família possam trabalhar juntos. As empresas podem empregar cônjuges juntos ou ajudar um deles a encontrar trabalho ao realocar o outro. Nas últimas décadas, houve muita inovação e pesquisa nessa área, tanto em círculos seculares quanto cristãos — especialmente católicos. [4]

Cântico dos Cânticos também deve aumentar nossa apreciação pelo trabalho não remunerado. Nos lares pré-industriais, há pouca distinção entre trabalho remunerado e não remunerado, uma vez que o trabalho ocorre em uma unidade integrada. Nas sociedades industriais e pós-industriais, muito do trabalho — mas não todo — ocorre fora do lar, na obtenção de um salário para sustentar a família. O trabalho não remunerado que resta a ser feito dentro da família geralmente recebe menos respeito do que o trabalho remunerado feito fora. O dinheiro, em vez da contribuição geral para a família, torna-se a medida do valor do trabalho e, às vezes, até do valor dos indivíduos. No entanto, as famílias não poderiam funcionar sem o trabalho — geralmente não remunerado — de manter a casa, criar os filhos, cuidar de membros da família idosos ou incapacitados e manter as relações sociais e comunitárias. Cântico dos Cânticos retrata o valor do trabalho em termos de seu benefício geral para a família, não de sua contribuição monetária.

Cântico dos Cânticos pode representar um desafio para muitas igrejas e para aqueles que orientam os cristãos, pois é incomum que os cristãos recebam muita ajuda para organizar sua vida profissional. Um número insuficiente de igrejas é capaz de equipar seus membros para fazer escolhas piedosas, sábias e realistas sobre o trabalho em relação à família e à comunidade. Sem dúvida, os líderes da igreja raramente terão o conhecimento prático necessário para ajudar os membros a conseguir empregos ou criar ambientes de trabalho que avancem em direção ao ideal retratado nos Cânticos. Se eu quiser saber como integrar melhor meu trabalho como enfermeira, por exemplo, com meus relacionamentos familiares, provavelmente preciso conversar mais com outras enfermeiras do que com meu pastor. Mas talvez as igrejas pudessem fazer mais para ajudar seus membros a reconhecer o projeto de Deus para o trabalho e os relacionamentos, expressar suas esperanças e lutas e se unir a trabalhadores de áreas semelhantes para desenvolver opções viáveis.

Alegria (Cântico dos Cânticos 8.6-14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O amor é sagrado e algo a ser protegido. Não pode ser comprado (Ct 8.7). A mulher compara sua vida amorosa com o marido ao cuidado que ela tem por uma vinha (Ct 8.12), afirmando que, embora Salomão possa ter muitas vinhas para serem cultivadas por seus trabalhadores (Ct 8.11), sua alegria está em poder cuidar de sua própria família. A felicidade não consiste em riqueza ou em ter outros para fazer o trabalho por você; consiste em trabalhar em benefício daqueles que você ama. O amor, portanto, não consiste apenas em expressar emoções, mas também em praticar atos de amor.

Conclusão de Cântico dos Cânticos

Voltar ao índice Voltar ao índice

Cântico dos Cânticos nos dá uma imagem ideal de amor e família, vida e trabalho. A alegria no trabalho doméstico compartilhado é uma característica central — quase como se o pecado nunca tivesse acontecido. Em Cântico dos Cânticos, o trabalho tem uma beleza que é integrada a uma vida saudável e alegre. O livro nos mostra um ideal pelo qual devemos nos esforçar. O trabalho deve ser um ato de amor. O casamento e os relacionamentos domésticos devem apoiar o trabalho — e ser apoiados por ele. O trabalho é um elemento essencial da vida conjugal, mas deve sempre servir — e nunca excluir — o elemento mais fundamental de todos: o amor.

Versículos e temas-chave em Cântico dos Cânticos

Voltar ao índice Voltar ao índice

Versículos

Tema

Cântico dos Cânticos 1.6 Não fiquem me olhando assim porque estou escura; foi o sol que me queimou a pele. Os filhos de minha mãe zangaram-se comigo e fizeram-me tomar conta das vinhas; da minha própria vinha, porém, não pude cuidar.

O trabalho pode ser usado para controlar e humilhar, mas também torna a pessoa mais forte.

Cântico dos Cânticos 1.8 Se você, a mais linda das mulheres, se você não o sabe, siga a trilha das ovelhas e faça as suas cabritas pastarem junto às tendas dos pastores.

Uma pessoa de valor normalmente será encontrada em seu trabalho.

Cântico dos Cânticos 2.12 Aparecem flores na terra, e chegou o tempo de cantar [tempo da poda] ...

O trabalho foi concebido por Deus para ser um momento de celebração.

Cântico dos Cânticos 2.15 Apanhem para nós as raposas, as raposinhas que estragam as vinhas, pois as nossas vinhas estão floridas.

Para aqueles cujo coração é leve, até o trabalho pode ser um jogo.

Cântico dos Cânticos 6.2 O meu amado desceu ao seu jardim, aos canteiros de especiarias, para descansar e colher lírios.

O uso de imagens agrícolas para descrever o casamento mostra que os mundos do trabalho e da família estão integrados em um casamento saudável.

Cântico dos Cânticos 8.7 Se alguém oferecesse todas as riquezas da sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado.

O amor e o trabalho que dedicamos à família proporcionam a alegria que a riqueza e o lazer não podem proporcionar.

Quem eram os profetas?

Voltar ao índice Voltar ao índice

Chamado por Deus e cheio do Espírito de Deus, o profeta levava a Palavra a pessoas que, de uma forma ou de outra, haviam se distanciado do Senhor. Em certo sentido, o profeta era um pregador, embora, em termos de atuação, geralmente fosse alguém que dava o alerta, em especial quando uma tribo ou nação inteira se afastava de Deus.

Os profetas ocupam as páginas da história de Israel. Moisés foi o profeta de Deus usado para resgatar o povo hebreu da escravidão no Egito e depois levá-lo à terra que o Senhor havia prometido. Repetidamente, essas pessoas se afastaram de Deus. Moisés foi o primeiro porta-voz de Deus a trazê-los de volta ao relacionamento com ele. Nos livros históricos do Antigo Testamento (Josué, Juízes, 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis, 1 e 2Crônicas, Esdras e Neemias), profetas como Débora, Samuel, Natã, Elias, Eliseu, Hulda e outros se levantaram para pregar a Palavra a um povo rebelde.

O culto religioso de Israel era organizado em torno do trabalho dos sacerdotes, primeiro no tabernáculo e depois no templo. A descrição do trabalho do dia a dia dos sacerdotes consistia em abater, separar e preparar os animais sacrificiais trazidos pelos adoradores. Mas as tarefas de um sacerdote iam além do pesado trabalho físico de lidar com milhares de sacrifícios de animais. O sacerdote também tinha a responsabilidade de guiar o povo espiritual e moralmente. Embora fosse visto com frequência principalmente como o mediador entre o povo e Deus nos sacrifícios do templo, seu dever maior era ensinar a lei de Deus ao povo (Lv 10.11; Dt 17.8-10; 33.10; Ed 7.10).

Na história de Israel, no entanto, os próprios sacerdotes muitas vezes se tornaram corruptos e se afastaram de Deus, levando o povo à adoração de ídolos. Os profetas surgiram quando sacerdotes falharam em sua tarefa de ensinar a lei de Deus ao povo e reis e juízes, em governar o país com justiça. Em certo sentido, Deus chamou profetas e falou por meio deles como acusadores quando todo o empreendimento israelita estava à beira da autodestruição.

Uma das tragédias impressionantes do povo de Deus foi insistir em adorar os muitos deuses de seus vizinhos pagãos. As práticas comuns dessa adoração idólatra incluíam o oferecimento de seus filhos nas fogueiras de Moloque e a prostituição ritual com todas as práticas lascivas imagináveis ​​“no alto das colinas e debaixo de toda árvore frondosa” (2Cr 28.4). Mas um mal ainda maior ao abandonar Yahweh foi abandonar a estrutura de Deus para viver em comunidade como um povo distinto e santo de Deus. A preocupação com os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros na terra foi substituída pela opressão. As práticas comerciais anularam o padrão de Deus, de modo que extorsão, aceitação de subornos e ganhos desonestos se tornaram comuns. Os líderes usavam o poder para destruir vidas, e os líderes religiosos desprezavam as coisas sagradas de Deus. Longe de enriquecer a nação, essas práticas ímpias levaram à queda da nação. Os profetas costumavam ser as últimas vozes na terra, chamando as pessoas de volta a Deus e a uma comunidade justa e saudável.

Na maioria dos casos, os profetas não eram “profissionais” no sentido de ganhar a vida com as atividades proféticas. Deus os escolhera para um dever especial enquanto exerciam outras profissões. Alguns profetas (por exemplo, Jeremias e Ezequiel) eram sacerdotes que desempenhavam os deveres descritos acima. Outros eram pastores, incluindo Moisés e Amós. Débora era uma juíza que julgava questões para os israelitas. Hulda provavelmente era uma professora no setor acadêmico de Jerusalém. A tarefa de um profeta se sobrepunha a outras tarefas.

Situando os profetas na história de Israel

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os registros dos primeiros profetas estão entremeados na história de Israel nos livros de Josué até 2Reis, e não em um registro separado. Posteriormente, as palavras e os atos dos profetas foram preservados em coleções separadas, correspondentes aos dezessete livros finais do Antigo Testamento, de Isaías a Malaquias, frequentemente chamados de “profetas posteriores” ou, às vezes, de “profetas literários”, porque as palavras de cada um foram escritas como peças separadas de literatura, em vez de distribuídas pelos livros de história, como no caso dos profetas anteriores.

Quando o reino unificado se dividiu em dois, as dez tribos do norte (Israel) mergulharam imediatamente na adoração de ídolos. Elias e Eliseu, os últimos entre os antigos profetas, foram chamados por Deus para desafiar esses israelitas idólatras a adorarem somente a Yahweh. Os primeiros profetas literários, Amós e Oseias, foram chamados para desafiar os reis apóstatas do norte de Israel, de Jeroboão II a Oseias. Como reis e pessoas se recusassem a voltar para o Senhor, em 722 a.C. ele permitiu que o poderoso império da Assíria derrubasse o reino do norte de Israel. Os assírios, cruéis e impiedosos, não só destruíram as cidades e vilas da terra, tomando suas riquezas como despojo, como também levaram o povo cativo e o dispersaram por todo o império, na tentativa de destruir para sempre todo o senso de nacionalidade (2Rs 17.1-23).

À medida que Israel se aproximava de sua destruição, a pequena nação de Judá, no sul, oscilava entre a adoração de Yahweh e a adoração de deuses estrangeiros. Os reis bons afastaram o povo da adoração de ídolos e das más práticas comerciais, mas os reis maus reverteram isso. No reino do sul (Judá), os primeiros profetas literários foram Obadias e Joel. Eles foram acusadores sob os reis Jorão, Acazias, Joás e a rainha Atalia.

Isaías falou em nome de Deus em Judá sob quatro reis — Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias —, com Miqueias também profetizando durante esse período. Ezequias foi seguido no trono por Manassés, de quem as Escrituras registram que ele fez mais mal aos olhos do Senhor do que todos os seus predecessores (2Rs 21.2-16).

Manassés foi seguido pelo bom rei Josias, que instituiu uma purificação completa do templo, livrando-o de muita adoração pagã. As pessoas que estavam limpando o templo encontraram um pergaminho antigo que lançava julgamento sobre a terra, o que levou ao último renascimento da adoração a Yahweh, em Judá. Os profetas na Jerusalém daquela época incluíam Naum, Jeremias e Sofonias (embora o sumo sacerdote tenha procurado uma profetisa, Hulda, a fim de interpretar o rolo para o rei). Josias foi seguido por reis cujas decisões políticas desastrosas terminaram por levar o conquistador babilônico Nabucodonosor II a se posicionar contra Jerusalém (2Rs 23.31—24.17). Em 605 a.C., Nabucodonosor levou 10.000 judeus para o exílio, na Babilônia. O profeta Ezequiel estava entre esses cativos, enquanto Habacuque se juntou a Jeremias e Sofonias, dando continuidade a sua obra profética em Jerusalém. Quando o rei Zedequias se aliou com nações vizinhas para combater a Babilônia, em 589, Nabucodonosor sitiou Jerusalém durante mais de dois anos (2Rs 24.18—25.21; 2Cr 36). A cidade capitulou em 586, principalmente por causa da fome, e foi arrasada, tendo o templo e os palácios totalmente destruídos. Jeremias permaneceu em Jerusalém, prosseguindo em sua obra profética entre o restante empobrecido de Judá, até ser levado para o Egito. Enquanto isso, Ezequiel continuou a profetizar na Babilônia para os judeus exilados que ali moravam.

Entre os judeus cativos na primeira deportação (605 a.C.) estava o jovem Daniel, a quem Deus usou na Babilônia na corte de todos os imperadores babilônicos. Quando a Babilônia foi derrotada pelos persas, em 539 a.C., o novo rei medo-persa Ciro permitiu que os judeus voltassem a Judá e reconstruíssem sua cidade e seu templo, primeiro sob o comando de Zorobabel e depois sob o de Neemias. As profecias de Daniel abrangem o exílio babilônico (Dn 1.1) até o decreto de Ciro que põe fim ao exílio (Dn 10.1).

Os reis persas agiam inconstantemente em relação aos judeus. Sob Cambises II (530—522), a reconstrução de Jerusalém foi interrompida (Ed 4), mas sob Dario I (522—486) ​​o segundo templo foi concluído (ver Ed 5—6). Aqui, os profetas pós-exílicos Zacarias e Ageu desafiaram os judeus: “Vocês vivem em casas luxuosas, enquanto a casa de Deus está em ruínas. Façam algo a respeito!”. Dario foi seguido por Xerxes (486—464), cujo reinado está registrado em Ester 1—9. Depois de Xerxes veio Artaxerxes (464—423), em cujo reinado Esdras retornou a Jerusalém, em 458 a.C. (Ed 7—10), seguido por Neemias, em 445 a.C. (Ne 1—2). Foi nesse período que o último profeta pós-exílico, Malaquias, escreveu.

O livro de Jonas não se passa em Israel, e o texto não dá indicação de sua data. Deus deu a Jonas uma missão em Nínive, a capital da Assíria, chamando o povo assírio ao arrependimento. Os assírios eram inimigos de Israel, mas apesar disso a intenção de Deus era abençoá-los, conforme sua promessa de que o povo de Abraão seria uma bênção para todas as nações (Gn 22.18).

Linha do tempo dos profetas

Voltar ao índice Voltar ao índice

A tabela abaixo mostra onde, no tempo, os profetas se encaixam no reino de Israel, ao norte, e no reino de Judá, no sul.

Período

Reis do Norte


Profetas

do Norte


Reis do Sul

Profetas

do Sul

Reino Unido sob Saul, Davi, Salomão, c. 1030—931

Reino

dividido

Jeroboão (931—910)

Nadabe (910—909)

Baasa (909—886)

Elá (886)

Zinri (885)

Onri (885—874)

Acabe (874—853)

Jorão (852—841)

Jeú (841—814)

Jeoacaz (814—798)

Jeoás (798—782)

Jeroboão II (793—753)

Zacarias (753—752)

Salum (752)

Menaém 752—742)

Pecaías (742—740)

Peca (752—732)

Oseias (732—722)

Elias

Eliseu

Amós

Jonas

Oseias


Roboão (931—913)

Abias (913)

Asa (911—870)

Josafá (873—848)

Jorão (853—841)

Rainha Atalia (841—835)

Joás (835—796)

Amazias (796—767)

Uzias (790—740)

Jotão (750—731)

Acaz (735—715)

Ezequias (715—686)

Manassés (695—642)

Amom (642—640)

Josias (640—609)

Jeoacaz (609)

Jeoaquim (609—597)

Joaquim (597)

Zedequias (597—586)

Obadias

Joel

Isaías

Miqueias

Jeremias

Sofonias

Hulda

Naum

Habacuque


Exílio

babilônico

Ezequiel

Daniel

Profetas

pós-exílicos

Zorobabel, governador

Neemias, governador

Ageu

Zacarias

Malaquias

Introdução a Isaías

Voltar ao índice Voltar ao índice

O profeta Isaías teve uma visão de Deus — de seu grande poder, sua gloriosa majestade e sua santidade purificadora. Vislumbrar a majestade de Deus o levou a ter uma visão humilde de si mesmo e de sua sociedade. “Ai de mim! Estou perdido! Pois sou um homem de lábios impuros e vivo no meio de um povo de lábios impuros” (Is 6.5). Quando vislumbramos quem é Deus nas Escrituras, isso pode acabar com a importância exagerada que damos a nós mesmos e com a insuficiência de nossa adoração da boca para fora. Mas também pode nos dar uma imagem clara do que é verdadeiramente valioso nesta vida. Isso transforma o modo como vivemos, fazemos negócios e adoramos. Quando entendemos quem é Deus e onde estamos em relação a ele, então nos tornamos pessoas diferentes em nossos valores e ética de trabalho.

Em particular, o livro de Isaías fornece uma imagem clara, e às vezes assustadora, das expectativas de Deus em relação aos líderes. Em certo sentido, é uma revisão extensa — e principalmente negativa — do desempenho dos reis e outros líderes de Israel e Judá. [1] Os ambientes de trabalho modernos diferem significativamente dos do antigo Israel. Por exemplo, os líderes vistos no livro trabalham nas esferas governamental, militar ou religiosa, mas muitos dos líderes de hoje trabalham em instituições corporativas, empresariais, científicas e acadêmicas. No entanto, a palavra de Isaías pode ser aplicada ao mundo de hoje, se entendermos o que este livro significa em seu contexto original e se elaborarmos princípios que se aplicam ao ambiente de trabalho de hoje. Além disso, na visão de Isaías, a maneira como trabalhamos hoje tem valor e significado na Nova Criação que Deus promete para seu povo.

Avaliação de Deus sobre Israel e Judá (Isaías)

A maior parte do livro de Isaías consiste no profeta Isaías dando voz à avaliação de Deus sobre o fracasso de Israel em viver de acordo com a aliança entre Deus e Israel. Isaías é o primeiro dos principais “profetas escritores” do Antigo Testamento — aqueles cujas profecias estão escritas em livros intitulados com o nome do profeta. Algum conhecimento do livro de Deuteronômio é necessário para ler os profetas escritores, porque as baixas notas que Deus atribuiu aos líderes de Israel e Judá devem ser entendidas à luz da aliança incorporada na Lei de Moisés. Por meio de Moisés, Deus fez uma aliança com seu povo. Ele lhes prometeu segurança, paz e prosperidade, garantidas por sua presença entre eles. Eles lhe prometeram adoração e observância da lei que ele lhes deu. Isaías, como os outros profetas escritores, proclama o fracasso do povo — e especialmente dos líderes — em obedecer à lei de Deus. Não é por acaso que os judeus da época de Jesus frequentemente resumiam o Antigo Testamento de forma sucinta como “a Lei e os Profetas”. Para ser mais claramente entendido, os Profetas devem ser lidos não apenas dentro de seu cenário histórico, mas também no contexto da aliança e da lei de Deus.

Uma visão geral do livro de Isaías

Voltar ao índice Voltar ao índice

De acordo com Isaías 1.1, a carreira do profeta Isaías se estendeu pelos reinados de quatro reis no reino de Judá, ao sul: Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias. Ele serviu como emissário de Deus para Judá por mais de cinquenta anos (de cerca de 740 a 686 a.C.), cerca de cem anos antes dos outros três grandes profetas escritores — Jeremias, Ezequiel e Daniel. Embora a cena política em Judá fosse diferente da do reino de Israel, ao norte, os pecados do povo eram dolorosamente semelhantes: adoração de ídolos, opressão e marginalização dos pobres para ganho pessoal e práticas comerciais que ameaçavam fundamentalmente a Lei de Deus. Como seu contemporâneo Amós (que transmitiu as mensagens de Deus no santuário de Betel ao povo impenitente de Israel), Isaías viu claramente que a adoração da boca para fora leva a uma ética social egoísta.

Isaías difere de Jeremias e Ezequiel, pois o caráter de seu ministério profético combina uma grande medida de predição (o vidente que vê um futuro distante) com proclamação [1] (pregação da verdade a um povo pecador). Embora o livro de Isaías forneça vários pontos de contato históricos que situam o profeta em um período específico da história de Judá, o livro compreende suas visões desde os tempos de Isaías até o fim dos tempos, quando Deus criará “novos céus e nova terra” (Is 65.17). Alguns estudiosos descreveram o livro de Isaías como uma visão de uma cordilheira na qual os vários picos são visíveis, mas os vales que se estendem entre os picos (os períodos de tempo que separam várias percepções proféticas) não podem ser vistos. Por exemplo, a profecia ao rei Acaz de que Deus lhe daria o sinal de uma criança chamada Emanuel (Is 7.14) é retomada setecentos anos depois por Mateus (Mt 1.23) como uma visão do Messias prometido que estava para nascer [2].

As notas históricas no livro que situam o profeta Isaías no oitavo século antes de Cristo começam com ele recebendo uma visão de Deus e um chamado para o ministério profético “no ano em que o rei Uzias morreu”, ou seja, 740 a.C. (Is 6.1). O texto, então, passa pelo reinado de quinze anos do rei Jotão (2Rs 15.32-38) e retoma em Isaías 7.1 com o rei Acaz (2Rs 16.1ss.), que foi confrontado com a aparente destruição iminente de Jerusalém nas mãos dos sírios e seus aliados na época, o reino do norte de Israel. Mais tarde, nos capítulos 36—37, o profeta detalha o dilema do rei Ezequias, quando o general assírio Senaqueribe sitiou Jerusalém, ameaçando sua destruição total (2Rs 18.13—19.37).

Isaías continua a história de Ezequias nos capítulos 38—39, uma história da doença mortal do rei e da disposição de Deus de estender sua vida por mais quinze anos. Em cada um desses pontos de contato históricos, o profeta Isaías está diretamente envolvido com os reis, ao lhes anunciar as palavras de Deus.

A profecia de Isaías lança uma visão para o povo de Deus que vai desde o julgamento nacional iminente, passa pela restauração graciosa após a catástrofe que se seguiu e vai até a esperança escatológica de algo tão diferente que pode ser chamado apenas de um novo céu e uma nova terra (Is 65.17). Seu trabalho (tanto de predição como de exortação) abrange desde a monarquia em Judá até o exílio da nação na Babilônia, e vai até a restauração e o retorno a Judá. Ele anuncia acontecimentos desde a vinda do Messias até a vinda de “novos céus e nova terra”. Estruturalmente, os capítulos 1—39 cobrem o período do ministério ativo de Isaías, enquanto os capítulos restantes do livro (40—66) examinam profundamente o futuro do povo de Deus. Assim, a palavra profética do Senhor por meio de Isaías abrange incontáveis ​​gerações.

O chamado de Isaías era para servir como emissário de Deus diante do povo de Judá e proclamar sua condição pecaminosa aos olhos de Deus. Mais tarde, o profeta foi orientado a que suas profecias fossem registradas para as gerações futuras: “Escreva isso numa tábua para eles, registre-o num livro, para que nos dias vindouros seja um testemunho eterno. Esse povo é rebelde; são filhos mentirosos, filhos que não querem saber da instrução do Senhor” (Is 30.8-9). A pecaminosidade do povo é definida por seu desrespeito à lei de Deus ou às reivindicações da aliança de Deus sobre eles como seu povo. As profecias contra o povo pecador são tão fortes que se poderia descrever a situação da seguinte forma: O desejo de Deus para aqueles a quem ele chamou de seu povo é tal que, se não forem seu povo, então eles nem mais serão povo.

Visão de Deus sobre nosso trabalho (Isaías)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Sete temas principais que tocam nosso trabalho emergem dos escritos de Isaías: (1) há uma conexão integral entre nossa adoração e nossa vida profissional; (2) o orgulho arrogante e a autossuficiência em nosso trabalho nos derrubarão; (3) Deus despreza a riqueza que é adquirida explorando pessoas pobres e marginalizadas; (4) Deus deseja que, ao confiarmos nele, possamos viver em paz e prosperidade; (5) Deus, nosso criador, é a fonte de tudo; (6) em Isaías, vemos um poderoso exemplo do Servo de Deus em ação; e, finalmente, (7) o trabalho de hoje encontra seu significado maior na Nova Criação.

Esses temas são discutidos na ordem em que aparecem pela primeira vez no livro de Isaías. Um índice de todas as passagens discutidas, listadas em ordem de capítulos e versículos, é fornecido ao final do artigo.

Adoração e trabalho (Isaías 1ss.)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Isaías começa insistindo que os rituais religiosos causam náuseas a Deus quando acompanhados de uma vida pecaminosa:

“Para que me oferecem tantos sacrifícios?”, pergunta o Senhor. “Para mim, chega de holocaustos de carneiros e da gordura de novilhos gordos. Não tenho nenhum prazer no sangue de novilhos, de cordeiros e de bodes! ... Quem pediu que pusessem os pés em meus átrios? Parem de trazer ofertas inúteis! O incenso de vocês é repugnante para mim... Esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas orações, não as escutarei! As suas mãos estão cheias de sangue! Lavem-se! Limpem-se! Removam suas más obras para longe da minha vista! Parem de fazer o mal, aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva.” (Is 1.11-17)

Mais tarde, ele repete a queixa de Deus. “Esse povo se aproxima de mim com a boca e me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. A adoração que me prestam é feita só de regras ensinadas por homens” (Is 29.13). A catástrofe que se abate sobre a nação é resultado direto de sua opressão sobre os trabalhadores e da falta de provisão para aqueles em necessidade econômica.

“Anuncie ao meu povo a rebelião dele e à comunidade de Jacó, os seus pecados. Pois dia a dia me procuram; parecem desejosos de conhecer os meus caminhos, como se fossem uma nação que faz o que é direito e que não abandonou os mandamentos do seu Deus. Pedem-me decisões justas e parecem desejosos de que Deus se aproxime deles. ‘Por que jejuamos’, dizem, ‘e não o viste? Por que nos humilhamos, e não reparaste?’ Contudo, no dia do seu jejum vocês fazem o que é do agrado de vocês e exploram os seus empregados. Seu jejum termina em discussão e rixa e em brigas de socos brutais... O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo? Aí sim, a sua luz irromperá como a alvorada, e prontamente surgirá a sua cura; a sua retidão irá adiante de você, e a glória do Senhor estará na sua retaguarda.” (Is 58.1-8)

Em nosso mundo de hoje, em que nosso trabalho diário parece desconectado de nossa adoração no fim de semana, Deus diz: “Não, se você conhece minha Lei e me ama, não maltratará os trabalhadores no ambiente de trabalho”. Isaías sabia, por experiência própria, que uma visão genuína de Deus muda nossa vida, incluindo a maneira como vivemos como cristãos no ambiente de trabalho.

Como isso funciona? Repetidamente, Isaías nos dá uma visão de Deus, alto e sublime acima de todos os deuses:

  • “O Senhor dos Exércitos é que vocês devem considerar santo, a ele é que vocês devem temer, dele é que vocês devem ter pavor. Para os dois reinos de Israel ele será um santuário”. (Is 8.13-14)

  • O poder e a força inigualáveis ​​de Deus são temperados por sua compaixão por seu povo: “Por que você reclama, ó Jacó, e por que se queixa, ó Israel: ‘O Senhor não se interessa pela minha situação; o meu Deus não considera a minha causa’? Será que você não sabe? Nunca ouviu falar? O Senhor é o Deus eterno, o Criador de toda a terra. Ele não se cansa nem fica exausto; sua sabedoria é insondável. Ele fortalece o cansado e dá grande vigor ao que está sem forças”. (Is 40.27-29)

  • “Desde os dias mais antigos eu o sou. Não há quem possa livrar alguém de minha mão. Agindo eu, quem o pode desfazer?” (Is 43.13)

  • “Eu sou o primeiro e eu sou o último; além de mim não há Deus. Quem então é como eu? Que ele o anuncie, que ele declare e exponha diante de mim o que aconteceu desde que estabeleci meu antigo povo e o que ainda está para vir; que todos eles predigam as coisas futuras e o que irá acontecer”. (Is 44.6-7)

  • “Escute-me, ó Jacó... Eu sou sempre o mesmo; eu sou o primeiro e eu sou o último. Minha própria mão lançou os alicerces da terra, e a minha mão direita estendeu os céus”. (Is 48.12-14)

  • Podemos tremer diante do poder e da força de Deus, mas somos atraídos por sua compaixão por nós. Em resposta, nós o adoramos, vivendo nossa vida 24 horas por dia, à luz do desejo de Deus de que reflitamos sua preocupação com a justiça e a retidão. Nosso trabalho e nossa adoração estão unidos por nossa visão do Santo. Nossa compreensão de quem Deus é mudará a maneira como trabalhamos, como nos divertimos e como vemos e tratamos as pessoas que poderiam se beneficiar de nosso trabalho.

  • A conexão integral de nosso trabalho e a aplicação prática de nossa adoração também aparecem nas histórias de dois reis que o profeta usou para destacar a importância de confiar em Deus no ambiente de trabalho. Tanto Acaz quanto Ezequias tinham responsabilidades de liderança em Judá como monarcas. Ambos enfrentaram inimigos terríveis, empenhados em destruir sua nação e a cidade de Jerusalém. Ambos tiveram a oportunidade de crer na palavra de Deus anunciada por meio do profeta Isaías, dizendo que Deus não permitiria que a nação caísse nas mãos do inimigo. De fato, a palavra de Deus a Acaz era que aquilo que o aterrorizado rei mais temia não viria a acontecer, mas “se vocês não ficarem firmes na fé, com certeza não resistirão” (Is 7.9). Acaz recusou-se a confiar em Deus para libertação, voltando-se para uma aliança imprudente com a Assíria.

  • Uma geração depois, Ezequias enfrentou um inimigo ainda mais formidável, e Isaías assegurou-lhe que Deus não permitiria que a cidade caísse nas mãos dos exércitos de Senaqueribe. Ezequias escolheu crer em Deus: “Então o anjo do Senhor saiu e matou cento e oitenta e cinco mil homens no acampamento assírio. Quando o povo se levantou na manhã seguinte, só havia cadáveres! Assim, Senaqueribe, rei da Assíria, fugiu do acampamento, voltou para Nínive e lá ficou” (Is 37.36-37a).

  • Nessas duas histórias, Isaías destaca para nós o contraste entre a fé em Deus (a base de nossa adoração) e o medo daqueles que nos ameaçam. O ambiente de trabalho é um local onde enfrentamos a escolha entre fé e medo. Onde está nosso Senhor quando estamos trabalhando? Ele é Emanuel, “Deus conosco” (Is 7.14), mesmo no ambiente de trabalho. O que acreditamos sobre o caráter de Deus determinará se “ficaremos firmes na fé” ou se seremos vencidos pelo medo daqueles que podem ter o poder de nos fazer mal. Adoração ou trabalho que não emana de uma visão verdadeira de quem Deus é e do que Deus prometeu não é adoração ou trabalho verdadeiro.

Orgulho arrogante e autossuficiência (Isaías 2ss.)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Nos escritos de Isaías, o orgulho arrogante e a autossuficiência estão particularmente relacionados à negação da autoridade e majestade de Deus em todas as esferas. Substituímos a singularidade de Deus pela confiança na engenhosidade humana ou em deuses estrangeiros. Isaías abordou diretamente essa questão no início do livro: “Os olhos do arrogante serão humilhados e o orgulho dos homens será abatido; somente o Senhor será exaltado naquele dia” (Is 2.11).

O orgulho da nação é exibido em três coisas: riqueza, poderio militar e idolatria. A combinação desses três fatores cria uma tríade perniciosa que afasta o povo de uma humilde confiança em Deus. Em vez disso, eles confiam no trabalho de suas mãos — ídolos, bem como riqueza e poderio militar.

Isaías descreve a riqueza do povo em prata e ouro: “seus tesouros são incontáveis” (Is 2.7). Ele faz a mesma declaração sobre suas proezas militares e os ídolos: aparentemente não há fim para o qual o povo não vá. O profeta ridiculariza os ídolos, criados por suas próprias mãos e depois adorados como deuses (Is 44.10-20). Deus abomina o orgulho e a autossuficiência humanos. A riqueza acumulada ou a busca de riqueza que pressiona a majestade de Deus para as margens de nossa vida cotidiana é uma ofensa a Deus: “Parem de confiar no homem, cuja vida não passa de um sopro em suas narinas. Que valor ele tem?” (Is 2.22). No capítulo 39, o rei Ezequias está sob o julgamento de Deus porque assumiu a responsabilidade de mostrar o tesouro do templo aos emissários da distante Babilônia. Em vez de tentar impressionar um adversário com as riquezas do reino, o rei deveria estar se humilhando diante de Deus.

Deus julga a exploração e a marginalização (Isaías 3ss.)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Uma acusação recorrente em todo o livro de Isaías é que os líderes foram infiéis à aliança de Deus porque buscavam riqueza e status às custas dos marginalizados e pobres. Em Isaías 3.3-15 Deus pronunciou julgamento sobre os anciãos e os líderes do povo de Deus por expandirem sua própria riqueza, saqueando e destruindo a face dos pobres. Williamson observou que “isto [a situação descrita em Is 3.14] é geralmente associado ao desenvolvimento, durante esse período, de uma estrutura de classes pela qual a riqueza e, portanto, o poder, passaram a ser cada vez mais concentradas nas mãos de uma minoria privilegiada, em detrimento dos pequenos proprietários e similares. A necessidade de empréstimos, com os consequentes perigos da escravidão..., a execução hipotecária e, em última análise, a escravidão por dívida, foram os meios pelos quais isso poderia ser buscado legalmente, mas, na opinião dos profetas, injustamente”. [1] Da mesma forma, na Canção da Vinha, em Isaías 5, o primeiro de vários “ais” pronunciados contra o povo de Judá estava precisamente relacionado à exploração dos pobres para acumular sua própria riqueza: “Ai de vocês que adquirem casas e mais casas, propriedades e mais propriedades até não haver mais lugar para ninguém e vocês se tornarem os senhores absolutos da terra!” (Is 5.8). [2]

Como povo de Deus, eles foram chamados a ser diferentes das culturas concorrentes ao redor. A exploração dos pobres para o avanço da elite social era uma violação das reivindicações da aliança de Deus para que seu povo fosse seu povo. Esse padrão pode ser visto no início da história de Israel, no reinado do rei Acabe, por meio de sua esposa estrangeira, Jezabel, que roubou a vinha de um fazendeiro chamado Nabote depois de matá-lo. O profeta Elias ficou furioso, declarando: “Os cães devorarão Jezabel junto ao muro de Jezreel” (1Rs 21.23). Quando Isaías viu esse padrão continuar em Judá, ele prescreveu o antídoto para essa ambição egoísta à custa dos pobres e marginalizados: a verdadeira realeza virá na era messiânica, quando “com retidão [o Messias de Deus] julgará os necessitados, com justiça tomará decisões em favor dos pobres” (Is 11.4).

Embora Isaías se concentrasse nos pecados do povo de Deus em Judá, ele incluiu o julgamento de Deus sobre as nações: “Esse é o plano estabelecido para toda a terra; essa é a mão estendida sobre todas as nações” (Is 14.26). A Babilônia seria derrubada (Is 13.9-11); dentro de três anos, a glória de Moabe terminaria (Is 15); A Síria cairia (Is 17.7-8), assim como a Etiópia (Is 18), o Egito (Is 19.11-13) e Tiro (Is 23.17). Deus derrubaria o rei da Assíria por seu coração arrogante e aparência altiva (Is 10.12). “A terra está contaminada pelos seus habitantes, porque desobedeceram às leis... Por isso os habitantes da terra são consumidos pelo fogo ao ponto de sobrarem pouquíssimos” (Is 24.5-6).

A preocupação de Deus com a justiça e a retidão o leva hoje a julgar nações, corporações e indivíduos que fraudam e enganam os outros para ganho pessoal. Em nossos dias, assistimos à exploração de nações inteiras por seus próprios líderes, como em Mianmar; ao desastre causado pela negligência de corporações estrangeiras, como no desastre de Bhopal, na Índia; e à fraude de investidores por indivíduos como Bernie Madoff. De forma igualmente significativa, vemos — e nos envolvemos em — injustiças aparentemente menores, como remuneração injusta, cargas de trabalho excessivas, termos e condições contratuais opressivas, “cola” nas provas; e ignoramos quando o abuso ocorre em casa, no trabalho, na igreja e no exterior e nas ruas. Deus, em última análise, julgará aqueles que ganham riqueza ou preservam seus empregos ou privilégios explorando os pobres e marginalizados.

Paz e prosperidade (Isaías 9ss.)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em contraste com o orgulho arrogante e a autossuficiência que nos derrubarão ou a exploração dos pobres para obter riqueza, um quarto tema em Isaías é que, ao depositarmos nossa confiança no único Deus verdadeiro, viveremos em paz e prosperidade. O povo de Deus se alegra no tempo da colheita (Is 9.3). Pelo poder do espírito de Deus, as pessoas habitarão em paz, segurança e no prazer de seu trabalho (Is 32.15): “Como vocês serão felizes semeando perto das águas e deixando soltos os bois e os jumentos!” (Is 32.20).

Da mesma forma, uma das promessas que se seguiram à confiança de Ezequias de que Deus o livraria do general assírio Senaqueribe foi que o povo poderia ter proveito do fruto de seu próprio trabalho: “Neste ano vocês comerão do que crescer por si e, no próximo, o que daquilo brotar. Mas no terceiro ano semeiem e colham, plantem vinhas e comam o seu fruto” (Is 37.30). Por causa do estresse da invasão iminente de Senaqueribe, a terra estava adormecida. Deus prometeu comida, mesmo que não fosse cultivada. Mas, para um povo desfrutar do fruto da videira, são necessários anos de paz para realizar um cultivo adequado. Condições pacíficas são uma bênção de Deus. O trabalho bem-sucedido de Judá no campo e na vinha serviu como um sinal contínuo do amor da aliança de Deus. [1]

Na visão da nova Sião, uma das promessas de Deus se relacionava ao desfrute por parte do povo de sua própria comida e de seu próprio vinho, pelos quais eles trabalharam (Is 62.8-9). Da mesma forma, na representação dos novos céus e da nova terra, onde as coisas anteriores serão esquecidas na nova criação, o povo de Deus não será mais oprimido, mas construirá suas próprias casas, beberá seu próprio vinho e comerá sua própria comida (Is 65.21-22).

No Antigo Testamento, a agricultura era a principal ocupação da maioria do povo. Assim, muitos exemplos na Bíblia são extraídos da vida e das expectativas agrárias. Mas o princípio mais amplo é que Deus nos chama, independentemente de nossa vocação, a confiar nele em nosso trabalho, bem como nos aspectos aparentemente mais religiosos de nossa vida.

Deus aprecia os papéis criativos que seu povo desempenha, enquanto se esforça para se destacar no que faz sob a aliança de Deus. “Plantarão vinhas e comerão do seu fruto” (Is 65.21). Os problemas surgem quando tentamos derrubar a distinção Criador/criatura, substituindo os valores e a provisão de Deus por nossos próprios valores e ambição desenfreada. Isso acontece quando compartimentamos nosso trabalho como um assunto secular que parece não ter nada a ver com o Reino de Deus. É claro que, em um mundo caído, viver fielmente nem sempre resulta em prosperidade. Mas o trabalho feito à parte da fé pode levar a resultados ainda piores do que a pobreza material. Os primeiros capítulos da profecia de Isaías testemunham que Judá descobriu exatamente isso.

Deus: a fonte da vida, do conhecimento e da sabedoria (Isaías 28ss.)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mais do que qualquer outro profeta que escreveu, Isaías nos leva repetidamente a uma visão de Deus que, uma vez compreendida, nos fará curvar em humilde adoração. Deus é a fonte de tudo o que somos, tudo o que temos e tudo o que sabemos. Trezentos anos antes, Salomão havia lapidado esta verdade: “O temor do Senhor é o princípio do conhecimento” (Pv 1.7) e “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Pv 9.10). Agora, Isaías nos mostra o Deus que é a fonte desse conhecimento e sabedoria, e por que nossa compreensão de quem Deus é tem importância em nossa vida e trabalho.

Deus nos deu nosso próprio ser: “Vocês, a quem tenho sustentado desde que foram concebidos, e que tenho carregado desde o seu nascimento. Mesmo na sua velhice, quando tiverem cabelos brancos, sou eu aquele, aquele que os susterá. Eu os fiz e eu os levarei; eu os sustentarei e eu os salvarei” (Is 46.3-4).

Deus nos deu conhecimento e entendimento: “Eu sou o Senhor, o seu Deus, que ensina o que é melhor para você, que o dirige no caminho em que você deve ir” (Is 48.17). O Deus que nos criou e nos deu entendimento é a única fonte de tal conhecimento:

Quem mediu as águas na concha da mão, ou com o palmo definiu os limites dos céus? Quem jamais calculou o peso da terra, ou pesou os montes na balança e as colinas nos seus pratos? ... Para ele as ilhas não passam de um grão de areia. Nem as florestas do Líbano seriam suficientes para o fogo do altar, nem os animais de lá bastariam para o holocausto. Diante dele todas as nações são como nada; para ele são sem valor e menos que nada. Com quem vocês compararão Deus? Como poderão representá-lo? (Is 40.12-18).

Uma vez que reconhecemos Deus como a fonte de nossa vida, de nosso conhecimento e de nossa sabedoria, isso nos dá uma nova perspectiva sobre nosso trabalho. O próprio fato de termos o conhecimento ou a habilidade para fazer o trabalho que fazemos nos leva de volta à nossa fonte, Deus, que nos criou com as habilidades e os interesses que se juntam em nossa vida. Viver no “temor” (a consciência cheia de reverência) do Senhor é o ponto de partida para o conhecimento e a sabedoria. Reconhecer isso também nos permite aprender com outros a quem Deus concedeu conhecimento ou habilidade complementar. O trabalho criativo em equipe é possível quando respeitamos a obra de Deus nos outros e em nós mesmos.

Quando experimentamos Deus trabalhando em nós, nosso trabalho se torna frutífero. “O seu Deus o instrui e lhe ensina o caminho” (Is 28.26). O profeta fala aqui do lavrador, mas também poderíamos dizer que “o artesão sabe exatamente o que fazer, pois Deus lhe deu entendimento”. Ou “o empresário sabe exatamente o que fazer, pois Deus deu entendimento a essa pessoa”. De maneiras misteriosas, nos tornamos cocriadores com Deus em nosso trabalho, como instrumentos nas mãos de Deus para propósitos mais profundos do que imaginamos.

Servo em ação (Isaías 40ss.)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Enquanto retidão em Isaías 1—39 (frequentemente associada à justiça, mishpat) é um termo usado para revelar as falhas e a infidelidade de Judá, a retidão em Isaías 40—55 é entendida principalmente como um dom de Deus que ele realiza em nome de seu povo. [1] O próprio Isaías serve como o principal exemplo do servo de Deus que traz esse dom de Deus.

Justiça ou juízo se estabelece em Isaías 40—55 pelo enigmático “servo” que aparece nessa parte do testemunho de Isaías. Isaías 42.1-4, o primeiro dos chamados “cânticos do servo”, fala do servo como alguém que estabelece a justiça na terra. Aqui, na figura do servo, Deus responde ao clamor de Judá por justiça em Isaías 40.27: “O Senhor não se interessa pela minha situação; o meu Deus não considera a minha causa (mishpat)”. A iniciativa divina do próprio Deus é agora promulgada para realizar por seu povo o que eles não poderiam realizar por si mesmos. O meio pelo qual Deus realizará a salvação, tanto para Israel quanto para as nações, está nessa figura em desenvolvimento da vida do servo de Deus. Retidão e justiça são realizadas pelo servo.

A identidade narrativa do servo se desenvolve ao longo desses capítulos, do próprio Israel, nos capítulos 40—48, para uma figura individual que assume sobre seus ombros a identidade missional de Israel, tanto para si mesma quanto para as nações, nos capítulos 49—53.

Ele me disse: “Você é meu servo,
Israel, em quem mostrarei o meu esplendor”. (Is 49.3)

A razão para essa mudança do Israel nacional para uma figura que é o Israel encarnado (ou um Israel idealizado) é o fracasso de Israel em cumprir sua missão por causa de seu pecado. [2] O que se observa nessa figura do servo é o meio único pelo qual Deus comunica sua presença graciosa e intenções restauradoras ao seu povo rebelde. É pela figura do servo que a justiça (agora entendida como fidelidade à aliança com seu povo) é oferecida a eles como um dom, com base na própria liberdade de Deus e no compromisso soberano com suas promessas. A justiça é algo a ser recebido, não alcançado. [3]

Isso leva a perguntar sobre nossos próprios papéis. Como membros de um povo que está sendo redimido pela graça de Deus, podemos ser vasos dessa graça para o benefício daqueles ao nosso redor. Às vezes, temos a oportunidade de tornar nossos ambientes de trabalho mais justos, mais compassivos e mais orientados a tornar o mundo um lugar melhor. Ao fazer isso, nós mesmos podemos desempenhar a missão do servo de pequenas maneiras.

Por outro lado, em outros momentos, é difícil fazer nosso trabalho como Deus deseja. Indivíduos ou sistemas em nosso ambiente de trabalho podem resistir à maneira como Deus está nos guiando. Nossos próprios pecados e falhas podem causar um curto-circuito em qualquer bem que possamos ter realizado. Mesmo nossos melhores esforços podem parecer não fazer muita diferença.

Nesses casos, Isaías tem uma palavra de segurança para nós.
Mas eu disse: Tenho me afadigado sem qualquer propósito;
tenho gastado minha força em vão e para nada.
Contudo, o que me é devido está na mão do Senhor,
e a minha recompensa está com o meu Deus. (Is 49.4)

Apesar do desânimo que muitas vezes sentimos, o resultado final de nosso trabalho está nas mãos de Deus. Podemos confiar em Deus não apenas para usar o que fizemos, mas, no tempo de Deus, para trazê-lo ao cumprimento. Como Filipenses 1.6 diz: “Aquele que começou boa obra em vocês, vai completá-la até o dia de Cristo Jesus”. 1Coríntios 15.58 acrescenta: “Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil”.

Os dois retratos da justiça apresentados em Isaías 1—39 e 40—55 são seguidos para nos dar uma compreensão diferenciada da justiça em Isaías 56—66. É nessa parte de Isaías que alguns dos retratos mais claros de uma teologia do trabalho são oferecidos. A justiça oferecida como um presente em Isaías 40—55 é agora uma obrigação a ser cumprida nos capítulos 56—66: “Assim diz o Senhor: ‘Mantenham a justiça e pratiquem o que é direito, pois a minha salvação está perto, e logo será revelada a minha retidão’” (Is 56.1).

O apelo para manter a justiça e praticar a retidão em Isaías 56—66 é uma possibilidade percebida agora para o povo de Deus, por causa da reivindicação graciosa de Deus sobre eles na figura do servo. A linguagem de Isaías 56.1 está ligada a Isaías 51.4-8, em que novamente Judá recebe um chamado para buscar a justiça e a retidão. Nesta passagem, a possibilidade criada para o povo de Deus praticar a justiça é encontrada nas últimas frases de Isaías 51.6,8. A justiça de Deus e a salvação de Deus não falharão, mas durarão para sempre. À medida que os capítulos 40—55 se movem em sua forma literária, vemos a justiça e a salvação de Deus encenadas na pessoa do servo (capítulo 53) que sofre em nome e no lugar de outros. Os apelos para “praticar a justiça” nos capítulos 56—66 são possíveis por causa do trato anterior de Deus com a infidelidade de Israel na ação graciosa e substitutiva do servo. Em linguagem teológica, a graça de Deus precede a lei, como demonstrado pela graciosa iniciativa de Deus de redimir seu povo a todo custo. Esse é o único meio pelo qual a conversa sobre responsabilidade humana ou ações justas pode ocorrer. É na segurança do perdão de Deus, encontrado em Jesus Cristo, que o ímpeto para boas obras se materializa. [4]

O profeta passa do argumento negativo para o positivo, apresentando é “o jejum” que Deus realmente deseja (Is 58.6). Esse jejum inclui: soltar as correntes da injustiça, pôr em liberdade os oprimidos, partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu e não recusar ajuda ao próximo (Is 58.6-7). [5] O resultado é que participamos da obra de restauração de Deus, como descrita em Isaías: “Seu povo reconstruirá as velhas ruínas e restaurará os alicerces antigos; você será chamado reparador de muros, restaurador de ruas e moradias” (Is 58.12) Isaías pinta um quadro dos valores que devem caracterizar o povo de Deus, em total contraste com os da maioria das culturas ao redor. Religião externa ou desempenho religioso que pode se misturar com uma ética de trabalho caracterizada pela falta de preocupação com os trabalhadores (em que trabalhadores, empregados ou subordinados são meros instrumentos de desenvolvimento pessoal ou comercial) ou por um estilo de liderança que é dado ao conflito, brigas, calúnias, pavios curtos e raiva descontrolada — esses fatores violam nossa lealdade a Deus. Uma reivindicação é feita sobre o povo de Deus por causa do perdão prévio de nossos pecados na pessoa e na obra de Jesus Cristo. A promessa que se segue após as injúrias no capítulo 58 é a manifestação de todas as promessas de Deus no meio do povo de Deus: “A sua luz irromperá... a sua retidão irá adiante de você, e a glória do Senhor estará na sua retaguarda” (Is 58.8-9; cf. Is 52.12).

À medida que traçamos o desenvolvimento do “servo” do Israel nacional para um Israel idealizado, depois para o Servo do Senhor nos capítulos 52—53, e depois ainda para os servos desse Servo, fazemos uma pausa para refletir sobre as implicações no ambiente de trabalho do modelo de serviço que vemos em Jesus Cristo. Isaías constrói cuidadosamente sua descrição do Servo para deixar claro que ele é um reflexo do próprio Deus. [6] Portanto, os cristãos tradicionalmente equiparam o Servo a Jesus. A imagem retratada por Isaías para o sofrimento do Servo, nos capítulos 52—53, nos lembra que, como servos de Deus, podemos ser chamados ao sacrifício próprio em nosso trabalho, tal como aconteceu com Jesus.

Sua aparência estava tão desfigurada, que ele se tornou irreconhecível como homem; não parecia um ser humano... Foi desprezado e rejeitado pelos homens, um homem de dores e experimentado no sofrimento. Como alguém de quem os homens escondem o rosto, foi desprezado, e nós não o tínhamos em estima... Mas ele foi traspassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados... Ele foi oprimido e afligido; e, contudo, não abriu a sua boca; como um cordeiro, foi levado para o matadouro; e, como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca (Is 52.14; 53.3,5,7).

Uma visão adequada de Deus nos motivará a fazer do padrão de Deus nosso padrão, de modo que não permitamos que o interesse próprio e o engrandecimento pessoal deturpem nosso trabalho.

Jesus, em sua morte e ressurreição, atendeu a uma necessidade que não podíamos atender. O padrão de Deus nos chama a atender às necessidades de justiça e retidão por meio de nosso trabalho: “Assim a justiça retrocede, e a retidão fica a distância, pois a verdade caiu na praça e a honestidade não consegue entrar. Não se acha a verdade em parte alguma, e quem evita o mal é vítima de saque. Olhou o Senhor e indignou-se com a falta de justiça. Ele viu que não havia ninguém, admirou-se porque ninguém intercedeu; então o seu braço lhe trouxe livramento e a sua justiça deu-lhe apoio” (Is 59.14-16). Como servos do Servo do Senhor, somos chamados a atender a necessidades não atendidas. No ambiente de trabalho, isso pode ter muitas faces: preocupação com um funcionário ou colega de trabalho oprimido, atenção à integridade de um produto que está sendo vendido aos consumidores, cuidado com atalhos de processo que privariam as pessoas de sua contribuição, e até mesmo a rejeição de acúmulos em tempos de escassez. Como Paulo escreveu aos gálatas: “Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim, cumpram a lei de Cristo” (Gl 6.2).

Como servos do Servo do Senhor, podemos não receber a aclamação que desejamos. As recompensas podem ser adiadas. Mas sabemos que Deus é nosso Juiz. Isaías expressou o seguinte: “Pois assim diz o Alto e Sublime, que vive para sempre, e cujo nome é santo: ‘Habito num lugar alto e santo, mas habito também com o contrito e humilde de espírito, para dar novo ânimo ao espírito do humilde e novo alento ao coração do contrito’” (Is 57.15).

O significado final do trabalho (Isaías 60ss.)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ao longo do livro, Isaías encoraja Israel com a esperança de que Deus acabará corrigindo os erros que o povo está sofrendo no presente. O trabalho e os frutos do trabalho estão incluídos nessa esperança. No capítulo 40, à medida que o livro passa de dizer a verdade sobre o presente para dizer a verdade sobre o futuro, a sensação de esperança aumenta. O material sobre o Servo sofredor nos capítulos 40—59 dificilmente pode ser entendido, exceto como um dom divino de esperança no cumprimento futuro do Reino de Deus.

Nos capítulos 60 a 66, essa esperança é finalmente expressa por completo. Deus reunirá seu povo novamente (Is 60.4), derrotará os opressores (Is 60.12-17), redimirá os rebeldes que se arrependem (Is 64.5—65.10) e estabelecerá seu Reino justo (Is 60.3-12). No lugar dos líderes infiéis de Israel, o próprio Deus governará: “Então você saberá que eu, o Senhor, sou o seu Salvador, o seu Redentor, o Poderoso de Jacó” (Is 60.16). A mudança é tão radical que equivale a uma nova criação, de poder e majestade paralelos à primeira criação do mundo por Deus. “Criarei novos céus e nova terra, e as coisas passadas não serão lembradas. Jamais virão à mente” (Is 65.17).

Os capítulos 60 a 66 são ricos em retratos vívidos do Reino perfeito de Deus. De fato, uma grande fração das imagens e da teologia do Novo Testamento é extraída desses capítulos de Isaías. Os capítulos finais do Novo Testamento (Apocalipse 21—22) são, em essência, uma recapitulação de Isaías 65—66 em termos cristãos.

Pode ser surpreendente para alguns o quanto de Isaías 60—66 está relacionado ao trabalho e aos resultados do trabalho. As coisas pelas quais as pessoas trabalham na vida finalmente se concretizam, incluindo:

  • Mercado e comércio, incluindo o movimento de ouro e prata (Is 60.6,9), o carregamento de madeiras e a abertura de portões para o comércio. “As suas portas permanecerão abertas; jamais serão fechadas, dia e noite, para que tragam a você as riquezas das nações, com seus reis e sua comitiva.” (Is 60.11)

  • Produtos agrícolas e florestais: incluindo incenso, rebanhos, carneiros (Is 60.6-7), ciprestes e pinheiros (Is 6.13)

  • Transporte por terra e mar (Is 60.6,9) e, talvez, até por via aérea (Is 60.8).

  • Justiça e paz (Is 60.17-18; 61.8; 66.16)

  • Serviços sociais (Is 61.1-4)

  • Comida e bebida (Is 65.13)

  • Saúde e vida longa (Is 65.20)

  • Construção e habitação (Is 65.21)

  • Prosperidade e riqueza (Is 66.12)

Todas essas coisas escaparam de Israel em sua infidelidade a Deus. De fato, quanto mais eles tentavam alcançá-los, menos se importavam em adorar a Deus ou seguir seus caminhos. O resultado foi privá-los ainda mais. Mas, quando o livro de Isaías apresenta a esperança futura de Israel como a Nova Criação, todas as promessas anteriores no livro vêm à tona. A imagem retratada é a de um futuro escatológico ou dia final, quando a “justa descendência do Servo” desfrutará de todas as bênçãos da era messiânica descrita anteriormente. Então, as pessoas realmente receberão as coisas pelas quais têm trabalhado, porque “não labutarão inutilmente” (Is 65.23). A tristeza de Israel se transformará em alegria, e um dos motivos dominantes dessa alegria vindoura é o prazer com o trabalho de suas próprias mãos.

Conclusão de Isaías

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como cristãos que vivem na tensão entre a inauguração do Reino de Deus e seu cumprimento vindouro, o fato de podermos desfrutar de nosso trabalho e do fruto de nosso trabalho para o louvor da glória de Deus prenuncia o dia vindouro em que a tensão será removida. Pode-se dizer o seguinte: quando os cristãos desfrutam de seu trabalho e dos frutos que ele produz para o louvor da glória de Deus, eles provam um pouco do céu na terra. Quando tudo estiver certo e os céus e a terra estiverem como foram originalmente planejados, o trabalho não cessará. Ele continuará e será um grande deleite para os envolvidos, pois o aguilhão da queda terá sido final e irrevogavelmente removido.

Trabalhar e desfrutar dos frutos do trabalho árduo são dádivas de Deus a serem desfrutadas e compartilhadas com os outros. Usando esses dons, podemos contribuir para o florescimento humano e para aliviar o sofrimento. A profecia de Isaías apresenta um belo retrato do fato de que, mesmo em nosso trabalho, de segunda a sexta-feira, devemos cumprir a lei amando a Deus e ao próximo (cf. Mt 22.33-40). Na economia divina, não podemos amar a Deus e deixar de amar nosso próximo. Quando nosso trabalho é realizado neste contexto gracioso possibilitado pela obra perdoadora e restauradora de Jesus Cristo, nossa alegria pode ser plena. Quando esforço e trabalho se tornam o foco distorcido de nosso próprio engrandecimento pessoal às custas da dignidade de nossos subordinados e da opressão dos pobres e marginalizados, a palavra profética negativa de Isaías ainda vem a nós com poder: “O jejum que desejo não é este”. Quando trabalho e esforço são desfrutados no contexto de amar a Deus e ao próximo, um pouco dos novos céus e da nova terra são experimentados no aqui e agora.

Versículos-chave e temas de passagens citadas em Isaías

Voltar ao índice Voltar ao índice

Passagem (em ordem de capítulo e versículo)

Seção temática deste artigo em que é discutida

(Clique no link para ir até lá)

Is 1.11-17 Deus não deseja sacrifícios por parte de pessoas que praticam opressão e injustiça.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 2.11 Deus humilhará aqueles que confiam em si mesmos em vez de confiar nele.

Tema 2 – A arrogância no trabalho leva à destruição

Is 2.22 Não confie no poder humano que não está ligado a Deus.

Tema 2 – A arrogância no trabalho leva à destruição

Is 2.7 Riqueza não é fonte de segurança.

Tema 2 – A arrogância no trabalho leva à destruição

Is 3.3-15 Deus julga os líderes por ganharem riqueza oprimindo os pobres.

Tema 3 – Deus despreza a riqueza obtida pela exploração

Is 5.8 A nação é julgada por permitir que os ricos acumulem todos os recursos necessários para a produção.

Tema 3 – Deus despreza a riqueza obtida pela exploração

Is 7.14 Deus está com seu povo onde quer que estejamos.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 7.9 A fé é o pré-requisito da ação que agrada a Deus.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 8.13-14 Adorar a Deus é a fonte de força para o trabalho.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 9.3 O povo de Deus se alegra na época da colheita.

Tema 4 - Deus deseja nossa paz e prosperidade por confiar nele

Is 24.5-6 Práticas corruptas degradam a terra, e as pessoas pagam um preço por isso.

Tema 3 – Deus despreza a riqueza obtida pela exploração

Is 28.26 Deus dá entendimento às pessoas que trabalham a terra.

Tema 5 - Deus é a fonte de vida, do conhecimento e da sabedoria

Is 29.13 O povo honra a Deus com os lábios, mas não com a vida.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 32.15-20 Pelo poder do espírito de Deus, as pessoas habitarão em paz e segurança e desfrutarão de seu trabalho.

Tema 4 - Deus deseja nossa paz e prosperidade por confiar nele

Is 37.30 Deus promete restaurar a produtividade das pessoas à medida que elas voltarem a confiar nele.

Tema 4 - Deus deseja nossa paz e prosperidade por confiar nele

Is 37.36-37a O povo de Deus pode confiar no poder de Deus para trazer à luz o que Deus deseja no mundo.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 39.1-8 Ostentar-se em riqueza e poder traz destruição.

Tema 2 – A arrogância no trabalho leva à destruição

Is 40.12-18 Deus é a fonte de todo conhecimento e poder.

Tema 5 - Deus é a fonte de vida, do conhecimento e da sabedoria

Is 40.27 O povo de Deus clama por justiça da mão de Deus.

Tema 6 – O exemplo do servo de Deus em ação

Is 40.27-31 Deus dá força aos fracos e cansados.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 42.1-4 O servo de Deus estabelece a justiça.

Tema 6 – O exemplo do servo de Deus em ação

Is 43.13 Deus é a fonte de poder e compaixão.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 44.10-20 Nada que o ser humano faça pode trazer verdadeira segurança.

Tema 2 – A arrogância no trabalho leva à destruição

Is 44.6-7 Somente Deus tem poder duradouro.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 46.3-4 Deus ensina e lidera seu povo.

Tema 5 - Deus é a fonte de vida, do conhecimento e da sabedoria

Is 48.12-14 A ordem criada vem somente de Deus.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 51.4-8 O povo de Deus é chamado a buscar a justiça e a retidão.

Tema 6 – O exemplo do servo de Deus em ação

Is 56.1 Justiça, fazer o que é certo e salvação andam de mãos dadas.

Tema 6 – O exemplo do servo de Deus em ação

Is 58.1-8 Deus espera que seu povo cuide dos interesses dos trabalhadores e cuide das pessoas em necessidade econômica.

Tema 1 – Integração de adoração e trabalho

Is 58.6-9 Deus quer que seu povo o adore, soltando as correntes da injustiça, libertando os oprimidos, compartilhando comida, abrigo e roupas e provendo o sustento de suas famílias.

Tema 6 – O exemplo do servo de Deus em ação

Is 59.14-16 O servo de Deus usa qualquer poder que tenha para trazer justiça aos oprimidos e verdade ao povo de Deus.

Tema 6 – O exemplo do servo de Deus em ação

Is 60.1-18 Deus reunirá seu povo sob sua própria liderança, estabelecerá a justiça e vencerá a opressão.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 60.5 A Nova Criação inclui produtos do trabalho de todas as nações.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 61.8 Deus recompensará aqueles que sofreram dificuldades.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 62.8-9 Deus promete um tempo em que seu povo poderá desfrutar dos frutos de seu trabalho em paz.

Tema 4 - Deus deseja nossa paz e prosperidade por confiar nele

Is 64.5-65.10 Deus redimirá os rebeldes que se arrependerem e lhes dará participação nas bênçãos da Nova Criação.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 65.13 Haverá muito para comer e beber.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 65.20 Todos desfrutarão de saúde e vida longa.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 65.21 Haverá moradias para todos.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 65.21-22 Deus promete um tempo em que seu povo construirá casas e viverá em paz.

Tema 4 - Deus deseja nossa paz e prosperidade por confiar nele

Is 65.23 O trabalho do povo de Deus não é em vão.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 66.13 Prosperidade e riqueza serão desfrutadas por todos.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Is 66.16 Deus porá fim a tudo o que prejudicaria a Nova Criação.

Tema 7 – O trabalho de hoje encontra significado na Nova Criação

Introdução a Jeremias e Lamentações

Voltar ao índice Voltar ao índice

A questão fundamental no livro de Jeremias é se o povo será fiel a Deus em meio a um ambiente difícil. Jeremias está preocupado com a fidelidade em todos os aspectos da vida, incluindo religião, família, forças armadas, governo, agricultura e outras esferas da vida e do trabalho. Enfrentamos um problema semelhante como trabalhadores hoje. Somos chamados a ser fiéis a Deus em nosso trabalho, mas não é fácil seguir os caminhos de Deus em muitos ambientes de trabalho.

Jeremias teve de lidar com a infidelidade a Deus de praticamente todo o povo. De reis e príncipes a sacerdotes e profetas, todos foram infiéis a Deus. Eles ainda, em geral, vinham ao templo, ofereciam sacrifícios e invocavam o nome do Senhor, mas falhavam em reconhecer Deus na maneira como viviam o restante de sua vida (Jr 7.1-11). Isso não é diferente daqueles que frequentam a igreja no domingo, colocam suas ofertas no prato de coleta, mas vivem o restante de sua vida como se Deus não estivesse envolvido.

Dentro do contexto da fidelidade a Deus, Jeremias oferece várias passagens diretamente relacionadas ao trabalho e muitas outras passagens que tratam da fidelidade a Deus na vida como um todo, com claras implicações para nosso trabalho.

Em seus oráculos relacionados ao trabalho, Jeremias não introduziu muitos princípios ou mandamentos novos. Em vez disso, ele aceitou aqueles revelados em livros anteriores da Bíblia, especialmente na Lei de Moisés. Ele então repreendeu o povo de Deus por não estarem seguindo a lei de Deus e advertiu que isso traria um desastre sobre eles. Quando veio o desastre, ele os ensinou a viver a lei de Deus em sua nova — e sombria — situação. Ele os encorajou com a promessa de Deus de que, por fim, restauraria sua alegria e prosperidade se voltassem à fidelidade.

Embora Jeremias tenha vivido cerca de 600 anos antes do apóstolo Paulo, o que ele disse sobre o trabalho pode ser facilmente resumido nas palavras de Colossenses 3.23: “Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens”.

Jeremias e seu tempo (Jeremias e Lamentações)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A maioria de nós acha nosso ambiente de trabalho difícil, pelo menos às vezes. Um dos apelos do livro de Jeremias é que a situação do profeta era extremamente difícil. Seu ambiente de trabalho (entre as elites governantes de Judá) era corrupto e hostil à obra de Deus. Jeremias estava constantemente em perigo. No entanto, ele podia ver a presença de Deus nas situações mais difíceis. Sua perseverança nos lembra que talvez possamos aprender a experimentar a presença de Deus nos ambientes de trabalho mais difíceis.

Jeremias cresceu na pequena cidade de Anatote, a cinco quilômetros a nordeste de Jerusalém, a capital de Judá. Embora geograficamente próximas, as duas comunidades estavam distantes cultural e politicamente. Jeremias nasceu na linhagem sacerdotal de Abiatar, mas tinha pouco prestígio entre os sacerdotes em Jerusalém. Salomão havia removido Abiatar da autoridade séculos antes (1Rs 1.28—2.26) e o substituído pela linhagem sacerdotal de Zadoque, em Jerusalém.

Quando Deus chamou Jeremias para ser seu profeta em Jerusalém, o profeta se viu no meio de sacerdotes que não aceitavam seu sacerdócio herdado. Ao longo de sua longa carreira em Jerusalém, Jeremias permaneceu como um forasteiro, sendo alvo de suspeitas e ódio. Aqueles que enfrentam preconceitos culturais, étnicos, raciais, linguísticos, religiosos ou outros nos ambientes de trabalho ainda hoje podem se identificar com o que Jeremias enfrentou todos os dias de sua vida.

O chamado do profeta relutante e a descrição do trabalho (Jeremias e Lamentações)

Com vinte e poucos anos, Jeremias recebeu o chamado de Deus para ser profeta. O ano era 626 a.C., o décimo terceiro ano do reinado do rei Josias (Jr 1.2). Em sua descrição de trabalho constava levar as mensagens de Deus “sobre nações e reinos, para arrancar, despedaçar, arruinar e destruir; para edificar e plantar” (Jr 1.10). As mensagens de Deus dadas por meio de Jeremias não tinham um tom gentil e positivo, pois os judeus estavam desastrosamente perto de abandonar sua fidelidade a Deus. Por meio de Jeremias, Deus estava fazendo uma tentativa de chamá-los de volta antes que o desastre acontecesse. Como um consultor externo contratado para abalar o status quo de uma empresa, ele foi chamado para atrapalhar os negócios, como de costume, no reino de Judá. Parte de sua tarefa era se opor à idolatria e às práticas malignas que se tornaram parte da adoração em Judá.

Sua obra profética começou sob o bom rei Josias. Ela continuou ao longo dos maus sucessores de Josias: Jeoacaz, Jeoaquim, Joaquim e Zedequias; e enfrentou a destruição total de Jerusalém sob o governante babilônico Nabucodonosor (586 a.C.). Durante suas quatro décadas como profeta de Deus em Jerusalém, Jeremias foi constantemente ridicularizado, o que foi motivo de chacota para os cidadãos da cidade. Na verdade, ele escapou por pouco de várias tramas contra sua vida (Jr 11.21; 18.18; 20.1; 26.8; e capítulos 38—39).

Jeremias não se candidatou ao cargo de profeta e não lemos em nenhum lugar que ele “aceitou” o chamado de Deus para ser seu porta-voz. Isso contrasta com Isaías, que, após a visão da santidade e majestade de Deus, ouviu Deus perguntar: “Então ouvi a voz do Senhor, conclamando: ‘Quem enviarei? Quem irá por nós?’ E eu respondi: Eis-me aqui. Envia-me!” (Is 6.8). Quando Deus informou a Jeremias que ele seria seu porta-voz em Jerusalém, o profeta protestou, alegando sua juventude e inexperiência (Jr 1.6-7). Mas Deus parece ter anulado esse protesto, dando-lhe imediatamente mensagens proféticas para o povo (Jr 1.11-16). Deus então seguiu essas mensagens com instruções, um aviso e uma promessa ao profeta recém-formado:

“E você, prepare-se! Vá dizer-lhes tudo o que eu ordenar. Não fique aterrorizado por causa deles, senão eu o aterrorizarei diante deles. E hoje eu faço de você uma cidade fortificada, uma coluna de ferro e um muro de bronze, contra toda a terra: contra os reis de Judá, seus oficiais, seus sacerdotes e o povo da terra. Eles lutarão contra você, mas não o vencerão, pois eu estou com você e o protegerei”, diz o Senhor. (Jr 1.17-19)

Jeremias sabia desde o início que sua vocação como profeta era difícil. Sua designação o colocaria contra toda a nação de Judá, desde o rei, príncipes e sacerdotes até o povo nas ruas da cidade. No entanto, ele sentiu um chamado claro de Deus para fazer esse trabalho difícil e confiou em Deus para guiá-lo ao longo dele.

Uma visão geral do livro de Jeremias

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Jeremias reflete a situação cada vez pior que Jeremias encontrou. Em vários momentos, ele teve a tarefa nada invejável de desafiar a hipocrisia religiosa, a desonestidade econômica e as práticas opressoras dos líderes de Judá e daqueles que os seguiam. Jeremias era a voz da advertência, o vigia que chama a atenção para verdades duras que outros prefeririam ignorar.

Porque assim diz o Senhor a respeito do palácio real de Judá... “Farei de você um deserto, uma cidade desabitada. Prepararei destruidores contra você... De numerosas nações muitos passarão por esta cidade e perguntarão uns aos outros: ‘Por que o Senhor fez uma coisa dessas a esta grande cidade?’ E lhes responderão: ‘Foi porque abandonaram a aliança do Senhor, do seu Deus’”. (Jr 22.6-9)

Ele era o pessimista, que na realidade era o realista. Ele foi rejeitado e ridicularizado por falsos profetas, que insistiam em dizer que Deus nunca deixaria a cidade de Jerusalém cair nas mãos de um invasor.

A persistência de Jeremias em transmitir sua mensagem indesejada ao longo de quatro décadas é notável. Ele simplesmente não desistiria do que parecia ser uma tarefa impossível. Quantos de nós teriam buscado escapar de uma situação dessas? Mas uma das coisas impressionantes sobre Jeremias era sua fidelidade tenaz em cumprir as instruções de Deus, mesmo diante de oposição implacável e críticas duras. Embora tenha sido frequentemente chamado de “profeta chorão” porque lamentou os pecados de seu povo e lamentou sua própria falta de sucesso em trazer o povo de volta a Javé, Jeremias nunca vacilou em sua confiança de que Deus, que o colocou onde estava, reivindicaria a verdade de sua mensagem. O profeta poderia ser fiel ao seu chamado indesejado porque Deus havia prometido ser fiel a ele. Ele serviu com a promessa de Deus no bolso: “‘Eles lutarão contra você, mas não o vencerão, pois eu estou com você e o protegerei’, diz o Senhor” (Jr 1.17-19).

Em 605, Nabucodonosor, da Babilônia, atacou Jerusalém e levou consigo 10.000 dos judeus mais capazes (incluindo Ezequiel e Daniel). Nesse ponto, o papel de Jeremias foi expandido para levar a palavra de Deus aos judeus no exílio (capítulo 29). Entre os judeus capturados havia falsos profetas que asseguraram aos exilados que os dias da Babilônia estavam contados e que Deus nunca permitiria que Jerusalém fosse capturada. Jeremias advertiu os exilados de que eles ficariam na Babilônia por setenta anos. Em vez de agir com base em falsas esperanças, os judeus deveriam se estabelecer na terra, construir casas, plantar jardins, casar seus filhos — e parar de ouvir os falsos profetas.

Enquanto isso, os habitantes que permaneceram em Judá continuavam a recusar a mensagem de Deus. Em 586, os babilônios voltaram, saquearam Jerusalém, derrubaram seus muros, destruíram seu templo, pedra por pedra, e levaram o restante das pessoas capazes ​​como cativos. Mais uma vez, o papel de Jeremias mudou (capítulos 40—45). Deus o manteve na cidade destruída, agora governada brevemente por Gedalias, para encorajar o novo governante e ajudar o povo a entender o que havia acontecido e como eles deveriam seguir em frente em meio à destruição. No entanto, mais uma vez, apesar de seu apelo para que ouvissem a mensagem de Deus, eles depositaram sua fé em uma infeliz aliança militar com o Egito, que a Babilônia derrotou rapidamente. Jeremias foi levado ao Egito, onde morreu. Até o fim, o profeta teve de suportar a teimosa recusa dos governantes em dar ouvido às mensagens de Deus, assim como os resultados desastrosos que sobrevieram. Tanto profetas quanto cristãos no ambiente de trabalho podem descobrir que não têm a capacidade de superar todos os males. Às vezes, o sucesso significa fazer o que você sabe que é certo, mesmo quando tudo está contra você.

Os capítulos finais (46—52) tratam principalmente do juízo que Deus trará sobre todas as nações, não apenas sobre Judá. Embora Deus tenha usado a Babilônia contra Judá, a Babilônia também não escaparia do castigo.

Não podemos ler Jeremias sem uma percepção vívida dos resultados desastrosos da persistente falta de fé dos líderes de Judá — os reis, os sacerdotes e os profetas. Sua miopia e disposição em acreditar nas mentiras que contavam uns aos outros levaram à completa destruição da nação e de sua capital, Jerusalém. O trabalho que Deus nos dá para fazer é um negócio sério. Deixar de seguir a palavra de Deus em nosso trabalho pode causar sérios danos a nós mesmos e às pessoas ao nosso redor. Liderar o povo de Israel era o trabalho do rei, dos sacerdotes e dos profetas. A catástrofe nacional que logo tomou conta de Israel foi o resultado direto de suas más decisões e do fracasso em cumprir seus deveres sob a aliança.

Temas relacionados ao trabalho no livro de Jeremias

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Jeremias não está organizado como um tratado sobre o trabalho. Por causa disso, tópicos relacionados ao trabalho aparecem em lugares dispersos ao longo do livro, às vezes separados por muitos capítulos, outras vezes sobrepostos em um único capítulo ou passagem. Tomaremos esses tópicos e passagens, tanto quanto possível, na ordem em que aparecem em Jeremias.

Vimos que a maior preocupação de Jeremias é se as pessoas estão agindo com fidelidade a Deus. À medida que lemos, podemos nos perguntar se vemos nosso trabalho como uma área significativa em que Deus deseja que sejamos fiéis a ele. Se for, então podemos esperar experimentar a presença de Deus em nosso trabalho. Portanto, nossa fidelidade a Deus e a presença de Deus em nosso trabalho são temas relacionados aos quais voltaremos com frequência.

O chamado de Jeremias para o trabalho (Jeremias 1)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como vimos, Deus preparou Jeremias desde antes de seu nascimento para a obra de um profeta (Jr 1.5) e, no momento certo, o designou para essa obra (Jr 1.10). Jeremias respondeu fielmente ao chamado de Deus para trabalhar, e Deus lhe deu o conhecimento necessário para realizá-lo (Jr 1.17).

Embora Jeremias fosse profeta de profissão, não há razão para acreditar que o padrão do chamado de Deus, seguido por uma resposta humana fiel, seguida pelo treinamento de Deus, seja limitado aos profetas. Deus chamou e capacitou José (Gn 39.1-6; 41.38-57), Bezalel e Aoliabe (Êx 36—39) e Davi (1Sm 16.1-13) para cargos como ministro das Finanças, chefes de construção e rei, respectivamente. No Novo Testamento, Paulo diz que Deus capacita toda pessoa fiel para o trabalho que contribui para o bem da comunidade (1Coríntios 12—14). Podemos ver em Jeremias um padrão para todos aqueles que seguem a Deus fielmente em sua obra. Como William Tyndale afirmou há muito tempo:

Não há trabalho melhor do que outro para agradar a Deus: servir água, lavar a louça, ser [sapateiro] ou apóstolo, todos são um; lavar a louça e pregar são a mesma coisa, no que diz respeito à ação, para agradar a Deus. [1]

Deus sabe como nós — assim como Jeremias — estamos entrelaçados de acordo com o desígnio de Deus. Deus nos leva a empregar nossas habilidades e talentos de maneira piedosa no mundo. Provavelmente, não teremos o mesmo chamado de Jeremias. Nem nosso chamado será necessariamente tão direto, específico e inconfundível quanto o de Jeremias. Seria um erro pensar que nosso chamado para o trabalho deve ser semelhante ao de Jeremias. Talvez Deus tenha sido extraordinariamente direto com Jeremias, porque ele estava profundamente relutante em aceitar o chamado de Deus. De qualquer forma, podemos ter certeza de que Deus nos capacitará para nosso trabalho, seja ele qual for, se formos fiéis a ele. [2]

Bondade e corrupção do trabalho (Jeremias 2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Muito antes de Jeremias viver, Deus declarou que o trabalho é bom para as pessoas (Gênesis 1—2). Como notamos em outros lugares, o método de Jeremias era aceitar o que Deus havia revelado anteriormente e chamar a atenção para como isso está sendo vivido — ou não — em seus dias. No capítulo 2, Jeremias chamou a atenção para como o povo estava pervertendo a bondade do trabalho. Deus diz ao seu povo: “Eu trouxe vocês a uma terra fértil, para que comessem dos seus frutos e dos seus bons produtos. Entretanto, vocês contaminaram a minha terra; tornaram a minha herança repugnante” (Jr 2.7). Ele acrescenta que o povo foi atrás de coisas “inúteis” (Jr 2.8).

O Senhor levou o povo a uma terra fértil, onde seu trabalho produziria abundantemente, mas eles rejeitaram sua presença profanando sua terra. Essa é uma expressão padrão do privilégio teológico no Antigo Oriente Próximo: Deus criou a terra e a possui, mas a deu a pessoas que servem como seus administradores. [1] Deus deu a seu povo o grande privilégio de trabalhar na própria terra de Deus, a propriedade central do cosmos. Embora na época de Jeremias o povo trabalhasse a terra de Deus com desprezo, a obra em si foi criada por Deus para ser boa. “Você comerá do fruto do seu trabalho e será feliz e próspero” (Sl 128.2). Trabalhar a terra é necessário e, quando feito de acordo com os caminhos de Deus, traz prazer e um profundo senso da presença e do amor de Deus. “Para o homem não existe nada melhor do que comer, beber e encontrar prazer em seu trabalho. E vi que isso também vem da mão de Deus” (Ec 2.24). Mas o trabalho tornou-se impuro quando as pessoas deixaram de trabalhar com fidelidade. O povo profanou a terra porque pararam de seguir a Deus e “seguiram ídolos sem valor, tornando-se eles próprios sem valor” (Jr 2.5). Quando nosso trabalho vai mal, pode ser um diagnóstico de que nossa comunhão com Deus diminuiu. Podemos ter deixado de passar tempo com Deus, talvez porque estejamos ocupados trabalhando muito. No entanto, muitas vezes somos tentados a tentar resolver o problema gastando mais tempo em tarefas que se tornam “ídolos inúteis” (Jr 2.8), negligenciando ainda mais a comunhão com Deus. Nossas tarefas são pouco proveitosas, não porque não estamos trabalhando horas suficientes, mas porque, sem Deus em nosso trabalho, ele se torna infrutífero e ineficiente. O que aconteceria se fôssemos ao cerne da questão e passássemos mais tempo em comunhão com Deus? Imagine dizer a seu chefe: “Meu desempenho não esteve à altura dos meus padrões mais altos nos últimos 6 meses, então decidi chegar 30 minutos mais cedo todas as manhãs e passar metade do tempo extra orando e a outra metade começando mais cedo meu trabalho”. Isso seria mais ou menos eficaz do que simplesmente trabalhar mais horas? O chefe ficaria satisfeito ou irritado com o fato de um funcionário trazer sua fonte mais profunda de significado e apoio para o trabalho diário?

Reconhecimento da provisão de Deus (Jeremias 5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Jeremias reclamou que “este povo tem coração obstinado e rebelde; eles se afastaram e foram embora” (Jr 5.23). É a terra de Deus, na qual eles são administradores, chamados a trabalhá-la no “temor” do Senhor. “Temor” (hebraico yare) de Deus é frequentemente usado no Antigo Testamento como sinônimo de “viver em resposta a Deus”. [1] Mas Jeremias salientou que eles não tinham consciência de Deus como a fonte das chuvas e a garantia das colheitas. “Não dizem no seu íntimo: ‘Temamos o Senhor, o nosso Deus: aquele que dá as chuvas do outono e da primavera no tempo certo, e nos assegura as semanas certas da colheita’” (Jr 5.24). Assim, eles são infiéis, imaginando ser a fonte de suas próprias colheitas (cf. Jr 17.5-6, acima). Como resultado, eles não tiveram mais boas colheitas. “Os pecados de vocês têm afastado essas coisas; as faltas de vocês os têm privado desses bens” (Jr 5.25).

Esta seção é um dos muitos lugares nos capítulos 1—25 que falam da “poluição” da terra: “Uma coisa espantosa e horrível acontece nesta terra: Os profetas profetizam mentiras, os sacerdotes governam por sua própria autoridade, e o meu povo gosta dessas coisas” (Jr 5.30-31). Nos tempos antigos — quando a agricultura representava a fatia majoritária da economia — a poluição da terra não era apenas uma perda estética, mas uma perda de produtividade e abundância. Foi também uma rejeição ao Deus que tinha dado a terra. Chris Wright observou que a terra — como um sacramento ou um sinal visível — é um termômetro de nosso relacionamento com Deus. [2] A violação da terra (seja por corporações, exércitos ou indivíduos) nega a propriedade e o propósito de Deus em nos tornar administradores da Terra.

Sucesso e fracasso materiais (Jeremias 5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus retém o sucesso material daqueles que fazem o mal aos seus olhos? Jeremias diz o que poucos cristãos modernos ousariam dizer: o falta da provisão de Deus pode ser um sinal de que seu trabalho não é aprovado por Deus. Deus reteve as chuvas de Judá por causa do pecado de seus habitantes. “Os pecados de vocês têm afastado essas coisas [as chuvas]; as faltas de vocês os têm privado desses bens” (Jr 5.25). O profeta não diz que todos os casos de falta de provisão ou de sucesso são sinais do juízo de Deus. Essa é uma das questões em aberto que Jesus abordou quase 600 anos depois, quando disse que o cego de nascença não era cego como um sinal do juízo de Deus (Jo 9.2-3). Além disso, Deus até fornece bens materiais para aqueles que são maus. Deus “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”, de acordo com Jesus (Mt 5.45). Do livro de Jeremias, podemos dizer apenas que o sucesso material depende da provisão de Deus e que Deus pode — pelo menos às vezes — negar o sucesso material àqueles que praticam injustiça e opressão. [1] A verdadeira questão é: “Seria bom para mim — ou não — se Deus tirasse a renda dos injustos e opressores?”

Injustiça, ganância, o bem comum e integridade (Jeremias 5—8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Injustiça

Deixando de reconhecer Deus como a fonte de boas colheitas, o povo de Judá logo perdeu qualquer senso de responsabilidade perante o Senhor por sua maneira de trabalhar. Isso os levou a oprimir e enganar os fracos e indefesos:

Não há limites para as suas obras más. Não se empenham pela causa do órfão, nem defendem os direitos do pobre (Jr 5.28).
Eles apegam-se ao engano e recusam-se a voltar. Eu ouvi com atenção, mas eles não dizem o que é certo. Ninguém se arrepende de sua maldade e diz: ‘O que foi que eu fiz?’ (Jr 8.5-6)

O que deveria ter sido feito para o bem de todos na terra de Deus foi feito apenas para o benefício próprio dos indivíduos e sem o devido temor ao Deus pelo qual foram chamados a trabalhar. Então, Deus reteve a chuva, e eles logo aprenderam que não eram a fonte de seu próprio sucesso. Há paralelos aqui na crise econômica de 2008-2010 e sua relação com compensação, honestidade em emprestar e tomar empréstimos e a pressa de obter lucro rápido ao custo de colocar outras pessoas em risco. É importante não ser simplista — as principais questões econômicas de hoje são complexas demais para as máximas generalizadas extraídas de Jeremias. No entanto, há uma conexão — por mais complexa que seja — entre o bem-estar econômico de pessoas e nações e suas vidas e valores espirituais. O bem-estar econômico é uma questão moral.

Ganância

Deus chama as pessoas para um propósito maior do que o interesse econômico pessoal. Nosso objetivo mais elevado é nosso relacionamento com Deus, no qual a provisão e o bem-estar material são questões importantes, mas limitadas.

Eu me lembro de sua fidelidade quando você era jovem: como noiva, você me amava e me seguia pelo deserto, por uma terra não semeada. Israel, meu povo, era santo para o Senhor, os primeiros frutos de sua colheita (Jr 2.2-3).

Jeremias olhou em volta e descobriu que a ganância — a busca desenfreada de ganhos econômicos — havia tomado o lugar do amor de Deus como a principal preocupação do povo. “Desde o menor até o maior, todos são gananciosos; tanto os sacerdotes como os profetas, todos praticam a falsidade” (Jr 8.10). Ninguém escapou da condenação de Jeremias por sua ganância. [1] O profeta não era parcial com ricos ou pobres, pequenos ou grandes. Nós o vemos correndo pelas “ruas de Jerusalém” e “em suas praças” para tentar “encontrar alguém que aja com honestidade e que busque a verdade” (Jr 5.1). Primeiro, ele perguntou aos pobres, mas eles foram encontrados endurecidos (Jr 5.3-4). Então Jeremias voltou-se para os nobres, “mas todos eles também quebraram o jugo e romperam as amarras” (Jr 5.5).

Como Walter Brueggemann afirma: “Todas as pessoas, mas especialmente os líderes religiosos, são indiciadas por sua economia sem princípios... Esta comunidade perdeu todas as normas pelas quais avaliar e aferir sua ganância voraz e exploradora”. [2] O coração das pessoas estava inclinado a enriquecer, em vez de temer a Deus e amar os outros. Seja praticada pelos ricos (como o rei; Jr 22.17) ou pelos pobres, tal ganância despertou a ira divina.

O bem comum

A intenção de Deus é que vivamos e trabalhemos para o bem comum. [3] Jeremias criticou o povo de Judá por não cuidar de outros que não podiam oferecer algum benefício econômico em troca, incluindo órfãos e pobres (Jr 5.28), estrangeiros, viúvas e inocentes (Jr 7.6). Isso está acima e além das acusações que ele fez contra a violação de elementos específicos da Lei, como roubo, assassinato, adultério, falso juramento e adoração a deuses falsos (Jr 7.9). Jeremias fez essa acusação contra indivíduos em particular (“há ímpios no meio do meu povo”; Jr 5.26), contra todos os indivíduos (“todos vocês de Judá”; Jr 7.2), contra os líderes dos negócios (os “poderosos e ricos”; Jr 5.27) e governo (juízes; Jr 5.28), contra as cidades (Jr 4.16-18; 11.12; 26.2; etc.) e contra a nação como um todo (“Este povo ímpio”; Jr 13.10). Cada elemento da sociedade, individual e institucionalmente, havia quebrado a aliança de Deus.

A insistência de Jeremias de que o trabalho e seus produtos servem ao bem comum é uma base importante para a ética nos negócios e a motivação pessoal. Se uma ação contribui para o bem comum é tão importante quanto se a ação é legal. Pode ser legal conduzir negócios de maneiras que prejudiquem o bem comum, mas isso não o torna legítimo no julgamento de Deus. Por exemplo, a maioria das empresas faz parte de uma cadeia de suprimentos que vai das matérias-primas às peças, das montagens aos produtos acabados e ao sistema de distribuição aos consumidores. Pode ser possível que um participante da cadeia ganhe poder sobre os outros, reduza as margens dos demais e fique com todos os lucros. Mas, mesmo que isso seja feito por meios legais, significa que é bom para a indústria e a comunidade? É algo sustentável a longo prazo? Ou pode ser legal que um sindicato preserve benefícios para os trabalhadores atuais, negociando benefícios para novos trabalhadores. Mas, se os benefícios são necessários para todos os trabalhadores, isso realmente serve ao bem comum? Essas são questões complexas, e não há uma resposta rígida a ser encontrada em Jeremias. A relevância de Jeremias é que o povo de Judá, em sua maioria, pensava que estava vivendo de acordo com a Lei, incluindo, presumivelmente, suas muitas regulamentações sobre a atividade econômica e o ambiente de trabalho. [4] Mas Deus ainda os achou infiéis em seu ambiente de trabalho e em sua atividade econômica. Eles seguiam os regulamentos da Lei, mas não seu espírito. Jeremias diz que, em última análise, isso impediu que todo o povo aproveitasse o fruto de seu trabalho na terra de Deus.

Como o povo de Judá, todos temos chances de acumular ou compartilhar os benefícios que recebemos de nosso trabalho. Algumas empresas concentram bônus e opções de ações nas mãos de altos executivos. Outros os distribuem amplamente entre todos os trabalhadores. Algumas pessoas tentam levar todo o crédito por cada realização em que participaram. Outras dão crédito aos colegas de trabalho da maneira mais liberal possível. Novamente, há considerações complexas envolvidas, e devemos evitar fazer julgamentos precipitados sobre os outros. Mas poderíamos nos fazer uma pergunta simples. A maneira como lido com dinheiro, poder, reconhecimento e outras recompensas do meu trabalho beneficia principalmente a mim ou contribui para o bem de meus colegas, minha organização e minha sociedade?

Da mesma forma, as organizações podem se inclinar para a ganância ou para o bem comum. Se uma empresa explora o poder de monopólio para extrair preços altos ou usa a fraude para vender seus produtos, está agindo com base na ganância por dinheiro. Se um governo exerce o poder para promover os interesses de si mesmo sobre seus vizinhos ou de seus líderes sobre seus cidadãos, então está agindo movido por ganância pelo poder.

Jeremias tem uma compreensão ampla do bem comum e de seu oposto, a ganância. A ganância não se restringe a ganhos que violam alguma lei em particular. Em vez disso, inclui qualquer tipo de ganho que ignore as necessidades e circunstâncias dos outros. De acordo com Jeremias, ninguém em sua época estava livre de tal ganância. Será que hoje é diferente?

Integridade

A palavra “integridade” significa viver a vida de acordo com um conjunto único e consistente de ética. Quando seguimos os mesmos preceitos éticos em casa, no trabalho, na igreja e na comunidade, temos integridade. Quando seguimos preceitos éticos diferentes em diferentes esferas da vida, falta-nos integridade.

Jeremias reclama da falta de integridade que vê no povo de Judá. Eles parecem acreditar que podem violar as normas éticas de Deus no trabalho e na vida cotidiana, e então ir ao templo, agir de forma santa e ser salvos das consequências de suas ações.

Vocês pensam que podem roubar e matar, cometer adultério e jurar falsamente, queimar incenso a Baal e seguir outros deuses que vocês não conheceram, e depois vir e permanecer perante mim neste templo, que leva o meu nome, e dizer: ‘Estamos seguros!’, seguros para continuar com todas essas práticas repugnantes? Este templo, que leva o meu nome, tornou-se para vocês um covil de ladrões? Cuidado! Eu mesmo estou vendo isso”, declara o Senhor. (Jr 7.9-11)

Jeremias os está chamando para uma vida de integridade. Caso contrário, a piedade deles não significa nada para Deus. “Expulsarei vocês da minha presença”, diz Deus (Jr 7.15). Nosso coração não está bem com Deus só porque vamos ao templo. Nosso relacionamento com ele se reflete em nossas ações, no que fazemos todos os dias, incluindo o que fazemos no trabalho.

Fé na provisão de Deus (Jeremias 8—16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Vemos em Jeremias 5 que o povo não reconhecia a provisão de Deus. Se as pessoas não reconhecessem Deus como a fonte última das coisas boas que já possuíam, será que ainda teriam fé para depender de Deus como provedor das coisas no futuro? John Cotton, teólogo puritano, diz que a fé precisa estar na base de tudo o que fazemos na vida, incluindo nosso trabalho ou vocação:

Um cristão verdadeiro e crente... vive em sua vocação por sua fé. Não apenas minha vida espiritual, mas até minha vida civil neste mundo, e toda a vida que vivo, é pela fé no Filho de Deus: Ele não isenta a vida da ação de sua fé. [1]

Aqui, novamente, estava o fracasso fundamental do povo de Judá nos dias de Jeremias: sua falta de fé. Às vezes, Jeremias expressou isso como não “conhecer” o Senhor, um termo de fidelidade. [2] Em outras ocasiões, ele colocou isso nos termos de deixar de “obedecer” — ouvir, atender e até se importar com o que Deus disse. [3] Em outras ocasiões, ele chamou isso de falta de “temor”. Mas tudo isso é simplesmente falta de fé — uma fé viva e atuante em quem Deus é e no que ele faz ou diz. Essa falta penetrou na visão das pessoas sobre o trabalho, levando-as a violar descaradamente a lei de Deus e a explorar os outros para seu próprio ganho.

A grande ironia é que, ao depender de suas próprias ações em vez de fidelidade ao Senhor em seu trabalho, as pessoas acabaram falhando em encontrar prazer, realização e o bem da vida. Jeremias escreve que Deus acabará por lidar com sua falta de fé, e “todos os sobreviventes dessa nação má preferirão a morte à vida” (Jr 8.3). As leis de Deus visam o nosso próprio bem e são dadas para nos manter focados em nosso propósito adequado. [4] Quando deixamos de lado as leis de Deus, porque elas nos impedem de cuidar de nós mesmos à nossa maneira, acabamos nos afastando do desígnio de Deus para nos tornarmos nós mesmos. Quando trabalhamos de tal maneira que somos dependentes apenas de nós mesmos — e especialmente quando violamos as leis de Deus para fazer isso —, o trabalho deixa de alcançar seu fim adequado. Negamos a presença de Deus no mundo. Achamos que sabemos melhor do que Deus como obter as coisas que queremos. Portanto, trabalhamos de acordo com nossos caminhos, não com os dele. Mas nossos caminhos não nos rendem as coisas boas que Deus pretende nos dar. À medida que experimentamos essa falta, nos envolvemos em atos cada vez mais desesperados de interesse próprio. Cortamos custos, oprimimos os outros e acumulamos o pouco que temos. Agora, não estamos apenas deixando de receber o que Deus quer nos dar, mas também de produzir algo de valor para nós mesmos ou para os outros. Se outros membros da comunidade ou da nação agirem da mesma forma, logo estaremos lutando uns contra os outros em busca de produtos cada vez menos satisfatórios de nosso trabalho. Nós nos tornamos o oposto de quem fomos projetados para ser como povo de Deus. Agora, “‘compreenda e veja como é mau e amargo abandonar o Senhor, o seu Deus, e não ter temor de mim’, diz o Soberano, o Senhor dos Exércitos” (Jr 2.19).

O tema do povo abandonando Deus, perdendo a fé em sua provisão e, como consequência, oprimindo uns aos outros, é repetido em intervalos ao longo dos capítulos 8 a 16. “Eles se recusam a reconhecer-me”, diz o Senhor (Jr 9.6). Portanto, sua prosperidade diminui. “Não se ouve o mugir do gado; tanto as aves como os animais fugiram” (Jr 9.10). Como consequência, eles tentam compensar a perda enganando uns aos outros. “Amigo engana amigo, ninguém fala a verdade... De opressão em opressão, de engano em engano” (Jr 9.5-6).

Trabalhe dentro de uma vida equilibrada (Jeremias 17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Jeremias também voltou sua atenção para o ritmo de trabalho e descanso. Como sempre, o profeta começou com a autorrevelação anterior de Deus; neste caso, o descanso sabático:

No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou. (Gn 2.2)
Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. (Êx 20.8-10)

Jeremias, no entanto, encontrou um povo que se recusava a honrar o sábado:

Assim diz o Senhor: “Por amor à vida de vocês, tenham o cuidado de não levar cargas nem de fazê-las passar pelas portas de Jerusalém no dia de sábado. Não levem carga alguma para fora de casa nem façam nenhum trabalho no sábado, mas guardem o dia de sábado como dia consagrado, como ordenei aos seus antepassados. Contudo, eles não me ouviram nem me deram atenção; foram obstinados e não quiseram ouvir nem aceitar a disciplina” (Jr 17.21-23).

No início do capítulo 17, falando por meio de Jeremias, Deus disse: “Maldito é o homem que confia nos homens, que faz da humanidade mortal a sua força, mas cujo coração se afasta do Senhor. Ele será como um arbusto no deserto; não verá quando vier algum bem. Habitará nos lugares áridos do deserto, numa terra salgada onde não vive ninguém. “Mas bendito é o homem cuja confiança está no Senhor, cuja confiança nele está. Ele será como uma árvore plantada junto às águas e que estende as suas raízes para o ribeiro. Ela não temerá quando chegar o calor, porque as suas folhas estão sempre verdes; não ficará ansiosa no ano da seca nem deixará de dar fruto” (Jr 17.5-8).

Em essência, Jeremias estava repetindo seu argumento sobre a fé na provisão de Deus, como já discutido acima, nos capítulos 8—16, tendo o sábado como um exemplo. Ao dependermos de nós mesmos em vez de sermos fiéis a Deus, passamos a acreditar que não podemos ter tempo para descansar. Há muito trabalho a fazer se quisermos ter sucesso em nossa carreira, em nossa casa e em nossos passatempos; portanto, quebramos o sábado para fazer isso. Mas, de acordo com Jeremias, se confiarmos em nós mesmos e fizermos daquilo que é “mortal” nossa força, isso nos levará ao “deserto”, à medida que nos esforçamos incansavelmente — 24 horas por dia, 7 dias por semana — para alcançar o sucesso. Nós não veremos “quando vier algum bem”. Em contraste, se confiarmos no Senhor, nunca deixaremos “de dar fruto”. Ignorar nossa necessidade de equilíbrio entre trabalho e descanso é, em última análise, contraproducente.

Abençoe a sociedade em geral por meio de seu trabalho (Jeremias 29)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Em Jeremias, capítulo 29, o profeta chama a atenção para a intenção de Deus de que o trabalho de seu povo abençoe e sirva as comunidades ao seu redor, e não apenas o povo de Israel.

Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os exilados, que deportei de Jerusalém para a Babilônia: “Construam casas e habitem nelas; plantem jardins e comam de seus frutos. Casem-se e tenham filhos e filhas; escolham mulheres para casar-se com seus filhos e deem as suas filhas em casamento, para que também tenham filhos e filhas. Multipliquem-se e não diminuam. Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei e orem ao Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela”. (Jr 29.4-7)

Esse tema já estava presente em capítulos anteriores, como na ordem de Deus para não oprimir os estrangeiros que viviam dentro das fronteiras de Judá (Jr 7.6; 22.3). E é uma parte da aliança para a qual Jeremias continua chamando Judá. “Abraão será o pai de uma nação grande e poderosa, e por meio dele todas as nações da terra serão abençoadas” (Gn 18.18). No entanto, falsos profetas no exílio garantiam aos judeus exilados que o favor de Deus sempre repousaria sobre Israel, com a exclusão de seus vizinhos. A Babilônia cairia, Jerusalém seria salva e o povo logo voltaria para casa. Jeremias tentou neutralizar essa falsa proclamação com a verdadeira palavra de Deus para eles: vocês ficarão exilados na Babilônia por setenta anos (Jr 29.10). [1]

A Babilônia seria o único lar desta geração. Deus chamou o povo para trabalhar diligentemente na terra: “construam casas... plantem jardins e comam de seus frutos”. Os judeus deveriam florescer ali como povo de Deus, embora fosse um lugar de punição e arrependimento para eles. Além disso, o sucesso dos judeus na Babilônia estava ligado ao sucesso da Babilônia: “orem ao Senhor em favor dela [da cidade], porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela” (Jr 29.7). Esse chamado à responsabilidade civil, há dois mil e seiscentos anos, é válido ainda hoje. Somos chamados a trabalhar pela prosperidade de toda a comunidade, não apenas por nossos interesses limitados. Como os judeus dos dias de Jeremias, estamos longe de ser perfeitos. Podemos até estar sofrendo por nossa falta de fé e corrupção. No entanto, somos chamados e equipados para ser uma bênção para as comunidades em que vivemos e trabalhamos.

Deus chamou seu povo para usar suas várias habilidades profissionais a fim de servir à comunidade ao redor. “Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei” (Jr 29.7). Pode-se argumentar que essa passagem não prova que Deus tem algum cuidado real com os babilônios. Ele simplesmente sabe que, como cativos, os israelitas não poderiam prosperar, a menos que seus captores também prosperassem. Mas, como vimos, o cuidado com aqueles que estão além do povo de Deus é um elemento inerente à aliança e aparece nos ensinamentos anteriores de Jeremias. Construtores de casas, jardineiros, agricultores e trabalhadores de todos os tipos foram explicitamente chamados a trabalhar pelo bem de toda a sociedade em Jeremias 29. A provisão de Deus é tão grande que, mesmo quando as casas de seu povo forem destruídas, as famílias forem deportadas, as terras forem confiscadas, os direitos forem violados e a paz for quebrada, eles terão o suficiente para prosperar e abençoar os outros. Mas somente se dependerem de Deus; daí a admoestação à oração em Jeremias 29.7. À luz de Jeremias 29, é difícil ler 1Coríntios 12—14 e as outras passagens sobre dons no Novo Testamento como aplicáveis ​​apenas à igreja ou aos cristãos. Deus chama e equipa seu povo para servir ao mundo inteiro.

A presença de Deus em todos os lugares (Jeremias 29)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Isso não deve ser surpresa, é claro, porque “do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem” (Sl 24.1). A presença de Deus não é mais encontrada apenas em Jerusalém ou Judá, mas até mesmo na capital do inimigo. Podemos ser uma bênção onde quer que estejamos, porque Deus está conosco onde quer que estejamos. Ali, no coração da Babilônia, o povo de Deus foi chamado para trabalhar como se estivesse na presença de Deus. É difícil para nós, hoje, entender como isso seria chocante para os exilados, pois até então eles pensavam que Deus estava totalmente presente apenas no templo em Jerusalém. Agora, eles foram instruídos a viver na presença de Deus sem o templo e longe de Jerusalém.

O sentimento de exílio é familiar a muitos cristãos que trabalham. Estamos acostumados a encontrar a presença de Deus na igreja, entre seus seguidores. Mas, no ambiente de trabalho, trabalhando ao lado de crentes e descrentes, podemos não esperar encontrar a presença de Deus. Isso não significa que essas instituições sejam necessariamente antiéticas ou hostis aos cristãos, mas simplesmente que têm interesses diferentes do que trabalhar na presença de Deus. Mas Deus está presente, no entanto, sempre procurando se revelar àqueles que o reconhecerão ali. Acomode-se na terra: plante jardins e coma o que eles produzirem, trabalhe e leve para casa seu salário. Deus está lá com você.[1]

Bênção para todos os povos (Jeremias 29)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Isso nos leva a uma noção expandida do bem comum. Ore pela Babilônia, porque Israel deve ser uma bênção para toda a humanidade, não apenas para si mesma: “por meio de você todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 12.3). Agora, no momento da derrota total, chega o momento em que eles são chamados a abençoar até mesmo seus inimigos. Essa bênção inclui prosperidade material, pois Jeremias 29.7 deixa isso bem claro. Quão irônico é que, nos capítulos 1 a 25, Deus reteve sua paz e prosperidade de Judá por causa de sua falta de fé; no entanto, no capítulo 29, Deus queria abençoar a Babilônia com paz e prosperidade, embora os babilônios não tivessem fé no Deus de Judá. Por quê? Porque a finalidade apropriada de Israel é ser uma bênção para todas as nações.

Isso imediatamente põe em dúvida qualquer esquema projetado para o benefício especial dos cristãos. Como parte de nosso testemunho, os cristãos são chamados a competir de forma eficaz no mercado. Não podemos administrar negócios abaixo da média, esperando que Deus nos abençoe enquanto temos um desempenho abaixo do esperado. Os cristãos precisam competir com excelência em condições de igualdade, se quisermos abençoar o mundo. Qualquer organização comercial, relação de fornecedor preferencial, preferência de contratação, vantagem fiscal ou regulatória ou outro sistema projetado para beneficiar apenas os cristãos não está abençoando a cidade. Durante a fome irlandesa, em meados do século XIX, muitas igrejas anglicanas forneciam comida apenas para aqueles que se convertessem do catolicismo romano ao protestantismo. A má vontade que isso criou ainda reverbera 150 anos depois, e isso foi apenas a atitude egoísta de uma denominação cristã contra outra. Imagine o dano muito maior causado pela discriminação dos cristãos contra os não-cristãos, que preenche as páginas da história, desde a antiguidade até os dias de hoje.

A obra dos cristãos em sua fidelidade a Deus visa o bem de todos, começando com aqueles que não são o povo de Deus e se estendendo por meio deles até o próprio povo de Deus. Este é talvez o princípio econômico mais profundo em Jeremias: trabalhar para o bem dos outros é a única maneira confiável de trabalhar para o seu próprio bem. Líderes empresariais bem-sucedidos entendem que desenvolvimento de produtos, marketing, vendas e suporte ao cliente são eficazes quando colocam o cliente em primeiro lugar. Aqui, certamente, está uma prática recomendada que pode ser reconhecida por todos os trabalhadores, sejam seguidores de Cristo ou não.

A bondade do trabalho restaurado (Jeremias 30—33)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Por vinte e três anos, Jeremias profetizou a vindoura destruição de Jerusalém (desde as palavras de Deus contra Judá, no capítulo 2, até o capítulo 28). [1] Então, nos capítulos 30 a 33, o profeta aguardava a restauração do Reino de Deus. Ele a descreveu em termos da alegria de trabalhar sem a contaminação do pecado:

Eu a edificarei mais uma vez, ó virgem, Israel! Você será reconstruída! [2] Mais uma vez você se enfeitará com guizos e sairá dançando com os que se alegram. De novo você plantará videiras nas colinas de Samaria; videiras antes profanadas pelos lavradores que as tinham plantado. Porque vai chegando o dia em que os sentinelas gritarão nas colinas de Efraim: ‘Venham e subamos a Sião, à presença do Senhor, do nosso Deus’. [3] (Jr 31.4-6)

A estrutura geral das profecias de Jeremias é pecado, depois exílio e então restauração, como vemos aqui. Enquanto a restauração em Judá ainda estava longe, [4] o profeta deu uma razão para a esperança prometida aos exilados em Jeremias 29.11. No mundo restaurado, as pessoas ainda trabalhariam, mas, embora no passado seu trabalho levasse à futilidade, agora elas aproveitariam os frutos. As pessoas restauradas teriam uma vida de trabalho, prazer, banquetes e adoração, tudo ligado em uma só coisa. A imagem de plantar, colher, tocar música, dançar e desfrutar da colheita retrata o prazer de trabalhar em fidelidade a Deus.

A fidelidade a Deus não é uma questão secundária, mas o cerne de apreciar o trabalho e as coisas produzidas por ele. A “nova aliança” descrita em Jeremias 31.31-34 e 32.37-41 repetiu a importância da fidelidade.

“Estão chegando os dias”, declara o Senhor, “quando farei uma nova aliança com a comunidade de Israel e com a comunidade de Judá. Não será como a aliança que fiz com os seus antepassados quando os tomei pela mão para tirá-los do Egito; porque quebraram a minha aliança, apesar de eu ser o Senhor deles”, diz o Senhor. “Esta é a aliança que farei com a comunidade de Israel depois daqueles dias”, declara o Senhor: “Porei a minha lei no íntimo deles e a escreverei nos seus corações. Serei o Deus deles, e eles serão o meu povo. Ninguém mais ensinará ao seu próximo nem ao seu irmão, dizendo: ‘Conheça ao Senhor’, porque todos eles me conhecerão, desde o menor até o maior”. (Jr 31.31-34)

De uma só vez, vemos um mundo restaurado: trabalho desfrutado pelo povo de Deus como sempre deveria ter sido, com corações fiéis à lei do Senhor. As pessoas serão restauradas ao que sempre deveriam ter sido, trabalhando pelo bem comum, por causa de sua experiência da presença de Deus em todos os aspectos da vida. Robert Carroll observa: “A comunidade reconstruída é aquela em que trabalho e adoração estão integrados”. [5] Podemos não esperar que isso seja totalmente verdade para nós agora, porque ainda estamos em um mundo de pecado. Mas podemos ter vislumbres dessa realidade agora.

Escravos são libertados (Jeremias 34)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Um dos novos mandamentos finais de Deus em Jeremias é a renúncia à escravidão (Jr 34.9). A Lei de Moisés exigia que os escravos hebreus fossem libertados após seis anos de serviço (Êx 21.2-4; Dt 15.12). Os adultos podiam vender a si mesmos e os pais podiam vender seus filhos à servidão por seis anos. Depois disso, eles deviam ser libertados (Lv 25.39-46). Em teoria, era um sistema mais humano do que a servidão ou a escravidão conhecida na era moderna. Mas a prática foi abusada por senhores que simplesmente ignoravam a exigência de libertar os escravos no final do período estipulado, ou que continuamente reinscreviam os escravos em uma vida de períodos consecutivos de seis anos (Jr 34.16-17).

Jeremias 34.9 é notável porque exigia a libertação imediata de todos os escravos hebreus, independentemente de quanto tempo estivessem nessa situação. E, mais dramaticamente, estabeleceu que “ninguém poderia escravizar um compatriota judeu. Assim, ... concordaram em deixá-los livres e não mais escravizá-los” (Jr 34.9-10). Em outras palavras, foi a abolição da escravidão, pelo menos no que diz respeito aos judeus que tinham escravos judeus. Não está claro se isso era para ser uma abolição permanente ou se era uma resposta às circunstâncias extremas de derrota militar e exílio iminentes. De qualquer forma, não foi aplicada por muito tempo, e os senhores logo voltaram a escravizaram seus ex-escravos. Mas é um avanço econômico de tirar o fôlego — ou teria sido, se tivesse permanecido.

Desde o início, Deus havia proibido a escravidão vitalícia e involuntária entre os judeus, mostrando que “você foi escravo no Egito e que o Senhor, o seu Deus, o redimiu” (Dt 15.15). Se Deus estendeu seu braço poderoso para libertar um povo, como ele poderia suportar que fossem escravizados novamente, mesmo que fosse por outros do mesmo povo? Mas, em Jeremias 34, Deus acrescentou um novo fator: proclamar “libertação cada um para o seu compatriota e para o seu próximo” (Jr 34.17). Ou seja, a humanidade dos escravos — chamados de “compatriota” e “próximo” — exigia que fossem libertados. Eles mereciam a liberdade porque eram — ou deveriam ter sido — membros queridos da comunidade. Isso ia além da classificação religiosa ou racial, pois pessoas de diferentes religiões e raças podiam ser amigas e vizinhas umas das outras. Não tinha nada a ver com ser descendente de uma nação em particular — Israel — que Deus libertou do Egito. Os escravos deveriam ser libertados simplesmente porque eram humanos, assim como seus senhores e as comunidades ao seu redor.

Esse princípio subjacente ainda se aplica. Os milhões de pessoas ainda escravizadas no mundo precisam urgentemente ser libertadas simplesmente por causa de sua humanidade. Além disso, todos os trabalhadores — não apenas aqueles que estão presos ao trabalho escravo — devem ser tratados como “compatriota” e “próximo”. Esse princípio se aplica fortemente às condições desumanas de trabalho, à violação dos direitos civis dos trabalhadores, à discriminação injusta, ao assédio sexual e à série de males menores, assim como se aplica à escravidão em si. Qualquer coisa a que não sujeitaríamos nosso próximo, qualquer coisa que não toleraríamos que acontecesse com nossos amigos mais chegados, também não devemos tolerar em nossas empresas, organizações, comunidades e sociedades. Na medida em que os cristãos moldam o clima em nossos ambientes de trabalho, estamos sob o mesmo mandato que o povo de Judá no tempo de Jeremias.

Tomando uma posição no trabalho (Jeremias 38)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A maior parte do restante de Jeremias descreve as provações de Jeremias como profeta (capítulos 35—45), seus oráculos contra as nações (capítulos 46—51) e a narração da queda de Jerusalém (capítulo 52). Uma passagem se destaca em relação ao trabalho: a história de Ebede-Meleque. A narrativa é simples: Jeremias pregou ao povo enquanto Jerusalém era sitiada pelo exército babilônico. Sua mensagem avisava que a cidade cairia e qualquer um que saísse e se rendesse aos babilônios viveria. Os oficiais de Judá não consideraram esse sermão propriamente motivacional. Com a permissão do rei, eles jogaram Jeremias em uma cisterna onde, presumivelmente, ele morreria de fome durante o cerco ou se afogaria durante a próxima chuva (Jr 38.1-6).

Mas Ebede-Meleque, o etíope, oficial do palácio real, ouviu que eles tinham jogado Jeremias na cisterna. Ora, o rei estava sentado junto à porta de Benjamim, e Ebede-Meleque saiu do palácio e foi dizer-lhe: “Ó rei, meu senhor, esses homens cometeram um mal em tudo o que fizeram ao profeta Jeremias. Eles o jogaram numa cisterna para que morra de fome, pois já não há mais pão na cidade”. Então o rei ordenou a Ebede-Meleque, o etíope: “Leve com você três homens sob as suas ordens e retire o profeta Jeremias da cisterna antes que ele morra” (Jr 38.7-10).

O rumo da decisão do rei provavelmente mostrou uma simples apatia quanto ao assunto (embora Deus possa usar tanto a apatia quanto a atividade de um rei). É o escravo gentio sem nome (“Ebede-Meleque” significa simplesmente “escravo do rei”) que se destaca como alguém fiel. [1] Embora seu status de imigrante e a diferença racial o tornassem um trabalhador vulnerável, sua fidelidade a Deus o levou a denunciar a injustiça em seu ambiente de trabalho. Como resultado, uma vida foi salva. Uma engrenagem anônima na roda fez uma diferença de vida ou morte.

A ação de Ebede-Meleque em favor do profeta ilustrou a mensagem de Jeremias de que a fidelidade a Deus supera todas as outras considerações no ambiente de trabalho. Ebede-Meleque não tinha como saber de antemão se o rei agiria com justiça ou, então, se sair da cadeia de comando seria uma medida que limitaria sua carreira (ou uma medida que levaria ao fim da vida, dado o que aconteceu com Jeremias). Parece que ele confiava em Deus para provê-lo, independentemente da resposta do rei. Então Ebede-Meleque é louvado por Deus. “Eu certamente o resgatarei... porque você confia em mim”, declara o Senhor” (Jr 39.18).

Jeremias, o poeta, em ação: Lamentações

Voltar ao índice Voltar ao índice

Embora não tenhamos provas internas de que as Lamentações foram escritas por Jeremias, a tradição rabínica, os temas paralelos em Jeremias e em Lamentações e o caráter de testemunha ocular dos lamentos apontam para Jeremias como o provável autor desses cinco poemas de lamento. [1] Judá e sua capital, Jerusalém, foram totalmente destruídas. Após um cerco de dois anos, os babilônios capturaram a cidade, derrubaram seus muros, saquearam e destruíram o templo de Deus e levaram os cidadãos capazes para o exílio na Babilônia. Jeremias está entre os poucos sobreviventes que restaram na terra, vivendo entre aqueles que se agarraram à vida por meio da fome e viram crianças famintas morrerem, enquanto falsos profetas continuavam a enganar o povo quanto aos propósitos de Deus. O livro de Lamentações captura a desolação da cidade e o desespero do povo, ao mesmo tempo em que ressalta o motivo dessa desolação.

Aqui vemos o poeta em ação. Em cinco poemas bem estruturados, ele usa imagens fortes da carnificina na cidade, enquanto Deus permite a punição de seu povo por seus pecados cruéis. Mas, apesar da profundidade emocional de sua dor, o artista captura a devastação de uma forma poética e controlada. Isso é arte a serviço da liberação emocional. Embora uma discussão sobre “trabalho” não inclua frequentemente o trabalho de artistas, esses poemas nos forçam a reconhecer o poder da arte de retratar os altos e baixos da experiência humana.

O artista incorpora uma nota de esperança nesse desespero, ancorando o futuro na bondade de Deus:

Todavia, lembro-me também do que pode me dar esperança: Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis. Renovam-se cada manhã; grande é a sua fidelidade! Digo a mim mesmo: A minha porção é o Senhor; portanto, nele porei a minha esperança. O Senhor é bom para com aqueles cuja esperança está nele, para com aqueles que o buscam (Lm 3.21-25).
Porque o Senhor não o desprezará para sempre. Embora ele traga tristeza, mostrará compaixão, tão grande é o seu amor infalível. Porque não é do seu agrado trazer aflição e tristeza aos filhos dos homens (Lm 3.31-33).
Como pode um homem reclamar quando é punido por seus pecados? Examinemos e coloquemos à prova os nossos caminhos e depois voltemos ao Senhor. Levantemos o coração e as mãos para Deus, que está nos céus (Lm 3.39-41).

Na destruição de Jerusalém, os inocentes sofreram junto com os culpados. Crianças famintas e profetas fiéis como Jeremias suportaram a mesma miséria imposta àqueles cujos pecados deram fim à cidade. Essa é a realidade da vida em um mundo caído. Quando corporações entram em colapso sob o peso de más decisões, negligência grosseira ou práticas totalmente ilegais, pessoas inocentes perdem seus empregos e pensões, juntamente com aqueles que causaram o desastre. Ao mesmo tempo, para o cristão no ambiente de trabalho, as desigualdades nesta vida não são eternas. Deus reina e sua compaixão nunca falha (Salmo 136). Não é fácil se apegar a essa realidade divina em meio a sistemas pecaminosos e líderes sem princípios. Mas Lamentações nos diz: “O Senhor não o desprezará para sempre”. Andamos pela fé no Deus vivo, cuja fidelidade a nós não falhará.

Ezequiel e o trabalho

Voltar ao índice Voltar ao índice

“Suponhamos que haja um justo que faz o que é certo e direito... com certeza ele viverá. Palavra do Soberano, o Senhor”. (Ezequiel 18.5-9)

Introdução a Ezequiel

Voltar ao índice Voltar ao índice

Viver com Deus não é apenas uma questão de adoração e devoção pessoal. Viver com Deus também é uma questão de viver uma vida de retidão, seja no mercado de trabalho, em casa, na igreja ou na sociedade. Isso não contradiz o ensino de que a salvação vem apenas pela graça, por meio da fé em Jesus Cristo (Rm 5.1), mas aponta que a vida com Deus começa com a fé em Cristo, mas é completada em uma vida justa em todas as esferas da vida.

O livro de Ezequiel fornece um relato convincente de como o povo judeu sofre uma vida severamente subjugada, com privação e opressão — e até morte — depois de ser conquistado e feito cativo pelo império da Babilônia. Quando eles questionam por que Deus permitiu que eles sofressem dessa maneira, Ezequiel dá a resposta de Deus: por causa de seu modo de vida injusto (Ez 18.1-17). Os caminhos injustos de Israel abrangiam todas as esferas da vida: casamento e sexualidade, adoração e idolatria, comércio e governo. Nosso foco está nas práticas no ambiente de trabalho, e Ezequiel tem muito a dizer sobre o ambiente de trabalho. Suas palavras abordam finanças e dívidas, desenvolvimento econômico, honestidade, alocação de capital, avaliações no ambiente de trabalho, retorno justo sobre o investimento, oportunismo econômico, sucesso e fracasso, denúncia de irregularidades, trabalho em equipe, remuneração de executivos e governança corporativa. Além disso, o dramático chamado de Ezequiel para se tornar profeta nos dá um exemplo de como Deus chama alguém para um tipo específico de trabalho.

O chamado de Ezequiel para ser profeta (Ezequiel 1—17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Comecemos, como faz o livro de Ezequiel, com o chamado de Deus a Ezequiel para se tornar um profeta. Quando encontramos Ezequiel, vemos que ele é descendente de Levi, filho de Jacó, e sacerdote por profissão (Ez 1.3). Como tal, seu trabalho diário antes consistia em abater, destrinchar e assar os animais recebidos para o sacrifício pelos adoradores no templo em Jerusalém. Como sacerdote, ele também serviu como guia moral e espiritual para o povo, ensinando-lhes a lei de Deus e julgando disputas (Lv 10.11; Dt 17.8-10; 33.10).

No entanto, seu sacerdócio foi violentamente interrompido quando ele foi levado como cativo para a Babilônia, na primeira deportação de judeus de Jerusalém, em 605 a.C. Na Babilônia, a comunidade judaica no exílio estava preocupada com duas perguntas: “Deus foi injusto conosco?” e “O que fizemos para merecer isso?” A desolação desses judeus exilados é bem captada em Salmos 137.1-4: “Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião. Ali, nos salgueiros, penduramos as nossas harpas; ali os nossos captores pediam-nos canções, os nossos opressores exigiam canções alegres, dizendo: ‘Cantem para nós uma das canções de Sião!’ Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira?”

No exílio na Babilônia, Ezequiel recebe um chamado dramático de Deus. Como o chamado de Isaías (Is 6.1-8), o de Ezequiel começa com uma visão de Deus (Ez 1.4—2.8) e conclui com a ordem de Deus para se tornar um profeta. Chamados diretos para um tipo específico de trabalho são raros na Bíblia, e o de Ezequiel é um dos mais dramáticos. Embora a profissão original de Ezequiel fosse o sacerdócio, Deus o chamou para uma carreira profética que era principalmente política, não religiosa. É apropriado que a visão em que ele recebeu seu chamado inclua símbolos políticos, como rodas de carruagem (Ez 1.16), um exército (Ez 1.24), um trono (Ez 1.26) e uma sentinela (Ez 3.16), mas não símbolos religiosos. O chamado de Ezequiel deve dissipar qualquer noção de que os chamados de Deus geralmente são chamados para se afastar de profissões seculares e assumir o ministério da igreja. [1]

A carreira profética de Ezequiel começa no exílio na Babilônia, onze anos antes da destruição final de Jerusalém. A primeira incumbência que Deus lhe dá é refutar as promessas vazias dos falsos profetas, os quais asseguravam aos exilados que a Babilônia seria derrotada e que eles logo voltariam para casa. Nos capítulos iniciais do livro, Ezequiel tem uma série de visões que descrevem os horrores do cerco de Jerusalém e, em seguida, a matança na tomada da cidade.

A responsabilidade de Israel por sua situação (Ezequiel 18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A pergunta dos judeus exilados: “O que fizemos para merecer isso?” surge da crença equivocada de que eles estavam sendo punidos pelas ações de seus ancestrais, e não pelas próprias. Vemos isso no falso provérbio que eles citam: “Os pais comem uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotam” (Ez 18.2). Deus rejeita essa acusação. A questão em jogo é a recusa dos exilados em assumir a responsabilidade por sua situação, culpando os pecados das gerações anteriores. [1] Deus deixa claro, no entanto, que cada indivíduo será avaliado de acordo com suas próprias ações, sejam elas justas ou iníquas. A metáfora que envolve um homem justo (Ez 18.5-9), seu filho pecador (Ez 18.10-13) e seu neto justo (Ez 18.14-17) ilustra que as pessoas não são responsabilizadas pela moralidade de seus ancestrais. Deus responsabiliza cada “alma” individual. [2] No entanto, os estudiosos estão certos em observar que Ezequiel ainda tem um foco comunitário. [3]

A justiça é exigida individualmente, mas a restauração de Deus não ocorrerá até que toda a nação de indivíduos adote uma vida justa. Dessa forma, Deus exigia dos exilados como um todo uma vida justa e responsabilização, independentemente das gerações anteriores.

Ezequiel 18.5-9 observa uma série de ações cultuais e morais, tanto justas quanto iníquas. Essas ações se tornam os princípios pelos quais se diz que uma pessoa “vive” ou “morre”. Quatro dessas ações estão relacionadas ao trabalho: restaurar a promessa de um devedor, prover aos pobres, não cobrar juros excessivos e trabalhar com justiça. O fracasso em manter padrões justos e retos — ou, pior ainda, derramar o sangue de outra pessoa indiscriminadamente — incorrerá na “pena de morte” (Ez 18.13).

Ezequiel 18.5,7 — O justo não oprime, mas devolve ao devedor o que foi dado como garantia

Voltar ao índice Voltar ao índice

Esse princípio combina o pecado geral da opressão (hebr. daka) com o pecado específico de não devolver algo tomado como garantia (ăbōl) em um empréstimo. Para entender e aplicar esse princípio, começamos com uma visão da lei israelita sobre empréstimos, resumida no Dicionário Bíblico Anchor Yale desta forma:

A necessidade de empréstimos é reconhecida abertamente na Bíblia Hebraica, onde é feita uma tentativa de impedir a prática de cobrar juros dos devedores. Os juros de empréstimos no Antigo Oriente Próximo poderiam ser exorbitantes pelos padrões modernos (e poderiam ser cobrados antecipadamente, a partir do início do empréstimo). A tentativa de convencer os credores a renunciar ao lucro potencial baseava-se no cuidado com a comunidade, que Deus havia libertado da escravidão. Um irmão poderia ficar pobre e precisar de um empréstimo, mas os juros não deveriam ser cobrados, em nome do mesmo Senhor “que os tirou da terra do Egito” (Lv 25.35-38). O desejo por juros é visto como o perigo de Israel trocar uma forma de escravidão por outra — econômica — forma de opressão. É notável que todo o Levítico 25 diz respeito precisamente à questão de manter a integridade do que Deus havia redimido, em relação à libertação que ocorreria durante os anos do sábado e do jubileu (Lv 25.1-34), em relação a empréstimos (Lv 25.35-38) e em relação ao serviço contratado (Lv 25.39-55). O direito de um credor de receber uma garantia ao conceder empréstimo é implicitamente reconhecido dentro do requisito primitivo de não esperar juros, e liberdades abusivas com garantias recebidas são proibidas (cf. Êx 22.25-27; Dt 24.10-13). Mas certas garantias, tratadas corretamente, podem render seus próprios lucros, e os estrangeiros, em qualquer caso, podem pagar juros (cf. Dt 23.19-20); mesmo com uma interpretação estrita da Torá, um credor pode ganhar a vida. [1]

De acordo com a Lei mosaica, geralmente não era legal que um credor tomasse posse permanente de um bem dado como garantia de um empréstimo. As leis bancárias modernas geralmente permitem que os credores retenham (como em casas de penhores) ou recuperem (como em empréstimos para automóveis e hipotecas residenciais) itens dados em garantia. Se todo o sistema de fiança moderno é antibíblico, isso está além do escopo deste artigo. [2]

As leis modernas também estabelecem limites ou regulam o processo pelo qual um credor pode tomar posse da garantia. Em geral, é ilegal, por exemplo, que um credor ocupe uma casa hipotecada e force o devedor a sair enquanto o devedor estiver sob proteção judicial durante o processo de falência. Para um credor, fazer isso de qualquer maneira seria uma forma de opressão. Isso só poderia ocorrer se o credor tivesse o poder e a impunidade de operar fora da lei.

Em certo sentido, em Ezequiel 18.7, Deus está dizendo: “Não quebre a lei em busca do que pode parecer seu por direito, mesmo que você tenha o poder de se safar”. Nas práticas comerciais da vida real, a maioria dos credores (sem considerar os agiotas) não recupera garantias agindo à força e fora da lei. Então, talvez Ezequiel 18.7 não tem nada de desafiador para os leitores modernos quanto a empreendimentos legítimos.

Mas vamos com calma. Na base de toda a lei do Antigo Testamento sobre empréstimos está a presunção de que os empréstimos são feitos principalmente para o bem de quem pede o empréstimo, não do credor. A razão pela qual você empresta dinheiro a alguém tomando como garantia a capa deste, mesmo que possa ficar com a capa apenas até o pôr do sol, é que você tem dinheiro disponível e o devedor está passando por necessidades. Como credor, você tem o direito de ter a garantia de que receberá seu dinheiro de volta, mas somente se isso tiver beneficiado o mutuário o suficiente para que ele possa pagá-lo de volta. Você não deve fazer um empréstimo sabendo que é improvável que o mutuário consiga pagar, porque você não pode manter a garantia indefinidamente.

Isso tem aplicações óbvias na crise das hipotecas de 2008-2009. Os credores de crédito hipotecário fizeram empréstimos habitacionais sabendo que milhões de tomadores provavelmente não pagariam. Para recuperar seu investimento, os credores confiaram no aumento dos preços das casas, além de sua capacidade de forçar uma venda ou retomar a propriedade, na probabilidade de o mutuário se tornar inadimplente. Os empréstimos foram feitos sem levar em conta o benefício do mutuário, desde que beneficiassem os credores. Essa, pelo menos, era a intenção. Na realidade, o súbito aparecimento de centenas de milhares de propriedades hipotecadas no mercado derrubou os valores das propriedades de tal maneira, que os credores perderam dinheiro, mesmo depois de retomar a posse das propriedades. A declaração de Deus, por volta de 580 a.C., de que “ele será responsável por sua própria morte” (Ez 18.13; ou “o seu sangue será sobre ele”, ARC) acabou sendo verdadeira para o sistema bancário, por volta de 2000 d.C.

A denúncia de Deus sobre arranjos que não trazem nenhum benefício para os compradores não precisa se limitar a obrigações de dívida securitizada. Ezequiel 18.7 trata de empréstimos, mas o mesmo princípio se aplica a produtos de todos os tipos. Reter informações sobre falhas e riscos do produto, vender produtos mais caros do que o comprador precisa, não relacionar os benefícios do produto com as necessidades do comprador — todas essas práticas são semelhantes à opressão descrita em Ezequiel 18.7. Eles podem se infiltrar até em empresas bem-intencionadas, a menos que o vendedor faça do bem-estar do comprador uma meta inviolável da transação de venda. Cuidar do comprador é “viver”, na terminologia de Ezequiel.

Ezequiel 18.7b — O justo não furta, mas alimenta o faminto e veste o nu

Voltar ao índice Voltar ao índice

Isso pode parecer uma combinação estranha. Quem poderia argumentar contra a proibição do roubo? Mas como o roubo está ligado à obrigação de dar comida aos famintos e de fornecer roupas aos que estão nus? Assim como em Ezequiel 18.7a, a conexão é o requisito de se preocupar com o bem-estar econômico do outro. Nesse caso, entretanto, o “outro” não é a contraparte de uma transação comercial, mas simplesmente outra pessoa encontrada no curso da vida cotidiana. Se você conhece pessoas que possuem algo de que elas precisam e que você também deseja, isso não lhe dá permissão para roubar aquilo delas. Se você conhece pessoas que carecem de algo de que precisam e que você possui em excesso, é obrigado a dar a elas, ou pelo menos atender a necessidades tão básicas quanto comida e roupas.

Por trás dessa admoestação um tanto dissonante está a lei econômica de Deus: somos administradores, não proprietários, de tudo o que temos. Devemos ver a riqueza como um bem comum, porque tudo o que temos é um dom de Deus, com o propósito de que não haja pobres entre nós (Dt 6.10-15; 15.1-18). Isso fica claro nas leis que exigem o cancelamento de dívidas a cada sete anos e a redistribuição da riqueza acumulada no ano do jubileu (Levítico 25). Uma vez a cada cinquenta anos, o povo de Deus deveria reequilibrar a riqueza da terra como remédio para os males endêmicos da sociedade humana. Nos anos seguintes, eles deveriam viver como administradores de tudo o que possuíam:

  • “Não explorem um ao outro, mas temam o Deus de vocês. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. Pratiquem os meus decretos e obedeçam às minhas ordenanças, e vocês viverão com segurança na terra” (Lv 25.17-18).

  • “A terra não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês são apenas estrangeiros e imigrantes” (Lv 25.23).

  • “Se alguém do seu povo empobrecer e não puder sustentar-se, ajudem-no como se faz ao estrangeiro e ao residente temporário, para que possa continuar a viver entre vocês. Não cobrem dele juro algum, mas temam o seu Deus, para que o seu próximo continue a viver entre vocês. Vocês não poderão exigir dele juros nem emprestar-lhe mantimento visando a algum lucro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês, que os tirou da terra do Egito para dar a vocês a terra de Canaã e para ser o seu Deus” (Lv 25.35-38).

O decreto de Ezequiel em Ezequiel 18.7b não está diretamente relacionado à teologia do trabalho, porque tem pouco a ver com a produção real de coisas de valor. Em vez disso, é parte da teologia da riqueza, da administração e disposição das coisas de valor. Mas pode haver uma conexão. E se você trabalhasse com o propósito de atender às necessidades de outra pessoa, e não às suas próprias? Embora isso impeça o roubo, também o motivaria a trabalhar de forma a fornecer comida, roupas e outras necessidades para pessoas necessitadas. Um exemplo seria uma empresa farmacêutica que colocasse uma política de uso compassivo no planejamento de um novo medicamento. O mesmo aconteceria com uma empresa de varejo que faz da acessibilidade um elemento-chave de seu modelo de negócios. Por outro lado, esse princípio parece descartar um negócio que só pode ter sucesso cobrando preços altos por produtos que não atendem a necessidades reais, como uma empresa farmacêutica que produz reformulações triviais para estender os prazos de suas patentes.

Ezequiel 18.8a - O justo não recebe adiantamentos nem juros acumulados

Voltar ao índice Voltar ao índice

Estudiosos da Bíblia dedicaram muito tempo a pesquisar e especular sobre se a cobrança de juros é absolutamente proibida pela lei do Antigo Testamento. A tradução mais natural de Ezequiel 18.8a pode ser: “Ele não empresta dinheiro com juros, nem recebe demais”. Até bem depois da Reforma, os cristãos universalmente entendiam que a Bíblia proibia a cobrança de juros sobre empréstimos. É claro que isso prejudicaria severamente o emprego produtivo do capital, tanto nos tempos modernos quanto nos antigos, e os intérpretes contemporâneos parecem dispostos a suavizar a proibição de juros excessivos. Para justificar esse abrandamento ainda maior, alguns argumentaram que os descontos de originação (o que agora chamamos de “zero-coupon bonds”) eram permitidos no antigo Israel e que apenas juros adicionais eram proibidos, mesmo que o empréstimo não fosse pago em tempo hábil. [1] Assim como no tópico sobre garantia, acima, está além do escopo deste artigo avaliar a legitimidade de todo o sistema moderno de juros. [2] Em vez disso, analisemos o resultado em ambos os casos.

Se a interpretação mais estrita for válida, as pessoas com dinheiro enfrentarão a escolha de emprestar ou não dinheiro. Se elas não têm permissão para cobrar juros e nem mesmo para recuperar a garantia, então elas podem preferir não emprestar a ninguém. Mas essa resposta é proibida por Deus: “Tenham mão aberta e emprestem-lhe liberalmente o que ele precisar” (Dt 15.8). Jesus repete e até expande esse mandamento em Lucas 6.35: “Amem os seus inimigos, façam-lhes o bem e emprestem a eles, sem esperar receber nada de volta”. O empréstimo é principalmente para o benefício de quem toma emprestado, não do credor. O medo do credor de que não possa ser reembolsado deve ser uma preocupação menor. O credor em potencial tem o capital, e o mutuário em potencial precisa dele.

Por outro lado, se aceitarmos que o sistema moderno de juros é legítimo, esse princípio ainda se aplica. O capital deve ser investido de forma produtiva; ele não pode ser acumulado por causa do medo. Este é o significado literal da parábola dos talentos contada por Jesus (Mt 25.14-30). Deus prometeu a Israel, seu bem precioso, que proverá suas necessidades. Se os indivíduos se encontrarem com capital de sobra, devem isso ao Deus da provisão, a fim de empregá-lo — seja por investimento justo ou por doação — para a provisão dos necessitados. O desenvolvimento econômico não é proibido — muito pelo contrário, é necessário. Mas deve ser um benefício produtivo para aqueles que precisam de capital, e não apenas para o interesse próprio daqueles que possuem capital.

Ezequiel 18.8b - O justo não comete injustiça, mas julga com justiça entre as partes

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como ele fez no início do livro, aqui Ezequiel apresenta a seus leitores uma regra geral (não fazer o que é errado) ligada a uma regra específica (julgar com justiça entre indivíduos). Mais uma vez, o princípio unificador é que a pessoa com mais poder deve se preocupar com a necessidade da pessoa com menos poder. Nesse caso, o poder envolvido é o poder de julgar entre as pessoas. Todos os dias, a maioria de nós enfrenta momentos em que temos o poder de julgar entre uma pessoa e outra. Pode ser tão simples quanto decidir quem tem voz na escolha de onde almoçar. Pode ser tão grande quanto decidir em quem acreditar em uma acusação de conduta imprópria. Raramente percebemos que, cada vez que tomamos uma decisão como essa, exercemos o poder de julgar.

Muitos problemas sérios no trabalho surgem porque as pessoas sentem que são constantemente julgadas como menos importantes do que os outros ao seu redor. Isso pode resultar de julgamentos formais ou oficiais, como avaliações de desempenho, decisões de projetos, prêmios para funcionários ou promoções. Ou pode resultar de julgamentos informais, como quem presta atenção às ideias delas ou com que frequência elas são alvo de piadas. Em ambos os casos, o povo de Deus tem a obrigação de estar ciente desses tipos de julgamento e de ser justo na forma como participa deles. Pode ser interessante manter um registro de quantos julgamentos (grandes ou pequenos) participamos durante um único dia e, em seguida, perguntar como a pessoa justa em Ezequiel 18.8b agiria em cada um.

Ezequiel 18 é mais do que um conjunto de regras para viver no exílio; é uma resposta ao desespero que os exilados sentem, expresso no provérbio de Ezequiel 18.2: “Os pais comem uvas verdes e os dentes dos filhos se embotam”. [1] O argumento do capítulo 18 refuta o provérbio, mas não faz isso eliminando completamente a retribuição transgeracional. Em vez disso, a lição da responsabilidade moral pessoal responde ao desespero do exílio (ver Salmos 137) e a questões de teodiceia vistas no refrão: “O caminho do Senhor não é justo” (Ez 18.25,29). Em resposta à pergunta dos exilados — “Se somos povo de Deus, por que estamos no exílio?”; “Por que estamos sofrendo?”; “Deus se importa?” —, o Senhor não contesta com uma resposta, mas com um chamado para viver de forma justa.

No tempo entre a transgressão passada e a restauração futura, entre a promessa e o cumprimento, entre a pergunta e a resposta, os exilados devem viver com justiça. [2] É aqui que o significado, o propósito e a recompensa final podem ser encontrados. Deus não está simplesmente repetindo leis de bom e mau comportamento para os indivíduos seguirem. Em vez disso, ele está clamando por uma vida nacional de justiça, quando Israel finalmente será “meu povo” (Ez 11.20; 14.11; 36.28; 37.23,27). [3]

As marcas da justiça em Ezequiel 18 fornecem uma amostra representativa da vida na nova aliança, quando a comunidade é caracterizada pela ética “legal” (Ez18.5,19,21,27). O leitor é desafiado a viver a vida da nova aliança agora, como um meio de garantir esperança para o futuro. Em nossos dias, os cristãos são membros da nova aliança com o mesmo chamado em Mateus 5.17-20; 22.37-40. Dessa forma, Ezequiel 18 é surpreendentemente instrutivo e aplicável a nossa própria vida no ambiente de trabalho, não importa o local. [4] Viver essa retidão pessoal em nossas atividades profissionais acrescenta vida e significado às nossas circunstâncias atuais, porque pressupõe um amanhã melhor, introduz o futuro Reino de Deus no presente e fornece um vislumbre do que Deus espera de seu povo como inteiro. Deus recompensa tal comportamento, cujo tipo só é possível por meio de novos corações e espíritos (Ez 18.31-32; 2Co 3.2-6).

O colapso sistêmico de Israel (Ezequiel 22)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Se os judeus exilados na Babilônia perderam o exemplo positivo do capítulo 18, Ezequiel 22 dá a eles uma imagem explícita de onde a nação se afastou dos caminhos estabelecidos por Deus. Jerusalém é o cenário em que o profeta olha para os fatores políticos, econômicos e religiosos que levaram à sua destruição final. De acordo com Robert Linthicum, o propósito do sistema político é estabelecer uma política de justiça e obediência a Deus (Dt 16.18-20; 17.8-18). O sistema econômico é chamado a manter uma economia de administração e generosidade (Dt 6.10-15; 15.1-18). O religioso é o principal responsável por trazer as pessoas a um relacionamento com Deus e fundamentar os sistemas político e econômico em Deus (Dt 10.12; 11.28). A religião fornece as cercas para a comunidade e dá sentido à vida. O sistema político fornece o processo e o sistema econômico apoia a comunidade. Quando o sistema religioso fica fora de ordem, todo o resto fica em aberto. [1] De acordo com a lei de Deus, a disparidade entre ricos e pobres (riqueza e pobreza) é um indicador direto da distância que uma nação ou comunidade está de Deus.

Em Ezequiel 22, o profeta agora mostra aos judeus exilados por que o julgamento de Deus sobre sua nação deve vir: dos príncipes aos sacerdotes, passando pelos falsos profetas e todo o povo da terra, “vocês todos se tornaram escória” (Ez 22.19). A paciência de Deus chegou ao fim e o salário de toda forma de pecado “profissional” trará morte e destruição aos que o cometeram. O que está incluído neste catálogo de pecados? Usar o poder para derramar sangue (Ez 22.6); tratar os pais com desprezo, oprimir o estrangeiro e maltratar os órfãos e as viúvas (Ez 22.7); caluniar com o objetivo de derramar sangue (Ez 22.9); praticar pecados sexuais e assédio (Ez 22.11); cobrar juros e lucrar com os pobres, extorquindo lucro injusto (Ez 22.12); conspirar para devastar o povo, tomando tesouros e muitas coisas preciosas e fazendo muitos viúvas no processo (Ez 22.25); fazer violência à lei, profanando coisas sagradas, ensinando o erro e fechando os olhos para os sábados de Deus (Ez 22.8,26); oficiais como lobos que destroem sua presa por lucro injusto (Ez 22.27); profetas que encobrem essas ações com falsas visões e adivinhações mentirosas (Ez 22.28); e o povo da terra praticando extorsão e roubo, oprimindo o pobre e o necessitado, maltratando os estrangeiros e negando-lhes a justiça (Ez 22.29).

No final, Deus procurou apenas uma pessoa justa que ficaria na brecha, mas não havia ninguém. É esse total desrespeito aos relacionamentos justos que traz a ira e o castigo de Deus. O capítulo termina (Ez 22.31) com Deus removendo sua mão protetora do povo, enquanto eles se autodestroem. Como Deus traz juízo? Ele permite que os sistemas sigam seu curso natural sem intervir. A espiral descendente termina em destruição. Uma teologia do trabalho deve estabelecer as práticas honestas e misericordiosas que o povo de Deus deve seguir (capítulo 18). Desconsiderar isso é flertar com o desastre.

De onde vem o sucesso? (Ezequiel 26—28)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os oráculos contra Tiro em Ezequiel 26—28 dão mais um exemplo de viver de forma injusta. O povo de Tiro se regozija com a destruição de Jerusalém, antecipando o lucro que teriam com a ausência de um concorrente comercial (Ez 26.2). Deus promete que serão punidos e humilhados (Ez 26.7-21) por não ajudarem Judá em tempos de necessidade. “Tiro pode ser considerado como uma representação da busca — por meio da riqueza, da proeminência política e até da cultura — de uma segurança e autonomia que contradizem a natureza da realidade criada.” [1] Na realidade, nenhuma pessoa ou nação pode realmente garantir sua própria segurança e prosperidade. No entanto, Tiro se orgulha de seu sucesso comercial, perfeição e abundância (Ez 27.2-4). Essa potência marítima se tornou assim por fazer comércio com (ou tirar proveito de) uma infinidade de povos em todo o mundo mediterrâneo (Ez 27.5-25), apenas para afundar sob o peso de sua vasta carga. O excesso de confiança e as relações egoístas de Tiro terminam com um naufrágio que atrai o lamento dos mercadores das nações (Ez 27.26-36). Deus chama Tiro para prestar contas de sua arrogância e desejo material, culminando com um poema contra o rei de Tiro, no capítulo 28. O rei credita seu próprio status divino por ter a engenhosidade e a sabedoria para obter grande destaque e realizações materiais.

As lições dos capítulos 26 a 28 para trabalhar no mundo são significativas. Deus nos proíbe de imaginar que somos a principal fonte de sucesso no trabalho. Embora nosso trabalho árduo, habilidade, perseverança e outras virtudes contribuam para o sucesso no trabalho, eles não o causam. Subjacente mesmo à pessoa que se fez por si mesma mais bem-sucedida está um universo de oportunidades, circunstâncias fortuitas, o trabalho dos outros e o fato de que nossa própria existência vem de fora de nós mesmos.

Atribuir o sucesso apenas a nós mesmos leva a uma arrogância que rompe nosso relacionamento com Deus. Em vez de agradecer a Deus por nosso sucesso e confiar que ele continuará a nos prover, pensamos que fomos bem-sucedidos por nossos próprios méritos. Mas não temos o poder de controlar todas as circunstâncias, possibilidades, pessoas e acontecimentos dos quais nosso sucesso depende. Ao atribuir nosso sucesso a nós mesmos, nos forçamos a tentar controlar fatores incontroláveis, o que cria uma forte pressão para colocar a situação a nosso favor. Embora possamos ter sido bem-sucedidos no passado por meio de negócios honestos e legítimos, agora podemos tentar melhorar as chances ocultando a verdade a nosso favor, manipulando os lances nos bastidores, manipulando os outros para que façam nossa vontade ou comprando favores dos outros com alguns subornos bem aplicados. Mesmo que consigamos permanecer do lado certo da lei, podemos nos tornar implacáveis ​​e nos encher de “violência” (Ez 28.16) em nossa busca pelo comércio.

Os verdadeiramente sábios se comportam com retidão e, em seus pensamentos, não usurpam o lugar de Deus enquanto esperam que Deus cumpra suas promessas. Eles permanecem fiéis à sua aliança com Deus, que recompensará a vida fiel com os benefícios apropriados para cumprir a aliança (veja a esperança para Israel em Ezequiel 28.22-26). Deus finalmente separará os justos e os ímpios (Ez 34.17-22; cf. Mt 25.31-46). Isso dá grande esperança aos “exilados” que aguardam a consumação do Reino de Deus, quer vivam no mundo antigo ou no mundo moderno, especialmente quando fazem perguntas sobre justiça e desespero. [2]

O chamado para alertar os outros (Ezequiel 33)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os capítulos 18 e 33 de Ezequiel servem a funções temáticas e estruturais semelhantes no livro como um todo. [1] O chamado à justiça pessoal a fim de “viver” e o chamado ao arrependimento em meio a questões sobre a justiça de Deus, apresentadas pela primeira vez no capítulo 18, são revistas no capítulo 33 de maneira quase literal. [2] No entanto, o capítulo 33 introduz outra ideia não encontrada no capítulo 18: em Ezequiel 33.1-9, Deus revê o chamado de Ezequiel para ser uma sentinela ou atalaia para a nação, conforme estabelecido pela primeira vez no capítulo 3. [3] Como uma sentinela no portão da cidade, responsável por alertar os habitantes da cidade sobre a ameaça do inimigo, Ezequiel é pessoalmente responsável por proclamar o juízo iminente de Deus e encorajar o arrependimento, a fim de se livrar da culpa:

Filho do homem, eu fiz de você uma sentinela para a nação de Israel; por isso, ouça a minha palavra e advirta-os em meu nome. Quando eu disser ao ímpio que é certo que ele morrerá e você não falar para dissuadi-lo de seus caminhos, aquele ímpio morrerá por sua iniquidade, mas eu considerarei você responsável pela morte dele. Entretanto, se você de fato advertir o ímpio para que se desvie dos seus caminhos e ele não se desviar, ele morrerá por sua iniquidade, e você estará livre da sua responsabilidade (Ez 33.7-9).

Este é um acréscimo importante ao chamado à justiça introduzido em Ezequiel 18 e lembrado no capítulo 33, às vésperas da destruição de Jerusalém (Ez 33.21-22). Deus exige que a sentinela desempenhe um papel importante no apelo à justiça individual e coletiva, assumindo a responsabilidade pessoal e a propriedade do arrependimento dos exilados.

Devemos nos identificar não apenas com o público de Ezequiel (Ez 18), mas também com o próprio Ezequiel. Aceitamos a tarefa dada por Deus de chamar outros a viver com justiça e retornar a um relacionamento correto com Deus. No Antigo Testamento, alguns indivíduos foram chamados para ser profetas com o mandato de levar a palavra de Deus ao seu povo. Mas, como membros da nova aliança, todos os cristãos são chamados para o trabalho profético. O profeta Joel previu isso quando falou a palavra de Deus da seguinte forma: “Derramarei do meu Espírito sobre todos os povos. Os seus filhos e as suas filhas profetizarão, os velhos terão sonhos, os jovens terão visões” (Jl 2.28). O apóstolo Pedro anunciou isso como uma realidade presente no dia de Pentecoste (At 2.33). [4]

A responsabilidade profética de todos os cristãos produz várias lições para uma teologia do trabalho e influencia nosso testemunho no ambiente de trabalho. Deus chama cada um de nós a assumir responsabilidade pessoal pelo destino dos outros. Devemos ser sentinelas por direito próprio, pois nos responsabilizamos pelas pessoas ao nosso redor. Não apenas a vida delas está em jogo; a nossas também (Ez 33.9).

Isso não nos ocorre naturalmente, em uma época e cultura que valorizam o individualismo. Mas Deus realmente nos responsabilizará pela vida justa dos outros. Em termos de ambiente de trabalho, isso significa que os cristãos têm a responsabilidade pessoal de trabalhar pela justiça em seus ambientes de trabalho. Isso levanta algumas perguntas que podemos fazer a nós mesmos sobre essa responsabilidade. Por exemplo:

  • Estamos falando as palavras de Deus às pessoas com quem trabalhamos? Os cristãos, em todos os ambientes de trabalho, observam — e se sentem pressionados a participar — de coisas que sabemos que não são compatíveis com a Palavra de Deus. Colocamos a verdade de Deus acima do aparente conforto de se sentir parte do grupo? Não se trata de um apelo para fazer julgamentos agudos no trabalho, mas pode significar defender a pessoa que está sendo usada como bode expiatório pelo fracasso do departamento ou ser a primeira a votar a favor do abandono de uma campanha publicitária enganosa. Pode significar admitir seu próprio papel na perpetuação de um conflito no escritório ou expressar a confiança de que escrever uma avaliação de desempenho honesta valerá a pena a dor que parece incorrer. Essas são maneiras de falar as palavras de Deus aos outros no trabalho.

  • Nossa vida é uma ilustração da mensagem de Deus? Nós nos comunicamos não apenas em palavras, mas em ações. Ao longo de seu ministério, Ezequiel foi literalmente uma ilustração visual e ambulante das promessas e dos juízos de Deus. Uma CFO do Vale do Silício foi convidada por seu CEO a “encontrar” US$ 2 milhões de lucro adicional para adicionar ao relatório trimestral que deveria ser entregue em uma semana. A CFO sabia que seria necessário categorizar incorretamente certas despesas como investimentos, e certos investimentos, como receitas. Durante a semana, ela tinha sua reunião mensal com outros CFOs cristãos. Eles deram a ela a coragem de enfrentar seu CEO. No dia em que o relatório deveria ser entregue, ela disse ao CEO: “Aqui está o relatório com os US$ 2 milhões adicionais de lucro, conforme solicitado. Pode até ser legal, mas não reflete exatamente a realidade. Não posso assiná-lo, então sei que você terá de me demitir.” A resposta de seu CEO? “Se você não assinar, eu também não assinarei. Conto com você para saber o que está fazendo. Traga-me o relatório original e exato e nós o emitiremos e tomaremos nossas providências por não ter atingido a lucratividade prevista.” [5] Em suas palavras e ações, essa CFO ilustrou o viver de acordo com a palavra de Deus, e isso influenciou o CEO a fazer o mesmo.

Ezequiel 33 demonstra que, embora cada indivíduo seja chamado à justiça pessoal, os profetas também são responsáveis ​​por alertar outros exilados a agirem corretamente. A metáfora da sentinela em Ezequiel 33 reflete a expectativa de Deus quanto ao nosso interesse na vida dos outros em nosso mundo de trabalho. Isso prepara o terreno para uma ideia semelhante no próximo capítulo, onde a metáfora muda.

O fracasso da liderança de Israel (Ezequiel 34)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os líderes de Israel são indiciados por sua falha em cuidar da nação. Ezequiel 34 usa a metáfora do pastoreio para ilustrar como os líderes de Israel (pastores) oprimiram o povo (rebanho) dentro do Reino de Deus. Os pastores olhavam apenas para seus próprios interesses, vestindo-se e alimentando-se às custas das necessidades do rebanho (Ez 34.2,3,8). Em vez de fortalecer e curar as ovelhas em seu momento de necessidade, ou ir atrás delas quando perdidas, os pastores as dominavam ferozmente (Ez 34.4). Isso deixou as ovelhas vulneráveis ​​às feras (nações hostis) e as espalhou por todo o mundo (Ez 34.5-6,8). Assim, Deus promete salvar as ovelhas da “boca” dos pastores (os governantes de Israel), procurar e cuidar de suas ovelhas e trazê-las de volta dos lugares para onde foram espalhadas (Ez 34.9-12). Ele as levará de volta à sua própria terra, dará alimento e fará que se deitem em segurança, em boas pastagens (Ez 34.13-14). Em última análise, Deus julgará entre as ovelhas gordas (que se beneficiaram e participaram da opressão) e as ovelhas magras (as fracas e oprimidas, Ez 34.15-22). Essa libertação culmina com a futura nomeação do pastor final, um segundo Davi, que apascentará e cuidará do rebanho de Deus como um príncipe deve fazer sob o reinado de Deus (Ez 34.23-24). [1] Isso marcará um momento em que Deus fará uma aliança de paz com suas ovelhas (povo), que garantirá as bênçãos divinas de proteção, fecundidade e liberdade na terra (Ez 34.25-31). Por meio disso, todos saberão que Deus está com seu povo e é o verdadeiro Deus (Ez 34.30-31).

A metáfora do pastoreio envia uma mensagem que promete julgamento sobre os governantes iníquos de Israel e esperança para os oprimidos e desfavorecidos da nação. Essa mensagem de liderança, extraída do pastoreio, é aplicável a outras ocupações. Bons líderes buscam o interesse dos outros antes de “alimentar-se”. Uma liderança que imita o “bom pastor” de João 10.11,14 é fundamentalmente um ofício de servidão que requer cuidado genuíno com o bem-estar dos subordinados. Gerenciar pessoas não significa demonstrar poder ou exercer a autoridade sobre os outros. Em vez disso, supervisores piedosos e justos procuram garantir que as pessoas sob seus cuidados prosperem. Isso é consistente com as melhores práticas de gestão ensinadas nas escolas de negócios e empregadas em muitas empresas. Mas pessoas piedosas fazem isso por fidelidade a Deus, não porque é uma prática aceita em suas organizações.

Andrew Mein afirma que a maioria dos leitores “presta muito pouca atenção à maneira como as realidades econômicas podem informar qualquer uso específico de uma metáfora, com o resultado de que todas as imagens bíblicas de pastoreio colapsam em uma imagem bastante monocromática de generosidade atenciosa”. [2] Embora Ezequiel 34 reflita o cuidado de Deus por suas ovelhas (assim como outras passagens de pastoreio, por exemplo, Jeremias 23, Salmos 23, João 10), o capítulo reflete especificamente mais sobre a economia do antigo pastoreio de ovelhas e, portanto, se aplica mais especificamente à vida de um líder. Os pastores violaram o aspecto econômico de suas obrigações ao “não conseguirem produzir o retorno necessário sobre um investimento e apropriarem-se indevidamente da propriedade do proprietário”. [3] Deus os considera responsáveis, enquanto reivindica seu rebanho. É muito pouco dizer simplesmente que os pastores de Israel falharam em cuidar dos interesses das ovelhas. Em vez disso, os pastores não trabalharam pelos interesses do dono das ovelhas que os contratou e que espera um retorno valioso de seu investimento. Esse entendimento poderia ser aplicado hoje a questões de remuneração de executivos e governança corporativa. Ezequiel não faz um pronunciamento geral sobre essas questões, mas fornece critérios pelos quais as práticas de cada corporação podem ser avaliadas.

Assim, Ezequiel 34 é um texto rico para uma teologia do trabalho. Os líderes devem cuidar das necessidades e dos interesses daqueles que estão sob sua liderança (Fp 2.3-4). Além disso, eles são responsáveis ​​por cumprir a tarefa econômica para a qual foram contratados. Devemos trabalhar para o lucro e o bem-estar daqueles que estão nos degraus acima e abaixo de nós na escada corporativa (Ef 6.5-9; Cl 3.22-24). Em última análise, todos devem trabalhar pela honra a que Deus tem direito.

Sob essa luz, o lucro ou a produtividade econômica é visto como uma busca piedosa. As igrejas muitas vezes parecem esquecer isso, como se o lucro fosse um subproduto neutro ou quase tolerável do trabalho cristão. Mas Ezequiel 34 implica que o trabalhador que produz uma perda econômica ou o gerente que não consegue que a equipe realize o trabalho não é melhor do que aqueles que maltratam colegas de trabalho ou subordinados. Tanto as pessoas quanto o trabalho são importantes. Quando, séculos depois, Paulo escreve: “Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens” (Cl 3.23), ele assume o lugar de Ezequiel. Faça o trabalho para o qual é pago (o que inclui obter lucro como um componente inalienável) como se estivesse trabalhando para o Senhor. Se você trabalha em uma empresa com fins lucrativos, é responsável perante Deus por ajudar a obter lucro.

Mas, se o lucro é uma obrigação para com Deus, então o cristão é obrigado a buscar apenas lucros piedosos. Como seguidores de Jesus, devemos à nossa empresa um bom dia de trabalho — um plano de vendas devidamente executado, um trabalho de estrutura robusto ou qualquer que seja o produto do nosso trabalho. Os empregadores devem aprender a esperar isso de nós. Além disso, como seguidores de Jesus, nunca podemos fornecer à nossa empresa uma declaração ambiental falsa, nunca enganar os funcionários ou tirar vantagem de sua ignorância e nunca encobrir um problema de controle de qualidade. Os empregadores também devem esperar isso de nós. O que nos torna trabalhadores bons e produtivos, leais às nossas empresas, também nos torna trabalhadores honestos e compassivos, comprometidos com nosso Senhor.

A esperança da aliança (Ezequiel 35—48)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A teologia do trabalho de Ezequiel seria incompleta se não fosse colocada no contexto pleno da restauração futura, a que aludimos em todo o livro. A aliança entre Deus e Israel parece quebrada pelo fracasso de Israel em cumprir suas obrigações. Mas Deus restaurará Israel e cumprirá suas promessas quando Israel retornar a ele. Esse cumprimento é expresso tendo seu clímax nos oráculos de restauração e na seção do livro que trata do novo templo (capítulos 35—48). Aqui, o leitor vê uma imagem mais completa do futuro que o fiel exilado deve anunciar no presente por meio de uma vida justa e da responsabilidade corporativa.

A promessa de um pastor davídico na era futura da restauração é inerente à “aliança de paz” de Deus com Israel (Ez 34.25) e é chamada de “aliança eterna” (Ez 37.24-26). Ezequiel aguarda com ansiedade o dia em que esse rei-pastor dará início à bênção prometida por Deus para Israel e, mais importante, a levará a cumprir seu chamado como “povo de Deus”. [1] Ezequiel deixa claro que Deus concede isso, dando-lhes um coração não dividido e um novo espírito para cumprir suas leis, como ele ordenou em Ezequiel 18.31 (veja também Ez 11.19-20; 36.26-28; 37.14; 39.29). O povo de Deus será totalmente equipado para fazer sua vontade e será santificado pela presença de Deus no novo santuário em seu meio (Ez 37.28). Ezequiel passa nove capítulos mapeando este novo templo para o dia da restauração e a adoração necessária (Ez 40—48). À luz dos paralelos próximos entre Ezequiel 38—48 e Apocalipse 20—22, podemos nos perguntar se a visão de Ezequiel antecipa uma restauração literal do templo, ou se isso aponta para a realidade maior da Nova Jerusalém, na qual não há templo, “pois o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo” (Ap 21.22).

Como cristãos, depositamos nossa confiança no pastoreio final de Cristo. Foi ele quem não apenas cumpriu a justiça individual, mas também assumiu total responsabilidade corporativa pela humanidade, derramando seu próprio sangue em nosso favor. Pela morte e ressurreição de Jesus, o dia do cumprimento da aliança de Ezequiel raiou para o cristão. Mas o dia ainda não terminou, e a aliança ainda não está totalmente consumada. Ezequiel nos ensina que, quando somos chamados para o ambiente de trabalho, somos chamados para atividades justas no exílio, ao abraçarmos os desafios inerentes à espera da consumação do Reino de Deus. Deus requer um estilo de vida de justiça individual e responsabilidade corporativa que indicam o futuro cumprimento da aliança. Seguindo os passos de Jesus, podemos começar a viver a futura restauração de Deus no ambiente de trabalho hoje.

Introdução a Daniel

Voltar ao índice Voltar ao índice

É possível prosperar no trabalho enquanto segue a Deus? Pessoas em todos os tipos de ambientes de trabalho enfrentam essa pergunta diariamente, e muitas acham a resposta tão difícil que são tentadas a desistir. Daniel, o personagem central do livro de Daniel, enfrenta a questão em circunstâncias extremas, fornecendo um exemplo que pode ser útil nos ambientes de trabalho do século XXI. Exilado de Jerusalém quando o povo de Deus é conquistado pelo império babilônico, ele deve viver sua vida em um ambiente muito hostil ao Deus Altíssimo. No entanto, as circunstâncias o levam a uma posição com grandes oportunidades de servir ao rei da Babilônia. Será que ele deveria se retirar do governo corrupto e profano da Babilônia e buscar uma vida que agradasse a Deus em um reduto entre outros judeus? Ou será que ele deve relegar sua fé a uma esfera privada e pessoal, talvez orando a Deus em seu quarto, enquanto vive a vida de poder e de influência dos babilônios de forma indistinguível daqueles ao seu redor? Daniel não escolhe nenhum dos dois. Em vez disso, ele embarca em uma carreira promissora, enquanto permanece publicamente devotado a Deus. A história de como ele navega por essas águas traiçoeiras é um guia e um estudo de caso para os cristãos no ambiente de trabalho de hoje.

O quadro geral do livro de Daniel

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Daniel pode ser desconcertante. Começa de forma bastante direta, com Daniel e seus companheiros enfrentando pressão para assimilar os prazeres e vícios da corte real da Babilônia. Ele deve falar com chefes difíceis, fazer escolhas morais e lidar com colegas competitivos. Mas a narrativa se torna cada vez mais estranha à medida que sonhos, visões e profecias entram em cena. Na metade do caminho (capítulo 7), o livro se torna inconfundivelmente apocalíptico, pressagiando a ascensão e queda de futuros reis e reinos, usando imagens de eventos e criaturas bizarras. [1] O gênero apocalíptico é notoriamente difícil de interpretar, mas esse material contribui com alguns pontos para nossa compreensão do trabalho. De qualquer forma, Daniel, assim como o Apocalipse — o outro livro de literatura apocalíptica da Bíblia — fornece muito material valioso e relevante para o trabalho.

Por acaso, o livro de Daniel oferece uma estrutura pronta para desvendar seu significado no ambiente de trabalho. Essa estrutura é uma estrutura de paralelismo aninhada (em termos técnicos, um “quiasmo”). Essa estrutura consiste em múltiplos temas, introduzidos na ordem ABC..., depois revisitados na ordem inversa, formando uma estrutura como esta:

  • Tema A, Parte 1
    • Tema B, Parte 1
      • Tema C, Parte 1

      • Tema C, Parte 2

    • Tema B, Parte 2

  • Tema A, Parte 2

Para ajudar o leitor a acompanhar qual é o tema, o escritor destaca elementos paralelos nas duas partes de cada tema. Por exemplo, o Tema A em Daniel consiste em uma visão na Parte 1 e uma visão paralela na Parte 2, enquanto o Tema B traz sofrimentos na parte 1 e mais sofrimentos na parte 2.

Essa estrutura é comum em muitos livros da Bíblia. Em Daniel, a Parte 1 de cada tema é relativamente direta. A Parte 2 de cada tema é mais difícil, mas consultar a Parte 1 correspondente torna mais fácil entender as passagens mais difíceis. Em Daniel, o capítulo 1 é uma introdução e, em seguida, os paralelos aninhados começam:

A. Visão da futura queda dos reinos pagãos e sua substituição pelo governo de Deus (capítulo 2)
B. Sofrimentos, mas recompensas, pelo testemunho fiel a Deus nesse meio tempo (capítulo 3)
C. Humilhação/queda do rei pagão (capítulo 4)
C. Humilhação/queda do rei pagão (capítulo 5)
B. Sofrimentos, mas recompensas, pelo testemunho fiel a Deus nesse meio tempo (capítulo 6)
A. Visão da futura queda dos reinos pagãos e sua substituição pelo governo de Deus (capítulos 7—12)

Essa estrutura deixa claro o quadro geral de Daniel. Deus está vindo para derrubar os reinos pagãos corruptos e arrogantes, onde o povo de Deus está vivendo no exílio. Embora seu povo esteja sofrendo agora, seu sofrimento fiel é um dos principais meios pelos quais o poder de Deus se move. Isso lhes dá uma capacidade surpreendente de prosperar agora, uma esperança brilhante para o futuro e um papel significativo a desempenhar, tanto na sobrevivência presente quanto na promessa futura. Exploraremos as implicações e aplicações que esse quadro geral tem para os cristãos nos ambientes de trabalho de hoje. Para fazer isso, examinaremos como cada um dos seis movimentos descritos acima é orquestrado no tema geral.

Introdução: No exílio na Babilônia U. (Daniel 1)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Daniel começa com o desastre que finalmente acabou com o reino judaico. Nabucodonosor (605-562 a.C.), o rei da Babilônia, conquistou Jerusalém, depôs seu rei e levou cativos alguns de seus membros da realeza e jovens nobres. Como era típico no antigo Oriente Próximo, Nabucodonosor fez questão de se vingar dos deuses (ou, neste caso, de Deus) da nação vencida, saqueando o templo e empregando seus antigos tesouros para decorar a casa de seu próprio deus (Dn 1.1-3). Por isso, sabemos que Nabucodonosor era um inimigo não apenas de Israel, mas também do Deus de Israel.

Entre os jovens levados cativos estavam Daniel e seus companheiros Hananias, Misael e Azarias. Os quatro foram escolhidos para participar de um programa seleto, baseado em juventude, aptidão e aparência, onde receberiam treinamento para uma posição de liderança no reino (Dn 1.4-5). Isso apresentou uma oportunidade e um desafio. Esta era uma oportunidade para fazer uma vida boa para si mesmos em uma terra hostil e, talvez, trazer o poder e a justiça de Deus para seu novo país. O profeta Jeremias estava exortando os judeus exilados a fazer exatamente isso:

“Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os exilados, que deportei de Jerusalém para a Babilônia: ‘Construam casas e habitem nelas; plantem jardins e comam de seus frutos. Casem-se e tenham filhos e filhas; escolham mulheres para casar-se com seus filhos e deem as suas filhas em casamento, para que também tenham filhos e filhas. Multipliquem-se e não diminuam. Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei e orem ao Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela’” (Jr 29.4-7).

O desafio que Daniel e seus colegas enfrentaram foi a assimilação em detrimento da lealdade a Deus e a seu povo. Os assuntos que eles teriam de estudar provavelmente incluíam astrologia, o estudo de entranhas de animais, ritos de purificação, sacrifício, encantamento, exorcismo e outras formas de adivinhação e magia. [1] Isso teria sido odioso à fé dos judeus devotos, como algumas coisas nas universidades seculares atuais podem ser para os cristãos de hoje. Além disso, Daniel e seus amigos tiveram de aceitar mudanças em seus próprios nomes, que anteriormente proclamavam sua lealdade a Deus (os elementos “el” e “ias”, ao final dos nomes). No entanto, Daniel e seus colegas abraçaram o desafio, seguros na crença de que Deus protegeria sua fé e lealdade. Eles se matricularam na educação babilônica, mas estabeleceram limites para se proteger contra a assimilação real de seus captores pela cultura pagã. Daniel resistiu à dieta farta que era exigida de todos os que estavam em treinamento, recusando-se a “se tornar impuro” (Dn 1.8). O texto não deixa claro exatamente o que havia de censurável na dieta. [2] As tradições culturais em torno da dieta são fortes, especialmente para os judeus, cujas leis alimentares os distinguiam fortemente das nações vizinhas (Lv 11; Dt 14). Talvez manter uma dieta separada tenha dado a Daniel um lembrete diário de sua lealdade ao Senhor. Ou talvez tenha demonstrado que sua destreza física dependia do favor de Deus, e não do regime alimentar do rei.

A maneira de Daniel colaborar com seu superintendente é uma parte crítica da história. Alguns cristãos, quando solicitados a fazer algo contra sua consciência, ou seguem sem críticas ou assumem uma posição de confronto que parece torná-los “mais santos que o Santo”. Daniel encontrou um terceiro caminho, reconhecendo que seu chefe era solidário, mas estava em uma posição difícil. Se Daniel e seus amigos perdessem o vigor devido à baixa qualidade da comida — e aos olhos do supervisor, legumes e água pareciam inferiores à fartura de comida e vinho — o supervisor perderia não apenas o emprego, mas a vida (Dn 1.10). Então, Daniel pediu uma avaliação — dê-nos dez dias e, se não formos mais saudáveis do que os outros, cederemos e seguiremos sua dieta. Depois de dez dias, quando Daniel e seus companheiros saíram do teste mais saudáveis do que os outros, todos receberam a dieta de Daniel, o que, sem dúvida, levou a outro desafio no ambiente de trabalho entre Daniel e os alunos da Babilônia!

De qualquer forma, a discussão sobre a dieta de Daniel destaca um ponto muito mais profundo: Deus tem uma mão nos eventos da vida de Daniel, bem como na de Nabucodonosor, na Babilônia e em todas as nações. O capítulo 1 reflete isso desde o início, afirmando: “E o Senhor entregou Jeoaquim, rei de Judá, nas suas mãos” (Dn 1.2) e “Deus fez com que o homem fosse bondoso para com Daniel e tivesse simpatia por ele” (Dn 1.9). Daniel e seus amigos excederam o desenvolvimento físico dos outros jovens não por causa de sua genialidade ou dieta, mas porque “Deus deu sabedoria e inteligência para conhecerem todos os aspectos da cultura e da ciência” (Dn 1.17). O treinamento de Daniel pelos professores do rei foi claramente aumentado com a sabedoria de Deus, de modo que “o rei lhes fez perguntas sobre todos os assuntos que exigiam sabedoria e conhecimento e descobriu que eram dez vezes mais sábios do que todos os magos e encantadores de todo o seu reino” (Dn 1.20). Isso estabelece o padrão para o restante do livro, à medida que, repetidamente, os eventos mostram a superioridade da sabedoria de Daniel — e, mais importante, o poder de seu Deus — sobre a sabedoria e o poder das nações incrédulas e seus reis (Dn 5.14; 11.33-35; 12.3,10). Da mesma forma, os alunos de hoje precisam pensar além do currículo, buscando uma visão de Deus sobre o que estão aprendendo.

Os cristãos em todos os tipos de ambientes de trabalho hoje enfrentam semelhanças com o que Daniel e seus amigos experimentaram na academia babilônica. Não há como escapar dos ambientes de trabalho seculares, a não ser se retirando para comunidades isoladas ou optando por trabalhar em instituições exclusivamente cristãs, como igrejas e escolas cristãs. Muitos ambientes de trabalho seculares (mas certamente não todos) oferecem uma variedade de oportunidades de ganho pessoal, como boa remuneração, segurança no emprego, realização e prestígio profissional, condições de trabalho confortáveis e trabalho criativo e interessante. Em si, essas são coisas boas. Mas eles nos tentam com dois males graves: 1) o perigo de nos apaixonarmos tanto pelas boas coisas materiais a ponto de não querermos arriscar essas coisas, defendendo o que Deus exige de nós; e 2) o perigo espiritual de vir a acreditar que as coisas boas vêm como resultado de nosso próprio trabalho ou genialidade, ou como resultado de nosso serviço a algum poder que não seja Deus. Além disso, o ambiente de trabalho muitas vezes faz passar por situações que em si não são boas, como enganação, preconceito, maus-tratos aos pobres e mais fracos, conivência a desejos prejudiciais, obtenção de vantagem sobre outros em seus momentos de necessidade e muito mais. Em nossos tempos, tanto quanto nos tempos de Daniel, é difícil saber quais situações são boas e quais são ruins. Foi bom (ou pelo menos aceitável) aos olhos de Deus que Daniel e seus amigos estudassem astrologia? Eles poderiam aprender a usar o conhecimento dos céus sem se deixar levar pelas superstições em que aquele sistema estava baseado? É bom para o cristão estudar marketing? Podemos aprender a usar o conhecimento do comportamento do consumidor sem nos tornarmos enredados na prática de publicidade enganosa ou promoções exploratórias? O livro de Daniel não fornece diretrizes específicas, mas sugere algumas perspectivas vitais:

  • Os cristãos podem abraçar a educação, mesmo que seja conduzida fora dos limites da responsabilidade cristã.

  • Os cristãos podem abraçar o trabalho em ambientes de trabalho não cristãos e até mesmo hostis, com as devidas medidas de segurança.

  • Os cristãos que trabalham ou estudam em ambientes não cristãos ou anticristãos devem tomar cuidado para evitar a assimilação acrítica pela cultura ao redor. As medidas de segurança incluem

    • Oração constante e comunhão com Deus. Daniel orava três vezes ao dia ao longo de sua carreira (Dn 6.10) e com um compromisso especial durante os tempos difíceis em seu trabalho (Dn 9.3-4; Dn 9.16-21). Quantos cristãos realmente oram pelas especificidades de sua vida profissional? O livro de Daniel mostra constantemente que Deus se importa com os detalhes específicos do trabalho diário.

    • Firme adesão aos marcadores materiais da fé, mesmo que sejam um tanto arbitrários. Daniel evitou comer a farta comida e o vinho do rei, porque isso comprometeria sua lealdade a Deus. Poderíamos argumentar se essa prática específica é universalmente exigida por Deus, mas não podemos duvidar de que uma fé viva requer marcadores vivos dos limites do comportamento fiel. A rede americana de lanchonetes Chick-fil-a decidiu não abrir aos domingos. Muitos médicos católicos não prescrevem métodos contraceptivos artificiais. Outros cristãos encontram maneiras respeitosas de pedir permissão a seus colegas para orar por eles. Nenhum deles pode ser tomado como requisitos universais e, de fato, todos eles podem ser questionados por outros cristãos. Mas cada um deles ajuda seus praticantes a evitar uma assimilação lenta, fornecendo marcadores públicos e constantes de sua fé.

    • Associação ativa e prestação de contas com outros cristãos no mesmo tipo de trabalho. “A pedido de Daniel, o rei nomeou Sadraque, Mesaque e Abede-Nego administradores da província da Babilônia, enquanto o próprio Daniel permanecia na corte do rei” (Dn 2.49). Mas poucos cristãos têm um fórum onde possam compartilhar preocupações, perguntas, sucessos e fracassos com outras pessoas em seu campo. Como os advogados devem aprender a aplicar a fé à lei, exceto por meio de discussões regulares e intencionais com outros advogados cristãos? O mesmo vale para engenheiros, artesãos, agricultores, professores, pais, gerentes de marketing e todas as outras vocações. Criar e nutrir esses tipos de grupos é uma das grandes necessidades não atendidas dos cristãos no ambiente de trabalho.

    • Formação de bons relacionamentos com não crentes em seu ambiente de trabalho. Deus fez com que o funcionário que supervisionava a dieta de Daniel lhe mostrasse bondade e simpatia (Dn 1.9). Daniel cooperou com Deus, respeitando o oficial e cuidando de seu bem-estar (Dn 1.10-14). Os cristãos às vezes parecem se esforçar para antagonizar e julgar os colegas de trabalho, mas o mandamento de Deus é: “Façam todo o possível para viver em paz com todos” (Rm 12.18). Uma prática excelente é orar de forma muito específica pedindo as bênçãos de Deus para aqueles com quem trabalhamos.

    • Adoção de um estilo de vida modesto, de modo que o apego ao dinheiro, ao prestígio ou ao poder não o impeça de arriscar seu emprego ou sua carreira, se você for pressionado a fazer algo contrário aos mandamentos, valores ou virtudes de Deus. Apesar de atingir o auge da educação, posição e riqueza da Babilônia, Daniel e seus amigos estavam constantemente dispostos a perder tudo a fim de falar e agir de acordo com a palavra de Deus (Dn 2.24; 3.12; 4.20; 5.17; 6.10; 6.21).

Daniel conseguiu andar na corda bamba da assimilação cultural parcial sem comprometer aspectos religiosos e morais. As apostas eram altas. A carreira de Daniel e até sua vida estavam em risco, assim como a vida do principal oficial da Babilônia, Aspenaz (Dn 1.10). No entanto, pela graça de Deus, Daniel permaneceu firme e manteve sua integridade. Mesmo os inimigos de Daniel mais tarde admitiriam que “não puderam achar nele falta alguma, pois ele era fiel; não era desonesto nem negligente” (Dn 6.4).

Tema A: Deus derrubará reinos pagãos e os substituirá por seu próprio reino (Daniel 2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Para uma explicação dos temas e da estrutura de Daniel, veja a seção “O quadro geral do livro de Daniel”.

Tendo estabelecido em detalhes a situação da vida enfrentada por Daniel e seus amigos, o livro de Daniel começa agora (em Daniel 2) o primeiro dos três temas que formam a estrutura quiástica descrita na seção acima (“O quadro geral do livro de Daniel”). Esse tema é que Deus derrubará os reinos pagãos e os substituirá por seu próprio reino.

Embora Daniel estivesse prosperando e servindo a Deus em meio a um território hostil, Nabucodonosor estava ficando inquieto em governar sua própria terra, embora seu poder fosse incontestável. Seus sonhos ficaram perturbados por suas preocupações com a segurança de seu império. Em um sonho, Nabucodonosor viu uma estátua imponente composta por vários elementos feitos de metais diferentes. A estátua, enorme como era, foi esmagada por uma pedra e virou “pó, como o pó da debulha do trigo na eira durante o verão” e que o vento “levou sem deixar vestígio. Mas a pedra que atingiu a estátua tornou-se uma montanha e encheu a terra toda” (Dn 2.35). Os mágicos, encantadores e astrólogos de Nabucodonosor não foram úteis para ele na interpretação desse sonho (Dn 2.10-11), mas, pela graça de Deus, Daniel conhecia tanto o sonho — sem que o rei lhe contasse o que era — quanto a interpretação (Dn 2.27-28).

O episódio contrasta a arrogância de Nabucodonosor com a humildade e a dependência de Deus demonstrada por Daniel. Nabucodonosor e sua Babilônia eram o modelo de orgulho. De acordo com a interpretação de Daniel, os enormes componentes de metal da estátua representavam os reinos da Babilônia e seus sucessores (Dn 2.31-45). [1] A saudação dos astrólogos ao rei — “Ó rei, vive para sempre!” (Dn 2.4) — enfatiza a pretensão do rei de que ele mesmo é a fonte de seu poder e majestade. Mas Daniel dá ao rei duas mensagens chocantes:

  1. Seu reino não é o resultado de suas próprias ações. Em vez disso, “o Deus dos céus concedeu-te domínio, poder, força e glória” (Dn 2.37). Portanto, todo o seu orgulho é tolo e vão.

  2. Seu reino está condenado. “Esse é o significado da visão da pedra que se soltou de uma montanha, sem auxílio de mãos, pedra que esmigalhou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro. O Deus poderoso mostrou ao rei o que acontecerá no futuro. O sonho é verdadeiro, e a interpretação é fiel” (Dn 2.45). Embora isso não deva acontecer em seu tempo, isso reduzirá a nada todas as suas realizações supostamente poderosas.

Em contraste, a humildade pessoal — e sua gêmea siamesa, a dependência do poder de Deus — foi a arma secreta de Daniel para prosperar. A humildade permitiu que ele prosperasse, mesmo na situação excepcionalmente pouco promissora, em que ele deveria prever a morte do reino para o próprio rei. Daniel negou qualquer habilidade pessoal própria. Só Deus tem poder e sabedoria: “Nenhum sábio, encantador, mago ou adivinho é capaz de revelar ao rei o mistério sobre o qual ele perguntou, mas existe um Deus nos céus que revela os mistérios” (Dn 2.27-28).

Surpreendentemente, essa atitude humilde levou o rei a perdoar — e até aceitar — a mensagem ousada de Daniel. Ele estava pronto para executar seus astrólogos de uma vez, mas “caiu prostrado diante de Daniel” e “prestou-lhe honra” (Dn 2.46). Então “ele o designou governante de toda a província da Babilônia e o encarregou de todos os sábios da província” (Dn 2.48). Nabucodonosor chegou a algum tipo de crença em Javé. “O rei disse a Daniel: ‘Não há dúvida de que o seu Deus é o Deus dos deuses, o Senhor dos reis e aquele que revela os mistérios, pois você conseguiu revelar esse mistério’” (Dn 2.47).

Para os cristãos no ambiente de trabalho de hoje, isso oferece um ponto importante. Deus acabará com a arrogância, a corrupção, a injustiça e a violência em todos os ambientes de trabalho, embora não necessariamente durante o tempo em que trabalharmos neles. Essa é uma fonte de conforto e desafio. Conforto, porque não somos responsáveis ​​por corrigir todos os males em nosso ambiente de trabalho, mas apenas por agir fielmente em nossas esferas de influência, e também porque a injustiça que podemos sofrer no trabalho não é a realidade última de nosso trabalho. Desafio, porque somos chamados a nos opor ao mal dentro de nossas esferas de influência, o que pode custar caro para nossas carreiras. Daniel ficou aterrorizado com a severidade da mensagem que teve de anunciar a Nabucodonosor: “Portanto, ó rei, aceita o meu conselho: Renuncia a teus pecados e à tua maldade, pratica a justiça e tem compaixão dos necessitados” (Dn 4.27).

Isso ilustra tanto as possibilidades quanto os perigos de aplicar o livro de Daniel à nossa vida profissional. Às vezes, reconhecemos que, para sermos fiéis a Deus, devemos desafiar as pessoas que estão no poder. Mas, diferentemente de Daniel, não temos a perfeita recepção da palavra de Deus. Só porque sentimos algo fortemente, não significa que é algo verdadeiramente vindo de Deus. Portanto, se até mesmo Daniel foi humilde no serviço de Deus, imagine o quanto devemos ser. “Deus me disse em um sonho que eu seria promovido acima de todos vocês” é uma palavra que provavelmente devemos guardar para nós mesmos, não importa o quanto acreditemos nela. Talvez seja melhor presumir que Deus dirá às pessoas ao nosso redor o que ele quer que elas saibam, em vez de nos instruir a dizer isso a elas em seu nome.

Tema B: Sofrimentos, mas recompensas, pelo testemunho fiel a Deus nesse meio tempo (Daniel 3)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Para uma explicação dos temas e da estrutura de Daniel, veja a seção “O quadro geral do livro de Daniel”.

Pela graça de Deus, a humildade de Daniel permitiu que ele prosperasse na corte de Nabucodonosor, mesmo quando Deus estava se preparando para derrubar o império do rei. Mesmo assim, Daniel e seus amigos estavam prestes a sofrer sob um novo ataque da arrogância de Nabucodonosor. Ao contrário do primeiro e do segundo capítulos de Daniel, no capítulo 3, sua fidelidade a Deus os levou ao sofrimento. No entanto, mesmo em meio ao sofrimento, Deus recompensou sua fidelidade.

Por um tempo, parecia que o próprio Nabucodonosor renunciaria à sua arrogância, se submeteria a Deus e pouparia seu império da necessidade de ser derrubado pelo poder de Deus. Lamentavelmente, porém, o próprio sonho que levou Nabucodonosor a reconhecer a mão de Deus sobre Daniel também pode ser o que incitou o rei a construir uma imagem de ouro a qual ele exigia que todos os seus súditos adorassem (Dn 3.1,5-6). O edifício representava o orgulho ressurgente do rei da Babilônia. Sua estrutura gigantesca (27 metros de altura) foi construída no nível da “planície de Dura”, o que teria exagerado a presença dominante da imagem (Dn. 3.1).

Os astrólogos desonrados do rei viram uma chance de vingança contra Daniel. Eles se aproveitaram do orgulho ressurgente do rei e acusaram os amigos de Daniel de não adorarem a imagem (Dn 3.8-12). Os amigos prontamente admitiram sua culpa e se recusaram a adorar a imagem, apesar da ameaça do rei de lançá-los em uma fornalha em chamas (Dn 3.13-18). Depois de anos tentando superar com sucesso a tensão entre o ambiente pagão da corte babilônica e sua fidelidade a Deus, eles enfrentaram uma situação em que nenhum acordo era possível sem violar sua integridade. Anteriormente, eles serviam como modelos de como prosperar seguindo a Deus em um ambiente hostil. Agora eles tinham de servir como modelos de como sofrer no mesmo ambiente. Isso eles fazem com gosto.

Sadraque, Mesaque e Abede-Nego responderam ao rei: “Ó Nabucodonosor, não precisamos defender-nos diante de ti. Se formos atirados na fornalha em chamas, o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará das tuas mãos, ó rei. Mas, se ele não nos livrar, saiba, ó rei, que não prestaremos culto aos teus deuses nem adoraremos a imagem de ouro que mandaste erguer” (Dn 3.16-18).

Os cristãos no ambiente de trabalho de hoje raramente enfrentam uma hostilidade tão extrema, pelo menos no mundo ocidental. Mas podemos receber ordens para fazer algo que não conseguimos fazer em sã consciência. Ou, o que é mais provável, podemos acordar um dia e perceber que já estamos comprometendo os desejos de Deus para nosso trabalho por meio dos objetivos que buscamos, dos poderes que exercemos, dos relacionamentos que usamos mal ou das concessões que fazemos. De qualquer forma, pode chegar o dia em que reconheceremos que devemos fazer uma mudança radical, como dizer “não”, ser demitido, pedir demissão, denunciar ou defender outra pessoa. Devemos esperar sofrer por fazer isso. O fato de estarmos fazendo a vontade de Deus não deve nos levar a esperar que Deus nos impeça de enfrentar as consequências impostas pelos poderes constituídos. Trabalhar como cristão não é outro atalho para o sucesso, mas traz o perigo constante do sofrimento.

Esse episódio é especialmente comovente porque mostra que Daniel e seus amigos viviam no mesmo mundo que nós. Em nosso mundo, se você enfrentar um chefe por causa de, digamos, assédio sexual ou falsificação de dados, o resultado mais provável é que você seja punido, marginalizado, manchado, incompreendido e talvez demitido. Mesmo que você consiga acabar com o abuso e remover o agressor do poder, sua própria reputação pode sofrer danos irreparáveis. É tão difícil provar que você estava certo, e as pessoas relutam tanto em se envolver, que a instituição pode se proteger livrando-se de você ao lado do verdadeiro infrator. Sadraque, Mesaque e Abede-Nego aparentemente não esperavam muito para eles mesmos, pois dizem abertamente que Deus poderia não intervir no caso deles. “O Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos... Mas, se ele não nos livrar, saiba, ó rei, que não prestaremos culto aos teus deuses” (Dn 3.17-18). No entanto, para eles, ser fiel a Deus era a coisa certa a fazer, fosse ou não um caminho para o sucesso.

Nisso, eles são, de fato, modelos para nós. Precisamos aprender a falar a verdade com clareza, com humildade, em nosso próprio ambiente de trabalho. O general Peter Pace, ex-presidente do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos EUA, disse: “O que realmente admiro é algo que chamo de coragem intelectual. Essa é a capacidade de sentar em uma sala cheia de pessoas muito poderosas, perceber uma conversa indo em uma direção, sentir em seu íntimo que algo não está certo e ter a ousadia de dizer: ‘Eu vejo de maneira diferente, e aqui está o motivo.’” [1] Na prática, a coragem geralmente resulta de estar preparado. Os amigos de Daniel conheciam os perigos inerentes a sua posição e estavam preparados para enfrentar as consequências de permanecerem firmes em suas convicções. Devemos saber quais são os limites éticos em nosso ambiente de trabalho e pensar com antecedência no que faríamos se nos pedissem para fazer algo contrário à palavra de Deus. “Você precisa saber de antemão quais são suas condições de “afastamento” e praticar seu discurso de demissão para cada emprego que assumir”, foi o conselho de um professor de longa data da Harvard Business School. “Caso contrário, você pode ser levado a fazer quase qualquer coisa, passo a passo.” [2]

Tema C: Humilhação e queda do rei pagão (Daniel 4)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Daniel 4 e Daniel 5 devem ser lidos em conjunto, sendo que o capítulo 4 introduz o tema C do quiasmo, enquanto o capítulo 5 o reprisa (para uma explicação dos temas e da estrutura de Daniel, veja “O quadro geral do livro de Daniel”). O tópico de ambos é a humilhação ou a queda do reino pagão. A magnificência da Babilônia serve como cenário comum para a humilhação de Nabucodonosor, no capítulo 4, e a morte do rei Belsazar, no capítulo 5.

No capítulo 4, tanto a magnificência da Babilônia quanto a arrogância do rei atingiram seu apogeu. No entanto, mais uma vez, o rei ficou perturbado por seus sonhos. Ele viu uma enorme árvore, que “cresceu tanto que a sua copa encostou no céu” (Dn 4.11) e que fornecia frutos e abrigo para todos os animais. Mas, por ordem de uma “sentinela, um anjo que descia do céu” (Dn 4.13), a árvore foi cortada e os animais foram dispersos. No sonho, o toco tornou-se um homem cuja mente foi transformada na de um animal e que foi forçado a viver entre os animais e as plantas por um longo tempo (Dn 4.13-16). O rei ordena a Daniel que interprete o sonho, exigindo mais uma vez que Daniel desse notícias desagradáveis ​​a um monarca emocionalmente instável (Dn 4.18-19). A interpretação é que a árvore representa o próprio Nabucodonosor, que será punido por sua arrogância, enlouquecendo e vivendo como um animal selvagem, até que ele admita “que o Altíssimo domina sobre os reinos dos homens e os dá a quem quer” (Dn 4.25). Apesar da severa advertência, Nabucodonosor persistiu em seu orgulho, e até se gabou: “Acaso não é esta a grande Babilônia que eu construí como capital do meu reino, com o meu enorme poder e para a glória da minha majestade?” (Dn 4.30). Como resultado, ele foi punido tal como o sonho havia predito (Dn 4.33).

Mas talvez a interpretação conflituosa de Daniel tenha feito a diferença, pois, depois de muito tempo no deserto, o rei se arrepende e glorifica a Deus, e então sua sanidade e seu reino lhe são restaurados (Dn 4.34-37). O posicionamento de Daniel não persuadiu o rei a renunciar a sua arrogância antes que o desastre acontecesse, mas abriu uma porta para o arrependimento e a restauração do rei após o fato.

Às vezes, nossa postura respeitosa e baseada em princípios também pode levar à transformação em nossos ambientes de trabalho. Um consultor de uma empresa internacional de consultoria em gestão — que podemos chamar de Vince — conta a história de quando teve de confrontar alguém com certo excesso de presunção. [1] Vince era encarregado de uma equipe de jovens funcionários promissores de um dos clientes da empresa, uma grande companhia industrial. No início do projeto, um sócio sênior da empresa começou a fazer um discurso animador para a equipe. Um dos membros da equipe do cliente — vamos chamá-lo de Gary — o interrompeu. Gary começou a questionar a validade do projeto. “Antes de embarcarmos neste projeto”, disse Gary, “acho que devemos avaliar se empresas de consultoria como a sua realmente agregam valor a seus clientes. Tenho lido alguns artigos que dizem que esse tipo de estudo pode não ser tão útil quanto se diz.” O sócio sênior encontrou uma maneira de continuar sua conversa animadora, mas depois disse a Vince: “Tire Gary do time”. Vince — ciente da ordem de Jesus de perdoar um irmão setenta e sete vezes (Mt 18.22) — pediu permissão para ver se conseguia fazer com que Gary mudasse de atitude. “Não parece certo prejudicar sua carreira por causa de um erro, por maior que tenha sido”, disse ele. “Você tem duas semanas”, respondeu o parceiro, “e também está se arriscando”. Pela graça de Deus — de acordo com Vince —, Gary veio a ver a validade do projeto e se dedicou ao trabalho de todo o coração. O sócio sênior reconheceu a mudança e, no final do projeto, destacou Gary para receber um reconhecimento especial no banquete de encerramento. A postura de Vince fez a diferença para Gary e sua empresa.

Tema C revisitado: Humilhação e queda do rei pagão (Daniel 5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Para uma explicação dos temas e da estrutura do livro de Daniel, veja a seção “O quadro geral do livro de Daniel”.

O tema C, conforme apresentado no capítulo 5, diz respeito à humilhação do rei pagão, mas não realmente à sua queda. O tema é revisitado no capítulo 5 em termos da destruição do império babilônico. A extravagância da Babilônia teve poucos paralelos no mundo antigo. [1] Era uma fortaleza inexpugnável, construída com duas muralhas, uma interna e outra externa, com a muralha externa de 18 quilômetros e a altura de 12 metros. Um bulevar processional levava ao espetáculo do Portão de Istar, um dos oito portões da cidade, que exibia azulejos azuis brilhantes. A cidade continha até 50 templos e numerosos palácios. Os famosos “Jardins Suspensos”, conhecidos principalmente pelos historiadores antigos, eram uma das Sete Maravilhas do Mundo. No entanto, após a morte do poderoso Nabucodonosor, em 562 a.C., a queda da cidade aconteceu em apenas 20 anos. O rei persa Ciro (559-530 a.C.) tomou a cidade em 539 a.C. sem resistência significativa.

Essa importante mudança no cenário político é contada da perspectiva do que ocorreu no palácio do novo governante, Belsazar, na noite da queda da cidade. [2] Belsazar, em um banquete suntuoso, profanou as taças sagradas dos judeus que haviam sido roubadas do templo de Jerusalém e blasfemou contra o Senhor, enquanto a refeição descambou em uma orgia de bêbados (Dn 5.1-4). Então, “de repente apareceram dedos de mão humana que começaram a escrever no reboco da parede” (Dn 5.5). Belsazar, orgulhoso governante do magnífico império da Babilônia, ficou tão assustado com a caligrafia na parede que seu rosto ficou pálido e seus joelhos batiam um no outro (Dn 5.6). Nem ele nem seus encantadores, astrólogos e adivinhos foram capazes de entender o que isso significava (Dn 5.7-9). Somente Daniel podia perceber sua mensagem de condenação: “Não glorificaste o Deus que sustenta em suas mãos a tua vida e todos os teus caminhos” (Dn 5.23). “Foste pesado na balança e achado em falta” (Dn 5.27). “Teu reino foi dividido e entregue aos medos e persas” (Dn 5.28). E, de fato, “naquela mesma noite Belsazar, rei dos babilônios, foi morto, e Dario, o medo, apoderou-se do reino” (Dn 5.30-31).

No final, Deus traz um fim ao reino do mal. A vitória final de Deus, não nossa eficácia pessoal, é a grande esperança do povo de Deus. De qualquer forma, devemos florescer onde fomos plantados. Se surgir a oportunidade, podemos e devemos fazer a diferença. Engajamento, não afastamento, é o modelo que vemos em todas as páginas do livro de Daniel. Mas nosso envolvimento com o mundo não se baseia na expectativa de que alcançaremos certo grau de sucesso ou de que Deus nos tornará imunes aos sofrimentos que vemos ao nosso redor. Baseia-se no conhecimento de que tudo de bom que acontece no meio do mundo caído é apenas uma amostra da bondade incomparável que virá quando Deus trouxer seu próprio reino à terra. Em última análise, a pergunta: “De que lado você está?” importa mais do que: “O que você tem feito por mim ultimamente?”

Tema B revisitado: Sofrimentos, mas recompensas, pelo testemunho fiel a Deus nesse meio tempo (Daniel 6)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Para uma explicação dos temas e da estrutura do livro de Daniel, veja a seção “O quadro geral do livro de Daniel”.

Em Daniel 6, a estrutura quiástica de Daniel revisita o Tema B: que testemunhas fiéis de Deus experimentam tanto sofrimento quanto recompensa enquanto o reino pagão persiste. O capítulo 6 narra uma ameaça conspiratória à vida de Daniel, ambientada no reinado do monarca persa Dario, o Grande (522-486 a.C.). A competência de Daniel mereceu sua promoção a governante de todo o novo império, estando abaixo apenas do próprio rei (Dn 6.3). Tanto naquela época como agora, quando alguém é escolhido para se tornar o chefe de seus ex-colegas, aqueles que não são escolhidos podem sentir ressentimento. Não nos é dito como Daniel lidou com essa situação embaraçosa, mas vemos como seus ex-colegas reagiram. Eles tentaram pegar Daniel em alguma impropriedade, para que pudessem denunciá-lo ao rei. No entanto, mesmo eles “não puderam achar nele falta alguma, pois ele era fiel; não era desonesto nem negligente”. (Dn 6.4).

Incapaz de pegar Daniel em algo concreto, e conhecendo seu hábito diário de orar ao seu Deus, os rivais de Daniel elaboraram um plano que explorava o ego do rei Dario. Eles convenceram o rei a decretar que, nos 30 dias seguintes, ninguém poderia orar a qualquer deus ou homem que não fosse o rei. A pena era a morte na cova dos leões. Os conspiradores acreditavam ter encontrado um caminho para a destruição de Daniel. Isso oferece outra lição para os líderes: cuidado com a bajulação. Dario, atordoado pela bajulação, deixou de consultar seu conselheiro legal sobre o decreto antes de promulgá-lo, o que levou a uma situação da qual se arrependeu profundamente mais tarde.

O decreto atingiu Daniel, mas ele continuou a orar a Deus (Dn 6.10). Para sua grande angústia, Dario não pôde rescindir a ordem, pois, de acordo com a tradição, “a lei dos medos e dos persas... não pode ser revogada” (Dn 6.13). Dario, embora o homem mais poderoso de sua época, amarrou as próprias mãos, tornando impossível resgatar seu administrador favorito. O rei admitiu a Daniel: “Que o seu Deus, a quem você serve continuamente, o livre!” (Dn 6.16). E o anjo do Senhor fez o que o rei pediu, mas que ele próprio não poderia fazer. Daniel foi lançado na cova dos leões durante a noite, mas saiu ileso pela manhã (Dn 6.17-23). Isso levou o rei a emitir um decreto de reverência ao Deus de Daniel e a remover a ameaça de aniquilação para os judeus, enquanto continuavam a adorar a Deus (Dn 6.26-27). Nem mesmo as leis implacáveis ​​dos medos e dos persas poderiam garantir o fim do povo de Deus. O poder de Deus superou a enganação humana e os ditames reais.

No entanto, Daniel experimentou o que a maioria de nós chamaria de sofrimento ao longo do caminho. Ser alvo de uma tentativa de assassinato patrocinada pelo governo (Dn 6.4-6) deve ter sido uma experiência extenuante, mesmo que ele tenha sido inocentado ao final. Da mesma forma, desafiar abertamente o decreto do rei por causa da consciência (Dn 6.10-12) era um ato perigoso, embora corajoso. Daniel sofreu prisão imediata e foi lançado na cova dos leões (Dn 6.16-17). Não devemos permitir que a libertação final de Daniel (Dn 6.21-23) nos leve a imaginar que a experiência não foi dolorosa e perturbadora, para dizer o mínimo. Há três lições que podemos aprender com o testemunho fiel de Daniel a Deus:

  • Daniel não se limitou a tarefas que tinha certeza de que poderia realizar por conta própria. Não há como treinar ser jogado na cova dos leões! Em vez disso, ele fazia seu trabalho diariamente na dependência de Deus. Daniel orava três vezes ao dia (Dn 6.10). Ele reconhecia Deus em todas as questões difíceis que enfrentava. Nós também temos de reconhecer que não podemos cumprir nosso chamado sozinhos.

  • Daniel resumiu o chamado que Jesus mais tarde faria para ser sal e luz (Mt 5.13-16) em nossos ambientes de trabalho. Mesmo os inimigos de Daniel tiveram de admitir: “Jamais encontraremos algum motivo para acusar esse Daniel, a menos que seja algo relacionado com a lei do Deus dele” (Dn 6.5). Isso significava que ele era capaz de confrontar situações difíceis com a verdade e realmente provocar mudanças. Isso acontece várias vezes, quando Daniel e seus amigos assumem uma posição cuidadosa a favor da verdade, o que leva a um novo decreto do rei (Dn 2.46-49; 3.28-30; 4.36-37; 5.29; 6.25-28).

  • O sucesso de Daniel em trazer mudanças demonstra que Deus se preocupa com as questões cotidianas de governança em uma sociedade quebrada. Só porque Deus pretende substituir o regime atual, não significa que ele não se importa em torná-lo mais justo, mais frutífero e mais habitável agora. Às vezes, não nos envolvemos com Deus em nosso trabalho porque acreditamos que nosso trabalho não parece importante para Deus. Mas cada decisão é importante para o nosso Deus, e todo trabalhador precisa saber disso. A pergunta que a teologia de Daniel apresenta ao trabalhador é: “De quem é o reino que você está edificando?”. Daniel se destacou em sua ocupação, trabalhando em favor dos reinos do mundo, e manteve sua integridade como cidadão do Reino de Deus. Seu serviço aos reis pagãos era seu serviço para os propósitos de Deus. Os trabalhadores cristãos devem trabalhar bem aqui e agora, sabendo que o significado de nosso trabalho reside em e transcende o aqui e agora.

Tema A revisitado: Deus derrubará reinos pagãos e os substituirá por seu próprio reino (Daniel 7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Para uma explicação dos temas e da estrutura do livro de Daniel, veja a seçãoO quadro geral do livro de Daniel”.

O capítulo 7 nos traz de volta ao primeiro tema do livro de Daniel. Deus um dia substituirá os reinos corruptos deste mundo por seu próprio reino. Como Daniel e seus companheiros, pela graça de Deus, podemos encontrar uma maneira de sobreviver — e talvez até mesmo prosperar — como exilados aqui. No entanto, a principal esperança que temos não está em tirar o melhor proveito da situação atual, mas em antecipar a alegria do vindouro Reino de Deus.

Portanto, a perseverança se torna uma virtude crucial. Temos de perseverar até que Cristo volte para consertar as coisas. A perseverança é uma virtude louvada na filosofia clássica e na tradição judaico-cristã. Às vezes, a encontramos em uma citação impactante, como a admissão de Einstein: “Não é que eu seja muito inteligente, é que permaneço com problemas por mais tempo”. O Novo Testamento confirma o valor da perseverança: “Feliz é o homem que persevera na provação, porque depois de aprovado receberá a coroa da vida, que Deus prometeu aos que o amam” (Tg 1.12). A perseverança na vida do crente tem sua base e fonte no Senhor Deus. Não é uma questão de integridade ou honra humana. A perseverança cristã repousa na veracidade das promessas eternas da aliança de Deus.

A partir do capítulo 7, o livro de Daniel se torna francamente apocalíptico em gênero. A literatura apocalíptica, um tipo especial de oráculo profético, descreve os eventos cataclísmicos dos últimos dias. Foi difundido na literatura primitiva judaico-cristã. Entre suas características estão um rico simbolismo (capítulo 7), a descrição da batalha universal final entre o bem e o mal (Dn 11.40—12.4) e um intérprete celestial que explica o significado da visão ao profeta (Dn 7.16,23; 8.15; 9.21-23; 10.14). O profeta é exortado a perseverar fielmente até que a visão se cumpra (Dn 7.25-27; 9.24; 10.18-19; 12.1-4,13). Essa forma literária acentua a mensagem do autor sobre perseverança.

Os capítulos 7 a 12 relatam como Daniel teve visões assustadoras, que ele relata como um testemunho em primeira pessoa. O resultado final é uma série de profecias que preveem as tribulações do povo de Deus nas mãos de líderes despóticos, mas que terminam em triunfo garantido pelo libertador designado por Deus. O livro termina com uma exortação à perseverança a Daniel. “Feliz aquele que esperar e alcançar o fim dos mil trezentos e trinta e cinco dias. Quanto a você, siga o seu caminho até o fim. Você descansará e, então, no final dos dias, você se levantará para receber a herança que lhe cabe” (Dn 12.12-13).

A opressão contra o povo de Deus é um tema constante desses capítulos (Dn 7.21,25; 9.26; 10.1). O opressor — revelado pela história como Antíoco IV Epífanes [1] — é descrito em imagens surrealistas perturbadoras. Ele é o maligno “chifre pequeno” (Dn 7.8), que estabelece o “sacrilégio terrível” (Dn 9.27), e o “ser desprezível” (Dn 11.21) que rejeita os deuses tradicionais de seus ancestrais, fazendo dele mesmo a divindade suprema. Esse ódio pelo povo de Deus só é surpreendente para aqueles que foram protegidos de regimes totalitários e conflitos civis. Grande parte da comunidade cristã em nosso mundo hoje, no entanto, sofre com vários graus de repressão — de restrições econômicas e educacionais a prisão e martírio. Os cristãos no ocidente raramente sofrem hoje de maneira tão violenta. No entanto, as pessoas de fé no ambiente de trabalho muitas vezes sofrem alienação, assédio e, em alguns casos, censura ou demissão. Embora as escolhas não sejam tão graves — enfrentar a morte ou não —, a natureza da decisão é a mesma enfrentada pelos crentes em eras passadas. Fazemos concessões em nossas convicções ou aderimos à nossa profissão como cristãos, mesmo que isso possa resultar em alguma forma de perda? A vida e as profecias de Daniel nos exortam a sermos firmes em nossa primeira devoção. Paulo derivou a mesma aplicação para seu público ao considerar a futura ressurreição dos santos: “Portanto, meus amados irmãos, mantenham-se firmes, e que nada os abale. Sejam sempre dedicados à obra do Senhor, pois vocês sabem que, no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil” (1Co 15.58).

A mensagem de segurança dos capítulos 7 a 12 para os trabalhadores é a garantia de um ajuste de contas final que recompensará com justiça o trabalho fiel que fizermos na vida. No aqui e agora, o bom trabalho nem sempre é recompensado de acordo com suas contribuições honrosas para a sociedade. Seus resultados nem mesmo são visíveis para nós, em muitos casos. Daniel e seus amigos transformam o coração dos reis não uma vez, mas muitas vezes. Mas não demorou muito para que os reis voltassem a ser como eram. Portanto, em nossos ambientes de trabalho, nosso papel como sal e luz pode segurar o mal, mas muitas vezes não levará a uma mudança permanente. Isso não diminui nossa responsabilidade de sermos sal e luz, mas os frutos de nosso trabalho não serão totalmente visíveis até que o Reino de Deus seja estabelecido.

Conclusão para Daniel

Voltar ao índice Voltar ao índice

O livro de Daniel fornece uma imagem esperançosa de como o povo de Deus pode sobreviver e até prosperar em um ambiente hostil, permanecendo fiel a Deus. De acordo com o livro de Daniel, Deus se preocupa profundamente com a vida cotidiana de indivíduos e sociedades em um mundo quebrado. Deus intervém diretamente na vida cotidiana e também dá a Daniel dons milagrosos que tornam possível prosperar sob um regime opressivo. No entanto, de forma alguma o livro de Daniel promete sucesso neste mundo como recompensa pela fidelidade. Em vez disso, promete sofrimento e recompensa na vida mortal e, assim, demonstra que fidelidade e integridade são as chaves para viver bem nesta vida, bem como no vindouro Reino de Deus.

Daniel e seus amigos são modelos de muitas aplicações práticas para os cristãos no ambiente de trabalho: envolver-se com a cultura, adotar hábitos ao longo da vida que constroem fidelidade e virtude, compartilhar comunhão com colegas de trabalho cristãos, adotar um estilo de vida modesto, fazer amizade com não crentes, mostrar humildade genuína , assumir uma posição de princípios em situações de trabalho, abraçar desafios que sabemos que não podemos enfrentar sem a ajuda de Deus, trazer sal e luz para nossos ambientes de trabalho, trabalhar com excelência e diligência em qualquer que seja o nosso trabalho, antecipar o sofrimento como resultado da fidelidade cristã no ambiente de trabalho, e perseverar até que Deus traga seu reino — e nosso trabalho fiel — a bom termo. Não podemos saber de antemão se nossa fidelidade aos caminhos de Deus resultará em sucesso ou fracasso mundano, assim como os amigos de Daniel não poderiam saber se seriam salvos da fornalha ardente ou queimados. Mas, como eles, podemos reconhecer que servir a Deus em nosso trabalho é o que realmente importa.

Versículos e temas-chave em Daniel

Voltar ao índice Voltar ao índice

Versículo

Tema

Daniel 1.11-14 Daniel disse então ao homem que o chefe dos oficiais tinha encarregado de cuidar dele e de Hananias, Misael e Azarias: “Peço que faça uma experiência com os seus servos durante dez dias: Não nos dê nada além de vegetais para comer e água para beber. Depois compare a nossa aparência com a dos jovens que comem a comida do rei, e trate os seus servos de acordo com o que você concluir”. Ele concordou e fez a experiência com eles durante dez dias.

A humildade é a chave para um bom relacionamento com Deus e com as pessoas

Daniel 1.8 Daniel, contudo, decidiu não se tornar impuro com a comida e com o vinho do rei, e pediu ao chefe dos oficiais permissão para se abster deles.

Precisamos resistir à assimilação à cultura que viola os caminhos de Deus

Daniel 1.9 E Deus fez com que o homem fosse bondoso para com Daniel e tivesse simpatia por ele.

Seguir a Deus leva a uma mistura de sofrimento e recompensas na vida

Daniel 1.20 O rei lhes fez perguntas sobre todos os assuntos que exigiam sabedoria e conhecimento e descobriu que eram dez vezes mais sábios do que todos os magos e encantadores de todo o seu reino.

Deus nos dá habilidades para trabalhar com excelência, mesmo em ambientes de trabalho corruptos

Daniel 2.24 Então Daniel foi falar com Arioque, a quem o rei tinha designado para executar os sábios da Babilônia, e lhe disse: “Não execute os sábios. Leve-me ao rei, e eu interpretarei para ele o sonho que teve”.

Somos chamados a abraçar o trabalho além do que podemos realizar por nosso próprio poder

Daniel 2.27 Daniel respondeu: “Nenhum sábio, encantador, mago ou adivinho é capaz de revelar ao rei o mistério sobre o qual ele perguntou”.

A humildade é a chave para um bom relacionamento com Deus e com as pessoas

Daniel 2.47 O rei disse a Daniel: “Não há dúvida de que o seu Deus é o Deus dos deuses, o Senhor dos reis e aquele que revela os mistérios, pois você conseguiu revelar esse mistério”.

Nosso testemunho pode fazer a diferença em nosso ambiente de trabalho

Daniel 2.48 Assim o rei pôs Daniel num alto cargo e o cobriu de presentes. Ele o designou governante de toda a província da Babilônia e o encarregou de todos os sábios da província.

Seguir a Deus leva a uma mistura de sofrimento e recompensas na vida

Daniel 3.16-18 Sadraque, Mesaque e Abede-Nego responderam ao rei: “Ó Nabucodonosor, não precisamos defender-nos diante de ti. Se formos atirados na fornalha em chamas, o Deus a quem prestamos culto pode livrar-nos, e ele nos livrará das tuas mãos, ó rei. Mas, se ele não nos livrar, saiba, ó rei, que não prestaremos culto aos teus deuses nem adoraremos a imagem de ouro que mandaste erguer”.

Precisamos estar preparados para enfrentar o sofrimento no ambiente de trabalho

Daniel 4.27 “Portanto, ó rei, aceita o meu conselho: Renuncia a teus pecados e à tua maldade, pratica a justiça e tem compaixão dos necessitados. Talvez, então, continues a viver em paz”.

Precisamos assumir uma posição (humilde) em prol do que é certo no ambiente de trabalho

Daniel 4.33 A sentença sobre Nabucodonosor cumpriu-se imediatamente. Ele foi expulso do meio dos homens e passou a comer capim como os bois. Seu corpo molhou-se com o orvalho do céu, até que os seus cabelos e pelos cresceram como as penas da águia, e as suas unhas como as garras das aves.

Deus acabará com as regras e os reinos da terra

Daniel 5.14 Soube que o espírito dos deuses está em você e que você é um iluminado com inteligência e sabedoria fora do comum.

Deus nos dá habilidades para trabalhar com excelência, mesmo em ambientes de trabalho corruptos

Daniel 5.17 Então Daniel respondeu ao rei: “Podes guardar os teus presentes para ti mesmo e dar as tuas recompensas a algum outro. No entanto, lerei a inscrição para o rei e te direi o seu significado.

Um estilo de vida modesto nos permite resistir à assimilação à corrupção

Daniel 6.3 Ora, Daniel se destacou tanto entre os supervisores e os sátrapas por suas grandes qualidades, que o rei planejava tê-lo à frente do governo de todo o império.

Deus nos dá habilidades para trabalhar com excelência, mesmo em ambientes de trabalho corruptos

Daniel 6.4 Diante disso, os supervisores e os sátrapas procuraram motivos para acusar Daniel em sua administração governamental, mas nada conseguiram. Não puderam achar nele falta alguma, pois ele era fiel; não era desonesto nem negligente.

Um estilo de vida modesto nos permite resistir à assimilação à corrupção

Daniel 6.10 Quando Daniel soube que o decreto tinha sido publicado, foi para casa, para o seu quarto, no andar de cima, cujas janelas davam para Jerusalém e ali fez o que costumava fazer: três vezes por dia ele se ajoelhava e orava, agradecendo ao seu Deus.

A oração é uma prática essencial para trabalhar fielmente

Daniel 6.16 Então o rei deu ordens, e eles trouxeram Daniel e o jogaram na cova dos leões. O rei, porém, disse a Daniel: “Que o seu Deus, a quem você serve continuamente, o livre!”

Seguir a Deus leva a uma mistura de sofrimento e recompensas na vida

Daniel 6.25-28 Então o rei Dario escreveu aos homens de todas as nações, povos e línguas de toda a terra: “Paz e prosperidade! Estou editando um decreto para que em todos os domínios do império os homens temam e reverenciem o Deus de Daniel. Pois ele é o Deus vivo e permanece para sempre; o seu reino não será destruído; o seu domínio jamais acabará. Ele livra e salva; faz sinais e maravilhas nos céus e na terra. Ele livrou Daniel do poder dos leões”. Assim Daniel prosperou durante os reinados de Dario e de Ciro, o Persa.

Nosso testemunho pode fazer a diferença em nosso ambiente de trabalho

Daniel 7.21 Enquanto eu observava, esse chifre guerreava contra os santos e os derrotava.

Precisamos estar preparados para enfrentar o sofrimento no ambiente de trabalho

Daniel 9.3-4 Por isso me voltei para o Senhor Deus com orações e súplicas, em jejum, em pano de saco e coberto de cinza. Orei ao Senhor, o meu Deus, e confessei.

A oração é uma prática essencial para trabalhar fielmente

Daniel 12.1 “Naquela ocasião Miguel, o grande príncipe que protege o seu povo, se levantará. Haverá um tempo de angústia como nunca houve desde o início das nações até então. Mas naquela ocasião o seu povo, todo aquele cujo nome está escrito no livro, será liberto.”

Deus nos chama a perseverar onde estamos até que ele estabeleça seu reino

Daniel 12.12-13 “Feliz aquele que esperar e alcançar o fim dos mil trezentos e trinta e cinco dias. Quanto a você, siga o seu caminho até o fim. Você descansará e, então, no final dos dias, você se levantará para receber a herança que lhe cabe”.

Deus nos chama a perseverar onde estamos até que ele estabeleça seu reino


Introdução aos Doze Profetas

Voltar ao índice Voltar ao índice

A seção da Bíblia conhecida como Profetas Menores abrange uma série de situações da vida de Israel, com seus próprios desafios. O tema unificador dessa seção é que, em Deus, não há separação entre o trabalho referente à adoração e à vida diária, entre bem-estar individual e bem comum. O povo de Israel mostra sua fidelidade ou infidelidade à aliança feita com Deus em variados níveis, e essa gradação é facilmente perceptível em sua maneira de adorar, ou na negligência em fazê-lo. A fidelidade do povo — ou a ausência dela — à aliança de Deus se reflete não apenas no âmbito espiritual, mas no social e no físico, incluindo a própria terra. O grau de fidelidade individual também é visível na ética do dia a dia e do trabalho, a qual, por sua vez, determina a produtividade e a consequente prosperidade ou pobreza do indivíduo. No curto prazo, os ímpios poderão prosperar, mas a disciplina de Deus e as consequências naturais do trabalho injusto por fim os conduzirão à pobreza e ao desespero. Em contrapartida, quando pessoas e sociedades trabalham em fiel harmonia com Deus, ele as abençoa com saúde e prosperidade nos âmbitos espiritual, ético e ambiental.

Na tradição cristã de língua portuguesa, esses doze últimos livros do Antigo Testamento são geralmente chamados de Profetas Menores. Na tradição hebraica, inserem-se em um único pergaminho denominado “O Livro dos Doze”. Trata-se de uma espécie de antologia caracterizada pela progressão de pensamento e pela coerência temática. O pano de fundo fundamental é a aliança de Deus com seu povo. A narrativa conta a história da violação dessa aliança por parte do povo, a resposta de Deus com a punição ou a disciplina de Israel e a lenta restauração da sociedade e da nação israelita promovida por Deus. [1]

Assim, cinco dos seis primeiros livros dos Doze — Oseias, Joel, Amós, Obadias e Miqueias — trazem uma reflexão sobre o efeito do pecado do povo na condução da aliança e nos eventos do mundo. Os três livros seguintes — Naum, Habacuque e Sofonias — focam na punição pelo pecado, no que concerne também à aliança e ao mundo. Os três últimos livros proféticos — Ageu, Zacarias e Malaquias — atêm-se à restauração de Israel, concernente mais uma vez à renovação da aliança e à restauração parcial da posição de Israel no mundo. Por fim, temos Jonas, que é um caso especial. Sua profecia não diz respeito a Israel, mas à cidade-estado não hebraica de Nínive. Tanto seu cenário quanto sua composição são notoriamente difíceis de datar de maneira fidedigna.

Contexto Histórico dos Doze Profetas

Voltar ao índice Voltar ao índice

Há muita discussão sobre o histórico e a datação dos profetas de Israel e de Judá. Veja Introdução aos profetas para uma discussão geral das principais questões e do contexto de seus escritos. Com relação aos Doze, vejamos um breve esboço. Em relação ao primeiro grupo, há um amplo consenso de que Oseias, Amós e Miqueias estivessem situados no século 8 a.C. Naquela época, o reino unificado de Israel, governado por Davi e, em seguida, por Salomão, ficou dividido por algum tempo em reino do norte, conhecido como Israel, e reino do sul, conhecido como Judá. Miqueias pertencia ao sul e falou para essa região; Amós também pertencia ao sul, mas falou para o norte; e Oseias falou para o norte, região a que pertencia.

No início do século 8, os reinos do norte e do sul desfrutavam de uma prosperidade e segurança de fronteiras sem precedentes desde a época de Salomão. Mas as nuvens estavam se formando para os que tinham olhos para ver, como nossos profetas. Internamente, a situação econômica e política tornava-se cada vez mais precária à medida que crescia a preocupação da classe dominante com as lutas dinásticas. Externamente, o ressurgimento gradual da Assíria como superpotência na região se tornaria uma crescente ameaça para ambos os reinos. De fato, o reino do norte foi efetivamente eliminado pelo exército assírio por volta de 721 a.C. e jamais ressurgiu como entidade política, embora traços de sua existência ainda se fizessem presentes na identidade samaritana (2Rs 17.1-18). Os profetas atribuem a culpa diretamente ao povo de Israel e, em menor grau, ao de Judá, por abandonarem a adoração a Javé em favor da idolatria e por violarem os requisitos éticos da Lei. Apesar dessas falhas, iludiram-se com a falsa sensação de segurança proporcionada pelo fato de serem o povo da aliança de Javé.

O sul, sob comando do rei Ezequias, de alguma forma sobreviveu à ameaça assíria (2Rs 19), mas enfrentou um desafio ainda maior com a ascensão do império babilônico (2Rs 21). Infelizmente, Judá não se arrependeu de sua idolatria e das violações éticas depois de escapar por pouco dos assírios. A derrota final veio pelas mãos dos babilônios, em 587 a.C., e culminou na destruição da infraestrutura social de Judá e na deportação de sua liderança para o exílio, no império babilônico (2Rs 24—25). Os profetas viram nessa derrota uma evidência do castigo de Deus ao povo. Entre os Doze Profetas, esse fato é mais nitidamente registrado nos livros de Naum, Habacuque e Sofonias. Eles espelham os escritos proféticos de Jeremias e Ezequiel, que também datam desse período. Livros bíblicos específicos registram a carreira profética deles (ver Jeremias e Lamentações e trabalho e Ezequiel e trabalho), e não os discutiremos aqui.

Ciro, o grande rei persa, derrotou a Babilônia e assumiu sua hegemonia. De acordo com a política persa, o império permitiu que o povo judeu retornasse a sua terra e, talvez mais importante, restabelecesse seu templo e outras instituições chave (Ed 1). Aparentemente, tudo isso ocorreu por vontade do império persa. [1] Os profetas Ageu, Zacarias e Malaquias desenvolveram seu trabalho durante essa fase da história de Israel.

Em resumo, o Livro dos Doze Profetas abrange uma ampla gama de circunstâncias do contexto relativo à vida do povo de Deus. Consequentemente, reflete vários paradigmas distintos dentro dos quais a fé no trabalho precisa ser expressa.

Fé e trabalho antes do exílio — Oseias, Amós, Obadias, Joel, Miqueias

Voltar ao índice Voltar ao índice

Oseias, Amós, Obadias, Joel e Miqueias exerceram sua atividade no século 8, quando o estado se encontrava bem desenvolvido, mas a economia em declínio. As camadas superiores cresceram em poder e riqueza, gerando uma classe cada vez mais desfavorecida. Existem algumas evidências de uma tendência ao cultivo comercial como forma de atender à crescente demanda urbana por alimentos. Isso provocou o efeito desestabilizador de reduzir a disseminação do risco inerente a uma agricultura de subsistência, suplantada. [1] As comunidades agrícolas tornaram-se vulneráveis ​​às variações anuais na produção e, por conseguinte, as cidades ficaram sujeitas a variações imprevisíveis no suprimento de alimentos (Am 4.6-9). Quando os profetas desse período começam a falar, os dias de glória dos suntuosos projetos de construção e da expansão territorial já haviam passado. Tais circunstâncias produzem um terreno fértil para a corrupção por parte daqueles desesperados por manter o poder e a riqueza, cada vez menores, além de abrir uma crescente lacuna entre ricos e pobres. Como resultado, os profetas de Deus desse período têm muito a dizer ao mundo do trabalho.

Deus exige mudanças (Oseias 1.1-9; Miqueias 2.1-5)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Deus atribui ao povo como um todo a culpa pela corrupção de Israel. Eles haviam abandonado a aliança de Deus, o que não apenas rompe sua conexão com Deus como também as justas estruturas sociais da lei de Deus, levando diretamente à corrupção e ao declínio econômico. “Prostituição” é o termo que os profetas costumavam usar para descrever o rompimento da aliança por parte de Israel (por exemplo, Jr 3.2; Ez 23.7). Para dramatizar a situação, Deus toma a metáfora literalmente e ordena ao profeta Oseias que “tome uma mulher adúltera e filhos da infidelidade, porque a nação é culpada do mais vergonhoso adultério por afastar-se do Senhor” (Os 1.2). Oseias obedece à ordem de Deus, casa-se com uma mulher chamada Gômer, que aparentemente se encaixa no requisito, e com ela tem três filhos (Os 1.3). Resta-nos imaginar como deve ter sido construir um lar e criar filhos com uma “mulher adúltera”.

Embora os profetas usem imagens de prostituição e adultério, Deus está acusando Israel de corrupção econômica e social, não de imoralidade sexual.

Ai daqueles que planejam maldade, dos que tramam o mal em suas camas! Quando alvorece, eles o executam, porque isso eles podem fazer. Cobiçam terrenos e se apoderam deles; cobiçam casas e as tomam. Fazem violência ao homem e à sua família; a ele e aos seus herdeiros (Mq 2.1-2).

Isso faz da situação familiar de Oseias um exemplo dramático para aqueles que hoje trabalham em ambientes corruptos ou imperfeitos. Deus colocou Oseias deliberadamente em uma situação familiar difícil e corrupta. Será que hoje Deus coloca pessoas deliberadamente em locais de trabalho corruptos e difíceis? Embora possamos buscar um emprego confortável em um empregador de boa reputação, desenvolvendo uma atividade respeitável, talvez fôssemos capazes de realizar muito mais pelo reino de Deus trabalhando em lugares moralmente comprometidos. Se você abomina a corrupção, poderia combatê-la melhor trabalhando como advogado em uma empresa de prestígio ou como inspetor de obras em uma cidade dominada por corruptos? Não há respostas fáceis, mas o chamado de Deus a Oseias sugere que fazer diferença no mundo é mais importante para Deus que mantermos as mãos limpas. Como disse Dietrich Bonhoeffer em meio ao domínio nazista na Alemanha: “A principal questão para um homem responsável não é como livrar-se heroicamente do caso, mas como a próxima geração deve viver”. [1]

Deus viabiliza a mudança (Oseias 14.1-9; Amós 9.11-15; Miqueias 4.1-5; Obadias 1.21)

Voltar ao índice Voltar ao índice

O mesmo Deus que exige mudanças também promete viabilizá-la. “Foi determinada uma colheita para quando eu trouxer de volta o meu povo” (Os 6.11—7.1). Os Doze Profetas carregam o otimismo fundamental de que Deus está ativo no mundo a fim de mudá-lo para melhor. Apesar do aparente triunfo dos ímpios, Deus está no comando e “o reino será do Senhor” (Ob 1.21). Apesar da calamidade que as próprias pessoas trazem sobre si, Deus trabalha para restaurar a bondade na vida e no trabalho, como pretendia desde o início. “Ele é misericordioso e compassivo, muito paciente e cheio de amor” (Jl 2.13). Os oráculos finais de Joel, Oseias e Amós (Os 14; Am 9.11-15) ilustram isso em termos explicitamente econômicos.

As eiras ficarão cheias de trigo; os tonéis transbordarão de vinho novo e de azeite. [...] Vocês comerão até ficarem satisfeitos, e louvarão o nome do Senhor, o seu Deus, que fez maravilhas em favor de vocês; nunca mais o meu povo será humilhado. (Jl 2.24,26)
Os que habitavam à sua sombra voltarão. Reviverão como o trigo. Florescerão como a videira, e a fama de Israel será como a do vinho do Líbano. (Os 14.7)
Trarei de volta Israel, o meu povo exilado, eles reconstruirão as cidades em ruínas e nelas viverão. Plantarão vinhas e beberão do seu vinho; cultivarão pomares e comerão do seu fruto. (Am 9.14)

A palavra de Deus para seu povo em tempos de dificuldades econômicas e sociais expressa sua intenção de restaurar a paz, a justiça e a prosperidade caso o povo viva de acordo com os preceitos de sua aliança. O meio que ele usará é o trabalho de seu povo.

Responsabilidade individual e social pelo trabalho injusto (Miqueias 1.1-7; 3.1-2; 5.10-15)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Apesar das intenções de Deus, o trabalho está sujeito ao pecado humano. O caso mais flagrante é o trabalho intrinsicamente pecaminoso. Miqueias menciona a prostituição — talvez, no caso, a prostituição cultual — e promete que os ganhos advindos dela serão queimados (Mq 1.7). Uma aplicação direta disso seria descartar a prostituição como ocupação legítima, mesmo que ela possa ser uma escolha compreensível para aqueles que não têm outra maneira de sustentar a si ou sua família. Há outros trabalhos que também levantam a questão sobre se devem ou não ser realizados. Sem dúvida, todos podemos pensar em vários exemplos, e os cristãos fariam bem em buscar um trabalho que beneficiasse o outro e a sociedade como um todo.

Mas Miqueias está falando a Israel como um todo, não só a indivíduos. Ele está criticando uma sociedade cujas condições sociais, econômicas e religiosas viabilizam a prostituição. A questão aqui não está em se “é aceitável ganhar a vida como prostituta”, mas “que tipo de mudança deve ocorrer na sociedade a fim de eliminar a necessidade de alguém realizar um trabalho degradante ou prejudicial”. Miqueias pede explicações não tanto àqueles que se sentem forçados a fazer um trabalho sórdido, mas aos líderes que falham em realizar mudanças na sociedade. Suas palavras são contundentes. “Ouçam, vocês que são chefes de Jacó, governantes da nação de Israel. Vocês deveriam conhecer a justiça! Mas odeiam o bem e amam o mal; arrancam a pele do meu povo e a carne dos seus ossos” (Mq 3.1-2).

Nossa sociedade é diferente daquela de Miqueias, e os remédios específicos que Deus promete ao antigo Israel não são necessariamente o que Deus pretende hoje. As palavras proféticas de Miqueias refletem a conexão entre a prostituição ritual e os cultos idólatras de sua época. Deus promete acabar com os abusos sociais centrados nos santuários idólatras. “Destruirei as suas imagens esculpidas e as suas colunas sagradas; vocês não se curvarão mais diante da obra de suas mãos. Desarraigarei do meio de vocês os seus postes sagrados e derrubarei os seus ídolos” (Mq 5.13-14). Hoje, precisamos da sabedoria de Deus para encontrar soluções eficazes para as questões sociais que levam ao trabalho pecaminoso e opressivo. Ao mesmo tempo, tal como os profetas de Israel, precisamos chamar as pessoas a se arrependerem de seu envolvimento voluntário em trabalhos pecaminosos. “Busquem o bem, não o mal, para que tenham vida. Então o Senhor, o Deus dos Exércitos, estará com vocês, conforme vocês afirmam” (Am 5.14).

Trabalhar injustamente (Oseias 4.1-10; Joel 2.28-29)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Quando os profetas falam de prostituição, raramente estão preocupados apenas com esse tipo específico de trabalho. Em geral, também a usam como uma metáfora para a injustiça, que por definição significa infidelidade à aliança de Deus (Os 4.7-10). Em um lembrete genérico de que o salário pode ser ganho injustamente, Amós acusa os comerciantes que usam produtos inferiores, peso adulterado e outras formas de engano para obter lucro às custas de consumidores vulneráveis. Eles dizem a si mesmos: “Quando acabará a lua nova para que vendamos o cereal? E, quando terminará o sábado, para que comercializemos o trigo, diminuindo a medida, aumentando o preço, enganando com balanças desonestas e comprando o pobre com prata e o necessitado por um par de sandálias, vendendo até palha com o trigo?” (Am 8.5-6).

Muitas formas legítimas de ganhar a vida podem se tornar injustas pela maneira como são realizadas. Um fotógrafo deve tirar fotos de qualquer coisa que um cliente peça, sem levar em conta seu efeito sobre o objeto e os espectadores? Um cirurgião deve realizar qualquer tipo de cirurgia eletiva pela qual um paciente esteja disposto a pagar? Um agente financeiro imobiliário é responsável por certificar-se de que um mutuário tenha capacidade de honrar o empréstimo sem maiores dificuldades? Se nosso trabalho é uma forma de serviço a Deus, não podemos ignorar essas questões. No entanto, precisamos ter cuidado para não presumir uma hierarquia de atividades. Os profetas não estão alegando que alguns tipos de trabalho são mais piedosos que outros, mas que todo tipo de trabalho deve ser feito de modo a contribuir para a obra de Deus no mundo. “Até sobre os servos e as servas derramarei do meu Espírito naqueles dias” (Jl 2.29).

A justiça de Deus inclui justiça econômica e laboral (Amós 8.1-6, Miqueias 6.1-16)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A justiça no trabalho não é apenas uma questão individual. As pessoas têm a responsabilidade de garantir que todos na sociedade tenham acesso aos recursos necessários para ganhar a vida. Amós critica a injustiça de Israel nesse quesito, mais intensamente ao aludir à lei da respiga. Respiga é o processo de colher os grãos que caem e permanecem no campo após a passagem das colheitadeiras. De acordo com a aliança de Deus com Israel, os agricultores não tinham permissão de respigar os próprios campos, em vez disso deveriam permitir que pessoas pobres (literalmente “o órfão e a viúva”) recolhessem os grãos caídos como um meio de sustento (Dt 24.19). Essa prática gerou uma forma rudimentar de bem-estar social, com vistas a gerar uma oportunidade de trabalho para os pobres (ao respigar os campos), em vez de mendigarem, roubarem ou passarem fome. A respiga é uma maneira de participar da dignidade do trabalho, mesmo para aqueles que não podem fazer parte do mercado de trabalho devido à falta de recursos, ao posicionamento socioeconômico, a discriminação, deficiência ou outros fatores. Deus não apenas quer que as necessidades de todos sejam atendidas, como também deseja oferecer a todos a dignidade de trabalhar para atender às próprias necessidades e às dos outros.

Amós reclama que essa disposição está sendo violada. Os agricultores não estão disponibilizando os grãos caídos em seus campos a fim de que os pobres os recolham (Mq 7.1-2). Em vez disso, eles se oferecem para vender palha — os resíduos deixados após a debulha — aos pobres por um preço absurdo. “Vocês que pisam os pobres e arruínam os necessitados da terra”, Amós os acusa, “vendendo até palha com o trigo” (Am 8.4,6). Amós os acusa pela espera ansiosa pelo fim do sábado para que possam continuar vendendo esse alimento barato e adulterado àqueles que não têm outra escolha (Am 8.5). Mais que isso, estão enganando até mesmo os que podem comprar grãos puros, como fica evidente no uso de balanças manipuladas no mercado. “Para que comercializemos o trigo, diminuindo a medida”, gabam-se eles. Miqueias proclama o juízo de Deus contra o comércio injusto. “Poderia alguém ser puro com balanças desonestas e pesos falsos?”, pergunta o Senhor (Mq 6.11). Isso nos diz claramente que a justiça não é apenas uma questão de direito penal e expressão política, mas também de oportunidade econômica. A oportunidade de trabalhar para atender às necessidades individuais e familiares é essencial para o papel do indivíduo que faz parte da aliança. A justiça econômica é um componente essencial da famosa e sonora proclamação de Miqueias feita apenas três versículos antes: “Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus” (Mq 6.8). Deus exige de seu povo — como uma questão diária de sua caminhada com ele — que ame a bondade e seja justo individual e coletivamente, em todos os aspectos do trabalho e da vida financeira.

Trabalho e adoração (Miqueias 6.6-8; Amós 5.21-24; Oseias 4.1-10)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os profetas entendem que a justiça não é apenas uma questão laica. O apelo de Miqueias por justiça em Miqueias 6.8 decorre da observação de que a justiça é melhor que sacrifícios religiosos extravagantes (Mq 6.6-7). Oseias e Amós expandem esse ponto. Amós se opõe à desconexão entre a observância religiosa e a ação ética.

Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes. Mesmo que vocês me tragam holocaustos e ofertas de cereal, isso não me agradará. Mesmo que me tragam as melhores ofertas de comunhão, não darei a menor atenção a elas. Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras. Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene! (Am 5.21-24)

Oseias aprofunda ainda mais a relação entre estar espiritualmente fundamentado e fazer um bom trabalho. As boas obras emergem diretamente da fidelidade à aliança de Deus, enquanto, em contrapartida, as más obras nos afastam da presença de Deus.

Israelitas, ouçam a palavra do Senhor, porque o Senhor tem uma acusação contra vocês que vivem nesta terra: “A fidelidade e o amor desapareceram desta terra, como também o conhecimento de Deus. Só se veem maldição, mentira e assassinatos, roubo e mais roubo, adultério e mais adultério; ultrapassam todos os limites! E o derramamento de sangue é constante. Por isso a terra pranteia, e todos os seus habitantes desfalecem; os animais do campo, as aves do céu e os peixes do mar estão morrendo. [...] Meu povo foi destruído por falta de conhecimento. Uma vez que vocês rejeitaram o conhecimento, eu também os rejeito como meus sacerdotes; uma vez que vocês ignoraram a lei do seu Deus, eu também ignorarei seus filhos”. (Os 4.1-3,6)

Esse é um lembrete de que o mundo do trabalho não existe em um vácuo, separado do resto da vida. Se não fundamentarmos valores e prioridades na aliança de Deus, a vida e o trabalho serão ética e espiritualmente incoerentes. Se não agradarmos a Deus no trabalho, não poderemos agradá-lo na adoração.

Apatia devido à riqueza (Amós 3.9-15; 6.1-7)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Os profetas criticam aqueles cuja riqueza os leva a abandonar o trabalho que conduz ao bem comum e a abandonar qualquer senso de responsabilidade pelo próximo. Amós relaciona riqueza indolente com opressão ao acusar os ricos ociosos de transgressão, violência e roubo (Am 3.10). Deus dará um fim rápido à riqueza dessas pessoas. Deus derrubará “a casa de inverno junto com a casa de verão; as casas enfeitadas de marfim serão destruídas” (Am 3.15). Amós lança uma explosão contundente contra os luxos dos “que vivem tranquilos em Sião” (Am 6.1). Eles são os primeiros em devassidão, ele observa, enquanto “se espreguiçam em seus sofás” (Am 6.4) e “improvisam em instrumentos musicais” (Am 6.5). Quando Deus punir Israel, eles “estarão entre os primeiros a ir para o exílio” (Am 6.7).

Surpreendentemente, queixas semelhantes podem ser ouvidas hoje contra aqueles que possuem riqueza mas não a empregam para nenhum bom propósito. Isso se aplica a indivíduos e a corporações, governos e outras instituições que usam sua riqueza para explorar as vulnerabilidades alheias, em vez de criar algo útil proporcionalmente a sua riqueza. Muitos cristãos — talvez a maioria no Ocidente — têm alguma capacidade de mudar essas coisas, pelo menos em seu ambiente de trabalho. As palavras dos profetas servem como um desafio e um incentivo contínuos para que nos preocupemos profundamente em como o trabalho e a riqueza servem — ou deixam de servir — às pessoas ao nosso redor.

Fé e trabalho durante o exílio — Naum, Habacuque, Sofonias

Voltar ao índice Voltar ao índice

Naum, Habacuque e Sofonias estiveram ativos durante o período em que o reino do sul começou a entrar em rápido declínio. A incoerência interna e a pressão externa do florescente império babilônico acabaram por tornar Judá um estado vassalo da Babilônia. Pouco depois, uma rebelião imprudente provocou a ira dos babilônios, em 587 a.C., levando ao colapso do estado de Judá e à deportação das elites para o centro do império babilônico (2Rs 24—25). No exílio, o povo de Israel teve que descobrir como permanecer fiel mesmo separado de suas principais instituições religiosas, do templo, do sacerdócio e até da terra. Se, como vimos, os seis primeiros livros tratam do efeito do pecado do povo, estes três — Naum, Habacuque e Sofonias — tratam do consequente castigo durante esse período.

A mão punitiva de Deus em ação (Naum 1.1-12; Habacuque 3.1-19; Sofonias 1.1-13)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A principal contribuição de Naum é deixar claro que o desastre político e econômico é a punição ou a disciplina de Deus sobre Israel. “Eu a [tenho] afligido”, declara Deus (Na 1.12). Habacuque e Sofonias afirmam que uma parte essencial do castigo de Deus é a diminuição da capacidade do povo de ter uma vida adequada.

Mesmo não florescendo a figueira, e não havendo uvas nas videiras, mesmo falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos [...]. (Hc 3.17)
Todos os seus comerciantes serão completamente destruídos, todos os que negociam com prata serão arruinados. (Sf 1.11)

Isso é visto não apenas nas questões econômicas, mas também nas ambientais (veja adiante Ageu: trabalho, adoração e meio ambiente ).

Os desastres políticos, econômicos e naturais contemporâneos são punições de Deus? Não faltam pessoas dispostas a declarar que desastres específicos são sinais da ira de Deus. O terremoto e o tsunami de 2011 no Japão foram atribuídos à punição divina, tanto pelo governador de Tóquio [1] quanto pelo apresentador de um noticiário da tevê. Contudo, a menos que nos tenhamos juntado ao grupo dos Doze ou ao de outros profetas de Israel, devemos relutar muito em apontar a ira de Deus em eventos no mundo. Será que o próprio Deus revelou a esses comentaristas as razões do tsunami ou eles tiraram as próprias conclusões? Teria ele revelado sua intenção a um número substancial de pessoas, com bastante antecedência, ao longo de muitos anos, como fez com os profetas de Israel, ou teria isso chegado a uma ou duas pessoas no dia seguinte? Os anunciadores modernos do castigo de Deus foram forjados como profetas ao longo de anos de sofrimento junto aos aflitos, como o foram Jeremias, os Doze e os outros profetas do antigo Israel?

Trabalho idólatra (Habacuque 2.1-20; Sofonias 1.14-18)

Voltar ao índice Voltar ao índice

A punição é resultado das ações do próprio povo. O povo tem trabalhado sem fé, transformando em ídolos bons materiais de pedra, madeira e metal. O trabalho que cria ídolos não tem valor, não importa quão caros sejam esses materiais ou quão bem trabalhado seja o produto final.

De que vale uma imagem feita por um escultor? Ou um ídolo de metal que ensina mentiras? Pois aquele que o faz confia em sua própria criação, fazendo ídolos incapazes de falar. (Hc 2.18)
Como Sofonias coloca, “nem a sua prata nem o seu ouro poderão livrá-los” (Sf 1.18).

Fidelidade não quer dizer um simples proferir louvores a Deus enquanto trabalhamos. É colocar as prioridades de Deus em primeiro lugar no trabalho. Habacuque lembra que “o Senhor, porém, está em seu santo templo; diante dele fique em silêncio toda a terra” (Hc 2.20). Esse silêncio não é apenas uma observação religiosa, mas um silenciar de nossas ambições, nossos medos e nossas motivações imperfeitas para que as prioridades da aliança de Deus possam se tornar nossas prioridades. Considere o que espera aqueles que fraudam os outros no setor bancário e financeiro.

“Ai daquele que amontoa bens roubados e enriquece mediante extorsão! Até quando isto continuará assim?” Não se levantarão de repente os seus credores? Não se despertarão os que o fazem tremer? Agora você se tornará vítima deles. (Hc 2.6-7)

Aqueles que acumulam ganhos ilícitos por meio da aquisição de imóveis — um fenômeno que parece persistir ao longo de todas as épocas — estão igualmente montando armadilhas para si mesmos.

Ai daquele que obtém lucros injustos para a sua casa, para pôr seu ninho no alto e escapar das garras do mal! Você tramou a ruína de muitos povos, envergonhando a sua própria casa e pecando contra a sua própria vida. Pois as pedras clamarão da parede, e as vigas responderão do madeiramento contra você. (Hc 2.9-11)

Aqueles que exploram a vulnerabilidade alheia também trazem julgamento sobre si mesmos.

Ai daquele que dá bebida ao seu próximo, misturando-a com o seu furor, até que ele fique bêbado, para lhe contemplar a nudez. Beba bastante vergonha, em vez de glória! Sim! Beba, você também, e exponha-se! A taça da mão direita do Senhor é dada a você; muita vergonha cobrirá a sua glória. (Hc 2.15-16)

Em última análise, o trabalho que oprime ou tira vantagem dos outros provoca a própria queda.

Talvez hoje não estejamos literalmente criando ídolos a partir de materiais preciosos, diante dos quais nos curvamos, mas o trabalho também pode ser idólatra se imaginarmos que somos capazes de produzir a própria salvação. Pois a essência da idolatria é que “aquele que o faz [o ídolo] confia em sua própria criação” (Hc 2.18), em vez de confiar no Deus por cuja direção e poder fomos criados para trabalhar. Se temos ambição por poder e influência porque pensamos que sem nossa sabedoria, habilidade e liderança o grupo de trabalho, a empresa, a organização ou a nação estarão condenados, então nossa ambição é uma forma de idolatria. Em contrapartida, se nossa ambição por poder e influência se traduz em uma maneira de atrair pessoas para uma rede de serviço em que todos façam uso dos dons de Deus em benefício do mundo, então nossa ambição é uma forma de fidelidade. Se nossa resposta ao sucesso é a autocongratulação, estamos praticando idolatria. Se nossa resposta é gratidão, então estamos adorando a Deus. Se nossa reação ao fracasso é desespero, estamos sentindo o vazio de um ídolo quebrado, mas se nossa reação é perseverança, então estamos experimentando o poder salvador de Deus.

Fidelidade em meio à labuta (Habacuque 2.1; Sofonias 2.1-4)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Há outra dinâmica do trabalho no exílio. Apesar da ênfase de Naum, Habacuque e Sofonias sobre o castigo, durante esse período as pessoas também começam a reaprender a trabalhar fielmente a Deus. Isso é explorado em detalhes em artigos do Projeto Teologia do Trabalho, como Jeremias e Lamentações e trabalho e Daniel e trabalho, mas também é sugerido aqui no Livro dos Doze. O ponto principal é que, mesmo nas circunstâncias deploráveis ​​do exílio, ainda é possível ser fiel. Enquanto observava a carnificina ao seu redor, sem dúvida desejando estar em outro lugar, Habacuque decidiu ficar em seu posto e ali ouvir a Palavra de Deus (Hc 2.1). Entretanto, é possível fazer mais do que simplesmente permanecer em seu posto, por mais valioso que seja. Também podemos encontrar uma maneira de ser justos e humildes.

Busquem o Senhor, todos vocês, os humildes da terra, vocês que fazem o que ele ordena. Busquem a justiça, busquem a humildade; talvez vocês tenham abrigo no dia da ira do Senhor. (Sf 2.3)

Não existem locais de trabalho ideais. Alguns são profundamente desafiadores para o povo de Deus, comprometedores de muitas maneiras, enquanto outros são falhos em aspectos mais corriqueiros. Porém, mesmo em locais de trabalho difíceis, ainda podemos ser testemunhas fiéis dos propósitos de Deus, tanto na qualidade de nossa presença quanto na de nosso trabalho. Habacuque nos lembra que, por mais infrutífero que nosso trabalho pareça, Deus está ali conosco, concedendo-nos uma alegria que não pode ser totalmente suplantada nem mesmo pelas piores condições de trabalho.

Mesmo não florescendo a figueira e não havendo uvas nas videiras, mesmo falhando a safra de azeitonas e não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral, nem bois nos estábulos, ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação. O Senhor, o Soberano, é a minha força; ele faz os meus pés como os do cervo; faz-me andar em lugares altos. (Hc 3.17-19)

Ou, como diz a paráfrase de Terry Barringer,

Embora o contrato termine, E não haja trabalho a ser feito;
Embora não haja demanda por minhas habilidades, E ninguém publique meu trabalho. Ainda que minhas economias acabem e a aposentadoria não seja suficiente para o sustento; Ainda assim eu me alegrarei no Senhor e me regozijarei em Deus, meu Salvador. [1]

Como o versículo 19 sugere, o bom trabalho é possível mesmo em meio a circunstâncias difíceis, pois “o Senhor, o Soberano, é a minha força”. Fidelidade não é apenas uma questão de suportar dificuldades, mas de transformar a pior situação, de todas as formas possíveis, em algo melhor.

Trabalho fiel após o exílio — Ageu, Zacarias, Malaquias

Voltar ao índice Voltar ao índice

Findo o exílio, a sociedade civil e a vida religiosa judaica foram restauradas na terra da promessa de Deus. Jerusalém e seu templo foram reconstruídos, bem como a infraestrutura econômica, social e religiosa da sociedade judaica. O Livro dos Doze agora se volta para os desafios do trabalho que se seguiu ao pecado e ao castigo.

A necessidade de capital social (Ageu 1.1—2.19)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Um dos desafios que enfrentamos no trabalho é a tentação de colocar a nós mesmos e a família à frente da sociedade. O profeta Ageu pinta um quadro nítido desse desafio. Ele confronta pessoas que trabalham arduamente para reconstruir a própria casa enquanto negligenciam o investimento de recursos para a reconstrução do templo, o centro da sociedade judaica. “Acaso é tempo de vocês morarem em casas de fino acabamento, enquanto a minha casa continua destruída?” (Ag 1.4). Ele diz que a falha em investir em capital social está, na verdade, diminuindo sua produtividade individual.

Vocês têm plantado muito, e colhido pouco. Vocês comem, mas não se fartam. Bebem, mas não se satisfazem. Vestem-se, mas não se aquecem. Aquele que recebe salário, recebe-o para colocá-lo numa bolsa furada. (Ag 1.6)
Assim o Senhor encorajou o governador de Judá, Zorobabel, filho de Sealtiel, o sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque, e todo o restante do povo, e eles começaram a trabalhar no templo do Senhor dos Exércitos, o seu Deus, no vigésimo quarto dia do sexto mês do segundo ano do reinado de Dario. (Ag 1.14-15).

Investir em capital social nos lembra de que não existe essa ideia de “self-made man”. Embora o esforço individual possa gerar grande riqueza, cada um de nós depende de recursos e infraestrutura social oriundos, em última análise, de Deus. “‘Encherei este templo de glória’, diz o Senhor dos Exércitos. ‘Tanto a prata quanto o ouro me pertencem’, declara o Senhor dos Exércitos” (Ag 2.7-8). A prosperidade não é uma questão apenas — ou nem mesmo principalmente — de esforço pessoal, mas do esforço de uma comunidade fundamentada na aliança de Deus. “‘E neste lugar estabelecerei a paz’, declara o Senhor dos Exércitos” (Ag 2.9).

Que tolice pensar que devemos prover o próprio sustento antes de reservar tempo para Deus e para seu povo. A verdade é que não podemos nos sustentar senão pela graça da generosidade de Deus e pelo trabalho mútuo de sua comunidade. Trata-se do mesmo conceito por trás do dízimo. Não é um sacrifício de 10% da colheita, mas uma bênção de 100% da incrível colheita da criação de Deus.

Isso nos lembra, ainda hoje, da importância de investir recursos nos aspectos intangíveis da vida. Moradia, comida, automóveis e outras necessidades físicas são importantes, mas Deus nos provê com recursos suficientes para que também invistamos em arte, música, educação, natureza, recreação e em inúmeras coisas que alimentam a alma. Aqueles que trabalham nas artes, nas ciências humanas ou na indústria de lazer, ou investem recursos na criação de parques, playgrounds e teatros estão contribuindo para o mundo sonhado por Deus tanto quanto o empresário ou o carpinteiro.

Isso também sugere que investir em igrejas e na vida eclesiástica é crucial para fortalecer o trabalho dos cristãos. Como vimos, a adoração em si está intrinsecamente ligada à realização de um bom trabalho, e talvez devêssemos nos engajar nela como um processo de desenvolvimento de um bom trabalho, e não apenas como devoção pessoal ou prazer. Além disso, a comunidade cristã pode ser uma força poderosa para o bem-estar econômico, cívico e social se aprender a usar o poder espiritual e ético da palavra de Deus para influenciar questões de trabalho nos setores econômico, social, governamental, acadêmico, médico, científico e outros.

Trabalho, adoração e meio ambiente (Ageu 1.1—2.19; Zacarias 7.8-14)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Ageu relaciona o bem-estar econômico e social das pessoas com o meio ambiente. Por meio de um jogo de palavras mais óbvio em hebraico do que na tradução para o português, Ageu relaciona a desolação do templo (“destruído”, do hebraico hareb, Ag 1.9) com a desolação da terra e suas colheitas (“seca”, do hebraico horeb) e a consequente decadência do bem-estar geral de “homens” e “gado” e também do “trabalho das mãos” humanas (Ag 1.11). A chave desse elo está na condição do templo, que se torna uma espécie de código para a fidelidade ou a infidelidade religiosa do povo. Portanto, há uma conexão tripla entre adoração, saúde socioeconômica e meio ambiente e adoração. Quando o ambiente físico do qual dependemos está doente, a sociedade humana também está, e um dos indícios de uma sociedade doente é sua contribuição para o adoecimento do meio ambiente.

Há também uma relação entre como uma comunidade adora e cuida da terra e a condição econômica e política daqueles que a ocupam. Os profetas nos chamam a reaprender a lição segundo a qual o ponto de partida para a paz entre a terra e seus habitantes está no respeito pelo criador da terra que ocupamos. Para Ageu, a seca da terra e a ruína do templo são inseparáveis. A adoração verdadeira e sincera traz paz e bênçãos da terra. “Atentem para o dia em que os fundamentos do templo do Senhor foram lançados. Reconsiderem: ainda há alguma semente no celeiro? Até hoje a videira, a figueira, a romeira e a oliveira não têm dado fruto. Mas, de hoje em diante, abençoarei vocês” (Ag 2.18-19). Zacarias também estabelece uma relação entre o pecado humano e a desolação da terra. Aqueles que estão no poder não devem oprimir “a viúva e o órfão, nem o estrangeiro e o necessitado” (Zc 7.10). “Endureceram o coração e não ouviram a Lei e as palavras que o Senhor dos Exércitos tinha falado” (Zc 7.12). Como resultado, o meio ambiente ficou degradado e, assim, “a terra que deixaram para trás ficou tão destruída que ninguém podia atravessá-la” (Zc 7.14). Na verdade, Joel havia observado o início dessa degradação muito antes do exílio. “A vinha está seca, e a figueira murchou; a romãzeira, a palmeira, a macieira e todas as árvores do campo secaram. Secou-se, mais ainda, a alegria dos homens” (Jl 1.12).

Dada a importância do trabalho e de suas práticas para o bem-estar do meio ambiente, se os cristãos trabalhassem de acordo com a visão dos Doze Profetas, poderíamos gerar um impacto profundamente benéfico no planeta e em todos os habitantes. [1] É uma responsabilidade ambiental urgente dos fiéis aprenderem concretamente como fundamentar seu trabalho no culto a Deus.

O longo oráculo de Ageu sobre a pureza (Ag 2.10-19) também sugere uma conexão entre a pureza e a saúde da terra. Deus denuncia que, por causa da impureza do povo, “tudo o que fazem e tudo o que me oferecem é impuro” (Ag 2.14). Isso faz parte do vínculo mais geral entre a adoração e a condição do meio ambiente. Uma aplicação possível é que um ambiente puro significa um ambiente tratado de maneira sustentável por aqueles a quem Deus deu a responsabilidade por seu bem-estar, ou seja, a humanidade. Assim, a pureza implica respeito fundamental pela integridade de toda a ordem criada, pela saúde de suas ecosferas, pela viabilidade e pelo bem-estar de suas espécies, e pela capacidade de renovação de sua produtividade. E, assim, voltamos ao tema dos cristãos e das práticas de trabalho responsável.

Consequentemente, se a desolação é parte do castigo de Deus pelo pecado do povo relatado no Livro dos Doze, o solo produtivo é parte da restauração do povo. De fato, em circunstâncias bem diferentes, Zacarias tem uma visão muito semelhante à de Amós durante o tempo da prosperidade israelita: pessoas experimentando bem-estar, representado pelo ato de sentarem-se sob as figueiras que plantaram. “‘Naquele dia’, declara o Senhor dos Exércitos, ‘cada um de vocês convidará seu próximo para assentar-se debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira’” (Zc 3.10). A paz com Deus inclui cuidar da terra que ele criou. A terra produtiva, é claro, precisa ser trabalhada para produzir seus frutos. E, assim, o mundo do trabalho está intimamente ligado à concretização da vida abundante.

O pecado e a esperança permanecem presentes no trabalho (Malaquias 1.1—4.6)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Mesmo no tempo da restauração, o pecado humano nunca está distante. Malaquias, o terceiro dos profetas da restauração, queixa-se de que algumas pessoas começam a lucrar fraudando o salário do trabalhadores (Ml 3.5). Não é de surpreender que elas também corrompam a adoração no templo, reduzindo sua contribuição em ofertas (Ml 1.8-19) e assim colaborando para a degradação do meio ambiente (Ml 3.11).

No entanto, a esperança dos profetas se mantém, e o trabalho está no centro dela. Começa com a promessa de restaurar a infraestrutura religiosa/social do templo. “‘Vejam, eu enviarei o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim. E então, de repente, o Senhor que vocês buscam virá para o seu templo; o mensageiro da aliança, aquele que vocês desejam, virá’, diz o Senhor dos Exércitos” (Ml 3.1). Prossegue com a restauração do meio ambiente. “Impedirei que pragas devorem suas colheitas” (Ml 3.11a), Deus promete, e, então, “a terra de vocês será maravilhosa” (Ml 3.12). As pessoas trabalharão de forma ética (Ml 3.14,18) e, como resultado, a economia será restaurada, uma vez que “as videiras nos campos não perderão o seu fruto” (Ml 3.11b).

Jonas e a bênção de Deus para todas as nações

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como observado na Introdução, o livro de Jonas é um estranho entre os doze profetas. A trama não ocorre em Israel. O texto não dá nenhuma indicação de data. Não contém oráculos proféticos, e o foco não está nas pessoas a quem o profeta é enviado, mas em sua experiência pessoal. [1] No entanto, ele compartilha a perspectiva dos outros profetas de que Deus está ativo no mundo (Jn 1.2,17; 2.10) e de que a fidelidade a Deus (ou a falta dela) está por trás da tripla relação entre adoração, saúde socioeconômica e meio ambiente. Quando os marinheiros oram ao Senhor e obedecem à sua palavra, o mar se acalma e Deus provê o bem-estar deles e de Jonas (Jn 1.14-19). Quando Jonas volta a adorar adequadamente, o Senhor devolve o ambiente à sua ordem correta: peixes no mar, pessoas em terra firme (Jn 2.7-10). Quando Nínive se volta para o Senhor, os animais e os seres humanos se unem em harmonia e as violações socioeconômicas cessam (Jn 3.4-10). O cenário de Jonas é diferente do restante dos Doze Profetas, mas não de sua teologia. As contribuições singulares do livro de Jonas são: 1) foco no chamado e na resposta do profeta e 2) reconhecimento de que Deus não trabalha para abençoar Israel em detrimento das outras nações, mas para abençoar as outras nações por meio de Israel. [2]

O chamado e a resposta de Jonas (Jonas 1.1-17)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Como é típico nos Doze Profetas, o livro de Jonas começa com um chamado de Deus ao profeta (Jn 1.1-2). Ao contrário dos outros, porém, Jonas rejeita o chamado de Deus. Tolamente, ele tenta fugir da presença do Senhor pegando um navio para terras estrangeiras (Jn 1.3). Isso põe em perigo não apenas a ele, mas seus companheiros de bordo, pois — como vimos em todo o Livro dos Doze — quebrar a aliança com Deus tem consequências tangíveis, e as ações dos indivíduos sempre afetam a comunidade. Deus envia uma tempestade. Primeiro, ela destrói as perspectivas comerciais dos marinheiros, que são forçados a jogar toda a carga no mar para aliviar o peso do navio (Jn 1.5). Por fim, ela ameaça a própria vida deles (Jn 1.11). Somente quando Jonas se oferece para ser lançado ao mar — o que os marinheiros aceitam com relutância — a tempestade se acalma e o perigo para a comunidade diminui (Jn 1.12-15).

O propósito do chamado de Deus é servir pessoas. O chamado de Jonas é para o benefício de Nínive. Quando ele rejeita a orientação de Deus, não apenas as pessoas para quem ele foi chamado a servir se debilitam, mas também sofrem as que estão ao seu redor. Se aceitarmos que todos somos chamados para servir a Deus no trabalho — o que provavelmente é diferente da obra de Jonas, mas não menos importante para Deus (ver artigo do Projeto Teologia do Trabalho, Visão geral sobre Vocação) —, reconheceremos que deixar de servir a Deus no trabalho também enfraquecerá nossas comunidades. Quanto mais poderosos forem os dons e talentos recebidos, maior será o dano que poderemos causar se rejeitarmos a orientação de Deus no trabalho. Todos nós certamente conseguimos nos lembrar de pessoas cujas habilidades prodigiosas lhes permitiram causar grandes danos no setor empresarial, governamental, social, científico, religioso etc. Imagine o bem que elas poderiam ter feito, e o mal que poderiam ter evitado, se tivessem submetido suas habilidades primeiro à adoração e ao serviço do Senhor. Comparativamente, nossos dons podem parecer insignificantes, mas imagine o bem que poderíamos fazer e o mal que poderíamos evitar se, ao longo da vida, concentrássemos o trabalho a serviço de Deus.

A bênção de Deus para todas as nações (Jonas 1.16; 3.1—4.2)

Voltar ao índice Voltar ao índice

Jonas desobedece ao chamado de Deus porque se opõe à intenção de Deus de abençoar os adversários de Israel, ou seja, a nação da Assíria e sua capital, Nínive. Quando finalmente cede e sua missão é bem-sucedida, ele se ressente da misericórdia de Deus para com eles (Jn 4.1-2). Isso é compreensível, pois, mais adiante, a Assíria conquistaria o reino do norte, Israel (2Rs 17.6). Jonas está sendo enviado para abençoar pessoas que ele despreza. No entanto, essa é a vontade de Deus. Aparentemente, a intenção de Deus é usar o povo de Israel para abençoar todas as nações, não apenas a eles (veja "Abençoe a sociedade em geral por meio de seu trabalho (Jeremias 29)" em Jeremias e Lamentações e trabalho).

É possível colocarmos as próprias limitações ao alcance das bênçãos de Deus por meio de nosso trabalho? É comum presumir que temos de acumular os benefícios de nosso trabalho para nós mesmos a fim de que outros não obtenham vantagem sobre nós. Podemos recorrer ao sigilo e ao engano, à trapaça e à corrupção, à exploração e à intimidação num esforço para obter vantagem sobre os rivais no trabalho. Parece que aceitamos como fato a suposição não comprovada de que nosso sucesso no trabalho deve vir às custas dos demais. Será que passamos a acreditar que o sucesso é um jogo em que um precisa perder para o outro poder ganhar?

A bênção de Deus não é um balde de capacidade limitada, mas uma fonte transbordante. “‘Ponham-me à prova’, diz o Senhor dos Exércitos, ‘e vejam se não vou abrir as comportas dos céus e derramar sobre vocês tantas bênçãos que nem terão onde guardá-las’” (Ml 3.10). Apesar da concorrência, das restrições de recursos e da maldade que muitas vezes enfrentamos no trabalho, a missão de Deus para nós não é nada tão insignificante quanto a sobrevivência contra todas as probabilidades, mas sim a maravilhosa transformação de nosso local de trabalho para alimentar a criatividade e a produtividade, os relacionamentos e a harmonia social bem como o equilíbrio ambiental que Deus pretendia desde o início.

Embora Jonas inicialmente se recuse a participar da bênção de Deus para seus adversários, no final sua fidelidade ao Senhor supera sua desobediência. Por fim, ele adverte Nínive e, para sua consternação, eles respondem apaixonadamente à sua mensagem. Toda a cidade, “do maior ao menor” (Jn 3.5b), desde o rei e seus nobres até as pessoas nas ruas e os animais em seus rebanhos, creram e deixaram “os maus caminhos e a violência” (Jn 3.8). “Os ninivitas creram em Deus” (Jn 3.5a) e, “tendo em vista o que eles fizeram e como abandonaram os seus maus caminhos, Deus se arrependeu e não os destruiu como tinha ameaçado” (Jn 3.10). Isso é desanimador para Jonas, porque ele continua a querer ditar os resultados da obra para a qual Deus o chamou. Ele quer punição para Nínive, não perdão. Ele julga os resultados de seu próprio trabalho com severidade (Jn 4.5) e não desfruta da alegria dos outros. Fazemos o mesmo? Quando lamentamos a aparente falta de significado e sucesso no trabalho, não estaríamos nos esquecendo de que apenas Deus pode ver o verdadeiro valor daquilo que fazemos?

No entanto, mesmo os pequenos e hesitantes momentos de obediência a Deus na vida de Jonas levam a bênçãos para aqueles que estão ao seu redor. No navio, ele reconhece que é “hebreu, adorador do Senhor, o Deus dos céus” (Jn 1.9) e se sacrifica pelo bem de seus companheiros de bordo. Como resultado, eles são salvos da tempestade e ainda se tornam seguidores do Senhor. “Tomados de grande temor ao Senhor, os homens lhe ofereceram um sacrifício e se comprometeram por meio de votos” (Jn 1.16).

Se reconhecermos que nosso trabalho no serviço de Deus é prejudicado por desobediência, ressentimento, negligência, medo, egoísmo ou outros males, a experiência de Jonas poderá ser um incentivo para nós. Temos aqui um profeta cujo fracasso no serviço fiel talvez seja ainda maior que o nosso. No entanto, Deus realiza plenamente sua missão por meio do serviço hesitante, falho e intermitente de Jonas. Pelo poder de Deus, nosso serviço deficiente pode realizar tudo o que Deus pretende.

O cuidado de Deus por aqueles que respondem ao seu chamado (Jonas 1.3,12-14, 17; 2.10; 4.3-8)

Voltar ao índice Voltar ao índice

À luz da experiência de Jonas, talvez temamos que o chamado de Deus nos leve a calamidades e dificuldades. Não seria mais fácil esperar que Deus não nos chamasse? É verdade que responder ao chamado de Deus pode exigir grande sacrifício e privações. [1] No entanto, no caso de Jonas, a dificuldade não surge do chamado de Deus, mas da desobediência de Jonas em atendê-lo. O naufrágio e os três dias de sepultamento no mar, nas entranhas do grande peixe, advêm diretamente de sua tentativa de fugir da presença de Deus. Sua exposição posterior ao sol e ao vento e o desespero que quase o leva ao suicídio (Jn 4.3-8) não são dificuldades impostas por Deus. Elas se dão porque Jonas se recusa a aceitar as bênçãos de um “Deus misericordioso e compassivo, muito paciente, cheio de amor e que [promete] castigar, mas depois [se arrepende]” (Jn 4.2).

A verdade é que Deus está sempre trabalhando para cuidar de Jonas e para consolá-lo. Deus move as pessoas para que tenham compaixão dele, como ocorreu quando os marinheiros tentam levar o navio a terra firme em vez de aceitar a oferta de Jonas de ser jogado ao mar (Jn 1.12-14). Deus envia um peixe para salvar Jonas do afogamento (Jn 1.17) e, depois, diz ao peixe que vomite Jonas em terra firme (Jn 2.10). Ele concede a Jonas o favor da população inimiga de Nínive, que o trata bem e ouve sua mensagem. Fornece sombra e abrigo a Jonas, em Nínive (Jn 4.5-6), em seu momento de maior necessidade.

Se o caso de Jonas pode servir de exemplo, o chamado de Deus para servir os outros no trabalho não precisa vir à custa de nosso bem-estar. Esperar o contrário seria permanecer preso à mentalidade do jogo em que é preciso um perder para que o outro ganhe. Dadas as medidas extraordinárias que Deus toma para cuidar de Jonas quando este rejeita seu chamado, imagine as bênçãos que Jonas poderia ter experimentado se tivesse aceitado o chamado desde o início. Os meios para viajar, amigos dispostos a arriscar a vida por ele, harmonia com o mundo da natureza, sombra e abrigo, a estima das pessoas entre as quais ele trabalha e um sucesso surpreendente no trabalho — imagine que grande bênção todas essas coisas poderiam ter sido se Jonas as tivesse aceitado como Deus pretendia. Mesmo Jonas depreciando-as, elas mostram que o chamado de Deus para o serviço também é um convite à bênção.

Conclusões dos Doze Profetas

Voltar ao índice Voltar ao índice

O Livro dos Doze Profetas traz uma perspectiva unificada sobre o trabalho para uma diversidade de épocas e situações na vida de Israel. Todos os momentos demonstram que Deus está trabalhando no mundo, pronto para trazer o melhor a seu povo, se este simplesmente guardar sua aliança. Antes do exílio, os profetas desafiaram as elites de Israel quanto ao uso do poder e à fidelidade na adoração. Seu tema constante é que nenhuma adoração é aceitável para Deus a menos que seja acompanhada de justiça econômica e política, pois Deus não reconhece separação entre o serviço de adoração e o trabalho da vida cotidiana. Ele não aceita que alguns prosperem sem nada fazer pelo bem comum e pelos membros mais pobres e vulneráveis ​​da sociedade.

O fracasso de Israel em trabalhar/adorar como Deus ordena leva à catástrofe nacional e ao exílio na Babilônia. Durante o exílio, os profetas chamam o povo a encarar seus fracassos e, ao fazê-lo, descobrem que, mesmo nos piores momentos, eles tiveram a oportunidade de ser fiéis. Mais uma vez, sua fidelidade é vista tanto no trabalho quanto na adoração. Aqueles que trabalham apenas por interesses egoístas não estão em melhor situação do que os que adoram ídolos. De fato, ao elevar o trabalho e a consequente riqueza a fins em si mesmos, o trabalho se resume a idolatria. Mas aqueles que trabalham com justiça, de acordo com a aliança de Deus, descobrirão que mesmo nas piores circunstâncias Deus está presente no trabalho, trazendo alegria e frutos.

Após o retorno do exílio, os profetas desafiam Israel a manter prioridades piedosas enquanto se restabelecem na terra e a reconstroem da devastação. Mais uma vez, o desenvolvimento econômico, o comércio justo, o governo que provê o bem comum e o trabalho a serviço do outro formam a base da verdadeira adoração. Todos são chamados a trabalhar em cooperação com Deus e com a comunidade de fé visando à paz e ao bem-estar que Deus deseja para sua criação.

Assim como no antigo Israel, esse ainda é nosso chamado. Na ordenação hebraica do Antigo Testamento, que os cristãos também observam, o Livro dos Doze Profetas tem a última palavra antes que as páginas do Novo Testamento sejam abertas. Assim, eles apontam para Jesus, que veio para cumprir a esperança dos profetas quanto à vida abundante em todas as esferas da atividade humana, incluindo o trabalho, e, ao fazê-lo, concretizam a promessa que Deus fez a Zacarias: “Assim diz o Senhor dos Exércitos: ‘As minhas cidades transbordarão de prosperidade novamente’”(Zc 1.17).

Versículos-chave e temas de referência cruzada nos Doze Profetas

Voltar ao índice Voltar ao índice

Versículo

Seção

Oseias 1.2 Quando o Senhor começou a falar por meio de Oseias, disse-lhe: “Vá, tome uma mulher adúltera e filhos da infidelidade, porque a nação é culpada do mais vergonhoso adultério por afastar-se do Senhor”.

Deus exige mudanças

Oseias 4.3 Por isso a terra pranteia, e todos os seus habitantes desfalecem; os animais do campo, as aves do céu e os peixes do mar estão morrendo.

Trabalho e adoração

Oseias 4.7-10 Quanto mais aumentaram os sacerdotes, mais eles pecaram contra mim; trocaram a Glória deles por algo vergonhoso. Eles se alimentam dos pecados do meu povo [...]. Eles comerão, mas não terão o suficiente; eles se prostituirão, mas não aumentarão a prole, porque abandonaram o Senhor [...].

Trabalho e adoração

Oseias 14.1-9 Volte, ó Israel, para o Senhor, o seu Deus. Seus pecados causaram sua queda! Preparem o que vão dizer e voltem para o Senhor. Peçam-lhe: “Perdoa todos os nossos pecados e, por misericórdia, recebe-nos, para que te ofereçamos o fruto dos nossos lábios. A Assíria não nos pode salvar; não montaremos cavalos de guerra. Nunca mais diremos: ‘Nossos deuses àquilo que as nossas próprias mãos fizeram’, porque tu amas o órfão”. [...] Os caminhos do Senhor são justos; os justos andam neles, mas os rebeldes neles tropeçam.

Deus torna a mudança possível

Joel 2.28-29 “E, depois disso, derramarei do meu Espírito sobre todos os povos. Os seus filhos e as suas filhas profetizarão, os velhos terão sonhos, os jovens terão visões. Até sobre os servos e as servas derramarei do meu Espírito naqueles dias.”

Trabalhar injustamente

Amós 3.13-15 “Ouçam isto e testemunhem contra a descendência de Jacó”, declara o Senhor, o Soberano, o Deus dos Exércitos. “No dia em que eu castigar Israel por causa dos seus pecados, destruirei os altares de Betel; as pontas do altar serão cortadas e cairão no chão. Derrubarei a casa de inverno junto com a casa de verão; as casas enfeitadas de marfim serão destruídas, e as mansões desaparecerão”, declara o Senhor.

Apatia devido à riqueza

Amós 5.14 Busquem o bem, não o mal, para que tenham vida. Então o Senhor, o Deus dos Exércitos, estará com vocês, conforme vocês afirmam.

Trabalho injusto

Amós 5.21-24 “Eu odeio e desprezo as suas festas religiosas; não suporto as suas assembleias solenes. Mesmo que vocês me tragam holocaustos e ofertas de cereal, isso não me agradará. [...] Afastem de mim o som das suas canções e a música das suas liras. Em vez disso, corra a retidão como um rio, a justiça como um ribeiro perene!”

Trabalho e adoração

Amós 6.4-7 Ai de vocês que vivem tranquilos em Sião e que se sentem seguros no monte de Samaria; vocês, homens notáveis da primeira entre as nações, aos quais o povo de Israel recorre! Vão a Calné e olhem para ela; depois prossigam até a grande Hamate e, em seguida, desçam até Gate, na Filístia. São elas melhores do que os seus dois reinos? [...] Por isso vocês estarão entre os primeiros a ir para o exílio; cessarão os banquetes dos que vivem no ócio.

Apatia devido à riqueza

Amós 6.7 Por isso vocês estarão entre os primeiros a ir para o exílio; cessarão os banquetes dos que vivem no ócio.

Apatia devido à riqueza

Amós 9.11-15 “Naquele dia, levantarei a tenda caída de Davi. Consertarei o que estiver quebrado, e restaurarei as suas ruínas. Eu a reerguerei, para que seja como era no passado, para que o meu povo conquiste o remanescente de Edom e todas as nações que me pertencem”, declara o Senhor, que realizará essas coisas. “[...] Plantarei Israel em sua própria terra, para nunca mais ser desarraigado da terra que lhe dei”, diz o Senhor, o seu Deus.

Deus torna a mudança possível

Obadias 1.21 Os vencedores subirão ao monte Sião para governar a montanha de Esaú. E o reino será do Senhor.

Deus torna a mudança possível

Jonas 4.2 Ele orou ao Senhor: “Senhor, não foi isso que eu disse quando ainda estava em casa? Foi por isso que me apressei em fugir para Társis. Eu sabia que tu és Deus misericordioso e compassivo, muito paciente, cheio de amor e que prometes castigar, mas depois te arrependes”.

A bênção de Deus para todas as nações

Miqueias 2.2 Cobiçam terrenos e se apoderam deles; cobiçam casas e as tomam. Fazem violência ao homem e à sua família; a ele e aos seus herdeiros.

Deus exige mudanças

Miqueias 4.1-5 Nos últimos dias, acontecerá que o monte do templo do Senhor será estabelecido como o principal entre os montes e se elevará acima das colinas. E os povos a ele acorrerão. Muitas nações virão, dizendo: “Venham, subamos ao monte do Senhor, ao templo do Deus de Jacó. Ele nos ensinará os seus caminhos, para que andemos nas suas veredas”. [...] Pois todas as nações andam, cada uma em nome dos seus deuses, mas nós andaremos em nome do Senhor, o nosso Deus, para todo o sempre.

Deus torna a mudança possível

Miqueias 4.3 Ele julgará entre muitos povos e resolverá contendas entre nações poderosas e distantes. Das suas espadas farão arados, e das suas lanças, foices. Nenhuma nação erguerá a espada contra outra, e não aprenderão mais a guerra.

Deus torna a mudança possível

Miqueias 6.6-7 Com que eu poderia comparecer diante do Senhor e curvar-me perante o Deus exaltado? Deveria oferecer holocaustos de bezerros de um ano? Ficaria o Senhor satisfeito com milhares de carneiros, com dez mil ribeiros de azeite? Devo oferecer o meu filho mais velho por causa da minha transgressão, o fruto do meu corpo por causa do pecado que eu cometi?

Trabalho e adoração

Miqueias 6.8 Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus.

Trabalho e adoração

Naum 1.1-12 Advertência contra Nínive. Livro da visão de Naum, de Elcós. O Senhor é Deus zeloso e vingador! O Senhor é vingador! Seu furor é terrível! O Senhor executa vingança contra os seus adversários e manifesta o seu furor contra os seus inimigos. O Senhor é muito paciente, mas o seu poder é imenso; o Senhor não deixará impune o culpado. O seu caminho está no vendaval e na tempestade, e as nuvens são a poeira de seus pés. [...] Assim diz o Senhor: “Apesar de serem fortes e numerosos, serão ceifados e destruídos; mas você, Judá, embora eu a tenha afligido, não a afligirei mais”.

Fé e trabalho durante o exílio

Habacuque 2.1 Ficarei no meu posto de sentinela e tomarei posição sobre a muralha; aguardarei para ver o que o Senhor me dirá e que resposta terei à minha queixa.

Fé e trabalho durante o exílio

Habacuque 2.6-7 “Ai daquele que amontoa bens roubados e enriquece mediante extorsão! Até quando isto continuará assim?” Não se levantarão de repente os seus credores? Não se despertarão os que o fazem tremer? Agora você se tornará vítima deles.

Fé e trabalho durante o exílio

Habacuque 2.15-16 Ai daquele que dá bebida ao seu próximo, misturando-a com o seu furor, até que ele fique bêbado, para lhe contemplar a nudez. Beba bastante vergonha, em vez de glória! Sim! Beba, você também, e exponha-se! A taça da mão direita do Senhor é dada a você; muita vergonha cobrirá a sua glória.

Fé e trabalho durante o exílio

Habacuque 2.18-19 “De que vale uma imagem feita por um escultor? Ou um ídolo de metal que ensina mentiras? Pois aquele que o faz confia em sua própria criação, fazendo ídolos incapazes de falar. Ai daquele que diz à madeira: ‘Desperte!’ Ou à pedra sem vida: ‘Acorde!’ Poderá o ídolo dar orientação? Está coberto de ouro e prata, mas não respira.”

Trabalho idólatra

Habacuque 2.20 “O Senhor, porém, está em seu santo templo; diante dele fique em silêncio toda a terra.”

Trabalho idólatra

Habacuque 3.17-19 Mesmo não florescendo a figueira e não havendo uvas nas videiras, mesmo falhando a safra de azeitonas e não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral, nem bois nos estábulos, ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação. O Senhor, o Soberano, é a minha força; ele faz os meus pés como os do cervo; faz-me andar em lugares altos.

Fidelidade em meio à labuta

Sofonias 1.18 Nem a sua prata nem o seu ouro poderão livrá-los no dia da ira do Senhor. No fogo do seu zelo o mundo inteiro será consumido, pois ele dará fim repentino a todos os que vivem na terra.

Trabalho idólatra

Sofonias 2.1-3 Reúna-se e ajunte-se, nação sem pudor, antes que chegue o tempo determinado e aquele dia passe como a palha, antes que venha sobre vocês a ira impetuosa do Senhor, antes que o dia da ira do Senhor os alcance. Busquem o Senhor, todos vocês, os humildes da terra, vocês que fazem o que ele ordena. Busquem a justiça, busquem a humildade; talvez vocês tenham abrigo no dia da ira do Senhor.

Fidelidade em meio à labuta

Sofonias 2.3 Busquem o Senhor, todos vocês, os humildes da terra, vocês que fazem o que ele ordena. Busquem a justiça, busquem a humildade; talvez vocês tenham abrigo no dia da ira do Senhor.

Fidelidade em meio à labuta

Ageu 1.2-4 “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Este povo afirma: ‘Ainda não chegou o tempo de reconstruir a casa do Senhor’”. Por isso, a palavra do Senhor veio novamente por meio do profeta Ageu: “Acaso é tempo de vocês morarem em casas de fino acabamento, enquanto a minha casa continua destruída?”.

Fé e trabalho durante o exílio

Ageu 1.9 “Vocês esperavam muito, mas, eis que veio pouco. E o que vocês trouxeram para casa eu dissipei com um sopro. E por que o fiz?”, pergunta o Senhor dos Exércitos. “Por causa do meu templo, que ainda está destruído enquanto cada um de vocês se ocupa com a sua própria casa.”

Fé e trabalho durante o exílio

Ageu 1.10-15 “Por isso, por causa de vocês, o céu reteve o orvalho e a terra deixou de dar o seu fruto. Nos campos e nos montes provoquei uma seca que atingiu o trigo, o vinho, o azeite e tudo mais que a terra produz, e também os homens e o gado. [...]” Assim o Senhor encorajou o governador de Judá, Zorobabel, filho de Sealtiel, o sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque, e todo o restante do povo, e eles começaram a trabalhar no templo do Senhor dos Exércitos, o seu Deus, no vigésimo quarto dia do sexto mês do segundo ano do reinado de Dario.

Fé e trabalho durante o exílio

Ageu. 1.11 “Nos campos e nos montes provoquei uma seca que atingiu o trigo, o vinho, o azeite e tudo mais que a terra produz, e também os homens e o gado. O trabalho das mãos de vocês foi prejudicado.”

Fé e trabalho durante o exílio

Ageu. 1.14-15 Assim o Senhor encorajou o governador de Judá, Zorobabel, filho de Sealtiel, o sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque, e todo o restante do povo, e eles começaram a trabalhar no templo do Senhor dos Exércitos, o seu Deus, no vigésimo quarto dia do sexto mês do segundo ano do reinado de Dario.

Fé e trabalho durante o exílio

Ageu. 2.7-8 “Encherei este templo de glória”, diz o Senhor dos Exércitos. “Tanto a prata quanto o ouro me pertencem”, declara o Senhor dos Exércitos.

Fé e trabalho durante o exílio

Ageu. 2.18-19 “Atentem para o dia em que os fundamentos do templo do Senhor foram lançados. Reconsiderem: ainda há alguma semente no celeiro? Até hoje a videira, a figueira, a romeira e a oliveira não têm dado fruto. Mas, de hoje em diante, abençoarei vocês.”

Fé e trabalho durante o exílio

Zacarias 1.17 “Assim diz o Senhor dos Exércitos: ‘As minhas cidades transbordarão de prosperidade novamente, e o Senhor tornará a consolar Sião e a escolher Jerusalém’.”

Conclusões

Zacarias 3.10 “‘Naquele dia’, declara o Senhor dos Exércitos, ‘cada um de vocês convidará seu próximo para assentar-se debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira’.”

Fé e trabalho durante o exílio

Zacarias 7.9-14 “Assim diz o Senhor dos Exércitos: Administrem a verdadeira justiça, mostrem misericórdia e compaixão uns para com os outros. Não oprimam a viúva e o órfão, nem o estrangeiro e o necessitado. Nem tramem maldades uns contra os outros”. Mas eles se recusaram a dar atenção; [...]. Por isso o Senhor dos Exércitos irou-se muito. “Quando eu os chamei, não me deram ouvidos; por isso, quando eles me chamarem, também não os ouvirei [...]. Eu os espalhei com um vendaval entre nações que eles nem conhecem. A terra que deixaram para trás ficou tão destruída que ninguém podia atravessá-la. Foi assim que transformaram a terra aprazível em ruínas.”

Fé e trabalho durante o exílio

Malaquias 1.7-14 “Trazendo comida impura ao meu altar! E mesmo assim ainda perguntam: ‘De que maneira te desonramos?’ “Ao dizerem que a mesa do Senhor é desprezível. Na hora de trazerem animais cegos para sacrificar, vocês não veem mal algum. Na hora de trazerem animais aleijados e doentes como oferta, também não veem mal algum. [...] Não tenho prazer em vocês”, diz o Senhor dos Exércitos, “e não aceitarei as suas ofertas. [...] Maldito seja o enganador que, tendo no rebanho um macho sem defeito, promete oferecê-lo e depois sacrifica para mim um animal defeituoso”, diz o Senhor dos Exércitos; “pois eu sou um grande rei, e o meu nome é temido entre as nações.”

Fé e trabalho durante o exílio

Malaquias 3.1 “Vejam, eu enviarei o meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim. E então, de repente, o Senhor que vocês buscam virá para o seu templo; o mensageiro da aliança, aquele que vocês desejam, virá”, diz o Senhor dos Exércitos.

Fé e trabalho durante o exílio

Malaquias 3.11-12 “Impedirei que pragas devorem suas colheitas, e as videiras nos campos não perderão o seu fruto”, diz o Senhor dos Exércitos. “Então todas as nações os chamarão felizes, porque a terra de vocês será maravilhosa”, diz o Senhor dos Exércitos.

Fé e trabalho durante o exílio