Teologia do trabalho comentário bíblico: Antigo Testamento
Comentário Bíblico /Introdução a Gênesis 1-11
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Gênesis é o fundamento para a teologia do trabalho. Qualquer discussão sobre trabalho na perspectiva bíblica encontra-se baseada em passagens deste livro. Gênesis é incomparavelmente importante para a teologia do trabalho, porque conta a história da obra da criação de Deus, a primeira de todas e o protótipo de toda a obra que se segue. Deus não está sonhando uma ilusão, mas criando uma realidade. Assim, o universo criado que Deus traz à existência fornece o material do trabalho humano — espaço, tempo, matéria e energia. Dentro do universo criado, Deus está presente no relacionamento com suas criaturas e, especialmente, com as pessoas. Agindo à imagem de Deus, trabalhamos em criação, sobre criação, com criação e — se trabalharmos como Deus espera — para criação.
Em Gênesis, vemos Deus em ação e aprendemos como Deus espera que trabalhemos. Tanto obedecemos quanto desobedecemos a Deus em nosso trabalho, e descobrimos que Deus está trabalhando em nossa obediência e em nossa desobediência. Os outros sessenta e cinco livros da Bíblia têm, cada um, suas contribuições únicas para acrescentar à teologia do trabalho. No entanto, todas elas brotam da fonte encontrada aqui em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia.
Deus cria o mundo (Gênesis 1.1—2.3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA primeira coisa que a Bíblia nos diz é que Deus é um criador. “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). Deus fala e surgem coisas que não existiam antes, começando pelo próprio universo. A criação é totalmente um ato de Deus. Não é um acidente, um erro ou o produto de uma divindade inferior, mas a autoexpressão de Deus.
Deus traz à existência o mundo material (Gênesis 1.1-2)
Voltar ao índice Voltar ao índiceGênesis continua enfatizando a materialidade do mundo. “Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (Gn 1.2). A criação nascente, embora ainda “sem forma”, tem as dimensões materiais do espaço (o “abismo”) e da matéria (“águas”), e Deus está totalmente envolvido com essa materialidade (“o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”). Mais tarde, no capítulo 2, vemos até Deus trabalhando com o pó de sua criação. “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra” (Gn 2.7). Ao longo dos capítulos 1 e 2, vemos Deus envolvido na fisicalidade de sua criação.
Qualquer teologia do trabalho deve começar com uma teologia da criação. Consideramos o mundo material, as coisas com as quais trabalhamos, como sendo coisas de primeira qualidade pertencentes a Deus e imbuídas de valor duradouro? Ou o descartamos como um ambiente de trabalho temporário, uma área de testes, um navio afundando de onde devemos escapar para chegar à verdadeira localização de Deus em um “céu” imaterial? Gênesis argumenta contra qualquer noção de que o mundo material é menos importante para Deus do que o mundo espiritual. Ou, para ser mais exato, em Gênesis não há uma distinção nítida entre o material e o espiritual. O ruah de Deus em Gênesis 1.2 é simultaneamente “sopro”, “vento” e “espírito”. “Os céus e a terra” (Gn 1.1; 2.1) não são dois reinos separados, mas uma figura de linguagem hebraica que significa “o universo”.[1]
Mais significativamente, a Bíblia termina onde começa — na terra. A humanidade não parte da terra para se juntar a Deus no céu. Em vez disso, Deus aperfeiçoa seu Reino na terra e cria “a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia dos céus, da parte de Deus” (Ap 21.2). A habitação de Deus com a humanidade está aqui, na criação renovada. “Agora o tabernáculo de Deus está com os homens” (Ap 21.3). É por isso que Jesus disse a seus discípulos que orassem usando as palavras: “Venha o teu Reino; seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10). Durante o tempo entre Gênesis 2 e Apocalipse 21, a terra está corrompida, destruída, fora de ordem e cheia de pessoas e forças que trabalham contra os propósitos de Deus (veja mais sobre isso em Gênesis 3 e adiante). Nem tudo no mundo vai de acordo com o desígnio de Deus. Mas o mundo ainda é algo criado por Deus, ao que ele chama de “bom”. (Para mais informações sobre o novo céu e nova terra, veja “Apocalipse 17-22” in Apocalipse e o trabalho.)
Muitos cristãos, que trabalham principalmente com objetos materiais, dizem que parece que seu trabalho importa menos para a igreja — e até para Deus — do que um trabalho centrado em pessoas, ideias ou religião. É mais provável que um sermão elogiando o bom trabalho use o exemplo de um missionário, um assistente social ou um professor do que o de um pedreiro, um mecânico de automóveis ou um químico. Os irmãos cristãos são mais propensos a reconhecer um chamado para se tornar um pastor ou médico do que um chamado para se tornar um estoquista ou um escultor. Mas isso tem alguma base bíblica? Deixando de lado o fato de que trabalhar com pessoas é trabalhar com objetos materiais, é sábio lembrar que Deus deu às pessoas tarefas de trabalhar tanto com pessoas (Gn 2.18) quanto com coisas (Gn 2.15). De fato, Deus parece levar a criação muito a sério.
A criação de Deus dá trabalho (Gênesis 1.3-25; 2.7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceCriar um mundo é trabalho. Em Gênesis 1, o poder da obra de Deus é inegável. Deus traz mundos à existência e, passo a passo, vemos o exemplo primordial do uso correto do poder. Observe a ordem de criação. Os três primeiros atos criativos de Deus separam o caos sem forma em reinos de céus (ou céu), água e terra. No primeiro dia, Deus cria a luz e a separa das trevas, formando o dia e a noite (Gn 1.3-5). No segundo dia, ele separa as águas e cria o céu (Gn 1.6-8). Na primeira parte do terceiro dia, ele separa a terra seca do mar (Gn 1.9-10). Todos são essenciais para a sobrevivência do que se segue. Em seguida, Deus começa a preencher os reinos que ele criou. No restante do terceiro dia, ele cria a vida vegetal (Gn 1.11-13). No quarto dia, ele cria o sol, a lua e as estrelas (Gn 1.14-19) no céu. Os termos “luminar maior” e “luminar menor” são usados em vez dos nomes “sol” e “lua”, desencorajando assim a adoração desses objetos criados e nos lembrando de que ainda corremos o risco de adorar a criação em vez do Criador. As luzes são belas em si mesmas e também essenciais para a vida das plantas, com sua necessidade de sol, noite e estações do ano. No quinto dia, Deus enche a água e o céu com peixes e pássaros que não poderiam ter sobrevivido sem a vida vegetal criada anteriormente (Gn 1.20-23). Finalmente, no sexto dia, ele cria os animais (Gn 1.24-25) e, como o ápice da criação, cria a humanidade para povoar a terra (Gn 1.26-31). [1]
No capítulo 1, Deus realiza toda a sua obra falando. “Disse Deus...” e tudo aconteceu. Isso nos permite saber que o poder de Deus é mais do que suficiente para criar e manter a criação. Não precisamos nos preocupar com o fato de Deus estar ficando cansado ou de que a criação esteja em um estado precário de existência. A criação de Deus é robusta, sua existência é segura. Deus não precisa da ajuda de ninguém nem de nada para criar ou manter o mundo. Nenhuma batalha com as forças do caos ameaça desfazer a criação. Mais tarde, quando Deus escolhe compartilhar a responsabilidade criativa com os seres humanos, sabemos que essa é uma escolha de Deus, não uma necessidade. O que quer que as pessoas façam para estragar a criação ou tornar a Terra imprópria para a plenitude da vida, Deus tem um poder infinitamente maior para redimir e restaurar.
A exibição do poder infinito de Deus no texto não significa que a criação de Deus não é trabalho, assim como é trabalho escrever um programa de computador ou atuar em uma peça de teatro. Mas se a majestade transcendente da obra de Deus em Gênesis 1 pode nos levar a pensar que aquilo não é realmente trabalho, Gênesis 2 não nos deixa dúvidas. Deus trabalha imanentemente com suas mãos para esculpir corpos humanos (Gn 2.7,21), plantar um jardim (Gn 2.8), cultivar um pomar (Gn 2.9) e, um pouco mais tarde, costurar “roupas de pele” (Gn 3.21). Isso é apenas o começo da obra física de Deus em uma Bíblia cheia de trabalho divino. [2]
A criação é de Deus, mas não é idêntica a Deus (Gênesis 1.11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeus é a fonte de tudo na criação. No entanto, a criação não é idêntica a Deus. Deus dá à sua criação o que Colin Gunton chama Selbständigkeit ou uma “autonomia”. Não se trata da independência absoluta imaginada pelos ateus ou deístas, mas sim a existência significativa da criação como algo distinto do próprio Deus. Isso é melhor capturado na descrição da criação das plantas por Deus: “Então disse Deus: ‘Cubra-se a terra de vegetação: plantas que deem sementes e árvores cujos frutos produzam sementes de acordo com as suas espécies’. E assim foi” (Gn 1.11). Deus cria todas as coisas, mas também literalmente lança a semente para a perpetuação da criação ao longo dos tempos. A criação é dependente de Deus para sempre — “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28) —, mas permanece distinta. Isso dá ao nosso trabalho uma beleza e um valor acima do valor de um relógio ou de um fantoche. Nosso trabalho tem sua fonte em Deus, mas também tem seu próprio peso e dignidade.
Deus vê que sua obra é boa (Gênesis 1.4,10, 12, 18, 21, 25, 31)
Voltar ao índice Voltar ao índiceContra qualquer noção dualista de que o céu é bom e a terra é má, Gênesis declara, a cada dia da criação, que “Deus viu que ficou bom” (Gn 1.4, 10, 12, 18, 21,25). No sexto dia, com a criação da humanidade, Deus viu que “tudo havia ficado muito bom” (Gn 1.31). Com os seres humanos — os agentes por meio dos quais o pecado em breve entraria na criação de Deus — tudo, no entanto, ficou “muito bom”. Simplesmente não há apoio em Gênesis para a noção, que de alguma forma entrou na imaginação cristã, de que o mundo é irremediavelmente mau e que a única salvação é uma fuga para um mundo espiritual imaterial, muito menos para a noção de que, enquanto estivermos na terra, devemos gastar nosso tempo em tarefas “espirituais” em vez de tarefas “materiais”. Não há divórcio entre o espiritual e o material no bom mundo de Deus.
Deus opera de modo relacional (Gênesis 1.26a)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMesmo antes de Deus criar as pessoas, ele fala no plural: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26; grifo nosso). Embora haja divergência entre os estudiosos sobre se essa forma plural se refere a uma assembleia divina de seres angelicais ou a uma singular pluralidade na unidade de Deus, qualquer uma das visões implica que Deus é inerentemente relacional. [1]
É difícil ter certeza de como os antigos israelitas teriam entendido o significado do plural aqui. Para nossos propósitos, parece melhor seguir a interpretação cristã tradicional de que se refere à Trindade. De qualquer forma, sabemos pelo Novo Testamento que Deus está realmente em relacionamento consigo mesmo — e com sua criação — em uma Trindade de amor. No evangelho de João, aprendemos que o Filho — “a Palavra [que] tornou-se carne” (Jo 1.14) — está presente e ativo na criação desde o princípio.
No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito. Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. (João 1.1-4)
Assim, os cristãos reconhecem nosso Deus Trino, o único que é três Pessoas em um ser — Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo —, todos pessoalmente ativos na criação.
Deus limita seu trabalho, descansando no sétimo dia (Gênesis 2.1-3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo final de seis dias, a criação do mundo por Deus está terminada. Isso não significa que Deus deixa de trabalhar, pois, como Jesus disse: “Meu Pai continua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando” (Jo 5.17). Também não significa que a criação está completa, pois, como veremos, Deus deixa muito trabalho para as pessoas fazerem para levar a criação adiante. Mas o caos havia se transformado em um ambiente habitável, agora sustentando plantas, peixes, pássaros, animais e seres humanos.
E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia. Assim foram concluídos os céus e a terra, e tudo o que neles há. No sétimo dia Deus já havia concluído a obra que realizara, e nesse dia descansou. (Gn 1.31—2.2; grifo nosso)
Deus coroa seus seis dias de trabalho com um dia de descanso. Embora a criação da humanidade tenha sido o clímax da obra criadora de Deus, descansar no sétimo dia foi o clímax da semana criadora de Deus. Por que Deus descansa? A majestade da criação de Deus somente pela palavra, no capítulo 1, deixa claro que Deus não está cansado. Ele não precisa descansar. Mas ele escolhe limitar sua criação no tempo e no espaço. O universo não é infinito. Tem um começo, atestado pelo Gênesis, que a ciência aprendeu a observar à luz da teoria do Big Bang. Se ele tem um fim no tempo, não é inequivocamente claro, seja na Bíblia ou na ciência, mas Deus dá ao tempo um limite dentro do mundo como o conhecemos. Enquanto o tempo está correndo, Deus abençoa seis dias para o trabalho e um para o descanso. Esse é um limite que o próprio Deus observa e, mais tarde, se torna seu mandamento também para as pessoas (Êx 20.8-11).
As pessoas são criadas à imagem de Deus (Gênesis 1.26-27; 5.1)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTendo contado a história da obra de Deus na criação, Gênesis passa a contar a história do trabalho humano. Tudo está fundamentado no fato de Deus ter criado as pessoas à sua própria imagem.
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. (Gn 1.26)
Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gn 1.27)
Quando Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. (Gn 5.1)
Toda a criação exibe o desígnio, o poder e a bondade de Deus, mas é dito que apenas os seres humanos foram feitos à imagem de Deus. Uma teologia completa da imagem de Deus está além do nosso escopo aqui; portanto, apenas observemos que algo em nós é singularmente semelhante a ele. Seria ridículo acreditar que somos exatamente como Deus. Não podemos criar mundos a partir do caos e não devemos tentar fazer tudo o que Deus faz. “Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor” (Rm 12.19). Mas a principal coisa a respeito de Deus que sabemos, na narrativa até agora, é que Deus é um criador que trabalha no mundo material, que trabalha em relacionamentos e cuja obra respeita limites. Temos a capacidade de fazer o mesmo.
O restante de Gênesis 1 e 2 desenvolve o trabalho humano em cinco categorias específicas: domínio, relacionamentos, frutificação/crescimento, provisão e limites. O desenvolvimento ocorre em dois ciclos, um em Gênesis 1.26—2.4 e o outro em Gênesis 2.4-25. A ordem das categorias não é exatamente a mesma nas duas ocasiões, mas todas as categorias estão presentes nos dois ciclos. O primeiro ciclo desenvolve o que significa trabalhar à imagem de Deus. O segundo ciclo descreve como Deus equipa Adão e Eva para seu trabalho ao começarem a vida no jardim do Éden.
A linguagem do primeiro ciclo é mais abstrata e, portanto, adequada para desenvolver os princípios do trabalho humano. A linguagem do segundo ciclo, mais terrena, mostra Deus formando coisas a partir do pó e de outros elementos e é bem adequada para a instrução prática de Adão e Eva em seu trabalho específico no jardim. Essa mudança de linguagem — com mudanças semelhantes nos quatro primeiros livros da Bíblia — tem atraído quantidades incontáveis de pesquisas, hipóteses, debates e até divisões entre os estudiosos. Qualquer comentário geral fornecerá muitos detalhes. A maioria desses debates, no entanto, tem pouco impacto sobre o que o livro de Gênesis contribui para a compreensão do trabalho, dos trabalhadores e dos ambientes de trabalho, e não tentaremos tomar uma posição a respeito disso aqui. O que é relevante para nossa discussão é que o capítulo 2 repete cinco temas desenvolvidos anteriormente — no âmbito de domínio, provisão, fecundidade/crescimento, limites e relacionamentos — descrevendo como Deus equipa as pessoas para cumprir a obra para a qual fomos criados à sua imagem. Para facilitar o acompanhamento desses temas, exploraremos Gênesis 1.26—2.25 categoria por categoria, em vez de versículo por versículo. A tabela a seguir fornece um índice prático (com links) para os interessados em explorar um versículo específico imediatamente.
Passagem (clique para ir para passagem) | Categoria (clique para ir para a categoria) | Ciclo |
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Domínio (Gênesis 1.26; 2.5)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTrabalhar à imagem de Deus é exercer domínio (Gênesis 1.26)
Em Gênesis, vemos uma consequência de sermos criados à imagem de Deus: devemos exercer domínio: “Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão” (Gn 1.26). Como Ian Hart coloca: “Exercer domínio real sobre a terra como representante de Deus é o propósito básico para o qual Deus criou o homem... O homem é nomeado rei sobre a criação, responsável perante Deus, o rei de fato, e como tal espera-se que ele gerencie, desenvolva e cuide da criação, tarefa esta que inclui o trabalho físico real”. [1] Nosso trabalho à imagem de Deus começa com sermos uma representação fiel de Deus.
Ao exercermos domínio sobre o mundo criado, fazemos isso sabendo que espelhamos Deus. Não somos os originais, mas as imagens, e nosso dever é usar o original — Deus — como nosso padrão, não nós mesmos. Nosso trabalho deve servir aos propósitos de Deus mais do que aos nossos, o que nos impede de dominar tudo o que Deus colocou sob nosso controle.
Pense nas implicações disso em nosso ambiente de trabalho. Como Deus faria nosso trabalho? Que valores Deus traria? Que produtos Deus faria? A quais pessoas Deus serviria? Que organizações Deus construiria? Que padrões Deus usaria? Como portadores da imagem de Deus, de que maneiras nosso trabalho deve mostrar o Deus que representamos? Quando concluímos um trabalho, os resultados são tais que podemos dizer: “Obrigado, Deus, por me usar para fazer isso?”
Deus prepara as pessoas para a obra de domínio (Gênesis 2.5)
O ciclo começa novamente com o domínio, embora isso talvez não seja fácil de perceber imediatamente. “Ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo” (Gn 2.5; grifo do autor). A frase-chave é “não havia homem para cultivar o solo”. Deus escolheu não encerrar sua criação até que ele criasse pessoas para trabalhar com (ou sob) ele. Meredith Kline coloca desta forma: “O modo de Deus fazer o mundo era como um rei plantando uma fazenda, um parque ou um pomar, no qual Deus coloca a humanidade para ‘servir’ o solo e para ‘servir’ e ‘cuidar’ da propriedade.” [2]
Assim, o trabalho de exercer domínio começa com o cultivo do solo. A partir disso, vemos que o uso que Deus faz das palavras subjugar [3] e domínio no capítulo 1 não nos dá permissão para menosprezar qualquer parte de sua criação. Muito pelo contrário. Devemos agir como se tivéssemos o mesmo relacionamento de amor que Deus tem com suas criaturas. Subjugar a terra inclui tanto aproveitar seus vários recursos quanto protegê-los. O domínio sobre todas as criaturas vivas não é uma licença para abusar delas, mas um mandato de Deus para cuidar delas. Devemos servir aos melhores interesses de todos aqueles cujas vidas tocam a nossa; nossos empregadores, nossos clientes, nossos companheiros ou colegas de trabalho, ou ainda aqueles que trabalham para nós ou que conhecemos, mesmo que casualmente. Isso não significa que permitiremos que as pessoas passem por cima de nós, mas significa que não permitiremos que nosso interesse próprio, nossa autoestima ou nossa autoexaltação nos deem a licença para passar por cima dos outros. A história que se desenrola mais tarde, em Gênesis, concentra a atenção exatamente nessa tentação e em suas consequências.
Hoje, nos tornamos especialmente conscientes de como a busca humana por interesse próprio ameaça o ambiente natural. Deveríamos cuidar e preservar o jardim (Gn 2.15). A criação é destinada ao nosso uso, mas não apenas para nosso uso. Recordar que o ar, a água, a terra, as plantas e os animais são bons (Gn 1.4-31) nos lembra que devemos sustentar e preservar o meio ambiente. Nosso trabalho pode preservar ou destruir o ar puro, a água e a terra, a biodiversidade, os ecossistemas e os biomas e até o clima com o qual Deus abençoou sua criação. Domínio não é autoridade para trabalhar contra a criação de Deus, mas a capacidade de trabalhar para isso.
Relacionamentos e trabalho (Gênesis 1.27; 2.18, 21-25)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTrabalhar à imagem de Deus é trabalhar no relacionamento com os outros (Gênesis 1.27)
Trabalhar à imagem de Deus é trabalhar no relacionamento com os outros (Gênesis 1.27)Uma consequência que vemos em Gênesis de sermos criados à imagem de Deus é que trabalhamos em relacionamento com Deus e uns com os outros. Já vimos que Deus é inerentemente relacional (Gn 1.26); portanto, como imagens de um Deus relacional, somos inerentemente relacionais. A segunda parte de Gênesis 1.27 enfatiza isto novamente, pois fala de nós não individualmente, mas em pares: “homem e mulher os criou”. Estamos em relacionamento com nosso criador e com nossos semelhantes. Esses relacionamentos não são deixados como abstrações filosóficas em Gênesis. Vemos Deus falando e trabalhando com Adão ao dar nome aos animais (Gn 2.19). Vemos Deus visitando Adão e Eva no “jardim quando soprava a brisa do dia” (Gn 3.8).Como essa realidade nos afeta em nossos ambientes de trabalho? Acima de tudo, somos chamados a amar as pessoas com quem, entre as quais e para quem trabalhamos. O Deus de relacionamento é o Deus de amor (1Jo 4.7). Alguém poderia simplesmente dizer que “Deus ama”, mas as Escrituras vão mais fundo no próprio cerne do ser de Deus, que é Amor, um amor que flui entre o Pai, o Filho (Jo 17.24) e o Espírito Santo. Esse amor também flui do ser de Deus para nós, não fazendo nada que não seja para o nosso bem (o amor ágape em contraste com os amores humanos situados em nossas emoções).Francis Schaeffer explora ainda mais a ideia de que podemos ter um relacionamento pessoal com Deus, porque fomos feitos à imagem de Deus e porque Deus é pessoal. Ele observa que isso torna possível o amor genuíno, afirmando que as máquinas não podem amar. Como resultado, temos a responsabilidade de cuidar conscientemente de tudo o que Deus colocou sob nossos cuidados. Ser uma criatura relacional traz responsabilidade moral. [1]
Deus equipa as pessoas para o trabalho em relacionamento com os outros (Gênesis 2.18,21-25)
Visto que fomos criados à imagem de um Deus relacional, somos inerentemente relacionais. Fomos feitos para nos relacionar com o próprio Deus e também com outras pessoas. Deus diz: “Não é bom que o homem esteja só; farei para ele alguém que o auxilie e lhe corresponda” (Gn 2.18). Todos os seus atos criativos foram chamados de “bons” ou “muito bons”, e esta é a primeira vez que Deus pronuncia algo que “não é bom”. Então, Deus faz uma mulher da carne e dos ossos do próprio Adão. Quando Eva chega, Adão fica cheio de alegria. “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (Gn 2.23). (Depois deste único caso, todas as novas pessoas continuarão a sair da carne de outros seres humanos, mas nascidas de mulheres, e não de homens.) Adão e Eva embarcam em um relacionamento tão próximo que se tornaram “uma só carne” (Gn 2.24). Embora isso possa soar como um assunto puramente erótico ou familiar, também é uma relação de trabalho. Eva é criada para auxiliar e ser parceira de Adão, de modo que ela se juntará a ele no trabalho do jardim do Éden. A noção de alguém que auxilie indica que, como Adão, ela cuidará do jardim. Prestar auxílio significa trabalhar. Alguém que não está trabalhando não está auxiliando. Ser parceiro significa trabalhar com alguém, em relacionamento.
Quando Deus chama Eva de “auxiliadora” (ARA), ele não está dizendo que ela será inferior a Adão ou que seu trabalho será menos importante, menos criativo, menos qualquer coisa que o dele. A palavra traduzida como “auxiliadora” (ARA; ezer em hebraico) é uma palavra usada em outras partes do Antigo Testamento para se referir ao próprio Deus. “Deus é o meu auxílio [ezer]” (Sl 54.4). “Senhor, sê tu o meu auxílio [ezer]” (Sl 30.10). Claramente, ezer não se refere a um subordinado. Além disso, Gênesis 2.18 descreve Eva não apenas como uma “auxiliadora”, mas também como uma “parceira”. Uma palavra muito usada hoje para alguém que é tanto um ajudante quanto um parceiro é “colaborador”. Este é, de fato, o sentido já dado em Gênesis 1.27, “homem e mulher os criou”, e não há distinção de prioridade ou dominância. A dominação das mulheres pelos homens — ou vice-versa — não está de acordo com a boa criação de Deus. É uma consequência trágica da queda (Gn 3.16).
Os relacionamentos não são incidentais no trabalho; eles são essenciais. O trabalho serve como um lugar de relacionamentos profundos e significativos, pelo menos sob as condições adequadas. Jesus descreveu nosso relacionamento consigo mesmo como uma espécie de trabalho: “Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas” (Mt 11.29). Um jugo é o que torna possível que dois bois trabalhem juntos. Em Cristo, as pessoas podem realmente trabalhar juntas, como Deus planejou quando criou a mulher e o homem como colaboradores. Enquanto nossa mente e nosso corpo trabalham em relacionamento com outras pessoas e com Deus, nossa alma “encontra descanso”. Quando não trabalhamos com os outros em direção a um objetivo comum, ficamos espiritualmente inquietos. Para saber mais sobre o jugo, consulte a seção sobre 2Coríntios 6.14-18 no Comentário Teologia do Trabalho.
Um aspecto crucial do relacionamento modelado pelo próprio Deus é a delegação de autoridade. Deus delegou a Adão a tarefa de dar nome aos animais, e a transferência de autoridade foi genuína: “o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome” (Gn 2.19). Ao delegar, como em qualquer outra forma de relacionamento, abrimos mão de alguma medida de nosso poder e independência e corremos o risco de deixar que o trabalho dos outros nos afete. Grande parte dos últimos cinquenta anos de desenvolvimento nos campos de liderança e gestão ocorreu na forma de delegação de autoridade, capacitação de trabalhadores e promoção do trabalho em equipe. O fundamento desse tipo de desenvolvimento sempre esteve em Gênesis, embora os cristãos nem sempre tenham notado isso.
Muitas pessoas formam seus relacionamentos mais próximos quando encontram um propósito e uma meta comuns em algum tipo de trabalho — seja remunerado ou não. Por sua vez, as relações de trabalho possibilitam a criação de uma vasta e complexa gama de bens e serviços além da capacidade de produção de qualquer indivíduo. Sem relacionamentos no trabalho não há automóveis, computadores, correios, legislaturas, lojas, escolas. E, sem o relacionamento íntimo entre um homem e uma mulher, não haverá pessoas no futuro para fazer a obra que Deus dá. Nosso trabalho e nossa comunidade são dons de Deus totalmente entrelaçados. Juntos, eles fornecem os meios para sermos frutíferos e nos multiplicarmos em todos os sentidos das palavras.
Frutificação/Crescimento (Gênesis 1.28; 2.15,19-20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTrabalhar à imagem de Deus é dar fruto e multiplicar-se (Gênesis 1.28)
Visto que fomos criados à imagem de Deus, devemos ser frutíferos ou fecundos. Isso é frequentemente chamado de “mandato da criação” ou “mandato cultural”. Deus fez uma criação sem falhas, um ambiente ideal, e depois criou a humanidade para continuar o projeto da criação. “Deus os abençoou, e lhes disse: ‘Sejam férteis e multipliquem-se!’” (Gn 1.28a). Deus poderia ter criado tudo o que se possa imaginar e preenchido a terra. Mas ele escolheu criar a humanidade para trabalhar ao seu lado na realização do potencial do universo, para participar da própria obra de Deus. É notável que Deus confie em nós para realizar essa incrível tarefa de edificar sobre a boa terra que ele nos deu. Por meio de nosso trabalho, Deus produz comida e bebida, produtos e serviços, conhecimento e beleza, organizações e comunidades, crescimento e saúde, louvor e glória para si mesmo.
Uma palavra sobre beleza está presente. A obra de Deus não é apenas produtiva, mas também é “atraente aos olhos” (Gn 3.6). Isso não causa surpresa, já que as pessoas, criadas à imagem de Deus, são inerentemente belas. Como qualquer outro bem, a beleza pode se tornar um ídolo, mas os cristãos muitas vezes se preocupam demais com os perigos da beleza e não apreciam muito o valor da beleza aos olhos de Deus. Inerentemente, a beleza não é um desperdício de recursos, algo que desvia de um trabalho mais importante ou uma flor fadada a murchar no final dos tempos. A beleza é uma obra à imagem de Deus, e o Reino de Deus está cheio de beleza como “uma joia muito preciosa” (Ap 21.11). As comunidades cristãs fazem bem em apreciar a beleza da música com palavras sobre Jesus. Talvez pudéssemos valorizar melhor todos os tipos de verdadeira beleza.
Uma boa pergunta a fazer a nós mesmos é se estamos trabalhando de forma mais produtiva e bonita. A história está repleta de exemplos de pessoas cuja fé cristã resultou em realizações surpreendentes. Se nosso trabalho parece infrutífero quando comparado ao deles, a resposta não está no autojulgamento, mas na esperança, na oração e no crescimento na companhia do povo de Deus. Independentemente das barreiras que enfrentamos — de dentro ou de fora —, pelo poder de Deus, podemos fazer mais bem do que jamais poderíamos imaginar.
Deus capacita as pessoas para darem frutos e se multiplicarem (Gênesis 2.15,19-20)
“O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo” (Gn 2.15). Essas duas palavras em hebraico, avad (“cuidar”; lit. “cultivar”) e shamar (“cultivar”; lit. “guardar”), também são usados para a adoração a Deus e a guarda de seus mandamentos, respectivamente. [1] O trabalho feito de acordo com o propósito de Deus tem uma santidade inconfundível.
Adão e Eva recebem dois tipos específicos de trabalho em Gênesis 2.15-20: cultivar o jardim (um tipo de trabalho físico) e dar nomes aos animais (um tipo de trabalho cultural/científico/intelectual). Ambos são empreendimentos criativos que fornecem atividades específicas a pessoas criadas à imagem do Criador. Ao cultivar coisas e desenvolver cultura, somos de fato frutíferos. Trazemos os recursos necessários para sustentar uma população em crescimento e aumentar a produtividade da criação. Desenvolvemos os meios para encher a Terra, mas não demais. Não precisamos imaginar que cuidar do jardim e dar nome a animais são as únicas tarefas adequadas para os seres humanos. Em vez disso, a tarefa humana é estender a obra criadora de Deus de várias maneiras, sendo limitada apenas pelos dons divinos de imaginação e habilidade e pelos limites que Deus estabelece. O trabalho está para sempre enraizado no desígnio de Deus para a vida humana. É uma via para contribuir para o bem comum e é um meio de provisão para nós mesmos, para nossas famílias e para aqueles que podemos abençoar com nossa generosidade.
Um aspecto importante (embora às vezes esquecido) de Deus em ação na criação é a vasta imaginação que foi capaz de criar tudo, desde a exótica vida marinha até elefantes e rinocerontes. Embora os teólogos tenham criado listas variadas das características de Deus que nos foram dadas e que carregam a imagem divina, a imaginação é certamente um dom de Deus que vemos em ação ao nosso redor, em nosso ambiente de trabalho e em nossa casa.
Grande parte do trabalho que fazemos usa nossa imaginação de alguma forma. Apertamos os parafusos numa linha de montagem de caminhões e imaginamos esse caminhão na estrada. Abrimos um documento em nosso computador e imaginamos a história que estamos prestes a escrever. Mozart imaginou uma sonata e Beethoven imaginou uma sinfonia. Picasso imaginou Guernica antes de pegar seus pincéis para trabalhar nessa pintura. Tesla e Edison imaginaram aproveitar a eletricidade, e hoje temos luz na escuridão e uma infinidade de eletrodomésticos, eletrônicos e equipamentos. Alguém em algum lugar imaginou praticamente tudo ao nosso redor. A maioria dos empregos que as pessoas ocupam existe porque alguém poderia imaginar um produto ou processo que criasse empregos no ambiente de trabalho.
No entanto, é preciso trabalho para que a imaginação seja realizada; e, depois da imaginação, vem o trabalho de trazer o produto à existência. Na verdade, na prática, a imaginação e a realização ocorrem frequentemente em processos entrelaçados. Picasso disse sobre sua Guernica: “Uma pintura não é pensada e preparada de antemão. Enquanto está sendo feita, ela muda à medida que os pensamentos mudam. E, quando terminada, continua mudando, de acordo com o estado de espírito de quem está olhando para ela.” [2] O trabalho de transformar a imaginação em realidade traz sua própria criatividade inevitável.
Provisão (Gênesis 1.29-30; 2.8-14)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTrabalhar à imagem de Deus é receber a provisão de Deus (Gênesis 1.29-30)
Visto que fomos criados à imagem de Deus, Deus supre nossas necessidades. Essa é uma das maneiras pelas quais se nota que aqueles que foram feitos à imagem de Deus não são o próprio Deus. Deus não tem necessidades ou, se tivesse, teria o poder de atender a todas elas sozinho. Nós não. Portanto:
Disse Deus: “Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês. E dou todos os vegetais como alimento a tudo o que tem em si fôlego de vida: a todos os grandes animais da terra, a todas as aves do céu e a todas as criaturas que se movem rente ao chão”. E assim foi. (Gn 1.29-30)
Por um lado, reconhecer a provisão de Deus nos alerta para não cairmos em arrogância. Sem ele, nosso trabalho não é nada. Não podemos gerar a própria vida. Não podemos nem mesmo prover nossa própria manutenção. Precisamos da constante provisão divina de ar, água, terra, luz do sol e do crescimento milagroso de seres vivos para alimentar nosso corpo e nossa mente. Por outro lado, reconhecer a provisão de Deus nos dá confiança em nosso trabalho. Não precisamos depender de nossa própria capacidade ou dos caprichos das circunstâncias para atender às nossas necessidades. O poder de Deus torna nosso trabalho frutífero.
Deus equipa as pessoas com provisão para suas necessidades (Gênesis 2.8-14)
O segundo ciclo do relato da criação nos mostra algo de como Deus provê nossas necessidades. Ele prepara a Terra para ser produtiva quando aplicamos nosso trabalho a ela. “O Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara” (Gn 2.8). Nós até podemos cultivar, mas Deus é o plantador original. Além do alimento, Deus criou a terra com recursos para sustentar tudo o que precisamos para sermos frutíferos e nos multiplicar. Ele nos dá uma multidão de rios que fornecem água, minérios que fornecem materiais de pedra e metal e precursores dos meios de troca econômica (Gn 2.10-14). “O ouro daquela terra é excelente” (Gn 2.12). Mesmo quando sintetizamos novos elementos e moléculas, ou quando reorganizamos o DNA entre os organismos ou criamos células artificiais, estamos trabalhando com a matéria e a energia que Deus criou para nós.
Deus estabelece limites (Gênesis 2.3; 2.17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTrabalhar à imagem de Deus é ser abençoado pelos limites que Deus estabelece (Gênesis 2.3)
Visto que fomos criados à imagem de Deus, devemos obedecer a certos limites em nosso trabalho. “Abençoou Deus o sétimo dia e o santificou, porque nele descansou de toda a obra que realizara na criação” (Gn 2.3). Deus descansou porque estava exausto ou descansou para oferecer a nós, portadores de sua imagem, um ciclo modelo de trabalho e descanso? O quarto dos Dez Mandamentos nos diz que o descanso de Deus deve ser um exemplo a seguir.
“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou. (Êx 20.8-11)
Enquanto as pessoas religiosas, ao longo dos séculos, tendiam a acumular regras definindo o que constituía a guarda do sábado, Jesus disse claramente que Deus fez o sábado para nós — para nosso benefício (Mc 2.27). O que devemos aprender com isso?
Quando, assim como Deus, paramos de trabalhar no sétimo dia, reconhecemos que nossa vida não é definida apenas pelo trabalho ou pela produtividade. Walter Brueggemann colocou desta forma: “O sábado fornece um testemunho visível de que Deus está no centro da vida — que a produção e o consumo humanos ocorrem em um mundo ordenado, abençoado e restringido pelo Deus de toda a criação”. [1] Em certo sentido, renunciamos a parte de nossa autonomia, assumindo nossa dependência de Deus, nosso Criador. Caso contrário, vivemos com a ilusão de que a vida está completamente sob controle humano. Em certo sentido, tornar o sábado uma parte regular de nossa vida profissional é reconhecer que Deus está, em última análise, no centro da vida. (Mais discussões sobre sábado, descanso e trabalho podem ser encontradas nas seções sobre “Marcos 1.21-45”, “Marcos 2.23—3.6”, “Lucas 6.1-11”, e “Lucas 13.10-17” no Comentário da Teologia do Trabalho.)
Deus equipa as pessoas para trabalharem dentro de limites (Gênesis 2.17)
Tendo abençoado os seres humanos com seu próprio exemplo de observar os dias de trabalho e os sábados, Deus fornece a Adão e Eva instruções específicas sobre os limites de seu trabalho. No meio do jardim do Éden, Deus planta duas árvores, a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.9). A última árvore está fora dos limites. Deus diz a Adão: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá” (Gn 2.16-17).
Os teólogos têm especulado longamente sobre por que Deus colocaria uma árvore no jardim do Éden que ele não queria que os habitantes usassem. Várias hipóteses são encontradas nos comentários, e não precisamos estabelecer uma resposta aqui. Para nossos propósitos, basta observar que nem tudo o que pode ser feito deve ser feito. A imaginação e a habilidade humanas podem trabalhar com os recursos da criação de Deus de maneiras hostis às intenções, propósitos e mandamentos de Deus. Se quisermos trabalhar com Deus, e não contra ele, devemos escolher observar os limites que Deus estabelece, em vez de realizar tudo o que é possível na criação.
Francis Schaeffer salientou que Deus não deu a Adão e Eva a escolha entre uma árvore boa e uma árvore má, mas a escolha entre adquirir ou não o conhecimento do mal (eles já conheciam o bem, é claro). Ao fazer essa árvore, Deus abriu a possibilidade do mal, mas, ao fazê-lo, validou a escolha. Todo amor está ligado à escolha; sem escolha, a palavra amor é sem sentido. [2] Adão e Eva poderiam amar e confiar em Deus o suficiente para obedecer ao seu mandamento sobre a árvore? Deus espera que aqueles que se relacionam com ele sejam capazes de respeitar os limites que trazem o bem à criação.
Nos ambientes de trabalho de hoje, alguns limites continuam a nos abençoar quando os observamos. A criatividade humana, por exemplo, surge tanto dos limites quanto das oportunidades. Os arquitetos encontram inspiração nos limites de tempo, dinheiro, espaço, materiais e propósito impostos pelo cliente. Os pintores encontram expressão criativa aceitando os limites da mídia com a qual escolhem trabalhar, começando com as limitações de representar o espaço tridimensional em uma tela bidimensional. Os escritores encontram brilhantismo quando enfrentam limites de páginas e palavras.
Todo bom trabalho respeita os limites de Deus. Existem limites para a Terra quanto à capacidade de extração de recursos, poluição, modificação de habitats e uso de plantas e animais para alimentação, vestuário e outros fins. O corpo humano tem grande força, resistência e capacidade de trabalho, mas tudo isso é limitado. Há limites para uma alimentação saudável e exercícios físicos. Há limites para distinguir a beleza da vulgaridade, a crítica do abuso, o lucro da ganância, a amizade da exploração, o serviço da escravidão, a liberdade da irresponsabilidade e a autoridade da ditadura. Na prática, pode ser difícil saber exatamente onde está a linha divisória, e deve-se admitir que os cristãos muitas vezes erraram ao agir com conformismo, legalismo, preconceito e uma monotonia sufocante, especialmente ao proclamar o que outras pessoas devem ou não fazer. No entanto, a arte de viver como portadores da imagem de Deus requer de nós que aprendamos a discernir onde as bênçãos podem ser encontradas ao observar os limites estabelecidos por Deus que são evidentes em sua criação.
A obra do “mandato da criação” (Gênesis 1.28, 2.15)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo descrever a criação da humanidade à imagem de Deus (Gn 1.1—2.3) e equipar a humanidade para viver de acordo com essa imagem (Gn 2.4-25), percebemos que Deus criou as pessoas para que exerçam domínio, para que sejam fecundos e se multipliquem, para que recebam a provisão de Deus, para que trabalhem nos relacionamentos e para que observem os limites da criação. Observamos que estes frequentemente têm sido chamados de “mandato da criação” ou “mandato cultural”, com destaque especial para Gênesis 1.28 e 2.15:
Deus os abençoou e lhes disse: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”. (Gn 1.28)
O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo. (Gn 2.15)
O uso dessa terminologia não é essencial, mas a ideia representada por ela parece clara em Gênesis 1 e 2. Desde o início, Deus planejou que os seres humanos fossem seus parceiros menores na obra de levar sua criação à plenitude. Não está em nossa natureza ficar satisfeitos com as coisas do jeito que estão, receber provisão para nossas necessidades sem trabalhar, suportar a ociosidade por muito tempo, labutar em um sistema de organização não criativa ou trabalhar em isolamento social. Para recapitular, fomos criados para trabalhar como subcriadores em relacionamento com outras pessoas e com Deus, dependendo da provisão de Deus para tornar nosso trabalho frutífero e respeitando os limites dados em sua Palavra e evidentes em sua criação.
As pessoas caem em pecado no trabalho (Gênesis 3.1-24)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAté este ponto, discutimos o trabalho em sua forma ideal, sob as condições perfeitas do jardim do Éden. Mas então chegamos a Gênesis 3.1-6.
Ora, a serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus tinha feito. E ela perguntou à mulher: “Foi isto mesmo que Deus disse: ‘Não comam de nenhum fruto das árvores do jardim’?” Respondeu a mulher à serpente: “Podemos comer do fruto das árvores do jardim, mas Deus disse: ‘Não comam do fruto da árvore que está no meio do jardim, nem toquem nele; do contrário vocês morrerão’ ”. Disse a serpente à mulher: “Certamente não morrerão! Deus sabe que, no dia em que dele comerem, seus olhos se abrirão, e vocês, como Deus, serão conhecedores do bem e do mal”. Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também. (grifo nosso)
A serpente representa o antideus, o adversário de Deus. Bruce Waltke observa que o adversário de Deus é maligno e mais sábio do que os seres humanos. Ele é perspicaz ao chamar a atenção para a vulnerabilidade de Adão e Eva, mesmo quando distorce o mandamento de Deus. Ele conduz Eva para o que parece ser uma discussão teológica sincera, mas a distorce ao enfatizar a proibição de Deus, em vez de sua provisão com o restante das árvores frutíferas do jardim. Em essência, ele quer que a palavra de Deus soe difícil e restritiva.
O plano da serpente é bem-sucedido e, primeiro, Eva, come do fruto da árvore proibida; depois Adão faz o mesmo. Ambos quebram os limites que Deus havia estabelecido para eles, em uma vã tentativa de se tornar “como Deus” de alguma forma além do que já tinham como portadores da imagem de Deus (Gn 3.5). Já conhecendo por experiência própria a bondade da criação de Deus, eles escolhem se tornar “sábios” nos caminhos do mal (Gn 3.4-6). Tanto Eva como Adão decidiram comer o fruto; são escolhas que favorecem seus próprios gostos pragmáticos, estéticos e sensuais em detrimento da palavra de Deus. O “bem” não está mais enraizado naquilo que Deus diz trazer melhoras para a vida, mas no que as pessoas pensam ser desejável para elevar a vida. Em suma, eles transformam o que é bom em mal. [1]
Ao escolher desobedecer a Deus, eles quebram os relacionamentos inerentes ao seu próprio ser. Primeiro, o relacionamento entre eles — “osso dos meus ossos e carne da minha carne”, como havia sido anteriormente (Gn 2.23) — é quebrado, pois eles se escondem um do outro cobrindo-se com folhas de figueira (Gn 3.7). O próximo passo é o relacionamento deles com Deus, pois não falam mais com ele na brisa do dia, mas se escondem de sua presença (Gn 3.8). Adão rompe ainda mais o relacionamento entre ele e Eva, culpando-a por sua decisão de comer do fruto e, ao mesmo tempo, criticando Deus. “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3.12). Da mesma forma, Eva rompe o relacionamento da humanidade com as criaturas da terra, culpando a serpente por sua própria decisão (Gn 3.13).
As decisões de Adão e Eva naquele dia tiveram resultados desastrosos que se estendem até o ambiente de trabalho moderno. Deus profere juízo contra o pecado deles e declara consequências que resultam em uma labuta difícil. A serpente terá de rastejar sobre o seu ventre todos os seus dias (Gn 3.14). A mulher enfrentará sofrimento ao dar à luz, e também sentirá conflito quanto a seu desejo pelo homem (Gn 3.16). O homem terá de labutar para obter o sustento do solo, e este produzirá “espinhos e ervas daninhas” às custas do grão desejado (Gn 3.17-18). Em suma, os seres humanos ainda farão o trabalho para o qual foram criados, e Deus ainda suprirá suas necessidades (Gn 3.17-19). Mas o trabalho se tornará mais difícil, desagradável e sujeito a falhas e consequências indesejadas.
É importante notar que, quando o trabalho se tornou esforço, não foi o começo do trabalho. Algumas pessoas veem a maldição como a origem do trabalho, mas Adão e Eva já haviam cultivado o jardim. O trabalho não é inerentemente uma maldição, mas a maldição afeta o trabalho. De fato, o trabalho se torna mais importante como resultado da Queda, e não menos, porque é necessário mais trabalho agora para produzir os resultados necessários. Além disso, os materiais originais dos quais Adão e Eva surgiram na liberdade e no prazer de Deus agora se tornam fontes de sujeição. Adão, feito da terra, agora lutará para cultivar o solo até que seu corpo retorne à terra quando morrer (Gn 3.19); Eva, feita de uma costela do lado de Adão, agora estará sujeita ao domínio de Adão, em vez de tomar seu lugar ao lado dele (Gn 3.16). A dominação de uma pessoa sobre outra no casamento e no trabalho não fazia parte do plano original de Deus, mas pessoas pecadoras fizeram disso uma nova maneira de se relacionar quando romperam os relacionamentos que Deus lhes tinha dado (Gn 3.12-13).
Duas formas de mal nos confrontam diariamente. O primeiro é o mal natural, as condições físicas na terra que são hostis à vida que Deus deseja para nós. Inundações e secas, terremotos, tsunamis, calor e frio excessivos, doenças, pragas e coisas semelhantes causam danos que não existiam no jardim. O segundo é o mal moral, quando as pessoas agem com vontades hostis às intenções de Deus. Ao agir de maneira maligna, prejudicamos a criação e nos distanciamos de Deus, e também prejudicamos os relacionamentos que mantemos com outras pessoas.
Vivemos em um mundo caído e quebrado e não podemos esperar uma vida sem esforço. Fomos feitos para o trabalho, mas, nesta vida, esse trabalho é manchado por tudo o que foi quebrado naquele dia no jardim do Éden. Isso também é muitas vezes o resultado de não respeitarmos os limites que Deus estabelece para nossos relacionamentos, sejam pessoais, corporativos ou sociais. A Queda criou alienação entre as pessoas e Deus, entre as pessoas e, ainda, entre as pessoas e a terra que deveria sustentá-las. A suspeita mútua substituiu a confiança e o amor. Nas gerações que se seguiram, a alienação alimentou ciúme, raiva e até assassinato. Todos os ambientes de trabalho hoje refletem essa alienação entre os trabalhadores — em maior ou menor grau — tornando nosso trabalho ainda mais penoso e menos produtivo.
Pessoas trabalham em meio a uma criação caída (Gênesis 4—8)
Voltar ao índice Voltar ao índiceQuando Deus expulsa Adão e Eva do Jardim do Éden (Gn 3.23-24), eles trazem consigo seus relacionamentos rompidos e seu trabalho árduo, esboçando uma existência em solo resistente. No entanto, Deus continua a prover-lhes o necessário, a ponto de costurar roupas para eles, quando eles mesmos não têm habilidade (Gn 3.21). A maldição não destruiu sua capacidade de se multiplicar (Gn 4.1-2) ou de alcançar certa medida de prosperidade (Gn 4.3-4).
O trabalho de Gênesis 1 e 2 continua. Ainda há terreno a ser cultivado e fenômenos da natureza a serem estudados, descritos e nomeados. Homens e mulheres ainda devem ser frutíferos, ainda devem se multiplicar, ainda devem governar. Mas agora, uma segunda camada de trabalho também deve ser realizada — a obra de curar, reparar e restaurar as coisas que dão errado e os males que são cometidos. Para colocar isto em um contexto contemporâneo, ainda é necessário o trabalho de agricultores, cientistas, parteiras, pais, líderes, e cada um em empreendimentos criativos. Mas o mesmo vale para o trabalho de policiais, médicos, agentes funerários, agentes penitenciários, auditores forenses e todos aqueles em profissões que restringem o mal, previnem desastres, reparam danos e restauram a saúde. Na verdade, o trabalho de todos é uma mistura de criação e reparo, encorajamento e frustração, sucesso e fracasso, alegria e tristeza. Grosso modo, há agora o dobro de trabalho a fazer do que havia no jardim. O trabalho não é menos importante para o plano de Deus, mas ainda é mais importante.
O primeiro assassinato (Gênesis 4.1-25)
Voltar ao índice Voltar ao índiceGênesis 4 detalha o primeiro assassinato, quando Caim mata seu irmão Abel em um ataque de ciúmes. Ambos os irmãos trazem o fruto de seu trabalho como oferta a Deus. Caim é agricultor e traz alguns frutos da terra, sem indicação no texto bíblico de que este seja o primeiro ou o melhor de seus produtos (Gn 4.3). Abel é pastor e traz as “primeiras crias”, os melhores, as “as partes gordas” de seu rebanho (Gn 4.4). Embora ambos estejam produzindo alimentos, eles não estão trabalhando nem adorando juntos. O trabalho não é mais um lugar de bons relacionamentos.
Deus olha com favor para a oferta de Abel, mas não para a de Caim. Nessa primeira menção à ira na Bíblia, Deus adverte Caim a não entrar em desespero, mas a dominar seu ressentimento e trabalhar por um resultado melhor no futuro. “Se você fizer o bem, não será aceito?”, o Senhor lhe pergunta (Gn 4.7). Mas Caim cede à sua ira e mata seu irmão (Gn 4.8; cf. 1Jo 3.12 ; Jd 11 ). Deus responde à ação com estas palavras:
“Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão. Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo”. (Gn 4.10-12)
O pecado de Adão não trouxe a maldição de Deus sobre as pessoas, mas apenas sobre a terra (Gn 3.17). O pecado de Caim traz a maldição da terra sobre o próprio Caim (Gn 4.11). Ele não pode mais cultivar o solo, e Caim, o lavrador, torna-se um fugitivo errante, finalmente se estabelecendo na terra de Node, a leste do Éden, onde constrói a primeira cidade mencionada na Bíblia (Gn 4.16-17). (Veja Gn 10—11 para saber mais sobre o tema das cidades.)
O restante do capítulo 4 segue os descendentes de Caim por sete gerações até Lameque, cujos atos tirânicos fazem seu ancestral Caim parecer inofensivo. Lameque nos mostra um endurecimento progressivo no pecado. Primeiro vem a poligamia (Gn 4.19), violando o propósito de Deus para o casamento em Gênesis 2.24 (cf. Mt 19.5-6). Depois, uma vingança o leva a matar alguém que apenas o golpeou (Gn 4.23-24). No entanto, em Lameque também vemos o início da civilização. A divisão do trabalho — que causou problemas entre Caim e Abel — traz aqui uma especialização que possibilita certos avanços. Alguns dos filhos de Lameque criam instrumentos musicais e usam ferramentas de bronze e ferro (Gn 4.21-22). A capacidade de criar música, de fabricar os instrumentos para tocá-la e de desenvolver avanços tecnológicos na metalurgia estão todos dentro do escopo dos criadores que fomos criados para ser à imagem de Deus. As artes e as ciências são um desdobramento digno do mandato da criação, mas o elogio de Lameque sobre seus atos cruéis aponta para os perigos que acompanham a tecnologia em uma cultura depravada e inclinada à violência. O primeiro poeta humano após a queda celebra o orgulho humano e o abuso de poder. No entanto, a harpa e a flauta podem ser redimidas e usadas no louvor a Deus (1Sm 16.23), assim como a metalurgia, que entrou na construção do tabernáculo hebraico (Êx 35.4-19,30-35).
À medida que as pessoas se multiplicam, elas começam a divergir. Por meio de Sete, Adão tinha esperança de uma semente piedosa, que incluía Enoque e Noé. Mas, com o tempo, surge um grupo de pessoas que se afastam dos caminhos de Deus.
Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas, e escolheram para si aquelas que lhes agradaram. Então disse o Senhor: “Por causa da perversidade do homem, meu Espírito não contenderá com ele para sempre; ele só viverá cento e vinte anos”. Naqueles dias, havia nefilins na terra, e também posteriormente, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas lhes deram filhos. Eles foram os heróis do passado, homens famosos. O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. (Gn 6.1-5)
O que a linhagem piedosa de Sete — por fim restrita apenas a Noé e sua família — poderia fazer contra uma cultura tão depravada que levaria Deus a tomar a decisão de destruí-la completamente?
Para muitos cristãos hoje, uma grande preocupação no ambiente de trabalho é como observar os princípios que acreditamos refletir a vontade e os propósitos de Deus para nós, como portadores ou representantes de sua imagem. Como podemos fazer isso nos casos em que nosso trabalho nos pressiona para o caminho da desonestidade, deslealdade, mão de obra de baixa qualidade, salários e condições de trabalho degradantes, exploração da vulnerabilidade de colegas de trabalho, clientes, fornecedores ou da comunidade em geral? Pelo exemplo de Sete — e de muitos outros nas Escrituras —, sabemos que há espaço no mundo para as pessoas trabalharem de acordo com o desígnio e o mandato de Deus.
Quando outros podem cair no medo, na incerteza e na dúvida, ou sucumbir ao desejo ilimitado de poder, riqueza ou reconhecimento humano, o povo de Deus pode permanecer firme no trabalho ético, significativo e compassivo, porque confiamos em Deus para nos ajudar a superar as dificuldades que se mostram difíceis de lidar sem a graça de Deus. Quando as pessoas são abusadas ou prejudicadas pela ganância, injustiça, ódio ou negligência, podemos defendê-las, fazer justiça e curar feridas e divisões, porque temos acesso ao poder redentor de Cristo. Os cristãos, dentre todas as pessoas, podem se dispor a lutar contra o pecado que encontramos em nossos ambientes de trabalho, quer ele surja das ações de outras pessoas ou de nosso próprio coração. Deus anulou o projeto em Babel porque “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6); as pessoas não se referiam às nossas habilidades reais, mas à nossa arrogância. No entanto, pela graça de Deus, realmente temos o poder de realizar tudo o que Deus tem reservado para nós em Cristo, que declara que “nada lhes será impossível” (Mt 17.20) e “nada é impossível para Deus” (Lc 1.37).
Será que realmente trabalhamos como se acreditássemos no poder de Deus? Ou desperdiçamos as promessas de Deus simplesmente tentando sobreviver sem causar confusão?
Deus chama Noé e cria um novo mundo (Gênesis 6.9-8.19)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAlgumas situações podem ser resgatáveis. Outras podem estar além da redenção. Em Gênesis 6.6-8, ouvimos o lamento de Deus sobre o estado do mundo e da cultura pré-diluvianos, bem como sua decisão de começar de novo:
Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e isso cortou-lhe o coração. Disse o Senhor: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, os homens e também os grandes animais e os pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito”. A Noé, porém, o Senhor mostrou benevolência.
De Adão até nós, Deus procura pessoas que possam se posicionar contra a cultura do pecado, quando necessário. Adão falhou no teste, mas gerou a linhagem de Noé, “homem justo, íntegro entre o povo da sua época; ele andava com Deus” (Gn 6.9). Noé é a primeira pessoa cuja obra é principalmente redentora. Ao contrário de outros, que estão ocupados tirando a vida do solo, Noé é chamado para salvar a humanidade e a natureza da destruição. Nele vemos o progenitor de sacerdotes, profetas e apóstolos, que são chamados à obra da reconciliação com Deus, e daqueles que cuidam do meio ambiente, que são chamados à obra da natureza redentora. Em maior ou menor grau, todos os trabalhadores, desde Noé, são chamados para a obra de redenção e reconciliação.
E que projeto de construção é a arca! Contrariando as chacotas dos vizinhos, Noé e seus filhos devem derrubar milhares de ciprestes e, com eles, fazer tábuas na quantidade suficiente para construir um zoológico flutuante. Essa embarcação de três andares precisa ter capacidade para transportar as várias espécies de animais e armazenar comida e água necessárias por um período indefinido. Apesar das dificuldades, o texto nos assegura que “Noé fez tudo exatamente como Deus lhe tinha ordenado” (Gn 6.13-22).
No mundo dos negócios, os empreendedores estão acostumados a correr riscos, trabalhando contra a sabedoria convencional para criar novos produtos ou processos. É necessária uma visão de longo prazo, em vez de atenção aos resultados de curto prazo. Noé enfrentou o que às vezes deve ter parecido uma tarefa impossível, e alguns estudiosos da Bíblia sugerem que a construção real da arca levou cem anos. Também é preciso fé, tenacidade e planejamento cuidadoso diante de céticos e críticos. Talvez devêssemos acrescentar o gerenciamento de projetos à lista de desenvolvimentos pioneiros de Noé. Hoje, inovadores, empreendedores e aqueles que desafiam as opiniões e os sistemas predominantes em nossos ambientes de trabalho ainda precisam de uma fonte de força interior e convicção. A resposta não é nos convencermos a correr riscos tolos, é claro, mas recorrer à oração e ao conselho dos sábios em Deus quando formos confrontados com oposição e desânimo. Talvez precisemos de um florescimento de cristãos talentosos e treinados para o trabalho de encorajar e ajudar a refinar a criatividade de inovadores nos negócios, na ciência, na academia, nas artes, no governo e em outras esferas de trabalho.
A história do dilúvio, encontrada em Gênesis 7.1—8.19, é bem conhecida. Por mais de meio ano, Noé, sua família e todos os animais saltitam dentro da arca, enquanto as inundações se alastram, fazendo a arca girar na água que cobria o topo das montanhas. Quando finalmente o dilúvio diminui, o solo está seco e uma nova vegetação está surgindo. Os ocupantes da arca mais uma vez pisam em terra firme. O texto ecoa Gênesis 1, enfatizando a continuidade da criação. Deus sopra um “vento” sobre “as profundezas” e “as águas” retrocedem (Gn 8.1-3). No entanto, em certo sentido, aquele era um mundo novo, remodelado pela força do dilúvio. Deus estava dando à cultura humana uma nova oportunidade de começar do zero e acertar. Para os cristãos, isso prenuncia o novo céu e a nova terra em Apocalipse 21—22, quando a vida e o trabalho humanos são levados à perfeição dentro do cosmos, curados dos efeitos da Queda, como discutimos em "Deus traz à existência o mundo material” (Gn 1.1-2).
O que pode ficar menos aparente é que este, o primeiro trabalho de engenharia em larga escala da humanidade, é um projeto ambiental. Apesar — ou talvez como resultado — do relacionamento rompido da humanidade com a serpente e todas as criaturas (Gn 3.15), Deus atribui a um ser humano a tarefa de salvar os animais e confia nele para fazê-lo fielmente. As pessoas não estavam isentas do chamado de Deus para dominar “sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.28). Deus está sempre trabalhando para restaurar o que foi perdido na Queda, e ele usa como seu principal instrumento a humanidade — caída sim, mas em restauração.
A aliança de Deus com Noé (Gênesis 9.1-19)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMais uma vez em terra firme, diante de um novo começo, o primeiro ato de Noé é construir um altar ao Senhor (Gn 8.20). Aqui ele oferece sacrifícios que agradam a Deus, e Deus resolve nunca mais destruir a humanidade: “Enquanto durar a terra, plantio e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite jamais cessarão” (Gn 8.22). Deus estabelece uma aliança com Noé e seus descendentes, prometendo nunca mais destruir a terra por meio de um dilúvio (Gn 9.8-17). Deus coloca o arco-íris como um sinal de sua promessa. Embora a Terra tenha novamente mudado de maneira radical, os propósitos de Deus para o trabalho permanecem os mesmos. Ele repete sua bênção e seu mandato a Noé e seus filhos: “Sejam férteis, multipliquem-se e encham a terra” (Gn 9.1). Ele afirma sua promessa de provisão de alimento por meio do trabalho (Gn 9.3). Em troca, estabelece requisitos para a justiça entre os seres humanos e para a proteção de todas as criaturas (Gn 9.4-6).
A palavra hebraica traduzida como “arco-íris” refere-se simplesmente a um arco — uma ferramenta de batalha e caça. Waltke observa que, nas mitologias antigas do Oriente Próximo, estrelas em forma de arco eram associadas à raiva ou hostilidade do deus, mas que “aqui o arco do guerreiro está pendurado, apontado para longe da terra ”. [1] Meredith Kline observa que “o símbolo da belicosidade e da hostilidade divinas foi transformado em um símbolo de reconciliação entre Deus e o homem”. [2] O arco em posição de descanso se estende da terra ao céu, de horizonte a horizonte. Um instrumento de guerra tornou-se um símbolo de paz por meio da aliança de Deus com Noé.
A queda de Noé (Gênesis 9.20-29)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois de seu trabalho heróico em nome da humanidade, Noé cai em um incidente doméstico preocupante. Tudo começa — como muitas tragédias em casa e no ambiente de trabalho — com o abuso de substâncias, neste caso o álcool. (Adicione a produção de bebidas alcoólicas à lista de inovações de Noé; Gn 9.20.) Depois de ficar bêbado, Noé desmaia nu em sua tenda. Seu filho, Cam, entra ali e o vê nesse estado, mas seus outros filhos — alertados por Cam — entram na tenda de costas para a tenda e cobrem o pai sem olhar para a sua nudez. É difícil para a maioria dos leitores modernos entender exatamente o que há de tão vergonhoso ou imoral nessa situação, mas ele e seus filhos entendem claramente que é um desastre familiar. Quando Noé recupera a consciência e fica ciente do acontecido, sua resposta destrói permanentemente a tranquilidade da família. Noé amaldiçoa os descendentes de Cam por meio de Canaã e os torna escravos dos descendentes dos outros dois filhos. Isso prepara o terreno para milhares de anos de inimizade, guerra e atrocidades entre a família de Noé.
Noé pode ser a primeira pessoa de grande estatura a cair em desgraça, mas não foi a última. Algo na grandeza parece tornar as pessoas vulneráveis ao fracasso moral — especialmente, ao que parece, na vida pessoal e familiar. Em um instante, todos nós poderíamos citar uma dúzia de exemplos no cenário mundial. O fenômeno é comum o suficiente para gerar provérbios, tanto bíblicos — “O orgulho vem antes da destruição; o espírito altivo, antes da queda” (Pv 16.18) — quanto coloquiais — “Quanto mais alto, maior é a queda”.
Noé sem dúvida, é uma das grandes figuras da Bíblia (Hb 11.7), portanto, nossa melhor resposta não é julgar Noé, mas pedir a graça de Deus para nós mesmos. Se nos encontrarmos buscando grandeza, é melhor buscar primeiro a humildade. Se nos tornamos grandes, é melhor implorar a Deus a graça de escapar do destino de Noé. Se caímos, assim como Noé, vamos confessar rapidamente e pedir às pessoas ao nosso redor que nos impeçam de transformar uma queda em um desastre por meio de nossas reações autojustificadas.
Os descendentes de Noé e a torre de Babel (Gênesis 10.1—11.32)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo capítulo chamado de Origem dos Povos, Gênesis 10 traça primeiro os descendentes de Jafé (Gn 10.2-5), depois os descendentes de Cam (Gn 10.6-20) e, finalmente, os descendentes de Sem (Gn 10.21-31). Entre eles, o neto de Cam, Ninrode, se destaca por sua importância para a teologia do trabalho. Ninrode funda um império de pura agressão com base na Babilônia. Ele é um tirano, um poderoso caçador a ser temido e, o que é mais significativo, um construtor de cidades (Gn 10.8-12).
Com Ninrode, o tirânico construtor de cidades, ainda presente em nossa memória, chegamos à construção da torre de Babel (Gn 11.1-9). Babel, como muitas cidades no antigo Oriente Próximo, foi projetada como uma área murada de um grande templo ou zigurate, uma torre de tijolos de barro em forma de escada, projetada para alcançar o reino dos deuses. Com tal torre, as pessoas poderiam ascender aos deuses, e os deuses poderiam descer à terra. Embora Deus não condene esse desejo de alcançar os céus, vemos nele a ambição de autoexaltação e o pecado crescente do orgulho que leva essas pessoas a começarem a construir uma torre tão poderosa. “Vamos construir uma cidade, com uma torre que alcance os céus. Assim nosso nome será famoso e não seremos espalhados pela face da terra” (Gn 11.4). O que eles queriam? Fama. O que eles temiam? Ser dispersos sem a segurança de um grande grupo. A torre que eles imaginaram construir parecia enorme para eles, mas o narrador de Gênesis sorri enquanto nos diz que era tão insignificante que Deus “desceu para ver a cidade e a torre” (Gn 11.5). Quão diferente da cidade de paz, ordem e virtude, que são os propósitos de Deus para o mundo. [1]
A objeção de Deus à torre é que ela dará às pessoas a expectativa de que “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6). Assim como Adão e Eva antes deles, eles pretendem usar o poder criativo que possuem como portadores da imagem de Deus para agir contra os propósitos de Deus. Nesse caso, eles planejam fazer o contrário do que Deus ordenou no mandato cultural. Em vez de encher a terra, eles pretendem se concentrar aqui em um único local. Em vez de explorar a plenitude do nome que Deus lhes deu — Adão, “humanidade” (Gn 5.2) —, eles decidem fazer um nome para si mesmos. Deus vê que sua arrogância e ambição estão fora dos limites e diz: “Venham, desçamos e confundamos a língua que falam, para que não entendam mais uns aos outros” (Gn 11.7). Então, “o Senhor os espalhou dali por toda a face de toda a terra, e eles pararam de construir a cidade. Por isso, foi chamada Babel, porque ali o Senhor confundiu a língua de toda a terra; e dali o Senhor os dispersou por toda a face de toda a terra” (Gn 11.8-9).
Podemos ser tentados a concluir, a partir deste estudo, que as cidades são inerentemente ruins, mas não é bem assim. Deus deu a Israel uma capital, Jerusalém, e a morada final do povo de Deus é a cidade santa de Deus que desce do céu (Ap 21.2). O conceito de “cidade” não é mau, mas o orgulho que podemos vir a atribuir às cidades é o que desagrada a Deus (Gn 19.12-14). Pecamos quando olhamos para o triunfo cívico e a cultura, e não para Deus, como nossa fonte de significado e direção. Bruce Waltke conclui sua análise de Gênesis 11 nestas palavras:
A sociedade sem Deus é totalmente instável. Por um lado, as pessoas buscam sinceramente significado existencial e segurança em sua unidade coletiva. Por outro lado, elas têm um apetite insaciável para consumir o que os outros possuem... No coração da cidade do homem está o amor a si mesmo e o ódio a Deus. A cidade revela que o espírito humano não se deterá em nada menos que usurpar o trono de Deus no céu. [2]
Embora possa parecer que o fato de Deus ter dispersado as pessoas é uma punição, na verdade, é também um meio de redenção. Desde o início, Deus pretendia que as pessoas se dispersassem pelo mundo. “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra” (Gn 1.28). Ao dispersar as pessoas após a queda da torre, Deus as colocou de volta no caminho de encher a terra, o que resultou na bela variedade de povos e culturas que a povoam hoje. Se as pessoas tivessem completado a torre sob uma singularidade de intenções maliciosas e tirania social, com o resultado de que “nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6), só podemos imaginar os horrores que teriam enfrentado em seu orgulho e força do pecado. A amplitude do mal operado pela humanidade nos séculos 20 e 21 dá um mero vislumbre do que as pessoas poderiam fazer se todas as coisas fossem possíveis sem depender de Deus. Como Dostoievski disse: “Sem Deus e a vida futura, isso significa que tudo é permitido”. [3] Às vezes, Deus não nos deixa seguir nosso caminho porque sua misericórdia para conosco é grande demais.
O que podemos aprender com o incidente da torre de Babel para nosso trabalho hoje? A ofensa específica que os construtores cometeram foi desobedecer à ordem de Deus de se espalhar e encher a terra. Eles centralizaram não apenas suas moradias geográficas, mas também sua cultura, sua língua e suas instituições. Em sua ambição de fazer uma grande coisa (“nosso nome será famoso”; Gn 11.4), eles reprimiram a amplitude do esforço que deveria vir com a variedade de dons, serviços, atividades e funções com os quais Deus dota as pessoas (1Co 12.4-11). Embora Deus queira que as pessoas trabalhem juntas para o bem comum (Gn 2.18 ; 1Co. 12.7), ele não nos criou para realizá-lo por meio da centralização e do acúmulo de poder. Ele advertiu o povo de Israel contra os perigos de concentrar o poder em um rei (1Sm 8.10-18). Deus preparou para nós um rei divino, Cristo, nosso Senhor, e sob ele não há lugar para grande concentração de poder em indivíduos, instituições ou governos humanos.
Portanto, podemos esperar que lideranças e instituições cristãs tenham o cuidado de dispersar a autoridade e favorecer a coordenação, objetivos e valores comuns e a tomada de decisões democráticas, em vez da concentração de poder. Mas, em muitos casos, os cristãos buscaram algo diferente, o mesmo tipo de concentração de poder que tiranos e autoritários buscam, embora com objetivos mais benevolentes. Dessa forma, os legisladores cristãos buscam o mesmo controle sobre a população, embora com o objetivo de impor a piedade ou a moralidade. Dessa forma, os empresários cristãos buscam o oligopólio tanto quanto os outros, embora com o objetivo de melhorar a qualidade, o atendimento ao cliente ou o comportamento ético. Dessa forma, os educadores cristãos buscam tão pouca liberdade de pensamento quanto os educadores autoritários, embora com a intenção de impor a expressão moral, a bondade e a sã doutrina.
Por mais louváveis que sejam todos esses objetivos, os acontecimentos da torre de Babel sugerem que eles são muitas vezes perigosamente equivocados (mais tarde, a advertência de Deus a Israel sobre os perigos de ter um rei ecoa essa sugestão; veja 1Sm 8.10-18). Em um mundo em que mesmo aqueles que estão em Cristo ainda lutam contra o pecado, a ideia de Deus sobre o bom domínio (da parte de seres humanos) parece ser dispersar pessoas, poder, autoridade e capacidades, em vez de concentrá-los em uma pessoa, instituição, partido ou movimento. É claro que algumas situações exigem o exercício decisivo do poder por uma pessoa ou um pequeno grupo. Um piloto seria tolo se aceitasse o voto de um passageiro para escolher em qual pista pousar. Mas será que, com mais frequência do que imaginamos, quando estamos em posições de poder, Deus está nos chamando para dispersar, delegar, autorizar e treinar outros, em vez de exercer o poder sozinhos? Agir assim pode ser confuso, ineficiente, difícil de medir, arriscado e levar à ansiedade. Mas pode ser exatamente o que Deus espera que os líderes cristãos façam em muitas situações.
Conclusões de Gênesis 1—11
Voltar ao índice Voltar ao índiceNos capítulos iniciais da Bíblia, Deus cria o mundo e nos traz para nos juntarmos a ele em mais criatividade. Ele nos cria à sua imagem para exercer domínio, ser frutíferos e multiplicar, receber sua provisão, trabalhar em relacionamento com ele e com outras pessoas e observar os limites de sua criação. Ele nos equipa com recursos, habilidades e comunidades para cumprir essas tarefas, e nos dá o padrão de trabalhar por elas em seis dos sete dias da semana. Ele nos dá a liberdade de fazer essas coisas por amor a ele e à sua criação, o que também nos dá a liberdade de não fazer as coisas para as quais ele nos criou. Para nosso prejuízo duradouro, os primeiros seres humanos escolheram violar o mandato de Deus, e as pessoas continuam a escolher a desobediência — em maior ou menor grau — até os dias atuais. Como resultado, nosso trabalho tornou-se menos produtivo, mais penoso e menos satisfatório, e nossos relacionamentos e nosso trabalho diminuíram e, às vezes, até foram destrutivos.
No entanto, Deus continua a nos chamar para trabalhar, nos equipando e suprindo nossas necessidades. E muitas pessoas têm a oportunidade de fazer um trabalho bom, criativo e gratificante, que supra suas necessidades e contribua para uma comunidade próspera. A Queda tornou o trabalho que começou no jardim do Éden mais necessário, não menos. Embora os cristãos às vezes tenham entendido mal isso, Deus não respondeu à Queda se retirando do mundo material e confinando seus interesses ao espiritual, e não é possível divorciar o material e o espiritual. O trabalho, incluindo os relacionamentos que o permeiam e os limites que o abençoam, continua sendo um presente de Deus para nós, mesmo que seja severamente prejudicado pelas condições de existência após a Queda.
Ao mesmo tempo, Deus está sempre trabalhando para redimir sua criação dos efeitos da Queda. Gênesis 4—11 começa a história de como o poder de Deus está trabalhando para ordenar e reordenar o mundo e seus habitantes. Deus é soberano sobre o mundo criado e sobre toda criatura viva, humana ou não. Ele continua a cuidar de sua própria imagem na humanidade. Mas ele não tolera os esforços humanos para ser “como Deus” (Gn 3.5), a fim de adquirir poder excessivo ou substituir o relacionamento com Deus pela autossuficiência. Aqueles que, como Noé, recebem o trabalho como um dom de Deus e fazem o possível para trabalhar de acordo com sua direção encontram bênçãos e frutos em seu trabalho. Aqueles que, como os construtores da torre de Babel, tentam alcançar o poder e o sucesso em seus próprios termos encontram violência e frustração, especialmente quando seu trabalho se volta para prejudicar os outros. Como todos os personagens desses capítulos de Gênesis, enfrentamos a escolha de trabalhar com Deus ou em oposição a ele. Como a história da obra de Deus para redimir sua criação terminará é algo que não é contado no livro de Gênesis, mas sabemos que, em última análise, leva à restauração da criação — incluindo a obra das criaturas de Deus — como Deus planejou desde o início.
Para leitura adicional
Mark Biddle, Missing the Mark: Sin and Its Consequences in Biblical Theology (Nashville, TN: Abingdon Press, 2005).
Walter Brueggemann, Genesis (Atlanta: John Knox, 1982).
Victor Hamilton, The Book of Genesis: Chapters 1-17 (Grand Rapids: Eerdmans, 1990).
Walter Kaiser Jr., Toward Old Testament Ethics (Grand Rapids: Zondervan, 1983).
Thomas Keiser, Genesis 1-11: Its Literary Coherence and Theological Message (Eugene, OR: Wipf & Stock, 2013).
John Mason, “Biblical Teaching and Assisting the Poor,” Interpretation 4, no.2 (1987).
John Mason and Kurt Schaefer, “The Bible, the State, and the Economy: A Framework for Analysis,” Christian Scholar’s Review 20, no. 1 (1990).
Kenneth Mathews, The New American Commentary: Vol. 1A Genesis 1-11.26 (Nashville: Broadman and Holman, 1996).
Gerhard von Rad, Genesis rev. edn. (London: SCM, 1972).
Bruce Vawter, On Genesis: A New Reading (New York: Doubleday, 1977).
John Walton, The NIV Application Commentary: Genesis (Grand Rapids: Zondervan, 2001).
Claus Westermann, Genesis 1-11 (Minneapolis: Augsburg, 1984).
Albert Wolters, Creation Regained (Grand Rapids: Eerdmans, 2005).
Christopher Wright, Old Testament Ethics for the People of God (Leicester: Inter-Varsity Press, 2004).
Introdução a Gênesis 12—50 e o trabalho
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs capítulos 12 a 50 de Gênesis falam sobre a vida e a obra de Abraão, Sara e seus descendentes. Deus chamou Abraão, Sara e sua família para deixar sua terra natal e ir para o novo país que Deus lhes mostraria. Ao longo do caminho, Deus prometeu transformá-los em um grande povo: “Por meio de você todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 12.3). Como descendentes espirituais de Abraão, abençoados por esta grande família e trazidos à fé por meio de seu descendente Jesus Cristo, somos chamados a seguir os passos da fé do pai e da mãe de todos os que verdadeiramente creem (Rm 4.11; Gl 3.7,29).
A história da família de Abraão e Sara é repleta de trabalho. Seu trabalho abrange quase todas as facetas do trabalho dos povos seminômades no antigo Oriente Próximo. Em todos os momentos, eles enfrentam questões cruciais sobre como viver e trabalhar observando fielmente a aliança de Deus. Eles lutam para ganhar a vida, suportar convulsões sociais, criar filhos em segurança e permanecer fiéis a Deus em meio a um mundo quebrantado, assim como acontece conosco hoje. Eles descobrem que Deus é fiel à sua promessa de abençoá-los em todas as circunstâncias, embora eles mesmos se mostrem infiéis repetidas vezes.
Mas o propósito da aliança de Deus não é apenas abençoar a família de Abraão em um mundo hostil. Em vez disso, ele pretende abençoar o mundo inteiro por meio dessas pessoas. Essa tarefa está além das habilidades da família de Abraão, que cai repetidas vezes no orgulho, no egocentrismo, na imprudência, na raiva e em todas as outras doenças a que as pessoas decaídas estão sujeitas. Também nos reconhecemos neles neste aspecto. No entanto, pela graça de Deus, eles mantêm um núcleo de fidelidade à aliança, e Deus trabalha por meio do trabalho dessas pessoas, cercadas de falhas, para trazer bênçãos inimagináveis ao mundo. Da mesma maneira, nosso trabalho também traz bênçãos para aqueles ao nosso redor, porque participamos da obra de Deus no mundo.
Quando visto do começo ao fim, fica claro que Gênesis é uma única peça literária, mas se divide em duas partes distintas. A primeira parte (Gn 1—11) trata da criação do universo por Deus e, em seguida, traça o desenvolvimento da humanidade, desde o casal original no jardim do Éden até os três filhos de Noé e suas famílias, que se espalharam pelo mundo. Esta seção termina com uma nota negativa, quando pessoas de todo o mundo se reúnem para construir uma cidade e fazer um nome para si mesmas e, em vez disso, experimentam derrota, confusão e dispersão como julgamento de Deus. A segunda parte (Gn 12—50) começa com o chamado do Senhor a um homem em particular, Abraão. [1] Deus o chamou para deixar sua terra natal e sua família e partir para uma nova vida e uma nova terra, e foi isso o que ele fez. O restante do livro segue a vida desse homem e das três gerações seguintes, que começam a experimentar o cumprimento das promessas divinas feitas a Abraão, seu pai.
A fidelidade de Abraão em contraste com a falta de fé de Babel (Gênesis 12.1-3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeus chamou Abraão para uma aliança de serviço fiel, como é dito no início de Gênesis 12. Ao deixar o território de sua parentela descrente e seguir o chamado de Deus, Abraão se distinguiu fortemente de seus parentes distantes que permaneceram na Mesopotâmia e tentaram construir a torre de Babel, como foi contado no final de Gênesis 11. A comparação entre a família imediata de Abraão, no capítulo 12, e os outros descendentes de Noé, no capítulo 11, destaca cinco contrastes.
Primeiro, Abraão deposita sua confiança na orientação de Deus, e não em artifícios humanos. Em contraste, os construtores da torre acreditavam que, por sua própria habilidade e engenhosidade, poderiam conceber uma torre “que chegue até o céu” (Gn 11.4) e, ao fazê-lo, conseguir significado e segurança de uma forma que usurpasse a autoridade de Deus. [1]
Em segundo lugar, os construtores procuraram fazer um nome para si mesmos (Gn 11.4), mas Abraão confiou na promessa de Deus de que ele engrandeceria o nome de Abraão (Gn 12.2). A diferença não era o desejo de alcançar a grandeza em si, mas o desejo de buscar a fama em seus próprios termos. Deus realmente tornou Abraão famoso, não por si mesmo, mas pela promessa de que, por meio dele, “todas as famílias da terra serão abençoadas” (Gn 12.3). Os construtores da torre buscaram a fama por si mesmos, mas permanecem anônimos até hoje.
Terceiro, Abraão estava disposto a ir aonde quer que Deus o levasse, enquanto os construtores tentavam se amontoar em seu espaço habitual. Eles criaram seu projeto por medo de que fossem espalhados por toda a terra (Gn 11.4). Ao fazer isso, rejeitaram o propósito de Deus para a humanidade de encher a terra (Gn 1.28). Parece que estavam com medo de que ser espalhados em um mundo aparentemente hostil fosse muito difícil para eles. Mesmo sendo criativos e tecnologicamente inovadores (Gn 11.3), não estavam dispostos a abraçar plenamente o propósito de Deus: “sejam férteis e multipliquem-se” (Gn 1.28). Seu medo de se engajar na plenitude da criação coincidiu com sua decisão de substituir a orientação e a graça de Deus pela engenhosidade humana. Quando deixamos de aspirar por mais do que podemos alcançar por conta própria, nossas aspirações se tornam insignificantes.
Em contraste, Deus fez de Abraão o empreendedor original, sempre seguindo em frente para novos empreendimentos em novos locais. Deus o chamou para longe da cidade de Harã, em direção à terra de Canaã, onde Abraão nunca se estabeleceria em um endereço fixo. Ele ficou conhecido como um “arameu errante” (Dt 26.5). Esse estilo de vida era inerentemente mais centrado em Deus, pois Abraão teria de depender da palavra e da liderança de Deus para encontrar seu significado, segurança e sucesso. Como Hebreus 11.8 coloca, ele teve de partir, “embora não soubesse para onde estava indo”. No mundo do trabalho, os crentes devem perceber o contraste nessas duas orientações fundamentais. Todo trabalho envolve planejamento e construção. O trabalho ímpio decorre do desejo de não depender de ninguém além de nós mesmos, e se restringe estritamente a beneficiar apenas a nós mesmos e aos poucos que possam estar próximos de nós. A obra piedosa está disposta a depender da orientação e da autoridade de Deus e deseja crescer amplamente como uma bênção para todo o mundo.
Quarto, Abraão estava disposto a permitir que Deus o conduzisse a novos relacionamentos. Enquanto os construtores da torre procuravam se fechar em uma fortaleza vigiada, Abraão confiou na promessa de Deus de que sua família se tornaria um grande povo (Gn 12.2; 15.5). Embora vivessem entre estrangeiros na terra de Canaã (Gn 17.8), tinham bom relacionamento com aqueles com quem entravam em contato (Gn 21.22-34; 23.1-12). Esse é o dom da comunidade. Outro tema-chave emerge, portanto, para a teologia do trabalho: o desígnio de Deus é que as pessoas trabalhem em redes saudáveis de relacionamento.
Por fim, Abraão foi abençoado com a paciência de ter uma visão de longo prazo. As promessas de Deus deveriam ser cumpridas no tempo da descendência de Abraão, não no tempo do próprio Abraão. O apóstolo Paulo interpretou a “descendência” como sendo Jesus (Gl 3.19), o que significa que a data da recompensa seria mais de mil anos no futuro. De fato, a promessa feita a Abraão não será cumprida completamente até o retorno de Cristo (Mt 24.30-31). Seu progresso não pode ser adequadamente medido por relatórios trimestrais! Os construtores das torres, em comparação, não pensaram em como seu projeto afetaria as gerações futuras, e Deus os criticou explicitamente por esse lapso (Gn 11.6).
Em suma, Deus prometeu a Abraão fama, descendência e bons relacionamentos, o que significava que ele e sua família abençoariam o mundo inteiro e, no devido tempo, seriam abençoados além da imaginação (Gn 22.17). Ao contrário de outros, Abraão percebeu que uma tentativa de entender essas coisas por conta própria seria inútil, ou pior. Em vez disso, ele confiou em Deus e dependeu todos os dias da orientação e provisão de Deus (Gn 22.8-14). Embora essas promessas não tenham sido totalmente cumpridas até o final de Gênesis, elas iniciaram a aliança entre Deus e o povo de Deus, por meio da qual a redenção do mundo será completada no dia de Cristo (Fp 1.10).
Deus prometeu uma nova terra à família de Abraão. Fazer uso da terra requer muitos tipos de trabalho; portanto, o fato de dar terras reitera que o trabalho é uma esfera essencial da preocupação de Deus. Trabalhar a terra exigiria habilidades ocupacionais de pastoreio, fabricação de tendas, proteção militar e produção de uma ampla gama de bens e serviços. Além disso, os descendentes de Abraão se tornariam uma nação populosa, cujos membros seriam tão inumeráveis quanto as estrelas do céu. Isso exigiria o trabalho de desenvolver relacionamentos pessoais, paternidade, política, diplomacia e administração, educação, artes da cura e outras ocupações sociais. Para trazer tais bênçãos a toda a terra, Deus chamou Abraão e seus descendentes e disse: “ande segundo a minha vontade e seja íntegro” (Gn 17.1). Isso exigia o trabalho de adoração, expiação, discipulado e outras ocupações religiosas. O trabalho de José foi criar uma solução que respondesse ao impacto da fome e, às vezes, nosso trabalho é curar o quebrantamento. Todos esses tipos de trabalho, e os trabalhadores que se envolvem neles, estão sob a autoridade, a orientação e a provisão de Deus.
O estilo de vida pastoril de Abraão e sua família (Gênesis 12.4-7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceQuando Abraão deixou sua casa em Harã e partiu para a terra de Canaã, sua família provavelmente já era bem grande para os padrões modernos. Sabemos que sua esposa Sara e seu sobrinho Ló foram com ele, assim como um número não especificado de pessoas e bens (Gn 12.5). Em breve, Abraão se tornaria muito rico, tendo adquirido servos e gado, bem como prata e ouro (Gn 12.16; 13.2). Ele ganhou pessoas e animais do faraó durante sua estadia no Egito, e os metais preciosos teriam sido resultado de transações comerciais, indicando o Senhor como responsável final por conceder bênçãos. [1] A evidência de que Abraão e Ló haviam se tornado bem-sucedidos está na briga que irrompeu entre os pastores de cada família sobre a incapacidade da terra para prover pasto que sustentasse tantos animais. Por fim, os dois tiveram de se separar para sustentar suas atividades comerciais (Gn 13.11).
Estudos antropológicos desse período e região sugerem que as famílias nessas narrativas praticavam uma mistura de pastoreio seminômade e criação de rebanhos (Gn 13.5-12; 21.25-34; 26.17-33; 29.1-10; 37.12-17). [2] Essas famílias precisavam de mobilidade sazonal e, portanto, viviam em tendas de couro, feltro e lã. Possuíam propriedades que podiam ser carregadas por burros ou, se alguém fosse rico o suficiente, também por camelos. Encontrar o equilíbrio entre a disponibilidade ideal de terra para pastagem e água exigia bom senso e conhecimento profundo do clima e da geografia. Os meses mais úmidos, de outubro a março, forneciam pastagens nas planícies mais baixas, enquanto nos meses mais quentes e secos, de abril a setembro, os pastores levavam seus rebanhos para maiores altitudes, em busca de nascentes e vegetação mais verde. [3] Como uma família não podia ser inteiramente sustentada pelo pastoreio, era necessário praticar a agricultura local e o comércio com aqueles que viviam em comunidades mais assentadas. [4]
Pastores nômades cuidavam de ovelhas e cabras para obter leite e carne (Gn 18.7-8; 27.9; 31.38), lã e outros produtos feitos de produtos animais, como couro. Jumentos carregavam cargas (Gn 42.26), e os camelos eram especialmente adequados para viagens mais longas (Gn 24.10,64; 31.17). As habilidades necessárias para manter esses rebanhos envolveriam pastorear e dar água, realizar partos, tratar os animais doentes e feridos e garantir proteção contra predadores e ladrões, além de buscar animais que se perdessem.
As variações no clima e o tamanho do crescimento da população dos rebanhos e manadas teriam afetado a economia da região. Grupos mais fracos de pastores poderiam facilmente ser deslocados ou assimilados por aqueles que precisavam de mais território para suas propriedades em expansão. [5] O lucro do pastoreio não era armazenado como poupança ou investimentos acumulados em nome dos proprietários e cuidadores, mas compartilhado por toda a família. Da mesma forma, os efeitos das dificuldades decorrentes das condições de fome teriam sido sentidos por todos. Embora os indivíduos certamente tivessem suas próprias responsabilidades e fossem responsáveis por suas ações, a natureza comunitária dos negócios da família geralmente destoa de nossa cultura contemporânea, que foca na realização pessoal e na busca de lucros cada vez maiores. A responsabilidade social teria sido uma preocupação diária, não uma opção.
Nesse modo de vida, os valores compartilhados eram essenciais para a sobrevivência. A dependência mútua entre os membros de uma família ou tribo e a consciência de sua ancestralidade comum teriam resultado em grande solidariedade, bem como em hostilidade vingativa em relação a quem a perturbasse (Gn 34.25-31). [6] Os líderes precisavam saber como aproveitar a sabedoria do grupo para tomar decisões acertadas sobre para onde viajar, quanto tempo permanecer e como dividir os rebanhos. [7] Eles deviam ter alguma maneira de se comunicar com pastores que levavam os rebanhos a distâncias maiores (Gn 37.12-14). As habilidades de resolução de conflitos eram necessárias para resolver disputas inevitáveis envolvendo terras de pastagem e direitos sobre a água de poços e nascentes (Gn 26.19-22). A alta mobilidade da vida no campo e a vulnerabilidade de alguém aos saqueadores tornavam a hospitalidade muito mais do que uma cortesia. Em geral, era considerada um requisito para pessoas decentes oferecer bebidas, comida e hospedagem. [8]
As narrativas patriarcais mencionam repetidamente a grande riqueza de Abraão, Isaque e Jacó (Gn 13.2; 26.13; 31.1). O pastoreio e a criação de animais eram áreas de trabalho honrosas e podiam ser lucrativas, e a família de Abraão tornou-se muito rica. Por exemplo, para abrandar a atitude de Esaú, seu irmão ofendido, antes do encontrá-lo depois de tantos anos, Jacó conseguiu selecionar de sua propriedade um presente de pelo menos 550 animais: 200 cabras com 20 machos, 200 ovelhas com 20 carneiros, 30 camelas com seus bezerros, 40 vacas com 10 touros e 20 jumentas com 10 machos (Gn 32.13-15). Portanto, é apropriado que, no final de sua vida, quando Jacó conferiu bênçãos a seus filhos, ele dê um belo testemunho sobre o Deus de seus pais: “o Deus que tem sido o meu pastor em toda a minha vida até o dia de hoje” (Gn 48.15). Embora muitas passagens na Bíblia avisem que a riqueza é muitas vezes inimiga da fidelidade (por exemplo, Jr 17.11, Hc 2.5, Mt 6.24), a experiência de Abraão mostra que a fidelidade de Deus também pode ser expressa em prosperidade. Como veremos, isso não é de forma alguma uma promessa de que o povo de Deus deva esperar prosperidade continuamente.
A jornada de Abraão começa com desastre no Egito (Gênesis 12.8—13.2)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs resultados iniciais das viagens de Abraão não foram promissores. Havia uma disputa feroz pela terra (Gn 12.6), e Abraão passou muito tempo tentando encontrar um pedaço de terra para ocupar (Gn 12.8-9). Por fim, a deterioração das condições econômicas o obrigou a abandonar completamente o lugar e a levar sua família para o Egito, a centenas de quilômetros de distância da terra prometida por Deus (Gn 12.10).
Como migrante econômico para o Egito, a posição vulnerável de Abraão o deixou com medo. Ele temia que os egípcios pudessem assassiná-lo para ficar com sua bela esposa, Sara. Para evitar isso, Abraão pediu que Sara dissesse que era sua irmã, e não sua esposa. Como Abraão havia pensado, um dos egípcios — o próprio faraó — desejou Sara e ela “foi levada ao seu palácio” (Gn 12.15). Como resultado, “o Senhor puniu o faraó e sua corte com graves doenças” (Gn 12.17). Quando o faraó descobriu o motivo — que ele havia tomado a esposa de outro homem —,devolveu Sara a Abraão e imediatamente ordenou que ambos saíssem de seu país (Gn 12.18-19). No entanto, o faraó os enriqueceu com ovelhas e gado, jumentos e jumentas, servos e servas, bem como camelos (Gn 12.16), além de prata e ouro (Gn 13.2), uma indicação adicional de que a riqueza de Abraão (Gn 13.2) se devia aos presentes reais. [1]
Esse incidente indica dramaticamente os dilemas morais que se apresentam diante de grandes disparidades de riqueza e pobreza e os perigos de perder a fé diante de tais problemas. Abraão e Sara estavam fugindo da fome. Pode ser difícil de imaginar que alguém seja tão desesperadamente pobre ou tenha medo de que uma família sujeite suas mulheres a serviços sexuais para sobreviver economicamente, mas ainda hoje milhões de pessoas enfrentam essa escolha. Faraó repreende Abraão por agir dessa maneira, mas a resposta de Deus a um incidente posterior semelhante (Gn 20.7,17) mostra mais compaixão do que julgamento.
Por outro lado, Abraão havia recebido a promessa direta de Deus: “Farei de você um grande povo” (Gn 12.2). Sua fé em Deus para cumprir suas promessas falhou tão rapidamente? A sobrevivência realmente exigia que ele mentisse e permitisse que sua esposa se tornasse uma concubina, ou Deus teria providenciado outra maneira? Os temores de Abraão parecem tê-lo feito esquecer sua confiança na fidelidade de Deus. Da mesma forma, pessoas em situações difíceis geralmente se convencem de que não têm escolha a não ser fazer algo que consideram errado. No entanto, fazer escolhas desagradáveis, não importa nossos sentimentos em relação a elas, não é o mesmo que não ter escolha.
Abraão e Ló se separam: a generosidade de Abraão (Gênesis 13.3-18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceQuando Abraão e sua família entraram novamente em Canaã e chegaram à região ao redor de Betel, o atrito que eclodiu entre os pastores de Abraão e os de seu sobrinho Ló forçou Abraão a fazer uma escolha em relação à escassez de terra. Uma divisão precisava ser feita, e Abraão assumiu o risco de oferecer a Ló a chance de ser o primeiro a escolher a propriedade. A cordilheira central de terra em Canaã é rochosa e abriga muita vegetação para pastagem. Os olhos de Ló caíram para o leste e para a planície ao redor do rio Jordão, que ele considerava “como o jardim do Senhor”, então ele escolheu essa porção melhor para si (Gn 13.10). A confiança de Abraão em Deus o libertou da ansiedade de cuidar de si mesmo. Não importa como Abraão e Ló prosperassem no futuro, o fato de Abraão ter deixado Ló fazer a escolha demonstrou generosidade e estabeleceu confiança entre ele e Ló.
A generosidade é uma característica positiva nos relacionamentos pessoais e nos negócios. Talvez nada estabeleça confiança e bons relacionamentos com tanta solidez quanto a generosidade. Colegas, clientes, fornecedores e até adversários reagem fortemente à generosidade e se lembram dela por muito tempo. Quando Zaqueu, o cobrador de impostos, recebeu Jesus em sua casa e prometeu dar metade de seus bens aos pobres e retribuir quatro vezes aqueles a quem ele havia enganado, Jesus o chamou de “filho de Abraão” por sua generosidade e fruto do arrependimento (Lc 19.9). Zaqueu estava respondendo, é claro, à generosidade relacional de Jesus, que inesperadamente, e de forma incomum para o povo da época, abriu seu coração para um detestável cobrador de impostos.
A hospitalidade de Abraão e Sara (Gênesis 18.1-15)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA história da generosa hospitalidade de Abraão e Sara para com três visitantes que foram até eles, junto aos carvalhos de Manre, é contada em Gênesis 18. A vida seminômade no país costumava colocar pessoas de diferentes famílias em contato umas com as outras, e o caráter de Canaã como uma ligação natural por terra entre a Ásia e a África tornou-a uma rota comercial popular. Na ausência de uma indústria formal de hospitalidade, as pessoas que viviam em cidades e acampamentos tinham a obrigação social de acolher estranhos. A partir de descrições do Antigo Testamento e de outros textos antigos do Oriente Próximo, Matthews derivou sete códigos de conduta que definem o que é importante para a boa hospitalidade, que mantém a honra das pessoas, de seus lares e das comunidades, recebendo e oferecendo proteção a estranhos. [1] Em torno de um assentamento havia uma zona na qual os indivíduos e a cidade eram obrigados a mostrar hospitalidade.
1. Nessa zona, os moradores eram responsáveis por oferecer hospitalidade a estranhos.
2. O estrangeiro deve ser transformado de uma potencial ameaça em um aliado, por meio da oferta de hospitalidade.
3. Somente o chefe de família do sexo masculino ou um cidadão do sexo masculino de uma cidade ou aldeia pode oferecer o convite de hospitalidade.
4. O convite pode incluir uma declaração sobre o período de hospitalidade, mas esta pode ser estendida, se ambas as partes concordarem, mediante novo convite do anfitrião.
5. O estrangeiro tem o direito de recusa, mas isso pode ser considerado uma afronta à honra do anfitrião e pode ser causa de hostilidades ou conflitos imediatos.
6. Uma vez que o convite é aceito, os papéis do anfitrião e do convidado são definidos pelas regras do costume. O hóspede não deve pedir nada. O anfitrião oferece o melhor que tem à disposição, mesmo que a oferta inicial de hospitalidade seja algo modesto. Espera-se que o hóspede retribua imediatamente com notícias, previsões de boa sorte ou expressões de gratidão pelo que recebeu, além de elogios à generosidade e à honra do anfitrião. O anfitrião não deve fazer perguntas pessoais ao hóspede. Esses assuntos só podem ser oferecidos voluntariamente pelo hóspede.
7. O hóspede permanece sob a proteção do anfitrião até que tenha deixado a zona de obrigação do anfitrião.
Esse episódio fornece o pano de fundo para o mandamento do Novo Testamento: “Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos” (Hb 13.2).
Hospitalidade e generosidade são frequentemente subestimadas nos círculos cristãos. No entanto, a Bíblia retrata o Reino dos Céus como um banquete generoso e até extravagante (Is 25.6-9; Mt 22.2-4). A hospitalidade promove bons relacionamentos, e a hospitalidade de Abraão e Sara fornece uma visão bíblica inicial de como os relacionamentos e o compartilhamento de uma refeição andam de mãos dadas. Esses estranhos obtiveram uma compreensão mais profunda um do outro compartilhando uma refeição e um encontro prolongado. Isso continua sendo verdade hoje. Quando as pessoas partem o pão juntas ou desfrutam de momentos de descontração ou entretenimento, geralmente passam a se entender e apreciar melhor. Melhores relações de trabalho e uma comunicação mais eficaz são frequentemente frutos da hospitalidade.
Na época de Abraão e Sara, a hospitalidade quase sempre era oferecida na casa do anfitrião. Hoje, isso nem sempre é possível, ou mesmo desejável, e a indústria da hospitalidade surgiu para facilitar e oferecer hospitalidade de várias maneiras. Se você deseja oferecer hospitalidade e sua casa é muito pequena ou suas habilidades culinárias são muito limitadas, você pode levar alguém a um restaurante ou hotel e, ainda assim, desfrutar da companhia e aprofundar relacionamentos. Os profissionais do setor o ajudariam a oferecer hospitalidade. Além disso, os trabalhadores do setor têm, eles próprios, a oportunidade de oferecer descanso às pessoas, criar bons relacionamentos, fornecer abrigo e servir aos outros, assim como Jesus fez quando transformou água em vinho (Jo 2.1-11) e lavou os pés dos discípulos (Jo 13.3-11). A indústria da hospitalidade responde por 9% do produto interno bruto mundial e emprega 98 milhões de pessoas, [2] incluindo muitos dos trabalhadores menos qualificados e imigrantes, que representam uma parcela em rápido crescimento da igreja cristã. Um número ainda maior de pessoas se envolve em hospitalidade não remunerada, oferecendo-a aos outros como um ato de amor, amizade, compaixão e engajamento social. O exemplo de Abraão e Sara mostra que esse trabalho pode ser profundamente importante como um serviço a Deus e à humanidade. Como poderíamos fazer mais para encorajar uns aos outros a ser generosos na hospitalidade, não importa quais sejam nossas profissões?
A disputa de Abraão com Abimeleque (Gênesis 20.1-16; 21.22-34)
Voltar ao índice Voltar ao índiceQuando Abraão e Sara entraram no país do rei Abimeleque, este inadvertidamente violou as regras de hospitalidade e, como compensação, concedeu a Abraão direitos de pastagem gratuitos para qualquer terra que quisesse (Gn 20.1-16). Posteriormente, surgiu uma disputa sobre um certo poço de água que Abraão havia originalmente cavado, mas os servos de Abimeleque acabaram tomando posse (Gn 21.25). Aparentemente sem estar ciente da situação, quando Abimeleque ouviu a queixa, entrou em um acordo juramentado iniciado por Abraão, por meio do qual reconhecia publicamente o direito de Abraão ao poço e, portanto, o direito de continuar sua atividade comercial na região (Gn 21.27-31).
Em outros lugares, vimos Abraão abrir mão do que era seu por direito (Gn 14.22-24). Aqui, no entanto, Abraão protege obstinadamente o que é seu. O narrador não sugere que Abraão esteja novamente vacilando na fé, pois o relato termina com uma adoração (Gn 21.33). Em vez disso, ele é um modelo de pessoa sábia e trabalhadora, que conduz seus negócios abertamente e faz uso justo das proteções legais apropriadas. Por lidar com o pastoreio, o acesso à água era essencial. Sem isso, Abraão não poderia ter continuado a sustentar seus animais, empregados e família. Portanto, era importante que Abraão protegesse os direitos à água, bem como os meios pelos quais esses direitos lhe foram garantidos.
Como Abraão, as pessoas em todos os tipos de trabalho precisam discernir quando devem agir generosamente para beneficiar os outros e quando devem proteger recursos e direitos para o benefício de si mesmas ou de suas organizações. Não há um conjunto de regras e regulamentos que possam nos levar a uma resposta automática. Em todas as situações, somos mordomos dos recursos de Deus, embora nem sempre fique claro se os propósitos de Deus são melhores alcançados doando recursos ou protegendo-os. Mas o exemplo de Abraão destaca um aspecto que é fácil de esquecer. A decisão não é apenas uma questão de quem está certo, mas também de como a decisão afetará nosso relacionamento com as pessoas ao nosso redor. No caso anterior de dividir a terra com Ló, o fato de Abraão oferecer voluntariamente a primeira escolha a Ló lançou as bases para um bom relacionamento de trabalho de longo prazo. No presente caso, em que ele exigiu acesso ao poço de acordo com seus direitos no tratado, Abraão garantiu os recursos necessários para manter seu empreendimento funcionando. Além disso, parece que a determinação de Abraão realmente melhorou o relacionamento entre ele e Abimeleque. Lembre-se de que a disputa entre eles surgiu porque Abraão não afirmou sua posição ao encontrar Abimeleque pela primeira vez (Gn 20).
Um sepultamento para Sara (Gênesis 23.1-20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceQuando Sara morreu, Abraão se envolveu em uma negociação exemplar para comprar um local para sepultá-la. Ele conduziu as negociações de forma aberta e honesta, na presença de testemunhas, tomando o devido cuidado com as próprias necessidades e as do vendedor (Gn 23.10-13,16,18). A propriedade em questão é claramente identificada (Gn 23.9), e o uso pretendido por Abraão como local de sepultamento é mencionado várias vezes (Gn 23.4,6,9,11,13,15,20). O diálogo da negociação é excepcionalmente claro, socialmente adequado e transparente. Acontece no portão da cidade, onde os negócios eram feitos em público. Abraão inicia o pedido de compra de uma propriedade. Os hititas locais oferecem gratuitamente uma tumba de sua escolha. Abraão hesita, pedindo-lhes que contatem o proprietário de um campo onde havia uma caverna apropriada para um local de sepultamento, para que ele pudesse comprá-la pelo “preço justo”. Efrom, o proprietário, ouviu o pedido e ofereceu o campo como presente. Como isso não resultaria em um direito permanente de Abraão, ele educadamente se ofereceu para pagar o valor de mercado por ele. Ao contrário da barganha encenada que era típica das transações comerciais (Pv 20.14), Abraão imediatamente concordou com o preço de Efrom e o pagou “de acordo com o peso corrente entre os mercadores” (Gn 23.16). Essa expressão significava que o negócio estava em conformidade com o padrão para prata usado em vendas de imóveis. [1] Abraão poderia ter sido tão rico a ponto de não precisar barganhar e/ou poderia estar desejando comprar uma medida de boa vontade junto com a terra. Além disso, ele poderia ter desejado evitar qualquer questionamento sobre a venda e seu direito à terra. No final, ele recebeu a escritura da propriedade com sua caverna e árvores (Gn 23.17-20). Aquele foi o importante local de sepultamento de Sara e, mais tarde, do próprio Abraão, bem como de Isaque e Rebeca e de Jacó e Lia.
Nesse assunto, as ações de Abraão modelaram valores fundamentais de integridade, transparência e perspicácia nos negócios. Ele honrou sua esposa lamentando e cuidando adequadamente de seus restos mortais. Ele compreendeu seu status na terra e tratou com respeito seus residentes de longa data. Negociou aberta e honestamente, fazendo isso na frente de testemunhas. Ele se comunicou com clareza. Foi sensível ao processo de negociação e evitou educadamente aceitar a terra como presente. Pagou rapidamente o valor combinado. Usou o local apenas para o propósito que declarou durante as negociações. Assim, ele manteve um bom relacionamento com todos os envolvidos.
Isaque (Gênesis 21.1-35.29)
Voltar ao índice Voltar ao índiceIsaque era filho de um grande pai e pai de um grande filho, mas ele próprio deixou um registro misto. Em contraste com o grande destaque que Gênesis dá a Abraão, a vida de Isaque é dividida e contada como apêndices às histórias de Abraão e de Jacó. A caracterização da vida de Isaque se divide em duas partes: uma decididamente positiva e outra negativa. Lições sobre o trabalho podem ser extraídas de cada uma delas.
Do lado positivo, a vida de Isaque foi um presente de Deus. Abraão e Sara o valorizaram e lhe transmitiram sua fé e seus valores, e Deus reiterou a ele as promessas feitas a Abraão. A fé e a obediência de Isaque quando Abraão estava para oferecê-lo em sacrifício é exemplar, pois ele deve ter realmente acreditado no que seu pai lhe disse: “Deus mesmo há de prover o cordeiro para o holocausto, meu filho” (Gn 22.8). Durante a maior parte de sua vida, Isaque seguiu os passos de Abraão. Expressando a mesma fé, Isaque orou por sua esposa sem filhos (Gn 25.21). Assim como Abraão providenciou um sepultamento honroso a Sara, juntos Isaque e Ismael sepultaram seu pai (Gn 25.9). Isaque se tornou um fazendeiro e pastor tão bem-sucedido que a população local ficou com inveja e pediu que ele se mudasse (Gn 26.12-16). Ele reabriu os poços que haviam sido cavados durante o tempo de seu pai, o que novamente se tornou objeto de disputas com o povo de Gerar sobre os direitos da água (Gn 26.17-21). Como Abraão, Isaque fez um acordo juramentado com Abimeleque para ambos se tratassem com justiça (Gn 26.26-31). O escritor de Hebreus observou que, pela fé, Isaque viveu em tendas e abençoou tanto Jacó quanto Esaú (Hb 11.8-10,20). Em suma, Isaque havia herdado um grande negócio familiar e uma riqueza considerável. Como seu pai, ele não guardou para si, mas cumpriu o papel que Deus lhe confiou: transmitir a bênção que se estenderia a todos os povos.
Nesses acontecimentos positivos, Isaque foi um filho responsável, que aprendeu a liderar a família e administrar seus negócios de uma maneira que honrasse o exemplo de seu pai capaz e piedoso. A diligência de Abraão em preparar um sucessor e incutir valores duradouros trouxe bênçãos para seu empreendimento mais uma vez. Quando Isaque tinha cem anos, foi sua vez de designar seu sucessor, transmitindo a bênção da família. Embora ainda fosse viver mais oitenta anos, essa concessão da bênção foi a última coisa significativa sobre Isaque registrada no livro de Gênesis. Lamentavelmente, ele quase falhou nessa tarefa. De alguma forma, ele permaneceu alheio à revelação de Deus a sua esposa de que, ao contrário do costume normal, o filho mais novo, Jacó, deveria se tornar o chefe da família, em vez do mais velho (Gn 25.23). Foi necessária uma manobra inteligente de Rebeca e Jacó para colocar Isaque de volta nos trilhos a fim de cumprir os propósitos de Deus.
Para manter os negócios da família, a estrutura fundamental da família tinha de estar intacta. Era trabalho do pai garantir isso. Estranhos para a maioria de nós hoje, dois costumes relacionados eram importantes na família de Isaque: a primogenitura (Gn 25.31) e a bênção (Gn 27.4). A primogenitura conferia ao filho mais velho o direito de herdar uma parte maior da propriedade do pai, tanto em termos de bens quanto de terras. Embora às vezes o direito de primogenitura fosse transferido, normalmente era reservado para o filho primogênito. As leis específicas a respeito variavam, mas parece ter sido uma característica estável da cultura do antigo Oriente Próximo. A bênção era a invocação correspondente da prosperidade vinda de Deus e a sucessão da liderança na família. Esaú acreditou erroneamente que poderia renunciar à primogenitura e ainda assim receber a bênção (Hb 12.16-17). Jacó reconheceu que os dois elementos eram inseparáveis. Com ambos em sua posse, Jacó assumiria o direito de levar adiante a herança da família, econômica e socialmente, bem como em termos de fé. Elemento central para o desenvolvimento da trama de Gênesis, a bênção envolvia não apenas receber as promessas da aliança que Deus havia feito a Abraão, mas também transmiti-las à próxima geração.
A falha de Isaque em reconhecer que Jacó deveria receber a primogenitura e a bênção surgiu quando Isaque colocou seu conforto pessoal acima das necessidades da organização familiar. Ele preferia Esaú porque amava a caça selvagem que Esaú, o caçador, trazia para ele. Embora Esaú não valorizasse a primogenitura a ponto de trocá-la por única refeição — o que significa que ele não estava apto nem interessado na posição de liderar o empreendimento —, Isaque queria que Esaú a tivesse. As circunstâncias particulares sob as quais Isaque deu a bênção sugerem que ele sabia que tal ato atrairia críticas. O único aspecto positivo desse episódio é que a fé de Isaque o levou a reconhecer que a bênção divina que ele tinha dado por engano a Jacó era irrevogável. Genericamente, foi por isso que o escritor de Hebreus se lembrou dele. “Pela fé Isaque invocou bênçãos para o futuro sobre Jacó e Esaú” (Hb 11.20). Deus havia escolhido Isaque para perpetuar essa bênção e trabalhou tenazmente sua vontade por meio dele, apesar das intenções mal informadas de Isaque.
O exemplo de Isaque nos lembra que mergulhar profundamente em nossa perspectiva particular pode nos levar a sérios erros de julgamento. Cada um de nós é tentado por confortos pessoais, preconceitos e interesses pessoais a perder de vista a importância mais ampla de nosso trabalho. Nossa fraqueza pode ser por elogios, segurança financeira, prevenção de conflitos, relacionamentos inadequados, recompensas de curto prazo ou outros benefícios pessoais que possam estar em desacordo com o desempenho de nosso trabalho para cumprir os propósitos de Deus. Existem fatores individuais e sistêmicos envolvidos. No nível individual, o viés de Isaque em relação a Esaú se repete hoje, quando aqueles que estão no poder optam por ser parciais no momento de promover pessoas, estando conscientes disso ou não. No nível sistêmico, ainda existem muitas organizações que permitem que os líderes contratem, demitam e promovam pessoas por vontade própria, em vez de desenvolver sucessores e subordinados em um processo coordenado e responsável de longo prazo. Sejam os abusos individuais ou sistêmicos, simplesmente resolver fazer melhor ou mudar os processos organizacionais não é uma solução eficaz. Em vez disso, indivíduos e organizações precisam ser transformados pela graça de Deus para colocar o que é realmente importante à frente do que é pessoalmente benéfico.
Jacó (Gênesis 25.19—49.33)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs nomes Abraão, Isaque e Jacó aparecem frequentemente como um grupo, porque todos receberam promessas da aliança de Deus e compartilharam a mesma fé. Mas Jacó era muito diferente de seu avô, Abraão. Sempre astuto, Jacó viveu grande parte de sua vida de acordo com sua astúcia e inteligência engenhosa. Acostumado a conflitos, Jacó era movido pela paixão de conseguir o que queria para si mesmo. Essa luta era realmente um trabalho árduo e, por fim, o levou ao ponto mais marcante de sua existência: uma luta travada com um homem misterioso em quem Jacó viu Deus face a face (Gn 32.24,30). Por causa de sua fraqueza, Jacó clamou com fé pela bênção de Deus e foi transformado pela graça.
A vida ocupacional de Jacó como pastor é de interesse para a teologia do trabalho. Ele assume um significado adicional, no entanto, quando colocado no contexto mais amplo de sua vida, que se move em largas braçadas do afastamento para a reconciliação. Vimos com Abraão que o trabalho que ele fez era uma parte inseparável de seu senso de propósito, decorrente de seu relacionamento com Deus. O mesmo se aplica a Jacó, e a lição também vale para nós.
De forma antiética, Jacó adquire a primogenitura e a bênção de Esaú (Gênesis 25.19-34; 26.34—28.9)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEmbora fosse o plano de Deus que Jacó fosse sucessor de Isaque (Gn 25.23), o uso de engano e roubo por parte de Rebeca e Jacó para conseguir isso pôs a família em sério perigo. O tratamento antiético que ela dispensou ao marido e Jacó ao irmão, a fim de garantir seu futuro às custas da confiança em Deus, resultou em um afastamento profundo e duradouro na esfera familiar.
As bênçãos da aliança de Deus eram dádivas a serem recebidas, não agarradas à força. Elas traziam consigo a responsabilidade de serem usadas em favor de outros, não guardadas para si. Isso passou despercebido para Jacó. Embora Jacó tivesse fé (diferentemente de seu irmão Esaú), ele confiou em suas próprias habilidades para garantir os direitos que valorizava. Jacó explorou o faminto Esaú para conseguir dele a primogenitura (Gn 25.29-34). É bom que Jacó tenha valorizado a primogenitura, mas deixou totalmente de lado sua fé a fim garantir isso para si mesmo, o que fica especialmente claro pela maneira como o fez. Seguindo o conselho de sua mãe Rebeca (que também buscava objetivos certos por meios errados), Jacó enganou seu pai. Sua vida como fugitivo da família atesta a natureza odiosa de seu comportamento.
Jacó começou um longo período de fé genuína nas promessas da aliança de Deus, mas falhou ao viver confiando no que Deus faria por ele. Pessoas maduras e piedosas que aprenderam a deixar sua fé transformar suas escolhas (e não o contrário) estão em condições de servir com base em suas forças. Decisões corajosas e astutas que resultam em sucesso podem ser elogiadas com razão por sua eficácia. Mas, quando o lucro vem às custas da exploração e do engano dos outros, algo está errado. Além do fato de que métodos antiéticos são errados em si mesmos, eles também podem revelar os medos fundamentais daqueles que os empregam. O impulso implacável de Jacó para obter benefícios para si mesmo revela como seus medos o tornaram resistente à graça transformadora de Deus. À medida que passarmos a acreditar nas promessas de Deus, estaremos menos inclinados a manipular as circunstâncias para nos beneficiarmos; sempre precisamos estar cientes da facilidade com que podemos nos enganar sobre a pureza de nossos motivos.
Jacó adquire sua fortuna (Gênesis 30-31)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo escapar de Esaú, Jacó acabou nas terras da família de Labão, irmão de sua mãe. Jacó trabalhou para Labão por vinte e um anos frustrantes, durante os quais Labão quebrou uma série de promessas que lhe havia feito. Apesar disso, Jacó conseguiu casar com duas das filhas de Labão e constituir família. Jacó queria voltar para casa, mas Labão o convenceu a ficar e trabalhar para ele, com a promessa de que ele poderia escolher o próprio salário (Gn 30.28). Claramente, Jacó havia sido um bom trabalhador, e Labão foi abençoado por sua associação com Jacó.
Durante esse tempo, Jacó havia aprendido o ofício de criar animais e usou essa habilidade para se vingar de Labão. Por meio de suas técnicas de reprodução, conseguiu ganhar muita riqueza às custas de Labão. Chegou ao ponto em que os filhos de Labão estavam reclamando: “Jacó tomou tudo que o nosso pai tinha e juntou toda a sua riqueza à custa do nosso pai” (Gn 31.1-2). Jacó percebeu que a atitude de Labão em relação a ele não era mais a mesma. No entanto, Jacó atribuiu seus ganhos à ação de Deus, dizendo: “Se o Deus de meu pai, o Deus de Abraão, o Temor de Isaque, não estivesse comigo, certamente você me despediria de mãos vazias” (Gn 31.42).
Jacó sentia que Labão o tratava mal. Sua resposta, por meio de seus esquemas, foi fazer mais um inimigo, semelhante ao modo como explorou Esaú. Esse é um padrão que se repete na vida de Jacó. Parece que em qualquer coisa estava sempre jogando limpo e, embora ele ostensivamente desse o crédito a Deus, está claro que ele fazia essas coisas dando um jeitinho. Não vemos muita integração de sua fé com seu trabalho neste momento, e é interessante que, quando Hebreus reconhece Jacó como um homem de fé, menciona apenas seus atos no final de sua vida (Hb 11.21).
A transformação e a reconciliação de Jacó com Esaú (Gênesis 32—33)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois de aumentar a tensão com o sogro e de uma separação nos negócios, na qual ambos agiram de forma menos que admirável, Jacó deixou Labão. Tendo obtido sua posição por meio do truque sujo de Labão, anos atrás, Jacó agora via uma oportunidade de legitimar sua posição, chegando a um acordo com seu irmão Esaú. Mas ele esperava que as negociações fossem tensas. Assolado pelo medo de que Esaú viesse ao encontro dele com seus quatrocentos homens armados, Jacó dividiu sua família e seus animais em dois grupos para ajudar a garantir alguma medida de sobrevivência. Ele orou por proteção e enviou uma enorme oferta de animais à sua frente para apaziguar Esaú antes do encontro. Mas, na noite anterior à sua chegada ao ponto de encontro, o trapaceiro Jacó foi visitado por uma figura sombria que o surpreendeu. O próprio Deus o atacou na forma de um homem forte, contra quem Jacó foi forçado a lutar a noite toda. Deus, ao que parece, não é apenas o Deus da adoração e da religião, mas o Deus do trabalho e dos empreendimentos familiares, e ele age na vida de um elemento sagaz como Jacó. Ele aproveitou sua vantagem a ponto de ferir permanentemente o quadril de Jacó, mas Jacó, em sua fraqueza, disse que não desistiria até que seu agressor o abençoasse.
Este se tornou o ponto de virada na vida de Jacó. Ele havia enfrentado anos de lutas com as pessoas, mas o tempo todo Jacó também vinha lutando em seu relacionamento com Deus. Aqui, ele finalmente conheceu Deus e recebeu sua bênção em meio à luta. Jacó recebeu um novo nome, Israel, e até renomeou o local para honrar o fato de que ali ele havia visto Deus face a face (Gn 32.30). O encontro com Esaú, que se esperava ser sinistro, aconteceu pela manhã e contradisse a expectativa temerosa de Jacó da maneira mais encantadora que se possa imaginar. Esaú correu até Jacó e o abraçou. Esaú graciosamente tentou recusar os presentes de Jacó, embora Jacó insistisse que ele os aceitasse. Jacó, transformado, disse a Esaú: “Ver a tua face é como contemplar a face de Deus” (Gn 33.10).
A identidade ambígua daquele que lutou com Jacó é uma característica deliberada da história. Ele destaca os elementos inseparáveis da luta de Jacó tanto com Deus quanto com o homem. Jacó é um modelo para nós de uma verdade que está no centro de nossa fé: nossos relacionamentos com Deus e com as pessoas estão ligados. Nossa reconciliação com Deus torna possível nossa reconciliação com os outros. Da mesma forma, nessa reconciliação humana, passamos a ver e a conhecer melhor a Deus. O trabalho de reconciliação se aplica a famílias, amigos, igrejas, empresas e até grupos de pessoas e nações. Somente Cristo pode ser nossa paz, mas somos seus embaixadores para ela. Surgindo da promessa inicial de Deus a Abraão, essa é uma bênção que deve tocar o mundo inteiro.
José (Gênesis 37.2—50.26)
Voltar ao índice Voltar ao índiceLembre-se de que Deus acompanhou seu chamado a Abraão com promessas fundamentais (Gn 12.2-3). Primeiro, Deus multiplicaria seus descendentes em um grande povo. Segundo, Deus o abençoaria. Terceiro, Deus tornaria o nome de Abraão grande, o que significa que Abraão seria digno de seu renome. Quarto, Abraão seria uma bênção. Este último item diz respeito às gerações futuras da família de Abraão e, além delas, a todas as famílias da terra. Deus abençoaria aqueles que abençoassem Abraão e amaldiçoaria aqueles que o amaldiçoassem. O livro de Gênesis traça o cumprimento parcial dessas promessas por meio das linhagens escolhidas dos descendentes de Abraão, Isaque, Jacó e dos filhos de Jacó. Entre todos eles, é em José que Deus cumpre mais diretamente sua promessa de abençoar as nações por meio do povo de Abraão. De fato, pessoas “de toda a terra” foram sustentadas pelo sistema alimentar que José administrava (Gn 41.57). José entendeu essa missão e articulou o propósito de sua vida de acordo com a intenção de Deus: que “fosse preservada a vida de muitos” (Gn 50.20).
José rejeitado e vendido como escravo por seus irmãos (Gênesis 37.2-36)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDesde jovem, José acreditava que Deus o havia destinado para a grandeza. Em sonhos, Deus assegurou a José que ele alcançaria uma posição de liderança sobre seus pais e irmãos (Gn 37.5-11). Do ponto de vista de José, esses sonhos eram evidência da bênção divina, e não de sua própria ambição. Do ponto de vista de seus irmãos, no entanto, os sonhos foram outras manifestações do privilégio injusto que José desfrutou como filho favorito de seu pai, Jacó (Gn 37.3-4). Ter certeza de que estamos certos não nos absolve de ter empatia por outras pessoas que podem não compartilhar dessa mesma visão. Bons líderes se esforçam para promover a cooperação em vez da inveja. A falha de José em reconhecer isso o colocou em sérias desavenças com seus irmãos. Depois de inicialmente planejar um assassinato contra ele, seus irmãos decidiram vendê-lo a uma caravana de comerciantes que transportavam mercadorias de Canaã para o Egito. Os mercadores, por sua vez, venderam José a Potifar, que era “oficial do faraó e capitão da guarda” no Egito (Gn 37.36; 39.1).
As investidas da esposa de Potifar e a prisão de José (Gênesis 39.1-20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO período em que José esteve a serviço de Potifar deu a ele uma ampla gama de responsabilidades fiduciárias. A princípio, José estava apenas “na” casa de seu senhor. Não sabemos em que função ele serviu, mas, quando Potifar reconheceu a competência geral de José, ele o promoveu a seu mordomo pessoal e “e lhe confiou tudo o que possuía” (Gn 39.4).
Depois de um tempo, a esposa de Potifar se interessou sexualmente por José (Gn 39.7). A recusa de José aos avanços da esposa foi articulada e razoável. Ele a lembrou da ampla confiança que Potifar havia depositado nele e descreveu o relacionamento que ela buscava nos termos morais/religiosos como “algo perverso” e “pecado” (Gn 39.9). Ele era sensível tanto à dimensão social quanto a teológica. Além disso, ele ofereceu sua resistência verbal repetidamente e até evitou estar na presença dela. Quando assediado fisicamente, José optou por fugir seminu, em vez de se submeter.
O assédio sexual por parte dessa mulher ocorreu em uma relação de poder que desfavorecia José. Embora ela acreditasse que tinha o direito e o poder de usar José daquela maneira, suas palavras e suas investidas claramente não foram bem recebidas por ele. O trabalho de José exigia que ele estivesse em casa — onde ela ficava —, mas ele não podia chamar a atenção de Potifar para o assunto sem interferir em seu relacionamento conjugal. Mesmo após sua fuga e prisão por falsas acusações, José parece não ter tido nenhum recurso legal.
As facetas desse episódio tocam de perto nas questões do assédio sexual no ambiente de trabalho hoje. As pessoas têm padrões diferentes sobre o que conta como conversa e contato físico inadequados, mas os caprichos daqueles que estão no poder geralmente falam mais alto. Frequentemente, espera-se que os trabalhadores denunciem incidentes de assédio em potencial a seus superiores, mas muitas vezes relutam em fazê-lo, porque sabem do risco de ofuscação e retaliação. Para agravar isso, mesmo quando o assédio pode ser documentado, os trabalhadores podem sofrer por terem se apresentado. A piedade de José não o salvou de falsa acusação e prisão. Se nos encontrarmos em uma situação paralela, nossa piedade não é garantia de que escaparemos ilesos. Mas José deixou um testemunho educativo para a esposa de Potifar e, possivelmente, para outras pessoas da casa. Saber que pertencemos ao Senhor e que ele defende os fracos certamente nos ajudará a enfrentar situações difíceis sem desistir. Esta história é um reconhecimento realista de que enfrentar o assédio sexual no ambiente de trabalho pode ter consequências devastadoras. No entanto, é também uma história de esperança de que, pela graça de Deus, o bem possa enfim prevalecer na situação. José também fornece um modelo para nós para que, mesmo quando somos falsamente acusados e tratados injustamente, continuamos com a obra que Deus nos deu, permitindo que Deus transforme o mal em bem no final.
José interpreta sonhos na prisão (Gênesis 39.20—40.23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO serviço de José na prisão foi marcado pela presença do Senhor, pelo favor do carcereiro e pela promoção de José à liderança (Gn 39.21-23). Na prisão, José conheceu dois oficiais do faraó que estavam encarcerados, o chefe dos copeiros e o chefe dos padeiros. Muitos textos egípcios mencionam o papel dos copeiros, que não apenas provavam o vinho para atestar a qualidade e para detectar veneno, mas também desfrutavam da proximidade com aqueles que detinham o poder político. Assim, frequentemente se tornavam confidentes e eram valorizados por seus conselhos (ver Ne 2.1-4). [1] Como os chefes dos copeiros, os chefes dos padeiros também eram funcionários de confiança que tinham livre acesso às pessoas dos mais altos escalões do governo e que podiam ter desempenhado funções que iam além da preparação de alimentos. [2] Na prisão, José fez o trabalho de interpretar sonhos para esses indivíduos com grandes conexões políticas.
Interpretar sonhos no mundo antigo era uma profissão sofisticada que envolvia “livros técnicos” sobre os sonhos, os quais listavam elementos dos sonhos e seus significados. Registros sobre a veracidade de sonhos passados e suas interpretações forneciam evidências empíricas para apoiar as previsões do intérprete. [3] José, no entanto, não foi instruído nessa tradição e atribuiu a Deus o crédito por fornecer as interpretações que acabaram se mostrando verdadeiras (Gn 40.8). Nesse caso, o copeiro foi restaurado ao seu cargo anterior, onde prontamente se esqueceu de José.
A dinâmica presente nessa história ainda está presente nos dias de hoje. Podemos investir no sucesso de outra pessoa que está além de nosso alcance, apenas para sermos descartados quando não mais tivermos utilidade. Isso significa que nosso trabalho foi em vão e que seria melhor nos concentrarmos em nossa própria situação e promoção? Além disso, José não tinha como verificar de forma independente as histórias dos dois oficiais na prisão. “O primeiro a apresentar a sua causa parece ter razão, até que outro venha à frente e o questione” (Pv 18.17). Após a sentença, no entanto, qualquer prisioneiro pode afirmar sua própria inocência.
Podemos ter dúvidas sobre como nosso investimento em outras pessoas pode, enfim, beneficiar a nós ou a nossa organização. Podemos nos perguntar sobre o caráter e os motivos das pessoas que ajudamos. Podemos desaprovar o que eles fazem depois e como isso pode se refletir em nós. Essas questões podem ser variadas e complexas. Exigem oração e discernimento, mas devem nos paralisar? O apóstolo Paulo escreveu: “Enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gl 6.10). Se firmarmos o compromisso de trabalhar para Deus acima de todos os outros, será mais fácil seguir em frente, acreditando que “sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito” (Rm 8.28).
José é promovido pelo faraó (Gênesis 41.1-45)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMais dois anos se passaram até José ganhar a oportunidade de ser libertado de seu sofrimento na prisão. O faraó estava tendo sonhos perturbadores, e o copeiro-mor lembrou-se da habilidade do jovem hebreu na prisão. Os sonhos do faraó com vacas e espigas de trigo confundiram seus conselheiros mais habilidosos. José testemunhou a capacidade de Deus de fornecer interpretações e seu próprio papel como mero mediador dessa revelação (Gn 41.16). Diante do faraó, José não usava o nome da aliança de Deus, exclusivo do seu próprio povo. Em vez disso, ele se referia a Deus regularmente usando o termo mais geral elohim. Ao fazer isso, José evitou cometer qualquer ofensa desnecessária, um ponto apoiado pelo fato de que o faraó creditou a Deus a revelação recebida por José com o significado de seus sonhos (Gn 41.39). No ambiente de trabalho, às vezes, os crentes podem dar crédito a Deus por seu sucesso de maneira superficial, o que acaba afastando as pessoas. A maneira de José fazer isso impressionou o faraó, mostrando que dar crédito a Deus publicamente pode ser feito de maneira crível.
A presença de Deus com José era tão óbvia que o faraó o promoveu a segundo em comando do Egito, especialmente para se encarregar dos preparativos para a fome que viria (Gn 41.37-45). A palavra de Deus a Abraão estava dando frutos: “Abençoarei os que o abençoarem... e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 12.3). Como José, quando confessamos nossa própria incapacidade de enfrentar os desafios que enfrentamos e encontramos maneiras apropriadas de atribuir o sucesso a Deus, forjamos uma defesa poderosa contra o orgulho que geralmente acompanha o reconhecimento público.
A promoção de José lhe trouxe acessórios significativos de liderança: um anel com o selo real e uma corrente de ouro, roupas finas apropriadas ao seu alto cargo, porte oficial, um novo nome egípcio e uma esposa egípcia de uma família de classe alta (Gn 41.41-45). Se alguma vez houve uma atração para deixar sua herança hebraica para trás, foi essa. Deus nos ajuda a lidar com o fracasso e a derrota, mas podemos precisar ainda mais de sua ajuda ao lidar com o sucesso. O texto apresenta várias indicações de como José lidou com sua promoção de maneira piedosa. Parte disso tinha a ver com a preparação de José antes de sua promoção.
De volta à casa de seu pai, os sonhos de liderança que Deus lhe deu convenceram José de que ele tinha um propósito e um destino divinamente ordenados, dos quais nunca se esqueceu. Sua natureza pessoal era basicamente confiar nas pessoas. Ele parece não ter rancor de seus irmãos ciumentos ou do esquecido copeiro. Antes de ser promovido pelo faraó, José sabia que o Senhor estava com ele e tinha evidências tangíveis para provar isso. Dar crédito repetidamente a Deus não era apenas a coisa certa a fazer, mas também lembrava o próprio José de que suas habilidades vinham do Senhor. José era cortês e humilde, e mostrou o desejo de fazer o que pudesse para ajudar o faraó e o povo egípcio. Mesmo quando os egípcios ficaram sem dinheiro e gado, José ganhou a confiança do povo egípcio e do próprio Faraó (Gn 41.55). Ao longo do resto de sua vida como administrador, José dedicou-se consistentemente a uma gestão eficaz para o bem dos outros.
A história de José até este ponto nos lembra que, em nosso mundo corrompido, a resposta de Deus às nossas orações não vem necessariamente de forma rápida. José tinha dezessete anos quando seus irmãos o venderam como escravo (Gn 37.2). Sua libertação final do cativeiro veio quando ele tinha trinta anos (Gn 41.46), treze longos anos depois.
José e a gestão bem-sucedida da crise alimentar (Gênesis 41.46-57; 47.13-26)
Voltar ao índice Voltar ao índiceJosé cria uma política e uma infraestrutura agrícola de longo prazo (Gênesis 41.46-57)
Voltar ao índice Voltar ao índiceJosé imediatamente começou a fazer o trabalho para o qual o faraó o havia designado. Seu principal interesse era fazer o trabalho para os outros, em vez de tirar vantagem pessoal de sua nova posição à frente da corte real. Ele manteve sua fé em Deus, dando a seus filhos nomes que creditavam a Deus a cura de sua dor emocional e o tornavam frutífero (Gn 41.51-52). Ele reconhecia que sua sabedoria e seu discernimento eram dons de Deus, mas, mesmo assim, ainda tinha muito a aprender sobre a terra do Egito, em particular sua indústria agrícola. Como administrador sênior, o trabalho de José abrangia quase todas as áreas práticas da vida da nação. Seu cargo teria exigido que ele aprendesse muito sobre legislação, comunicação, negociação, transporte, métodos seguros e eficientes de armazenamento de alimentos, construção, estratégias e previsões econômicas, manutenção de registros, folha de pagamento, manuseio de transações tanto por meio de moeda quanto por meio de troca, recursos humanos e aquisição de propriedades. Suas habilidades extraordinárias com relação a Deus e às pessoas não operavam em domínios separados. A genialidade do sucesso de José estava na integração eficaz de seus dons divinos e das competências adquiridas. Para José, tudo isso era um trabalho piedoso.
Faraó já havia caracterizado José como alguém “criterioso e sábio” (Gn 41.39), e essas características permitiram a José fazer o trabalho de planejamento estratégico e administração. As palavras hebraicas para sábio e sabedoria (hakham e hokhmah) denotam um alto nível de percepção mental, mas também são usados para uma ampla gama de habilidades práticas, incluindo artesanato em madeira, pedras preciosas e metal (Êx 31.3-5; 35.31-33), alfaiataria (Êx 28.3; 35.26,35), bem como administração (Dt 34.9; 2Cr 1.10) e justiça legal (1Rs 3.28). Essas habilidades também são encontradas entre os incrédulos, mas os sábios da Bíblia desfrutam da bênção especial de Deus, que pretende que Israel mostre os caminhos de Deus às nações (Dt 4.6).
Como seu primeiro ato, José “foi percorrer todo o Egito” (Gn 41.46) em uma viagem de inspeção. Ele teria de se familiarizar com as pessoas que administravam a agricultura, a localização e as condições dos campos, as plantações, as estradas e os meios de transporte. É inconcebível que José pudesse ter feito tudo isso em um nível pessoal. Ele teria de estabelecer e supervisionar o treinamento do que equivalia a um Ministério da Agricultura. Durante os sete anos de colheita abundante, José guardou os grãos nas cidades (Gn 41.48-49). Durante os sete anos de vacas magras que se seguiram, José distribuiu grãos aos egípcios e a outras pessoas que foram afetadas pela fome generalizada. Criar e administrar tudo isso, enquanto sobrevivia à intriga política de uma monarquia absoluta, exigia um talento excepcional.
José alivia a pobreza do povo do Egito (Gênesis 47: 13-26)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois que o povo ficou sem dinheiro, José permitiu que eles trocassem seu gado por comida. Esse plano durou um ano, durante o qual José reuniu cavalos, ovelhas, cabras, gado e jumentos (Gn 47.15-17). Ele teria de determinar o valor desses animais e estabelecer um sistema equitativo de troca. Quando a comida é escassa, as pessoas ficam especialmente preocupadas com a sobrevivência de si mesmas e de seus entes queridos. Garantir acesso a pontos de distribuição de alimentos e tratar as pessoas com imparcialidade tornam-se questões administrativas extremamente importantes.
Quando todo o gado foi comercializado, as pessoas voluntariamente se venderam como escravos ao faraó e venderam a ele também a propriedade de suas terras (Gn 47.18-21). Da perspectiva da liderança, deve ter sido horrível testemunhar isso. José, no entanto, permitiu que o povo vendesse suas terras e se sujeitasse à servidão, mas não se aproveitou de sua impotência. José teria de cuidar para que essas propriedades fossem avaliadas corretamente em troca de sementes para plantar (Gn 47.23). Ele promulgou uma lei duradoura, determinando que as pessoas devolvessem 20% da colheita ao faraó. Isso implicou na criação de um sistema para monitorar e fazer cumprir a lei pelo povo e o estabelecimento de um departamento dedicado a administrar a receita. Em tudo isso, José isentou as famílias sacerdotais de vender suas terras, porque o faraó lhes forneceu uma porção fixa de alimentos para atender adequadamente às suas necessidades (Gn 47.22,26). Lidar com essa população especial implicaria ter um sistema de distribuição menor e distinto, feito sob medida para ela.
A pobreza e suas consequências são realidades econômicas. Nosso primeiro dever é ajudar a eliminá-las, mas não podemos esperar sucesso completo até que o Reino de Deus seja cumprido. Os crentes podem não ter o poder de eliminar as circunstâncias que exigem que as pessoas façam escolhas difíceis, mas podemos encontrar maneiras de apoiá-las enquanto elas — ou talvez nós mesmos — lidam com isso. Escolher o menor dos dois males pode ser uma decisão necessária e pode ser emocionalmente devastador. Em nosso trabalho, podemos experimentar tensão decorrente de sentir empatia pelos necessitados, mas ter a responsabilidade de fazer o que é bom para as pessoas e organizações para as quais trabalhamos. José experimentou a orientação de Deus nessas tarefas difíceis, e também recebemos a promessa de Deus: “Nunca o deixarei, nunca o abandonarei” (Hb 13.5).
Felizmente, ao aplicar a habilidade e a sabedoria que Deus lhe deu, José conseguiu fazer com que o Egito enfrentasse a catástrofe agrícola. Quando chegaram os sete anos de boas colheitas, José desenvolveu um sistema de armazenamento de grãos que seriam usados durante a seca que viria. Quando os sete anos de seca chegaram, “José mandou abrir os locais de armazenamento” (Gn 41.56) e forneceu comida suficiente para ajudar a nação a passar pelo momento de fome. Sua sábia estratégia e implementação eficaz do plano permitiram que o Egito fornecesse grãos para o resto do mundo durante a fome (Gn 41.57). Nesse caso, o cumprimento da promessa divina de que os descendentes de Abraão seriam uma bênção para o mundo ocorreu não apenas em benefício de nações estrangeiras, mas até mesmo por meio da atividade de uma nação estrangeira, o Egito.
De fato, a bênção de Deus para o povo de Israel veio somente depois e por meio de sua bênção aos estrangeiros. Deus não levantou um israelita na terra de Israel para prover alívio a Israel durante a fome. Em vez disso, Deus permitiu que José, trabalhando no governo egípcio e por meio dele, suprisse as necessidades do povo de Israel (Gn 47.11-12). No entanto, não devemos idealizar José. Como funcionário em uma sociedade às vezes repressiva, ele se tornou parte da estrutura de poder e impôs pessoalmente a escravidão a um número incontável de pessoas (Gn 47.21).
Aplicações da experiência de gestão de José (Gênesis 41.46-57; 47.13-26)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO interesse de Gênesis na gestão de José para a crise alimentar está mais em seu efeito sobre a família de Israel do que no desenvolvimento de princípios para uma gestão eficaz. No entanto, na medida em que a liderança extraordinária de José pode servir de exemplo para os líderes de hoje, podemos extrair algumas aplicações práticas de seu trabalho:
1. Familiarize-se o mais possível com a situação atual, no início de seu serviço.
2. Ore por discernimento em relação ao futuro, para que possa fazer planos sábios.
3. Comprometa-se primeiro com Deus e depois espere que ele dirija e estabeleça seus planos.
4. Reconheça com gratidão e de forma adequada os dons que Deus lhe deu.
5. Mesmo que os outros reconheçam a presença de Deus em sua vida e os talentos especiais que você tem, não use isso para se autopromover e ganhar respeito.
6. Busque conhecimento sobre como fazer seu trabalho e faça-o com excelência.
7. Busque o bem prático para os outros, sabendo que Deus o colocou onde você deve ser uma bênção.
8. Seja justo em todos os seus relacionamentos, especialmente quando as circunstâncias forem sombrias e profundamente problemáticas.
9. Embora seu serviço exemplar possa impulsioná-lo a uma posição de destaque, lembre-se de sua missão inicial como servo de Deus. Sua vida não consiste no que você ganha para si mesmo.
10. Valorize a piedade dos inúmeros tipos de trabalho honroso de que a sociedade precisa.
11. Estenda generosamente o fruto de seu trabalho o mais amplamente possível àqueles que realmente precisam, independentemente do que você pensa deles como indivíduos.
12. Aceite o fato de que Deus pode levá-lo a um campo específico de trabalho sob condições extremamente desafiadoras. Isso não significa que algo deu terrivelmente errado ou que você está fora da vontade de Deus.
13. Tenha coragem, pois Deus o capacitará para a tarefa.
14. Aceite o fato de que, às vezes, as pessoas precisam escolher o que consideram melhor entre duas situações muito desagradáveis, mas inevitáveis.
15. Acredite que o que você faz não apenas beneficiará aqueles que vê e conhece, mas também que seu trabalho tem o potencial de tocar vidas por muitas gerações. Deus é capaz de realizar muito mais do que podemos pedir ou imaginar (Ef 3.20).
José lida com seus irmãos (Gênesis 42—43)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm meio à crise no Egito, os irmãos de José chegaram de Canaã, procurando comprar comida, pois a fome também afetava severamente sua terra. Eles não reconheceram José, e ele também não se revelou a eles. Ele lidava com seus irmãos em grande parte por meio da linguagem do comércio. A palavra prata (kesef) aparece vinte vezes nos capítulos 42 a 45 e a palavra para grão (shever) aparece dezenove anos. O comércio dessa mercadoria forneceu a estrutura na qual a intrincada dinâmica pessoal se sustentou.
O comportamento de José nessa situação foi bastante perspicaz. Primeiro, ele ocultou sua identidade de seus irmãos, o que — embora necessariamente não tenha sido uma completa enganação (hebraico mirmah, como aconteceu com Jacó em Gn 27.35) — certamente ainda era menos do que franqueza. Em segundo lugar, ele falou duramente com seus irmãos, usando acusações que sabia serem infundadas (Gn 42.7.9,14,16; 44.3-5). Em resumo, José aproveitou-se de seu poder para lidar com um grupo que ele sabia não ser digno de confiança, por causa do tratamento anterior que tinham dado a ele. [1] Sua motivação era discernir o caráter atual das pessoas com quem estava lidando. Ele havia sofrido muito nas mãos deles mais de vinte anos antes e tinha todos os motivos para desconfiar de suas palavras, ações e compromisso com a família.
Os métodos de José beiravam a enganação. Ele reteve informações críticas e manipulou acontecimentos de várias maneiras. José atuou no papel de um investigador conduzindo um interrogatório difícil. Ele não poderia proceder com total transparência e esperar obter deles informações confiáveis. O conceito bíblico para essa tática é astúcia. A astúcia pode ser exercida para o bem ou para o mal. Por um lado, a serpente era “o mais astuto de todos os animais selvagens” (Gn 3.1) e empregou métodos astutos para propósitos desastrosamente malignos. A palavra hebraica para “astuto” (ormah e cognatos) também é traduzida como “prudente” ou “sábio” (Pv 12.23; 13.16; 14.8; 22.3; 27.12), indicando que podem ser necessárias perspicácia e habilidade para tornar possível o trabalho piedoso em contextos difíceis. O próprio Jesus aconselhou seus discípulos a serem “astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas” (Mt 10.16). A Bíblia frequentemente elogia a astúcia (ou prudência) na busca de propósitos nobres (Pv 1.4; 8.5,12).
A astúcia de José teve o efeito pretendido de testar a integridade de seus irmãos, e eles devolveram a prata que José havia secretamente colocado na bagagem (Gn 43.20-21). Quando ele os testou ainda mais, tratando o mais novo, Benjamim, com mais generosidade do que os outros, eles provaram que aprenderam a não entrar em animosidade entre si, como fizeram quando venderam José como escravo.
Seria superficial ler nas ações de José a afirmação de que pensar que você está do lado de Deus é sempre uma justificativa para o engano. Mas a longa carreira de serviço de José e o sofrimento como servo de Deus deram a ele uma compreensão mais profunda da situação do que seus irmãos. Aparentemente, a promessa de que Deus os transformaria em um grande povo estava em jogo. José sabia que não estava em seu poder humano salvá-los, mas aproveitou a autoridade e a sabedoria que Deus lhe deu para servir e ajudar. Dois fatores importantes diferenciam José ao tomar a decisão de usar meios que, de outra forma, não seriam louváveis. Primeiro, ele não ganhou nada com essas artimanhas para si mesmo. Ele havia recebido uma bênção de Deus e suas ações estavam exclusivamente a serviço de tornar-se uma bênção para os outros. Ele poderia ter explorado a situação desesperadora de seus irmãos e cobrado, com rancor, uma quantia maior de prata, sabendo que eles teriam dado qualquer coisa para sobreviver. Em vez disso, ele usou o conhecimento para salvá-los. Segundo, suas ações eram necessárias para que ele pudesse oferecer as bênçãos. Se ele tivesse lidado com seus irmãos mais abertamente, não poderia ter testado a confiabilidade deles no assunto.
A transformação de Judá em um homem de Deus (Gênesis 44.1—45.15)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo episódio final do teste de José para com seus irmãos, José acusou Benjamim de um crime imaginário e, como compensação, o sentenciou a ser escravo. Quando exigiu que os irmãos voltassem para casa, ao seu pai Jacó, sem Benjamim (Gn 44.17), Judá se levantou como porta-voz do grupo. O que lhe deu a posição para assumir esse papel? Ele havia se afastado de sua família ao casar com uma cananeia (Gn 38.2); havia criado filhos tão perversos que o Senhor matou dois deles (Gn 38.7,10); tratou sua nora como uma prostituta (Gn 38.24); e foi ele quem elaborou o plano de vender seu próprio irmão como escravo (Gn 37.27). Mas a história que Judá contou a José mostrou um homem transformado. Ele demonstrou uma compaixão inesperada ao contar sobre a dolorosa experiência de fome da família, sobre o amor eterno de seu pai por Benjamim e sobre a promessa que Judá fez a seu pai de que traria Benjamim de volta para casa, para que Jacó não morresse literalmente de tristeza. Então, em uma expressão máxima de compaixão, Judá se ofereceu para ficar no lugar de Benjamim! Ele propôs que ele mesmo fosse mantido no Egito pelo resto da vida como escravo do governador, se o governador permitisse que Benjamim voltasse para casa, para junto de seu pai (Gn 44.33-34).
Vendo a mudança em Judá, José foi capaz de abençoá-los como Deus pretendia. Ele lhes revelou toda a verdade: “Eu sou José!” (Gn 45.3). Parece que José finalmente viu que seus irmãos eram confiáveis. Em nossos próprios relacionamentos com aqueles que nos exploram e nos enganam, devemos andar com cuidado, para sermos astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas, como Jesus instruiu os discípulos (Mt 10.16). Como disse um escritor: “A confiança requer confiabilidade”. Todo o planejamento que José havia feito em suas discussões com seus irmãos atingiu esse ponto culminante, permitindo que ele entrasse em um relacionamento correto com eles. Ele acalmou seus irmãos aterrorizados, apontando para a obra de Deus, que foi responsável por colocar José no comando de todo o Egito (Gn 45.8). Waltke explica a importância da interação entre José e seus irmãos:
Essa cena expõe a anatomia da reconciliação. Trata-se de lealdade a um membro da família necessitado, mesmo quando este parece culpado; dando glória a Deus ao assumir o pecado e suas consequências; ignorando o favoritismo; oferecendo-se para salvar o outro; demonstrando amor verdadeiro por meio de atos concretos de sacrifício que criam um contexto de confiança; descartando o controle e o poder do conhecimento em favor da intimidade; abraçando profunda compaixão, sentimentos ternos, sensibilidade e perdão; e conversando entre si. Uma família disfuncional que permite que essas virtudes a adotem se tornará uma luz para o mundo. [1]
Deus é mais do que capaz de trazer suas bênçãos ao mundo por meio de pessoas profundamente falhas. Mas devemos estar dispostos a nos arrepender continuamente do mal que praticamos e nos voltar para Deus em busca de transformação, mesmo que nunca sejamos perfeitamente purificados de nossos erros, fraquezas e pecados nesta vida.
Ao contrário dos valores das sociedades ao redor de Israel, a disposição dos líderes de se oferecerem em sacrifício pelos pecados dos outros deveria ser um traço característico da liderança entre o povo de Deus. Moisés mostraria isso quando Israel pecou em relação ao bezerro de ouro. Ele orou: “Ah, que grande pecado cometeu este povo! Fizeram para si deuses de ouro. Mas agora, eu te rogo, perdoa-lhes o pecado; se não, risca-me do teu livro que escreveste” (Êx 32.31-32). Davi mostraria isso quando visse o anjo do Senhor ferindo o povo. Ele orou: “O que eles fizeram? Que o teu castigo caia sobre mim e sobre a minha família!” (2Sm 24.17). Jesus, o Leão da tribo de Judá, demonstrou isso quando disse: “Por isso é que meu Pai me ama, porque eu dou a minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou por minha espontânea vontade” (Jo 10.17-18).
A mudança da família de Jacó para o Egito (Gênesis 45.16—47.12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceJosé e o faraó generosamente deram aos irmãos de José “o melhor de todo o Egito” (Gn 45.20) e providenciaram para eles o retorno a Canaã e o transporte da família. Esse final aparentemente feliz, no entanto, tem um lado sombrio. Deus havia prometido a Abraão e seus descendentes a terra de Canaã, não o Egito. Muito depois que José saiu de cena, o relacionamento do Egito com Israel passou de hospitalidade para hostilidade. Visto dessa maneira, como a benevolência de José para com a família pode se encaixar em seu papel como mediador das bênçãos de Deus para todas as famílias da terra (Gn 12.3)? José era um homem perspicaz, que planejava o futuro e cumpriu a porção da bênção de Deus que lhe havia sido designada. Mas Deus não lhe revelou o futuro surgimento de um “um novo rei, que nada sabia sobre José” (Êx 1.8). Cada geração precisa permanecer fiel a Deus e receber as bênçãos de Deus em seu próprio tempo. Lamentavelmente, os descendentes de José esqueceram as promessas de Deus e caíram na infidelidade. No entanto, Deus não se esqueceu de sua promessa a Abraão, Isaque, Jacó e seus descendentes. Entre seus descendentes, Deus levantaria novos homens e mulheres para transmitir as bênçãos prometidas por ele.
Deus fez tudo para o bem (Gênesis 50.15-21)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAs palavras penitentes dos irmãos levaram José a um dos melhores pontos teológicos de sua vida e, de fato, de grande parte de Gênesis. Ele lhes disse que não tivessem medo, pois ele não se vingaria por ter sido maltratado por eles. “Vocês planejaram o mal contra mim”, disse ele, “mas Deus o tornou em bem, para que hoje fosse preservada a vida de muitos. Por isso, não tenham medo. Eu sustentarei vocês e seus filhos” (Gn 50.20-21). A referência de José a “muitos” ecoa a promessa da aliança de Deus de abençoar “todos os povos da terra” (Gn 12.3). Do nosso ponto de vista de hoje, podemos ver que Deus enviou muito mais bênçãos do que José jamais poderia ter pedido ou imaginado (ver Ef 3.20).
A obra de Deus em José e por meio dele tinha um valor real, prático e sério — preservar vidas. Se tivermos a impressão de que Deus nos quer no ambiente de trabalho apenas para que possamos falar aos outros sobre ele, ou se tivermos a impressão de que a única parte de nosso trabalho que importa para Deus é construir relacionamentos, o trabalho de José diz o contrário. As coisas que fazemos em nosso trabalho são cruciais para Deus e para outras pessoas. Às vezes, isso é verdade porque nosso trabalho é parte de um todo maior e perdemos de vista o resultado do trabalho. José adotou uma perspectiva mais ampla de seu trabalho e não desanimou com seus inevitáveis altos e baixos.
Isso não quer dizer que os relacionamentos no trabalho também não sejam da maior importância. Talvez os cristãos tenham o dom especial de oferecer perdão às pessoas no ambiente de trabalho. A garantia de José a seus irmãos é um modelo de perdão. Seguindo a instrução de seu pai, José perdoou seus irmãos e, assim, os libertou verbalmente da culpa. Mas seu perdão — como todo perdão verdadeiro — não foi apenas verbal. José usou os extensos recursos do Egito, que Deus havia colocado sob seu controle, para apoiá-los materialmente, a fim de que pudessem prosperar. Ele reconheceu que julgar não era seu papel. “Estaria eu no lugar de Deus?” (Gn 50.19). Ele não usurpou o papel de Deus como juiz, mas ajudou seus irmãos a se conectarem com Deus, que os salvou.
O relacionamento que José tinha com seus irmãos era tanto familiar quanto econômico. Não há limites claramente definidos entre essas áreas; o perdão é apropriado para ambos. Podemos ser tentados a pensar que nossos valores religiosos mais caros devem funcionar principalmente em esferas claramente religiosas, como a igreja local. É claro que grande parte de nossa vida profissional ocorre na esfera pública, e devemos respeitar o fato de que outras pessoas não compartilham nossa fé cristã. Mas a divisão clara da vida em compartimentos separados rotulados como “sagrado” e “secular” é algo estranho à cosmovisão das Escrituras. Não é sectário, então, afirmar que o perdão é uma prática sólida no ambiente de trabalho.
Sempre haverá muita mágoa e dor na vida. Nenhuma empresa ou organização está imune a isso. Seria ingênuo supor, em geral, que ninguém pretende deliberadamente causar danos com o que diz ou faz. Assim como José reconheceu que as pessoas realmente queriam prejudicá-lo, podemos fazer o mesmo. Mas, na mesma frase, reside a verdade maior sobre a intenção de Deus para o bem. Recordar aquele momento em que nos sentimos magoados nos ajuda a suportar a dor e a nos identificar com Cristo.
José se via como um agente de Deus que era um instrumento para efetuar a obra de Deus com seu povo. Ele conhecia o mal que as pessoas eram capazes de fazer e aceitava que, às vezes, as pessoas são seus piores inimigos. Ele conhecia as histórias familiares de fé misturada com dúvida, de serviço fiel misturado com autopreservação, de verdade e mentira. Ele também sabia das promessas que Deus fez a Abraão, do compromisso de Deus de abençoar essa família e da sabedoria de Deus ao trabalhar com seu povo, à medida que os refinava por meio do fogo da vida. Ele não disfarçou os pecados deles; em vez disso, ele os absorveu em sua consciência da grande obra de Deus. Nossa consciência do sucesso inevitável e providencial das promessas de Deus faz nosso trabalho valer a pena, não importa o custo para nós.
Das muitas lições sobre o trabalho no livro de Gênesis, esta em particular perdura e até explica a própria redenção — a crucificação do Senhor da glória (1Co 2.8-10). Nosso ambiente de trabalho fornece contextos nos quais nossos valores e nosso caráter são trazidos à luz, à medida que tomamos decisões que afetam a nós mesmos e às pessoas ao nosso redor. Em seu poder sábio, Deus é capaz de trabalhar com nossa fidelidade, consertar nossas fraquezas e forjar nossas falhas para realizar o que ele mesmo preparou para nós, que o amamos.
Conclusões de Gênesis 12—50
Voltar ao índice Voltar ao índiceGênesis 12—50 conta a história das três primeiras gerações da família por meio da qual Deus escolheu trazer suas bênçãos ao mundo inteiro. Não tendo qualquer poder, posição, riqueza, fama, habilidade ou superioridade moral em particular, eles aceitaram seu chamado para confiar que Deus iria prover para eles e cumprir a grande visão que tinha para eles. Embora Deus tenha se mostrado fiel em todos os sentidos, a fidelidade deles era frequentemente irregular, tímida, tola e precária. Eles provaram ser tão disfuncionais quanto qualquer família, mas mantiveram a semente da fé que foi colocada neles — ou pelo menos continuaram retornando a ela. Funcionando em um mundo decaído, cercado por pessoas e poderes hostis, pela fé eles invocaram bênçãos “com respeito ao futuro deles” (Hb 11.20) e viveram de acordo com as promessas de Deus. “Por essa razão Deus não se envergonha de ser chamado o Deus deles, e lhes preparou uma cidade” (Hb 11.16), a mesma cidade em que também trabalhamos como seguidores de “Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão” (Mt 1.1).
Versículos e temas-chave em Gênesis 12—50
Voltar ao índice Voltar ao índiceVersículo | Tema |
Gênesis 12.1-4a Então o Senhor disse a Abrão: “Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Farei de você um grande povo, e o abençoarei. Tornarei famoso o seu nome, e você será uma bênção. Abençoarei os que o abençoarem e amaldiçoarei os que o amaldiçoarem; e por meio de você todos os povos da terra serão abençoados”. Partiu Abrão, como lhe ordenara o Senhor... | A bênção de Deus não se limita ao benefício próprio. Seu propósito é permitir que seu povo seja uma bênção para os outros. Uma fé bíblica sólida não é um mero sentimento; é uma resposta ativa à palavra divina. |
Gênesis 13.2 Abrão tinha enriquecido muito, tanto em gado como em prata e ouro. | A riqueza não é necessariamente uma prova do favor de Deus ou uma recompensa por nosso comportamento moral, mas, quando Deus dá riqueza, devemos considerar como ela pode ser usada para abençoar outros. |
Gênesis 13.8-9 Então Abrão disse a Ló: “Não haja desavença entre mim e você, ou entre os seus pastores e os meus; afinal somos irmãos! Aí está a terra inteira diante de você. Vamos separar-nos. Se você for para a esquerda, irei para a direita; se for para a direita, irei para a esquerda”. | A generosidade pode ir além de dar algumas de nossas coisas. Dar aos outros um papel ativo na tomada de decisões mostra nosso respeito por eles, bem como nossa confiança no cuidado de Deus por nós. |
Gênesis 14.22-23 Mas Abrão respondeu ao rei de Sodoma: “De mãos levantadas ao Senhor, o Deus Altíssimo, Criador dos céus e da terra, juro que não aceitarei nada do que lhe pertence, nem mesmo um cordão ou uma correia de sandália, para que você jamais venha a dizer: ‘Eu enriqueci Abrão’”. | A fim de anular uma reivindicação que outros possam pensar que têm sobre nós, os crentes podem voluntariamente renunciar ao que é seu por direito, em nome dos propósitos de Deus. |
Gênesis 15.1 Depois dessas coisas o Senhor falou a Abrão numa visão: “Não tenha medo, Abrão! Eu sou o seu escudo; grande será a sua recompensa!”. | A confiança no compromisso da aliança de Deus conosco é um antídoto poderoso para o medo e a incerteza. |
Gênesis 18.3-5 Disse ele: “Meu senhor, se mereço o seu favor, não passe pelo seu servo sem fazer uma parada. Mandarei buscar um pouco d’água para que lavem os pés e descansem debaixo desta árvore. Vou trazer-lhes também o que comer, para que recuperem as forças e prossigam pelo caminho, agora que já chegaram até este seu servo”. | A hospitalidade pode ter um custo pessoal, mas fornece um contexto para cultivar relacionamentos e acolhe a presença de Deus. |
Gênesis 18.19 “Pois eu [O Senhor] o escolhi, para que ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe prometeu”. | Seguir o caminho de Deus exige uma fé pública, por meio da qual os crentes trabalham ativamente pelo que é certo e justo, tanto agora quanto para as gerações futuras. |
Gênesis 23.16 Abraão concordou com Efrom e pesou-lhe o valor por ele estipulado diante dos hititas: quatrocentas peças de prata, de acordo com o peso corrente entre os mercadores. | Os crentes podem optar por honrar a Deus fazendo negócios de maneira contrária ao costume aceito (como no caso de uma barganha encenada). |
Gênesis 24.12 Então orou: “Senhor, Deus do meu senhor Abraão, dá-me neste dia bom êxito e seja bondoso com o meu senhor Abraão”. | Os crentes com responsabilidades fiduciárias servem àqueles que os comissionam, dependendo do poder de Deus e trabalhando para a glória de Deus. |
Gênesis 32.26 Jacó lhe respondeu: “Não te deixarei ir, a não ser que me abençoes”. | Em contraste com o uso de medidas desesperadas para alcançar o que queremos para nós mesmos, os crentes reconhecem que as bênçãos de Deus são dádivas da graça a serem recebidas. |
Gênesis 33.10 Jacó insistiu: “Não! Se te agradaste de mim, aceita este presente de minha parte, porque ver a tua face é como contemplar a face de Deus; além disso, tu me recebeste tão bem!” | O trabalho de reconciliação pode ser mais difícil para aqueles de quem estamos mais próximos, mas, como Cristo é nossa paz, podemos promover a reconciliação em todo o mundo. |
Gênesis 37.5 Certa vez, José teve um sonho e, quando o contou a seus irmãos, eles passaram a odiá-lo ainda mais. | Ciúme, inveja e acusações falsas são obstáculos terríveis, mas Deus chama seu povo para uma confiança paciente e ativa no que Deus disse que faria. |
Gênesis 39.3-4 Quando este percebeu que o Senhor estava com ele e que o fazia prosperar em tudo o que realizava, agradou-se de José e tornou-o administrador de seus bens. Potifar deixou a seu cuidado a sua casa e lhe confiou tudo o que possuía. Gênesis 41.39-40 Disse, pois, o faraó a José: “Uma vez que Deus lhe revelou todas essas coisas, não há ninguém tão criterioso e sábio como você. Você terá o comando de meu palácio, e todo o meu povo se sujeitará às suas ordens. Somente em relação ao trono serei maior que você”. | Saber que Deus colocou os crentes onde ele quer que eles estejam permite que estes sirvam fielmente, independentemente do destaque e da fama que possam vir com o trabalho. |
Gênesis 39.8-9 Mas ele [José] se recusou e lhe disse: “Meu senhor não se preocupa com coisa alguma de sua casa, e tudo o que tem deixou aos meus cuidados. Ninguém desta casa está acima de mim. Ele nada me negou, a não ser a senhora, porque é a mulher dele. Como poderia eu, então, cometer algo tão perverso e pecar contra Deus?” | O povo de Deus tem uma dupla responsabilidade, pois trabalham diretamente para empregadores humanos e, em última análise, para o próprio Deus. A piedade pessoal não garante necessariamente que os crentes sempre escaparão de tratamentos injustos. |
Gênesis 41.16 Respondeu-lhe José: “Isso não depende de mim, mas Deus dará ao faraó uma resposta favorável”. | Os crentes devem dar crédito a Deus por suas habilidades, mas devem estar cientes de quais atitudes são apropriadas no ambiente de trabalho, onde as pessoas não compartilham a mesma fé. |
Gênesis 44.32 “Além disso, teu servo garantiu a segurança do jovem a seu pai, dizendo-lhe: Se eu não o trouxer de volta, suportarei essa culpa diante de ti pelo resto da minha vida!”. | Em circunstâncias extremas, um líder piedoso pode precisar fazer caros sacrifícios pessoais para honrar suas promessas e proteger os fracos. |
Gênesis 50.20 [José disse a seus irmãos:] “Vocês planejaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem, para que hoje fosse preservada a vida de muitos”. | Quando o perdão se torna um estilo de vida, é muito mais fácil olhar além das ofensas pessoais e apreciar o que Deus está fazendo a longo prazo. |
Êxodo e o trabalho
Voltar ao índice Voltar ao índiceA teologia do trabalho não começa com nossa compreensão do que Deus quer que façamos ou mesmo como fazê-lo. Começa com o Deus que se revelou a nós como Criador e Redentor, e que nos mostra como segui-lo, sendo formados em seu caráter. Fazemos o que Deus quer que façamos, tornando-nos mais semelhantes a ele. Ao ler Êxodo, ouvimos Deus descrever seu próprio caráter e vemos esse Deus em particular formando ativamente seu povo. Como seu povo, nós cristãos não podemos nos contentar em fazer nosso trabalho de acordo com princípios piedosos, a menos que compreendamos essas verdades como algo exclusivamente enraizado neste certo Deus, que faz esse tipo específico de obra redentora, por meio da única pessoa de seu Filho, pelo poder de seu Espírito Santo. Em essência, aprendemos que o caráter de Deus é revelado em sua obra, e sua obra molda nosso trabalho. Seguir a Deus em nosso trabalho é, portanto, um tópico importante em Êxodo, embora o trabalho não seja o ponto principal do livro.
Encontramos muitos relatos em Êxodo que falam do trabalho diário. Mas são instruções e regras que ocorrem em um contexto de trabalho que existia há mais de três mil anos. O tempo não parou e os ambientes de trabalho mudaram. Algumas passagens, como “Não matarás” (Êx 20.13), parecem se encaixar tanto no contexto de hoje como no tempo de Moisés. Outros, como “Se o boi de alguém ferir o boi de outro e o matar, venderão o boi vivo e dividirão em partes iguais, tanto o valor do boi vivo como o animal morto” (Êx 21.35), parecem menos aplicáveis diretamente à maioria dos ambientes de trabalho atuais. Como podemos honrar, obedecer e aplicar a palavra de Deus em Êxodo sem cair nas armadilhas do legalismo ou da aplicação incorreta?
Para responder a essas perguntas, partimos do entendimento de que este livro é uma narrativa. Assim como ajudou Israel a se localizar na história de Deus, também nos ajuda a descobrir como nos encaixamos na expressão mais plena da narrativa que é nossa Bíblia hoje. O propósito e a forma da obra de Deus não apenas moldam nossa identidade como seu povo, mas também direcionam a obra que Deus nos chamou para fazer.
Introdução a Êxodo
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Êxodo começa e termina com Israel em ação. No início, os israelitas estão trabalhando para os egípcios. No final do livro, eles terminaram a obra de construção do tabernáculo, de acordo com as instruções do Senhor (Êx 40.33). Deus não livrou Israel do trabalho. Ele libertou Israel para o trabalho. Deus os libertou do trabalho opressivo sob o ímpio rei do Egito e os levou a um novo tipo de trabalho sob seu reinado gracioso e santo. Embora o título do livro nas Bíblias cristãs, “Êxodo”, signifique “saída”, [1] a orientação voltada para o futuro de Êxodo poderia legitimamente nos levar a concluir que o livro fala realmente sobre entrada, pois relata a entrada de Israel na aliança mosaica que moldará sua existência, não apenas nas peregrinações no deserto ao redor da península do Sinai, mas também em sua vida estabelecida na terra prometida. O livro transmite como Israel deve entender seu Deus e como esta nação deve trabalhar e adorar em sua nova terra. Em todos os aspectos, Israel deve estar ciente de como sua vida sob Deus seria diferente e melhor do que a vida daqueles que seguiam os deuses de Canaã. Ainda hoje, o que fazemos no trabalho flui de por que nós fazemos isso e para quem, em última análise, estamos trabalhando. Normalmente, não precisamos ir muito longe na sociedade para encontrar exemplos de trabalho duro e opressivo. Certamente, Deus quer que encontremos maneiras melhores de conduzir nossos negócios e de tratar os outros. Mas o caminho para essa nova maneira de agir depende de nos vermos como destinatários da salvação de Deus, de sabermos qual é a obra de Deus e de nos treinarmos para seguir suas palavras.
O livro de Êxodo começa cerca de quatrocentos anos após o ponto em que Gênesis termina. Em Gênesis, o Egito tinha sido um lugar hospitaleiro, onde Deus providencialmente elevou José, para que ele pudesse salvar a vida dos descendentes de Abraão (Gn 50.20). Isso está de acordo com as promessas de Deus de transformar Abraão em uma grande nação, de abençoá-lo e torná-lo uma bênção para os outros, de engrandecer seu nome e de abençoar por meio dele todas as famílias da terra (Gn 12.2-3). No livro de Êxodo, no entanto, o Egito era um lugar opressivo, onde o crescimento de Israel levantava o espectro da morte. Os egípcios dificilmente viam Israel como uma bênção divina, embora não quisessem abandonar seu trabalho escravo. No final, a libertação de Israel no mar Vermelho custou muitas vidas ao faraó e ao seu povo. À luz das promessas de Deus à família escolhida de Abraão e das intenções de Deus de abençoar as nações, o povo de Deus no livro de Êxodo está em plena transição. A magnitude dos números de Israel indicava o favor de Deus, mas a geração seguinte de filhos do sexo masculino enfrentou a extinção imediata (Êx 1.15-16). A nação como um todo ainda não estava na terra que Deus lhes havia prometido.
Todo o Pentateuco ecoa esse tema do cumprimento parcial. As promessas de Deus para os descendentes de Abraão, o relacionamento privilegiado com Deus e uma terra para viver, tudo isso expressa as intenções de Deus, mas todas elas estão em algum estado de perigo ao longo da narrativa. [2] Entre os cinco livros do Pentateuco, Êxodo, em particular, aborda o elemento do relacionamento com Deus, tanto em termos da intervenção divina para libertar seu povo do Egito quanto do estabelecimento de sua aliança com eles no Sinai. [3] Isso é especialmente significativo para a forma como lemos o livro para obter perspectivas sobre nosso trabalho hoje. Valorizamos a forma e o conteúdo deste livro, pois lembramos que nosso relacionamento com Deus por meio de Jesus Cristo flui do que vemos aqui e orienta toda a nossa vida e trabalho em torno das intenções de Deus.
Para capturar o caráter de Israel como uma nação em transição, esboçamos o livro e avaliamos sua contribuição para a teologia do trabalho de acordo com os estágios geográficos de sua jornada, começando no Egito, depois no mar Vermelho, a caminho do Sinai e, finalmente, no próprio Sinai.
Israel no Egito (Êxodo 1.1—13.16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs maus tratos de Israel pelos egípcios fornecem o pano de fundo e a motivação para sua redenção. O faraó não permitiu que eles seguissem Moisés até o deserto para adorar ao Senhor e, assim, negou uma medida de sua liberdade religiosa. Mas sua opressão como trabalhadores do sistema econômico egípcio é o que realmente chama nossa atenção. Deus ouve o clamor de seu povo e faz algo a respeito. Mas devemos lembrar que o povo de Israel não geme por causa do trabalho em geral, mas por causa da dureza de seu trabalho. Em resposta, Deus não os entrega a uma vida de descanso total, mas a uma libertação do trabalho opressivo.
A dureza do trabalho escravo dos israelitas no Egito (Êxodo 1.8-14)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO trabalho que os egípcios impuseram aos israelitas era de motivação maligna e de natureza cruel. A cena de abertura apresenta a terra cheia de israelitas que foram frutíferos e se multiplicaram. Isso ecoa a intenção criacional de Deus (Gn 1.28; 9.1), bem como sua promessa a Abraão e seus descendentes escolhidos (Gn 17.6; 35.11; 47.27). Como nação, eles estavam destinados a abençoar o mundo. Sob um governo anterior, os israelitas tinham permissão real para viver na terra e trabalhar nela. Mas agora, o novo rei do Egito sentiu que aquele grande povo representava uma ameaça à sua segurança nacional e, portanto, decidiu lidar com eles “com astúcia” (Êx 1.10). Não nos é dito se os israelitas eram ou não uma ameaça genuína. A ênfase recai sobre o medo destrutivo do faraó, que o levou primeiro a degradar seu ambiente de trabalho e, depois, a usar o infanticídio para conter o crescimento da população.
O trabalho pode ser física e mentalmente desgastante, mas isso não o torna errado. O que tornou a situação no Egito insuportável não foi apenas a escravidão, mas também sua extrema dureza. Os mestres egípcios tratavam os israelitas de forma “cruel” (befarekh, Êx 1.13,14) e tornaram a vida deles “amarga” (marar, Êx 1.14) com serviço “árduo” (qasheh, no sentido de “cruel”, Êx. 1.14; 6.9). Como resultado, Israel definhou em “opressão” e “sofrimento” (Êx 3.7) e em “angústia” (Êx 6.9). O trabalho, um dos principais propósitos e alegrias da existência humana (Gn 1.27-31; 2.15), foi transformado em miséria pela dureza da opressão.
O trabalho de parteira e da maternidade (Êxodo 1.15—2.10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm meio ao tratamento severo, os israelitas permaneceram fiéis à ordem de Deus de serem frutíferos e se multiplicarem (Gn 1.28). Isso envolvia ter filhos, o que, por sua vez, dependia do trabalho das parteiras. Além de sua presença na Bíblia, o trabalho de parteiras é bem atestado na antiga Mesopotâmia e no Egito. As parteiras ajudavam as mulheres a dar à luz, cortavam o cordão umbilical do bebê, lavavam o bebê e apresentavam a criança à mãe e ao pai.
As parteiras nesta narrativa possuem um temor de Deus que as levou a desobedecer à ordem real de matar todos os meninos nascidos das mulheres hebreias (Êx 1.15-17). De um modo geral, o “temor do Senhor” (e expressões relacionadas) na Bíblia se refere a um relacionamento saudável e obediente com o Deus de Israel (hebraico, YHWH), que faz alianças. Seu “temor a Deus” era mais forte do que qualquer medo que o faraó do Egito pudesse submetê-los. Além disso, talvez sua coragem tenha surgido de seu trabalho. Será que aquelas que pastoreiam uma nova vida todos os dias passam a valorizar tanto a vida que o assassinato se tornaria impensável, mesmo se ordenado por um rei?
A mãe de Moisés, Joquebede (Êx 6.20), foi outra mulher que enfrentou uma escolha aparentemente impossível e forjou uma solução criativa. Dificilmente se pode imaginar seu alívio por ter um filho homem em segredo e com sucesso, seguido por sua dor por ter de colocá-lo no rio — e isso de uma maneira que realmente pudesse salvar sua vida. Os paralelos com a arca de Noé — a palavra hebraica para “cesto” é usada apenas em outro lugar na Bíblia, a saber, para a “arca” de Noé — nos permitem saber que Deus estava agindo não apenas para salvar um menino, ou mesmo uma nação, mas também para redimir toda a criação por meio de Moisés e Israel. Paralelamente à sua recompensa para com as parteiras, Deus mostrou bondade para com a mãe de Moisés. Ela recuperou o filho e cuidou dele até que ele tivesse idade suficiente para ser adotado como filho da filha do faraó. O trabalho piedoso de gerar e criar filhos é bem conhecido por ser complexo, exigente e louvável (Pv 31.10-31). Em Êxodo, não lemos nada sobre as lutas internas vividas por Joquebede, a heroína desconhecida. Do ponto de vista narrativo, a vida de Moisés é a questão principal. Mas a Bíblia mais tarde elogiou Joquebede e Anrão, pai de Moisés, pela maneira como eles colocaram sua fé em ação (Hb 11.23).
Com muita frequência, o trabalho de dar à luz e criar filhos é negligenciado. As mães, especialmente, muitas vezes entendem que criar os filhos não é tão importante ou louvável quanto qualquer outro trabalho. No entanto, quando Êxodo conta a história de como seguir a Deus, a primeira coisa que ele tem a nos dizer é a incomparável importância de gerar, criar, proteger e ajudar os filhos. O primeiro ato de coragem, neste livro repleto de feitos corajosos, é a coragem de uma mãe, de sua família e de suas parteiras ao salvar seu filho.
O chamado de Deus a Moisés (Êxodo 2.11—3.22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEmbora Moisés fosse hebreu, ele foi criado na família real do Egito como neto do faraó. Sua repulsa à injustiça explodiu em um ataque letal a um egípcio que ele encontrou espancando um trabalhador hebreu. Esse ato chamou a atenção do faraó, por isso Moisés fugiu em busca de segurança e tornou-se pastor em Midiã, uma região a várias centenas de quilômetros a leste do Egito, do outro lado da península do Sinai. Não sabemos exatamente quanto tempo ele viveu lá, mas durante esse tempo ele se casou e teve um filho. Além disso, duas coisas importantes aconteceram. O rei do Egito morreu, e o Senhor ouviu o clamor de seu povo oprimido e se lembrou de sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó (Êx 2.23-25). Esse ato de lembrar não significava que Deus havia se esquecido de seu povo. Sinalizou que ele estava prestes a agir em nome deles. [1] Para isso, ele chamaria Moisés.
O chamado de Deus a Moisés veio enquanto Moisés estava trabalhando. O relato de como isso aconteceu compreende seis elementos que formam um padrão evidente na vida de outros líderes e profetas na Bíblia. Portanto, é instrutivo examinar essa narrativa de chamado e considerar suas implicações para nós hoje, especialmente no contexto de nosso trabalho.
Primeiro, Deus confrontou Moisés e chamou sua atenção na cena da sarça em chamas (Êx 3.2-5). Um arbusto em chamas no semideserto não é nada de excepcional, mas Moisés ficou intrigado com a natureza daquele fogo em particular. Moisés ouviu seu nome ser chamado e respondeu: “Eis-me aqui”. (Êx 3.4). Esta é uma declaração de disponibilidade, não de localização. Em segundo lugar, o Senhor apresentou-se como o Deus dos patriarcas e comunicou sua intenção de resgatar seu povo do Egito e trazê-los para a terra que ele havia prometido a Abraão (Êx 3.6-9). Terceiro, Deus comissionou Moisés para ir ao faraó a fim de tirar o povo de Deus do Egito (Êx 3.10). Quarto, Moisés argumentou (Êx 3.11). Embora ele tivesse acabado de ouvir uma poderosa revelação sobre quem estava falando com ele naquele momento, sua preocupação imediata foi: “Quem sou eu?”. Em resposta a isso, Deus tranquilizou Moisés com a promessa de sua própria presença (Êx 3.12a). Finalmente, Deus falou de um sinal de confirmação (Êx 3.12b).
Esses mesmos elementos estão presentes em várias outras narrativas de chamados nas Escrituras — por exemplo, nos chamados de Gideão, Isaías, Jeremias, Ezequiel e alguns dos discípulos de Jesus. Essa não é uma fórmula rígida, pois muitas outras narrativas de chamados nas Escrituras seguem um padrão diferente. Mas sugere que o chamado de Deus geralmente vem por meio de uma série extensa de encontros que guiam uma pessoa no caminho de Deus ao longo do tempo.
O | O | O | O | Discípulos | |
Confronto | 6.11b-12a | 6.1-2 | 1.4 | 1.1-28a | 28.16-17 |
Introdução | 6.12b-13 | 6.3-7 | 1.5a | 1.28b—2.2 | 28.18 |
Comissionamento | 6.14 | 6.8-10 | 1.5b | 2.3-5 | 28.19-20a |
Argumentação | 6.15 | 6.11a | 1.6 | 2.6,8 | |
Garantia | 6.16 | 6.11b-13 | 1.7-8 | 2.6-7 | 28.20b |
Sinal de confirmação | 6.17-21 | 1.9-10 | 2.9—3.2 | Possivelmente o |
Observe que esses chamados não são principalmente para o trabalho sacerdotal ou religioso em uma congregação. Gideão era um líder militar; Isaías, Jeremias e Ezequiel eram críticos sociais; e Jesus era um rei (embora não no sentido tradicional). Em muitas igrejas hoje, o termo “chamado” é limitado a ocupações religiosas, mas isso não é verdade nas Escrituras e, certamente, não em Êxodo. O próprio Moisés não era um sacerdote ou líder religioso (esses eram os papéis de Arão e Miriã), mas um pastor, estadista e governador. A pergunta do Senhor a Moisés: “O que é isso em sua mão?” (Êx 4.2) redireciona a ferramenta comum de pastoreio de ovelhas usada por Moisés para usos que ele nunca imaginou serem possíveis (Êx 4.3-5).
A obra de redenção de Deus para Israel (Êxodo 5.1—6.28)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo livro de Êxodo, Deus é o obreiro essencial. A natureza e a intenção dessa obra divina definiram a agenda da obra de Moisés e, por meio dele, da obra do povo de Deus. O chamado inicial de Deus a Moisés incluía uma explicação da obra de Deus. Isso levou Moisés a falar em nome do Senhor a faraó, dizendo: “Deixe o meu povo ir” (Êx 5.1). A refutação do faraó não foi meramente verbal; ele oprimiu os israelitas com mais severidade do que antes. No final deste episódio, até os próprios israelitas se voltaram contra Moisés (Êx 5.20-21). É nesse ponto crucial que, em resposta ao questionamento de Moisés a Deus sobre todo o empreendimento, Deus esclareceu o projeto de sua obra. O que lemos aqui em Êxodo 6.2-8 não pertence apenas ao contexto imediato da opressão de Israel no Egito, mas estrutura uma agenda que abrange toda a obra de Deus na Bíblia. [1] É importante que todos os cristãos tenham clareza sobre o escopo da obra de Deus, porque isso nos ajuda a entender o que significa orar para que o Reino de Deus venha e para que sua vontade seja feita assim na terra como no céu (Mt 6.10). O cumprimento dessas intenções é tarefa de Deus. Para realizá-las, ele envolverá todo o seu povo, não apenas aqueles que fazem trabalho “religioso”. Chegar a uma compreensão mais clara da obra de Deus nos capacita a considerar melhor não apenas a natureza de nossa obra, mas a maneira pela qual Deus deseja que a façamos.
Para melhor apreciar esse texto-chave, faremos algumas breves observações sobre ele e, em seguida, mostraremos como ele é relevante para a teologia do trabalho. Depois de uma resposta inicialmente segura à pergunta acusatória de Moisés sobre a missão de Deus (Êx 5.22—6.1), Deus molda sua resposta mais extensa com as palavras “Eu sou o Senhor” no início e no fim (Êx 6.2,8). Essa frase-chave demarca o parágrafo e dá ao conteúdo uma prioridade especialmente alta. Os leitores devem ter o cuidado de observar que essa frase não comunica o que Deus é em termos de um título. Ela revela o próprio nome de Deus e, portanto, fala quem ele é. [2] Ele é o Deus que apareceu aos patriarcas, que faz alianças e cumpre promessas. A obra que Deus está prestes a fazer por seu povo está, portanto, fundamentada nas intenções que Deus expressou a eles. A saber, estes devem multiplicar os descendentes de Abraão, engrandecer seu nome e abençoá-lo para que, por meio de Abraão, Deus abençoe todas as famílias da terra (Gn 12.2-3).
A obra de Deus aparece então em quatro partes. Esses quatro propósitos redentores de Deus reaparecem de várias maneiras ao longo do Antigo Testamento e até dão forma ao clímax da obra redentora de Deus em Jesus Cristo. A primeira é a obra de libertação. “Eu os livrarei do trabalho imposto pelos egípcios. Eu os libertarei da escravidão e os resgatarei com braço forte e com poderosos atos de juízo” (Êx 6.6). Inerente a esse trabalho de libertação está a verdade franca de que o mundo é um lugar de opressão múltipla. Às vezes, usamos a palavra salvação para descrever essa atividade de Deus, mas devemos ter cuidado para evitar entendê-la em termos de resgate da terra para o céu (e certamente não da matéria para o espírito) ou como mero perdão de pecados. O Deus de Israel libertou seu povo entrando em seu mundo e efetuando uma mudança “no terreno”, por assim dizer. Êxodo não apenas mostra Deus efetuando a libertação de Israel do faraó no Egito, mas também prepara o terreno para o rei messiânico, Jesus, libertar seu povo de seus pecados e vencer o diabo, o tirano do mal (Mt 1.21; 12.28).
Segundo, o Senhor formará uma comunidade piedosa. “Eu os farei meu povo e serei o Deus de vocês” (Êx 6.7a). Deus não libertou seu povo para que eles pudessem viver como quisessem, nem os libertou como indivíduos isolados. Ele pretendia criar um tipo qualitativamente diferente de comunidade, na qual seu povo viveria com ele e uns com os outros em fidelidade à aliança. Toda nação nos tempos antigos tinha seus “deuses”, mas a identidade de Israel como povo de Deus envolvia um estilo de vida de obediência a todos os decretos, mandamentos e leis de Deus (Dt 26.17-18). À medida que esses valores e ações impregnassem seu modo de lidar com Deus e uns com os outros (e mesmo aqueles fora da aliança), Israel demonstraria cada vez mais o que genuinamente significa ser o povo de Deus. Novamente, isso forma o pano de fundo para Jesus, que construiria sua “igreja”, não como uma estrutura física de tijolo ou pedra, mas como uma nova comunidade com discípulos de todas as nações (Mt 16.18; 28.19).
Terceiro, o Senhor criará um relacionamento contínuo entre ele e seu povo. “Então vocês saberão que eu sou o Senhor, o seu Deus, que os livra do trabalho imposto pelos egípcios” (Êx 6.7b). Todas as outras declarações do propósito de Deus começam com a palavra eu, exceto esta. Aqui, o foco está em vocês. Deus deseja que seu povo tenha uma certa experiência de seu relacionamento com Deus, que graciosamente os resgatou. Para nós, o conhecimento parece praticamente equivalente à informação. O conceito bíblico de conhecimento abraça essa noção, mas também inclui a experiência interpessoal de conhecer os outros. Dizer que Deus não se fez “conhecido” como “Senhor” a Abraão não significa que Abraão desconhecia o nome divino “YHWH” (Gn 13.4; 21.33). Significa que Abraão e sua família ainda não haviam experimentado pessoalmente o significado desse nome como descritivo de seu Deus cumpridor de promessas, que lutaria em nome de seu povo para livrá-lo da escravidão em escala nacional. [3] Em última análise, isso é retomado por Jesus, cujo nome “Emanuel” significa Deus “conosco” em relacionamento (Mt 1.23).
Quarto, Deus pretende que seu povo experimente a boa vida. “E os farei entrar na terra que, com mão levantada, jurei que daria a Abraão, a Isaque e a Jacó” (Êx 6.8). Deus prometeu dar a Abraão a terra de Canaã, mas não é correto simplesmente equiparar essa “terra” ao nosso conceito de “região”. É uma terra de promessa e provisão. A descrição regular e positiva dela como terra “onde manam leite e mel” (Êx 3.8) destaca sua natureza simbólica como um lugar para viver com Deus e o povo de Deus em condições ideais, algo que entendemos como a “vida em abundância”. [4] Aqui, novamente, vemos que a obra de salvação de Deus é um ajuste correto de toda a sua criação — ambiente físico, pessoas, cultura, economia, tudo. Essa também é a missão de Jesus quando ele inicia o Reino de Deus vindo à terra, onde os mansos herdarão a terra e experimentarão a vida eterna (Mt 5.5; Jo 17.3). [9] Isso se completa na Nova Jerusalém de Apocalipse 21 e 22. Êxodo, portanto, estabelece o caminho para toda a Bíblia que se segue.
Considere como nosso trabalho hoje pode expressar esses quatro propósitos redentores. Primeiro, a vontade de Deus é livrar pessoas da opressão e das condições prejudiciais da vida. Parte desse trabalho resgata pessoas de perigos físicos; outro trabalho se concentra no alívio de traumas psicológicos e emocionais. O trabalho de cura toca as pessoas uma a uma; aqueles que elaboram soluções políticas para nossas necessidades podem abençoar sociedades e classes de pessoas inteiras. Os que trabalham na aplicação da lei e no sistema judicial devem ter como objetivo restringir e punir aqueles que fazem o mal, proteger as pessoas e cuidar das vítimas. Dada a extensão generalizada da opressão no mundo, sempre haverá múltiplas oportunidades e meios de trabalhar pela libertação.
O segundo e o terceiro propósitos (comunidade e relacionamento) estão intimamente relacionados entre si. O trabalho piedoso que promove a paz e a verdadeira harmonia no céu aumentará a misericórdia e a justiça na terra. Esta é a essência do discurso de Paulo aos coríntios: por meio de Cristo, Deus nos reconciliou consigo mesmo e, assim, nos deu a mensagem e o ministério da reconciliação (2Co 5.16-20). Os cristãos experimentaram essa reconciliação e, portanto, têm motivos e meios para fazer esse tipo de trabalho. O trabalho de evangelismo e desenvolvimento espiritual honra uma dimensão da área; o trabalho de paz e justiça honra a dimensão interpessoal. Em essência, os dois são inseparáveis e aqueles que trabalham nesses campos fazem bem em lembrar a natureza holística do que Deus está fazendo. Jesus ensinou que, porque nós somos a luz do mundo, devemos deixar nossa luz brilhar diante dos outros (Mt 5.14-16).
Construir comunidade e relacionamentos pode ser o objeto do nosso trabalho, como no caso de líderes comunitários, pessoas que trabalham com jovens, assistentes sociais, organizadores de eventos, profissionais de mídia social, pais e familiares e muitos outros. Mas estes também podem ser elementos do nosso trabalho, seja qual for a nossa ocupação. Quando damos boas-vindas e ajudamos novos trabalhadores, perguntamos e ouvimos os outros falarem sobre assuntos importantes, estamos dispostos a conhecer alguém pessoalmente, enviamos uma nota de encorajamento, compartilhamos uma foto memorável, levamos boa comida para compartilhar, incluímos alguém em uma conversa ou uma infinidade de outros atos de camaradagem, estamos cumprindo esses dois propósitos do trabalho, dia após dia.
Finalmente, o trabalho piedoso promove a boa vida. Deus guiou seu povo para fora do Egito, a fim de fazê-los entrar na terra prometida, onde eles poderiam se estabelecer, viver e se desenvolver. No entanto, o que Israel experimentou lá foi muito menos do que o ideal de Deus. Da mesma forma, o que os cristãos experimentam no mundo também não é o ideal. A promessa de entrar no descanso de Deus ainda está em aberto (Hb 4.1). Ainda esperamos por um novo céu e uma nova terra. Mas muitas das leis da aliança que Deus deu por meio de Moisés têm a ver com o tratamento ético mútuo. É vital, então, que a bênção de Deus seja operada na maneira como vivemos e trabalhamos uns com os outros. Visto do lado negativo, como podemos razoavelmente esperar que todas as famílias da terra experimentem a bênção de Deus por meio de nós (o povo de Abraão, por meio da fé em Cristo), se nós mesmos ignoramos as instruções de Deus sobre como viver e fazer nosso trabalho? Como Christopher Wright observou: “O povo de Deus, em ambos os testamentos, é chamado para ser uma luz para as nações. Mas não pode haver luz para as nações se ela já não estiver brilhando na vida transformada de um povo santo”. [5] Assim, fica claro que o tipo de “vida boa” em vista aqui não tem nada a ver com uma prosperidade egoísta ou um consumo desenfreado, pois abrange o amplo espectro da vida como Deus espera que seja: cheia de amor, justiça e misericórdia.
Moisés e Arão anunciam o julgamento de Deus ao faraó (Êxodo 7.1—12.51)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeus começou o primeiro passo — libertação — enviando Moisés e Aarão para dizer ao faraó que deixasse “os israelitas saírem do país” (Êx 7.2). Para essa tarefa, Deus fez uso da habilidade natural de Arão em falar em público (Êx 4.14; 7.1). Ele também equipou Arão com habilidade que supera a dos altos oficiais do Egito (Êx 7.10-12). Isso nos lembra que a missão de Deus requer palavra e ação.
O faraó se recusou a ouvir a ordem de Deus, por meio de Moisés, de libertar Israel da escravidão. Por sua vez, Moisés anunciou o juízo de Deus ao faraó por meio de uma série cada vez mais severa de desastres ecológicos (Êx 7.17—10.29). Esses desastres causaram miséria pessoal. Mais significativamente, eles prejudicaram drasticamente a capacidade produtiva da terra e do povo do Egito. As doenças causaram a morte do gado (Êx 9.6). As colheitas falharam e as florestas foram arruinadas (Êx 9.25). As pragas invadiram vários ecossistemas (Êx 8.6,24; 10.13-15). Em Êxodo, o desastre ecológico é a retribuição de Deus contra a tirania e a opressão do faraó. No mundo moderno, a opressão política e econômica é um fator importante na degradação ambiental e no desastre ecológico. Seríamos tolos em pensar que podemos assumir a autoridade de Moisés e declarar o julgamento de Deus em qualquer uma dessas coisas. Mas podemos ver que, assim como a economia, a política, a cultura e a sociedade precisam de redenção, o meio ambiente também precisa.
Cada uma dessas ações de advertência convenceu o faraó a libertar Israel, mas, à medida que cada uma delas passava, ele voltava atrás. Finalmente, Deus trouxe o desastre de matar todos os primogênitos entre o povo e os animais dos egípcios (Êx 12.29-30). O efeito terrível da escravidão é “endurecer” o coração contra a compaixão, a justiça e até a autopreservação, como o faraó logo descobriu (Êx 11.10). O faraó então aceitou a exigência de Deus de libertar Israel. Os israelitas que partiram “saquearam” as joias, a prata, o ouro e as roupas dos egípcios (Êx 12.35-36). Isso reverteu os efeitos da escravidão, que era a pilhagem legalizada de trabalhadores explorados. Quando Deus liberta as pessoas, ele restaura seu direito de trabalhar por frutos que elas mesmas possam usufruir (Is 65.21-22). O trabalho — e as condições em que ele é realizado — é assunto da maior preocupação de Deus.
Israel no mar Vermelho e no caminho para o Sinai (Êxodo 13.17—18.27)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA expressão fundamental da obra de Deus se concretizou de forma dramática quando Deus guiou decisivamente seu povo através do mar Vermelho, libertando-o do domínio tirânico do Egito. O Deus que separou as águas do caos e criou a terra seca, o Deus que levou a família de Noé através do dilúvio para a terra seca, “dividiu” as águas do mar Vermelho e conduziu Israel através de “terra seca” (Êx 14.21-22). A jornada de Israel do Egito ao Sinai é, portanto, a continuação da história da criação e redenção de Deus. Moisés, Arão e outros trabalham arduamente, mas Deus é o verdadeiro trabalhador.
A obra da justiça entre o povo de Israel (Êxodo 18.1-27)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDurante a viagem do Egito ao Sinai, Moisés se reconectou com seu sogro Jetro. Este, que antes era estrangeiro para os israelitas, ofereceu um conselho muito necessário a Moisés sobre justiça na comunidade. A obra de redenção de Deus para seu povo foi expandida para a obra da justiça entre seu povo. Israel já havia sofrido tratamento injusto nas mãos dos capatazes egípcios. Por conta própria, eles procuraram com razão respostas de Deus para suas próprias disputas. Walter Brueggemann observou que a fé bíblica não é apenas contar a história do que Deus fez. É também “sobre o trabalho árduo e contínuo de nutrir e praticar a paixão diária de curar e restaurar, e a rejeição diária de ganhos desonestos”. [1]
Uma das primeiras coisas que aprendemos sobre Moisés foi seu desejo de mediar entre aqueles que estavam envolvidos em uma disputa. Inicialmente, quando Moisés tentou intervir, ele foi repreendido com as palavras: “Quem o nomeou líder e juiz sobre nós?” (Êx 2.14). No episódio atual, vemos exatamente o oposto. Moisés está em tal demanda como líder e juiz que uma multidão de pessoas necessitadas de suas decisões se reuniu ao seu redor “desde a manhã até o cair da tarde” (Êx 18.14; veja também Dt 1.9-18). A obra de Moisés aparentemente tem dois aspectos. Primeiro, ele proferiu decisões legais para pessoas em disputa. Segundo, ele ensinou os estatutos e as instruções de Deus para aqueles que buscavam orientação moral e religiosa. [2] Jetro observou que Moisés era o único agente nessa nobre obra, mas considerou todo o processo insustentável. “O que você está fazendo não é bom” (Êx 18.17). Além disso, foi prejudicial para Moisés e insatisfatório para o povo que ele estava tentando ajudar. A solução de Jetro foi permitir que Moisés continuasse fazendo o que ele estava singularmente qualificado para fazer como representante de Deus: interceder junto a Deus pelo povo, instruí-lo e decidir os casos difíceis. Todos os outros casos deveriam ser delegados a juízes subordinados que atuariam em um sistema de administração judicial de quatro níveis.
A qualificação desses juízes é a chave para a sabedoria do plano, pois eles não foram selecionados de acordo com as divisões tribais do povo ou sua maturidade religiosa. Eles deviam atender a quatro qualificações (Êx 18.21). Primeiro, eles deviam ser “capazes”. A expressão hebraica “homens de hayil” denota habilidade, liderança, gerenciamento, desenvoltura e o devido respeito. [3] Segundo, eles deviam ser “tementes a Deus”. Assim como aconteceu com as parteiras no capítulo 2, essa provavelmente não é uma qualidade especificamente religiosa. Ele descreve pessoas que têm uma compreensão clara da moralidade comumente reconhecida, que se estende além das fronteiras culturais e religiosas. Terceiro, eles deviam ser “dignos de confiança”. A verdade é um conceito abstrato, bem como uma maneira de agir, por isso essas pessoas deviam ter um histórico público de caráter e conduta verdadeiros. Finalmente, eles deviam ser “inimigos de ganho desonesto”. Eles deviam saber como e por que a corrupção ocorre, desprezar a prática de suborno e todos os tipos de subversão e proteger ativamente o processo judicial dessas infecções.
A delegação é essencial para o trabalho da liderança. Embora Moisés fosse excepcionalmente talentoso como profeta, estadista e juiz, ele não era infinitamente talentoso. Qualquer pessoa que imagina que somente ela é capaz de fazer bem a obra de Deus esqueceu o que significa ser humano. Portanto, o dom da liderança é, em última análise, o dom de dar poder de forma adequada. O líder, como Moisés, deve discernir as qualidades necessárias, treinar aqueles que devem receber autoridade e desenvolver meios para responsabilizá-los. O líder também precisa ser responsabilizado. Jetro executou essa tarefa no caso de Moisés, e a passagem é notavelmente franca ao mostrar como até mesmo o maior de todos os profetas do Antigo Testamento teve de ser confrontado por alguém com o poder de responsabilizá-lo. A liderança sábia, decisiva e compassiva é um dom de Deus de que toda comunidade humana precisa. No entanto, Êxodo nos mostra que não é tanto uma questão de um líder talentoso assumir autoridade sobre as pessoas, mas sim o processo de Deus para uma comunidade desenvolver estruturas de liderança nas quais pessoas talentosas possam ter sucesso. A delegação é a única maneira de aumentar a capacidade de uma instituição ou comunidade, bem como de desenvolver futuros líderes.
O fato de Moisés ter aceitado esse conselho tão rápida e completamente pode ser uma evidência de como ele estava pessoalmente desesperado. Mas, em uma escala mais ampla, também podemos ver que Moisés estava completamente aberto à sabedoria de Deus, mediada a ele por alguém de fora do povo de Israel. Essa observação pode encorajar os cristãos a receber e respeitar contribuições de uma ampla gama de tradições e religiões, principalmente em questões de trabalho. Fazer isso não é necessariamente uma marca de deslealdade a Cristo, nem expõe a falta de confiança em nossa própria fé. Não é uma concessão indevida ao pluralismo religioso. Pelo contrário, pode até ser um testemunho ruim fazer uso de citações bíblicas de sabedoria com muita frequência, pois, ao fazê-lo, pessoas de fora podem nos considerar mesquinhos e até inseguros. Os cristãos fazem bem em ter discernimento sobre as especificidades do conselho que adotamos, quer venha de dentro ou de fora. Mas, em última análise, estamos confiantes de que “toda verdade é a verdade de Deus”. [4]
Israel no Monte Sinai (Êxodo 19.1—40.38)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo monte Sinai, Moisés recebeu os Dez Mandamentos do Senhor. Como diz a Bíblia de Estudo NVI: “Os Dez Mandamentos são tanto a base quanto o âmago do relacionamento entre Israel e o Senhor. É quase impossível exagerar seu efeito sobre a história subsequente. Constituem base dos princípios morais de todo o mundo ocidental, resumindo o que o Deus único e verdadeiro espera de seu povo quanto à fé, a adoração e à conduta”. [1] Como veremos, o papel da lei israelita para os cristãos é objeto de muita controvérsia. Por essas razões, estaremos atentos ao que o texto de Êxodo realmente diz, pois é isso que temos em comum. Ao mesmo tempo, esperamos estar cientes e respeitar a variedade de maneiras pelas quais os cristãos podem querer tirar lições dessa parte da Bíblia.
O significado da lei em Êxodo (Êxodo 19.1—24.18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceComeçamos reconhecendo que Êxodo é parte integrante de toda a Escritura, não um estatuto legal independente. Christopher Wright escreveu:
A opinião comum de que a Bíblia é um livro de códigos morais para os cristãos fica muito aquém, é claro, da plena realidade do que a Bíblia é e faz. A Bíblia é essencialmente a história de Deus, da terra e da humanidade; é a história do que deu errado, do que Deus fez para consertar as coisas e do que o futuro reserva sob o plano soberano de Deus. No entanto, dentro dessa grande narrativa, o ensino moral tem um lugar vital. A história da Bíblia é a história da missão de Deus. A exigência da Bíblia é a de que os seres humanos respondam apropriadamente. A missão de Deus exige e inclui uma resposta humana. E nossa missão certamente inclui a dimensão ética dessa resposta. [1]
A palavra lei é uma tradução tradicional, porém imprecisa, da palavra-chave hebraica Torá. Como esse termo é tão central para toda a discussão em questão, ele nos ajudará a esclarecer como essa palavra hebraica realmente funciona na Bíblia. A palavra Torá aparece uma vez no Gênesis no sentido de instruções de Deus que Abraão seguiu. Pode se referir a instruções de um ser humano para outro (Sl 78.1). Mas, como algo de Deus, a palavra Torá em todo o Pentateuco e no restante do Antigo Testamento designa um padrão de conduta para o povo de Deus relacionado a questões cerimoniais de adoração formal, bem como estatutos de conduta civil e social. [2] A noção bíblica de Torá transmite o sentido de “instrução divinamente autorizada”. Esse conceito está longe de nossas ideias modernas de direito como um corpo de códigos elaborados e promulgados por legisladores ou leis “naturais”. Para destacar a natureza rica e instrutiva da lei no Êxodo, às vezes vamos nos referir a ela como Torá, sem nenhuma tentativa de tradução.
Em Êxodo, fica claro que a Torá, no sentido de um conjunto de instruções específicas, faz parte da aliança e não o contrário. Em outras palavras, a aliança como um todo descreve a relação que Deus estabeleceu entre ele e seu povo em virtude de seu ato de libertação em favor deles (Êx 20.2). Como rei da aliança do povo, Deus especifica como ele deseja que Israel adore e se comporte. A promessa de Israel de obedecer é uma resposta ao presente divino da aliança (Êx 24.7). Isso é significativo para nossa compreensão da teologia do trabalho. A maneira como discernimos a vontade de Deus para nosso comportamento no trabalho e a maneira como a colocamos em prática no ambiente de trabalho são envoltos pelo relacionamento que Deus estabeleceu conosco. Em termos cristãos, amamos a Deus porque ele nos amou primeiro e demonstramos esse amor na forma como tratamos os outros (1Jo 4.19-21). A natureza categórica do mandamento de Deus para que amemos nosso próximo significa que Deus deseja que o apliquemos em todos os lugares, independentemente de nos encontrarmos em uma igreja, café, casa, local público ou ambiente de trabalho.
O papel da lei para os cristãos (Êxodo 20.1—24.18)
Voltar ao índice Voltar ao índicePode ser um desafio para um cristão extrair uma ideia de um versículo do livro de Êxodo ou, especialmente, de Levítico, e depois sugerir como essa lição deve ser aplicada hoje. Qualquer um que tente isso deve estar preparado para a resposta: “Claro, mas a Bíblia também permite a escravidão e diz que não podemos comer bacon ou camarão! Além disso, acho que Deus realmente não se importa se minhas roupas são de uma mistura de algodão e poliéster” (Êx 21.2-11; Lv 11.7,12; 19.19, respectivamente). Visto que isso acontece até mesmo dentro dos círculos cristãos, não devemos nos surpreender se encontrarmos dificuldades para aplicar a Bíblia ao tema do trabalho na esfera pública. Como podemos saber o que se aplica hoje e o que não se aplica? Como evitamos a acusação de inconsistência no modo como lidamos com a Bíblia? Mais importante ainda, como permitimos que a palavra de Deus realmente nos transforme em todas as áreas da vida? A diversidade de leis em Êxodo e no Pentateuco apresenta um tipo de desafio. Outro vem da variedade de maneiras pelas quais os cristãos entendem e aplicam a Torá e o Antigo Testamento em relação a Cristo e ao Novo Testamento. Ainda assim, a questão da Torá no cristianismo é crucial e deve ser abordada para que possamos extrair algo sobre o que essa parte da Bíblia diz sobre nosso trabalho. O breve tratamento a seguir pretende ser útil sem ser excessivamente estreito.
A relação do Novo Testamento com a lei é complexa. Inclui tanto a declaração de Jesus de que “de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor traço” (Mt 5.18) e a declaração de Paulo de que “fomos libertados da Lei, para que sirvamos conforme o novo modo do Espírito, e não segundo a velha forma da Lei escrita” (Rm 7.6). Essas não são duas declarações opostas, mas duas maneiras de dizer uma realidade comum — que a Torá continua a revelar o dom de justiça, sabedoria e transformação interior de Deus para aqueles que ele trouxe para uma nova vida em Cristo. Deus deu a Torá como expressão de sua natureza sagrada e como consequência de sua grande libertação. A leitura da Torá nos torna conscientes de nossa pecaminosidade inerente e de nossa necessidade de um remédio para vivermos em paz com Deus e uns com os outros. Deus espera que seu povo obedeça às suas instruções, aplicando-as a questões reais da vida, grandes e pequenas. A natureza específica de algumas leis não significa que Deus seja um perfeccionista irrealista. Essas leis nos ajudam a entender que nenhum problema que enfrentamos é pequeno ou insignificante demais para Deus. Mesmo assim, a Torá não se refere apenas ao comportamento exterior, pois aborda questões do coração, como a cobiça (Êx 20.17). Mais tarde, Jesus condenaria não apenas o assassinato e o adultério, mas também as raízes da ira e da luxúria (Mt 5.22,28).
No entanto, obedecer à Torá aplicando-a às questões reais da vida hoje não equivale a repetir as ações que Israel executou há milhares de anos. Já no Antigo Testamento vemos indícios de que algumas partes da lei não pretendiam ser permanentes. O tabernáculo certamente não era uma estrutura permanente e até o templo foi demolido pelas mãos dos inimigos de Israel (2Rs 25.9). No entanto, Jesus falou de sua própria morte e ressurreição sacrificial, quando disse que ergueria o “templo” destruído em três dias (Jo 2.19). Em um sentido importante, ele encarnava tudo o que o templo, seu sacerdócio e suas atividades representavam. A declaração de Jesus sobre a comida — que não é o que entra nas pessoas que as torna impuras — significava que as leis alimentares específicas da aliança mosaica não estavam mais em vigor (Mc 7.19). [1] Além disso, no Novo Testamento, o povo de Deus vive em vários países e culturas ao redor do mundo, onde não há autoridade legal para aplicar as sanções da Torá. Os apóstolos consideraram essas questões e, sob a orientação do Espírito Santo, decidiram que os detalhes da lei judaica não se aplicavam, em geral, aos cristãos gentios (At 15.28-29).
Quando perguntado sobre quais mandamentos eram mais importantes, a resposta de Jesus não foi controversa à luz da teologia de seu tempo. “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças” e “Ame o seu próximo como a si mesmo” (Mc 12.30-31). [2]
Muito no Novo Testamento confirma a Torá, não apenas em seus mandamentos negativos contra adultério, assassinato, roubo e cobiça, mas também em seu mandamento positivo de amar uns aos outros (Rm 13.8-10; Gl 5.14). De acordo com Timothy Keller: “A vinda de Cristo mudou a forma como adoramos, mas não a forma como vivemos”. [3] Isso não causa surpresa, visto que, na nova aliança, Deus disse que colocaria sua lei dentro de seu povo e a escreveria em seu coração (Jr 31.33; Lc 22.20). A fidelidade de Israel às leis da aliança mosaica dependia de sua determinação em obedecer a elas. No final, somente Jesus poderia fazer isso. Por outro lado, os crentes da nova aliança não agem dessa maneira. De acordo com Paulo, nós servimos “conforme o novo modo do Espírito” (Rm 7.6).
Para nossos propósitos ao considerar a teologia do trabalho, a explicação anterior sugere vários pontos que podem nos ajudar a entender e aplicar as leis de Êxodo relacionadas ao ambiente de trabalho. As leis específicas que se referem ao tratamento adequado de trabalhadores, animais e propriedades expressam valores permanentes da própria natureza de Deus. Elas devem ser levadas a sério, mas não de forma servil. Por um lado, os itens dos Dez Mandamentos são redigidos em termos gerais e podem ser aplicados livremente em contextos variados. Por outro lado, leis específicas sobre servos, gado e danos pessoais exemplificam aplicações no contexto histórico e social específico do antigo Israel, especialmente em áreas que eram controversas na época. Essas leis são ilustrativas do comportamento correto, mas não esgotam todas as aplicações possíveis. Como cristãos, honramos a Deus e sua lei não apenas regulando nosso comportamento, mas também permitindo que o Espírito Santo transforme nossas atitudes, motivações e desejos (Rm 12.1-2). Fazer qualquer coisa menos do que isso equivaleria a evitar a obra e a vontade de nosso Senhor e Salvador. Os cristãos devem sempre buscar como o amor pode guiar nossas políticas e comportamentos.
Instruções sobre o trabalho (Êxodo 20.1-17 e 21.1—23.9)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO “Livro da Aliança” de Israel (Êx 24.7) incluía os Dez Mandamentos, também conhecidos como Decálogo (literalmente, as “palavras”, Êx. 20.1-17), e as ordenanças de Êxodo 21.1—23.19 . Os Dez Mandamentos são redigidos como mandamentos gerais para fazer ou não fazer algo. As ordenanças são uma coleção de jurisprudências, que aplicam os valores do Decálogo a situações específicas, usando um formato “Se... então...”. Essas leis se encaixam no mundo social e econômico do antigo Israel. Elas não são um código legal exaustivo, mas funcionam como exemplos, servindo para coibir os piores excessos e estabelecendo precedentes legais para lidar com casos difíceis. [1]
Os Dez Mandamentos (Êxodo 20.1-17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs Dez Mandamentos são a expressão suprema da vontade de Deus no Antigo Testamento e merecem nossa atenção. Eles devem ser considerados não como os dez mandamentos mais importantes entre centenas de outros, mas como um resumo de toda a Torá. O fundamento de toda a Torá repousa nos Dez Mandamentos, e em algum lugar dentro deles devemos ser capazes de encontrar toda a lei. Jesus expressou a unidade essencial dos Dez Mandamentos com o restante da lei, quando resumiu a lei nas famosas palavras: “‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.37-40). Toda a lei, assim como os profetas, é indicada sempre que os Dez Mandamentos são expressos.
A unidade essencial dos Dez Mandamentos com o restante da lei e sua continuidade com o Novo Testamento nos convida a aplicá-los ao trabalho de hoje de maneira ampla, à luz do restante das Escrituras. Ou seja, ao aplicar os Dez Mandamentos, levaremos em consideração passagens das Escrituras relacionadas, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.
“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO primeiro mandamento nos lembra que tudo na Torá flui do amor que temos por Deus, o que, por sua vez, é uma resposta ao amor que ele tem por nós. Este amor foi demonstrado pela de Israel operada por Deus “da terra da escravidão” no Egito (Êx 20.2). Nada na vida deve nos preocupar mais do que nosso desejo de amar e ser amado por Deus. Se nós tivermos alguma outra preocupação mais forte em relação a nós do que nosso amor por Deus, não significa tanto que estarmos quebrando as regras de Deus, mas sim que não estamos realmente em um relacionamento com Deus. A outra preocupação — seja dinheiro, poder, segurança, reconhecimento, sexo ou qualquer outra coisa — tornou-se nosso deus. Esse deus terá seus próprios mandamentos em desacordo com os de Deus, e inevitavelmente violaremos a Torá se cumprirmos as exigências desse deus. A observância dos Dez Mandamentos só é concebível para aqueles que começam não tendo outro deus além de Deus.
No campo do trabalho, isso significa que não devemos permitir que o trabalho ou seus requisitos e frutos substituam Deus como nossa preocupação mais importante na vida. “Nunca permita que alguém ou alguma coisa ameace o lugar central de Deus em sua vida”, como diz David Gill. [1] Como muitas pessoas trabalham principalmente para ganhar dinheiro, um desejo excessivo por dinheiro provavelmente seja o perigo mais comum do trabalho em relação ao primeiro mandamento. Jesus advertiu exatamente sobre esse perigo. “Ninguém pode servir a dois senhores... Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6.24). Mas quase tudo relacionado ao trabalho pode se tornar distorcido em nossos desejos, a ponto de interferir em nosso amor por Deus. Quantas carreiras chegam a um fim trágico porque os meios para realizar coisas pelo amor de Deus — como poder político, sustentabilidade financeira, compromisso com o trabalho, status entre colegas ou desempenho superior — tornam-se um fim em si mesmos? Quando, por exemplo, o reconhecimento no trabalho se torna mais importante do que o caráter no trabalho, não é um sinal de que a reputação está substituindo o amor de Deus como a preocupação principal?
Uma maneira prática de avaliação é perguntar se nosso amor a Deus é demonstrado pela maneira como tratamos as pessoas no trabalho. “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão’ (1Jo 4.20-21). Se colocarmos nossas preocupações individuais à frente de nossas preocupações com as pessoas com quem, para quem e entre quem trabalhamos, tornamos nossas preocupações individuais nosso deus. Em particular, se tratarmos as outras pessoas como coisas a serem manipuladas, obstáculos a serem superados, instrumentos para obter o que queremos ou simplesmente objetos neutros em nosso campo de visão, demonstraremos que não amamos a Deus de todo o nosso coração, alma e mente.
Nesse contexto, podemos começar a listar algumas ações relacionadas ao trabalho que têm alto potencial de interferir em nosso amor por Deus. Fazer um trabalho que viola nossa consciência. Trabalhar em uma organização em que temos de prejudicar os outros para ter sucesso. Trabalhar tantas horas que temos pouco tempo para orar, adorar, descansar e aprofundar nosso relacionamento com Deus. Trabalhar entre pessoas que nos desmoralizam ou nos seduzem para longe de nosso amor por Deus. Trabalhar onde o álcool, o abuso de drogas, a violência, o assédio sexual, a corrupção, o desrespeito, o racismo ou outros tratamentos desumanos arruínam a imagem de Deus em nós e nas pessoas que encontramos em nosso trabalho. Se pudermos encontrar maneiras de evitar esses perigos no trabalho — mesmo que isso signifique encontrar um novo emprego — seria sábio fazê-lo. Se isso não for possível, podemos pelo menos estar cientes de que precisamos de ajuda e apoio para manter nosso amor a Deus diante de nosso trabalho.
“Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO segundo mandamento levanta a questão da idolatria. Ídolos são deuses que nós mesmos criamos, deuses que nada têm em si próprios a não ser o que nós mesmos criamos, deuses sobre os quais pensamos ter controle. Nos tempos antigos, a idolatria muitas vezes assumia a forma de adoração a objetos físicos. Mas a questão é realmente de confiança e devoção. Em última análise, em que depositamos nossa esperança de bem-estar e sucesso? Qualquer coisa que não seja capaz de cumprir nossa esperança — ou seja, qualquer coisa que não seja Deus — é um ídolo, seja ou não um objeto físico. A história de uma família que forja um ídolo com a intenção de manipular Deus, bem como as desastrosas consequências pessoais, sociais e econômicas que se seguem, são memoravelmente contadas em Juízes 17—21.
No mundo do trabalho, é comum falar em dinheiro, fama e poder como ídolos em potencial, e com razão. Eles não são ídolos em si e, de fato, podem ser necessários para cumprirmos nossos papéis na obra criadora e redentora de Deus no mundo. No entanto, começamos a cair na idolatria quando imaginamos que temos total controle sobre eles, ou que, ao alcançá-los, nossa segurança e prosperidade serão garantidas. O mesmo pode ocorrer com praticamente todos os outros elementos do sucesso, incluindo preparação, trabalho árduo, criatividade, risco, riqueza e outros recursos e circunstâncias favoráveis. Como trabalhadores, temos de reconhecer o quanto isso é importante. Como povo de Deus, devemos reconhecer quando começamos a idolatrá-los. Pela graça de Deus, podemos vencer a tentação de adorar essas coisas no lugar de Deus. O desenvolvimento de sabedoria e habilidade genuinamente piedosas para qualquer tarefa é “para que você confie no Senhor” (Pv 22.19; grifo do autor).
O elemento distintivo da idolatria é a natureza humana do ídolo. No trabalho, surge o perigo de idolatria quando confundimos nosso poder, nosso conhecimento e nossas opiniões com a realidade. Quando paramos de nos responsabilizar pelos padrões que estabelecemos para os outros, deixamos de ouvir as ideias dos outros ou procuramos esmagar aqueles que discordam de nós, não estamos começando a nos tornar ídolos?
“Não tomarás em vão o nome do SENHOR, o teu Deus” (Êxodo 20.7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO terceiro mandamento literalmente proíbe o povo de Deus de tomar “em vão” o nome de Deus. Isso não precisa se restringir ao nome “YHWH” (Êx 3.15), mas inclui “Deus”, “Jesus”, “Cristo” e assim por diante. Mas o que significa tomar em vão? Isso inclui, é claro, o uso desrespeitoso para xingar, caluniar e blasfemar. Mas, mais significativamente, inclui atribuir falsamente desígnios humanos a Deus. Isso nos proíbe de reivindicar a autoridade de Deus para nossas próprias ações e decisões. Lamentavelmente, alguns cristãos parecem acreditar que seguir a Deus no trabalho consiste principalmente em falar por Deus com base em seu entendimento individual, em vez de trabalhar respeitosamente com os outros ou assumir a responsabilidade por suas ações. “A vontade de Deus é que…” ou “Deus está punindo você por…” são coisas muito perigosas de se dizer e quase nunca válidas quando ditas por um indivíduo sem o discernimento da comunidade de fé (1Ts 5.20-21). À luz disso, talvez a tradicional reticência dos judeus em proferir até mesmo o termo traduzido por “Deus” — sem falar do próprio nome divino — demonstre uma sabedoria que os cristãos muitas vezes carecem. Se fôssemos um pouco mais cuidadosos ao usar a palavra “Deus”, talvez fôssemos mais criteriosos ao afirmar que conhecemos a vontade de Deus, especialmente no que se refere a outras pessoas.
O terceiro mandamento também nos lembra que respeitar os nomes humanos é importante para Deus. O Bom Pastor “chama as ovelhas pelo nome” (Jo 10.3), enquanto nos adverte que, se você chamar outra pessoa de louco (ou “tolo”, NAA), então “corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.22). Tendo isso em mente, não devemos fazer uso indevido do nome de outras pessoas ou chamá-las por apelidos desrespeitosos. Usamos o nome das pessoas de forma errada quando o fazemos para amaldiçoar, humilhar, oprimir, excluir e fraudar. Usamos bem o nome das pessoas quando o fazemos para encorajar, agradecer, demonstrar solidariedade e acolher. Simplesmente aprender e dizer o nome de alguém é uma bênção, especialmente se essa pessoa é frequentemente tratada como alguém sem nome, invisível ou insignificante. Você sabe o nome da pessoa que esvazia sua lixeira, atende sua ligação telefônica ou dirige seu ônibus? Se esses exemplos não dizem respeito ao próprio nome do Senhor, eles dizem respeito ao nome daqueles que foram feitos à sua imagem.
“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias” (Êxodo 20.8-11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA questão do sábado é complexa, não apenas no livro de Êxodo e no Antigo Testamento, mas também na teologia e na prática cristãs. A primeira parte do mandamento exige que se pare de trabalhar um dia a cada sete. As outras referências em Êxodo ao sábado estão em Êxodo 16 (sobre colher maná), Êxodo 23.10-12 (o sétimo ano e a meta de descanso semanal), Êxodo 31.12-17 (pena por violação), Êxodo 34.21 e Êxodo 35.1-3. No contexto do mundo antigo, o sábado era exclusivo de Israel. Por um lado, esse foi um presente incomparável para o povo de Israel. Nenhum outro povo antigo teve o privilégio de descansar um dia em cada sete. Por outro lado, exigia uma confiança extraordinária na provisão de Deus. Seis dias de trabalho tinham de ser suficientes para plantar, colher, carregar água, fiar e tirar o sustento da criação. Enquanto Israel descansava um dia por semana, as nações ao redor continuaram a forjar espadas, preparar flechas e treinar soldados. Israel tinha de confiar em Deus para não deixar que um dia de descanso levasse a uma catástrofe econômica e militar.
Enfrentamos a mesma questão de confiança na provisão de Deus hoje. Se obedecermos ao mandamento de Deus de observar o próprio ciclo de trabalho e descanso de Deus, seremos capazes de competir na economia moderna? São necessários sete dias de trabalho para ter um emprego (ou dois ou três empregos), limpar a casa, preparar as refeições, cortar a grama, lavar o carro, pagar as contas, terminar os trabalhos da escola e comprar roupas? Ou podemos confiar em Deus para nos sustentar, mesmo que tiremos um dia de folga durante o curso de cada semana? Podemos reservar um tempo para adorar a Deus, orar e nos reunir com outras pessoas para estudo e encorajamento e, se o fizermos, isso nos tornará mais ou menos produtivos em geral? O quarto mandamento não explica como Deus fará com que tudo dê certo para nós. Ela simplesmente nos diz para descansar um dia a cada sete.
Os cristãos traduziram o dia de descanso como o Dia do Senhor (domingo, o dia da ressurreição de Cristo), mas a essência do sábado não é escolher um dia específico da semana em detrimento de outro (Rm 14.5-6). A polaridade que realmente está na base do sábado é trabalhar e descansar. Tanto o trabalho quanto o descanso estão incluídos no quarto mandamento. Os seis dias de trabalho fazem parte do mandamento tanto quanto o dia de descanso. Embora muitos cristãos corram o risco de permitir que o trabalho esmague o tempo reservado para o descanso, outros correm o risco de evitar o trabalho e tentar levar uma vida de lazer e dissolução. Isso é ainda pior do que negligenciar o sábado, pois “se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1Tm 5.8). O que precisamos é de um ritmo adequado de trabalho e descanso, que, juntos, sejam bons para nós, nossa família, nossos funcionários e nossos hóspedes. O ritmo pode ou não incluir vinte e quatro horas contínuas de descanso, caindo no domingo (ou sábado). As proporções podem mudar devido a necessidades temporárias (o equivalente moderno de tirar um boi do poço no sábado, veja Lc 14.5) ou a necessidades mutáveis das fases da vida.
Se o excesso de trabalho é o nosso principal perigo, precisamos encontrar uma maneira de honrar o quarto mandamento sem instituir um novo e falso legalismo que oponha o espiritual (adoração no domingo) contra o secular (trabalho de segunda a sábado). Se evitar o trabalho é o nosso perigo, precisamos aprender a encontrar alegria e significado em trabalhar como um serviço a Deus e ao próximo (Ef 4.28).
“Honra teu pai e tua mãe” (Êxodo 20.12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceHá muitas maneiras de honrar — ou desonrar — seu pai e sua mãe. Nos dias de Jesus, os fariseus queriam restringir isso a falar bem deles. Mas Jesus salientou que obedecer a esse mandamento inclui trabalhar para sustentar seus pais (Mc 7.9-13). Honramos as pessoas trabalhando para o bem delas.
Para muitas pessoas, um bom relacionamento com os pais é uma das alegrias da vida. Servir com amor a eles é um deleite, e obedecer a esse mandamento é fácil. Mas somos postos à prova por esse mandamento quando achamos difícil trabalhar em favor de nossos pais. Podemos ter sido maltratados ou negligenciados por eles. Eles podem ser controladores e intrometidos. Estar perto deles pode minar nosso senso de identidade, nosso compromisso com nosso cônjuge (incluindo nossas responsabilidades sob o terceiro mandamento) e até mesmo nosso relacionamento com Deus. Mesmo que tenhamos um bom relacionamento com nossos pais, pode chegar um momento em que cuidar deles seja um grande fardo, simplesmente por causa do tempo e do trabalho que isso exige. Se o envelhecimento ou a demência começarem a roubar sua memória, suas capacidades e sua boa índole, cuidar deles pode se tornar uma profunda tristeza.
No entanto, o quinto mandamento vem com uma promessa: “a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Êx 20.12). De alguma forma, honrar nosso pai e nossa mãe de maneira prática tem o benefício prático de nos dar uma vida mais longa (talvez no sentido de mais realização) no Reino de Deus. Não nos é dito como isso ocorrerá, mas somos instruídos a esperar por isso e, para tanto, devemos confiar em Deus (veja o primeiro mandamento).
Como essa é uma ordem para trabalhar em benefício dos pais, é inerentemente uma ordem do ambiente de trabalho. O ambiente de trabalho pode ser onde ganhamos recursos para sustentá-los ou pode ser onde os ajudamos nas tarefas da vida cotidiana. Ambos são trabalho. Quando aceitamos um emprego porque ele nos permite viver perto deles, enviamos dinheiro para eles, fazemos uso dos valores e dons que eles desenvolveram em nós ou ainda fazemos coisas que eles nos ensinaram como sendo importantes, então estamos honrando-os. Quando nós limitamos nossas carreiras para que possamos estar presentes com eles, limpar e cozinhar para eles, dar-lhes banho e abraçá-los, levá-los aos lugares de que gostam ou diminuir seus medos, estamos honrando-os.
Também devemos reconhecer que, em muitas culturas, o trabalho que as pessoas fazem é ditado pelas escolhas de seus pais e pelas necessidades de suas famílias, e não por suas próprias decisões e preferências. Às vezes, isso dá origem a sérios conflitos para os cristãos, que encontram as exigências do primeiro mandamento (seguir o chamado de Deus) e do quinto mandamento competindo entre si. Eles se veem forçados a fazer escolhas difíceis que os pais não entendem. Mesmo Jesus experimentou esse mal-entendido com os pais quando Maria e José não conseguiram entender por que ele permaneceu no templo enquanto sua família partia de Jerusalém (Lc 2.49).
Em nosso ambiente de trabalho, podemos ajudar outras pessoas a cumprir o quinto mandamento, assim como nós mesmos obedecemos. Podemos lembrar que funcionários, clientes, colegas de trabalho, chefes, fornecedores e outros também têm família e, então, podemos ajustar nossas expectativas para apoiá-los a honrar suas famílias. Quando outras pessoas compartilham ou reclamam sobre suas dificuldades com os pais, podemos ouvi-las com compaixão, apoiá-las de forma prática (por exemplo, oferecendo-se para fazer um turno no trabalho para que elas possam estar com os pais), talvez oferecer uma perspectiva piedosa para que considerem, ou simplesmente refletir a graça de Cristo para aqueles que sentem estar falhando em seus relacionamentos entre pais e filhos.
“Não matarás” (Êxodo 20.13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceInfelizmente, o sexto mandamento tem uma aplicação muito prática no ambiente de trabalho moderno, onde 10% de todas as mortes relacionadas ao trabalho (nos Estados Unidos) são homicídios. [1] No entanto, admoestar os leitores deste artigo para que “não mate ninguém no trabalho”, provavelmente não mudará muito essa estatística.
Mas o assassinato não é a única forma de violência no ambiente de trabalho, apenas a mais extrema. Jesus disse que até mesmo a ira é uma violação do sexto mandamento (Mt 5.21-22). Como Paulo observou, podemos não ser capazes de evitar o sentimento de raiva, mas podemos aprender a lidar com ele. “Quando vocês ficarem irados, não pequem. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha” (Ef 4.26). A implicação mais significativa do sexto mandamento para o trabalho, então, pode ser: “Se você ficar com raiva no trabalho, procure ajuda para controlar a raiva”. Muitos empregadores, igrejas, entidades governamentais e organizações sem fins lucrativos oferecem aulas e aconselhamento sobre controle da raiva, e aproveitá-las pode ser uma maneira altamente eficaz de obedecer ao sexto mandamento.
Assassinato é homicídio intencional, mas a jurisprudência que decorre do sexto mandamento mostra que também temos o dever de evitar mortes não intencionais. Um caso que serve de ilustração é quando um boi (um animal de trabalho) chifra um homem ou uma mulher até a morte (Êx 21.28-29). Se o evento era previsível, o dono do boi deve ser tratado como um assassino. Em outras palavras, os proprietários/gerentes são responsáveis por garantir a segurança no ambiente de trabalho dentro do razoável. Esse princípio está bem estabelecido na lei na maioria dos países, e a segurança no ambiente de trabalho é objeto de atenção significativa do governo, da autorregulamentação do setor e de políticas e práticas organizacionais. No entanto, ambientes de trabalho de todos os tipos continuam a exigir ou permitir que as pessoas trabalhem em condições desnecessariamente inseguras. Os cristãos que de alguma maneira ajudam a estabelecer as condições de trabalho, supervisionar os trabalhadores ou modelar as práticas no ambiente de trabalho são lembrados pelo sexto mandamento de que condições seguras de trabalho estão entre suas maiores responsabilidades no mundo do trabalho.
“Não adulterarás” (Êxodo 20.14)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO ambiente de trabalho é um dos ambientes mais comuns de adultério, não necessariamente porque o adultério ocorre no próprio ambiente de trabalho, mas porque surge das condições de trabalho e do relacionamento com colegas de trabalho. A primeira aplicação ao ambiente de trabalho, então, é literal. As pessoas casadas não devem fazer sexo com pessoas que não sejam seus cônjuges, no trabalho ou por causa de seu trabalho. Obviamente, isso exclui profissões ligadas ao sexo, como prostituição, pornografia e barriga de aluguel, pelo menos na maioria dos casos, na medida em que os trabalhadores tenham escolha. Mas qualquer tipo de trabalho que corroa os laços do casamento infringe o sétimo mandamento. Existem muitas maneiras pelas quais isso pode ocorrer. Um trabalho que incentiva fortes laços afetivos entre colegas de trabalho, sem apoiar adequadamente seus compromissos com os cônjuges, como pode acontecer em hospitais, empreendimentos, instituições acadêmicas e igrejas, entre outros lugares. Condições de trabalho que colocam as pessoas em contato físico próximo por períodos prolongados ou que não incentivam limites razoáveis para encontros fora do expediente, como pode acontecer em tarefas de campo prolongadas. O trabalho pode sujeitar as pessoas a assédio sexual e a pressão para fazer sexo com aqueles que detêm poder sobre elas. O trabalho pode inflar o ego das pessoas ou expô-las à bajulação, como pode ocorrer com celebridades, atletas famosos, gurus dos negócios, altos funcionários do governo e os super-ricos. O trabalho pode exigir tanto tempo longe — física, mental ou emocionalmente — que desgasta os laços entre os cônjuges. Tudo isso pode representar perigos que os cristãos fariam bem em reconhecer e evitar, melhorar ou resguardar-se. No entanto, a seriedade do sétimo mandamento surge não tanto porque o adultério é sexo ilícito, mas porque quebra uma aliança ordenada por Deus. Deus criou marido e mulher para se tornarem “uma só carne” (Gn 2.24), e o comentário de Jesus sobre o sétimo mandamento destaca o papel de Deus na aliança matrimonial. “O que Deus uniu, ninguém separe” (Mt 19.6). Cometer adultério, portanto, não é apenas fazer sexo com alguém que você não deveria, mas também quebrar uma aliança com o Senhor Deus. De fato, o Antigo Testamento frequentemente usa a palavra adultério e as imagens que o cercam para se referir não ao pecado sexual, mas à idolatria. Os profetas frequentemente se referem à infidelidade de Israel à sua aliança de adorar somente a Deus como “adultério” ou “prostituição”, como se vê em Isaías 57.3, Jeremias 3.8, Ezequiel 16.38 e Oseias 2.2, entre muitos outros. Portanto, qualquer quebra de fé com o Deus de Israel é figurativamente adultério, quer envolva sexo ilícito ou não. Esse uso do termo “adultério” une o primeiro, o segundo e o sétimo mandamentos e nos lembra que os Dez Mandamentos são expressões de uma única aliança com Deus, e não algum tipo de lista das dez principais regras.
Portanto, o trabalho que exige ou nos leva à idolatria ou à adoração de outros deuses deve ser evitado. É difícil imaginar como um cristão poderia trabalhar como tarólogo, criador de arte ou música idólatra ou editor de livros blasfemos. Atores cristãos podem achar difícil desempenhar papéis profanos, irreligiosos ou espiritualmente desmoralizantes. Tudo o que fazemos na vida, incluindo o trabalho, tende, em algum grau, a melhorar ou diminuir nosso relacionamento com Deus. Ao longo da vida, o estresse constante do trabalho, que nos diminui espiritualmente, pode ser devastador. É um fator que faríamos bem em incluir em nossas decisões de carreira, na medida em que tivermos escolhas.
O aspecto distintivo das alianças violadas pelo adultério é que elas são alianças com Deus. Mas toda promessa ou acordo feito por um cristão não é implicitamente uma aliança com Deus? Paulo nos exorta: “Tudo o que fizerem, seja em palavra ou em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus” (Cl 3.17). Contratos, promessas e acordos são certamente coisas que fazemos em palavras ou atos, ou ambos. Se fizermos todas elas em nome do Senhor Jesus, isso não significa que algumas promessas devam ser honradas porque são alianças com Deus, enquanto outras podem ser quebradas porque são apenas humanas. Devemos honrar todos os nossos acordos e evitar induzir outras pessoas a quebrá-los. Se isso está contido em Êxodo 20.14 em si mesmo ou se está exposto nos ensinamentos do Antigo e do Novo Testamento que dela derivam, a afirmação “Guarde as suas promessas e ajude os outros a cumprir as deles” pode servir como uma excelente derivação do sétimo mandamento no mundo do trabalho.
“Não furtarás” (Êxodo 20.15)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO oitavo mandamento é outro que tem o trabalho como seu assunto principal. Roubar é uma violação do trabalho adequado, porque priva a vítima dos frutos de seu trabalho. Também é uma violação do mandamento de trabalhar seis dias por semana, já que, na maioria dos casos, o roubo é um atalho para o trabalho honesto, o que mostra novamente a inter-relação dos Dez Mandamentos. Portanto, podemos tomar como palavra de Deus que não devemos roubar daqueles para quem, com quem ou entre quem trabalhamos.
O furto ocorre de muitas formas, além do roubo propriamente dito. Sempre que nos apossamos de algo de valor sem consentimento de seu legítimo dono, estamos cometendo um roubo. Apropriar-se indevidamente de recursos ou fundos para uso pessoal é roubar. Usar o engano para fazer vendas, ganhar participação no mercado ou aumentar os preços é roubar, porque o engano significa que o que o comprador consente não é a situação real. (Veja a seção sobre “Exagero” em Verdade e Engano em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.) Da mesma forma, lucrar tirando vantagem do medo, vulnerabilidade, impotência ou desespero das pessoas é uma forma de roubo, porque seu consentimento não é verdadeiramente voluntário. Violar patentes, direitos autorais e outras leis de propriedade intelectual é roubar porque priva os proprietários da capacidade de lucrar com sua criação, nos termos da lei civil.
Lamentavelmente, muitos trabalhos parecem incluir um elemento de aproveitar-se da ignorância dos outros ou da falta de alternativas para forçá-los a fazer transações com as quais, de outra forma, não concordariam. Empresas, governos, indivíduos, sindicatos e outros podem usar seu poder para coagir outras pessoas a pagar salários, preços, termos financeiros, condições de trabalho, horários ou outros fatores injustos. Podemos até não estar roubando bancos, roubando de nossos empregadores ou furtando lojas, mas muito provavelmente podemos estar participando de práticas injustas ou antiéticas que privam outras pessoas de certos direitos que deveriam ser delas. Resistir a essas práticas pode ser difícil e até mesmo trazer consequências para nossa carreira, mas, mesmo assim, somos chamados a agir assim.
“Não darás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20.16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO nono mandamento honra o direito à própria reputação. [1] Ele encontra aplicação direta em processos judiciais em que o que as pessoas dizem retrata a realidade e determina o curso da vida. Decisões judiciais e outros processos legais exercem grande poder. Manipulá-los mina o tecido ético da sociedade e, portanto, constitui uma ofensa muito grave. Walter Brueggemann diz que esse mandamento reconhece “que a vida em comunidade não é possível, a menos que haja uma arena na qual haja confiança pública de que a realidade social será descrita e relatada de forma confiável”. [2]
Embora afirmado na linguagem do tribunal, o nono mandamento também se aplica a uma ampla gama de situações que afetam praticamente todos os aspectos da vida. Nunca devemos dizer ou fazer algo que desvirtue outra pessoa. Brueggemann novamente fornece uma visão:
Os políticos procuram destruir uns aos outros em campanhas negativas; colunistas de fofocas se alimentam de calúnias; e nas salas de estar cristãs, reputações são manchadas ou destruídas enquanto o café é servido em porcelana fina com a sobremesa. Esses tribunais informais são conduzidos sem o devido processo legal. Acusações são feitas; boatos são permitidos; difamações, perjúrios e comentários caluniosos são proferidos sem objeção. Sem provas, sem defesa. Como cristãos, devemos nos recusar a participar ou a tolerar qualquer conversa em que uma pessoa esteja sendo difamada ou acusada sem que a pessoa esteja presente para se defender. É errado transmitir boatos de qualquer forma, mesmo como pedidos de oração ou preocupações pastorais. Mais do que simplesmente não participar, cabe aos cristãos impedir os rumores e aqueles que os espalham. [3]
Isso sugere ainda que a fofoca no ambiente de trabalho é uma ofensa grave. Parte disso diz respeito a assuntos pessoais e externos, o que é bastante maligno. E quanto aos casos em que um funcionário mancha a reputação de um colega de trabalho? A verdade pode realmente ser dita quando aqueles de quem se fala não estão lá para falar por si mesmos? E as avaliações de desempenho? Que medidas devem ser adotadas para garantir que os relatórios sejam justos e precisos? Em larga escala, o negócio de marketing e propaganda opera no espaço público entre organizações e indivíduos. No interesse de apresentar os próprios produtos e serviços da melhor maneira possível, até que ponto se pode apontar as falhas e fraquezas da concorrência, sem incorporar sua perspectiva? É possível que os direitos do seu “próximo” incluam os direitos de outras empresas? O escopo de nossa economia global sugere que esse mandamento pode ter uma aplicação muito ampla. Em um mundo em que a percepção muitas vezes conta para a realidade, a retórica da persuasão eficaz pode ou não ter muito a ver com a verdade genuína. A origem divina desse mandamento nos lembra de que as pessoas podem não ser capazes de detectar quando nossa representação dos outros é precisa ou não, mas Deus não pode ser enganado. É bom fazer a coisa certa quando ninguém está olhando. Com este mandamento, entendemos que devemos dizer a coisa certa quando qualquer um está ouvindo.
(Veja Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org para uma discussão muito mais completa desse tópico, incluindo se a proibição de “falso testemunho contra o próximo” inclui todas as formas de mentira e engano.)
“Não cobiçarás a casa do teu próximo [...] nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20.17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA inveja e a ganância podem surgir em qualquer lugar da vida, inclusive no trabalho, onde status, salário e poder são fatores rotineiros em nossos relacionamentos com as pessoas com quem passamos muito tempo. Podemos ter muitos bons motivos para desejar realizações, promoções ou recompensas no trabalho. Mas a inveja não é um deles, assim como não um bom motivo é trabalhar obsessivamente por inveja da posição social que isso pode possibilitar.
Em particular, enfrentamos no trabalho a tentação de inflar falsamente nossas realizações às custas dos outros. O antídoto é simples, embora às vezes difícil de fazer. Torne uma prática consistente reconhecer as realizações dos outros e dar a eles todo o crédito que merecem. Se pudermos aprender a nos alegrar com — ou pelo menos reconhecer — os sucessos dos outros, cortaremos a força vital da inveja e da cobiça em ação. Melhor ainda, se pudermos aprender a trabalhar para que nosso sucesso ande de mãos dadas com o sucesso dos outros, a cobiça será substituída pela colaboração e a inveja, pela unidade.
Leith Anderson, ex-pastor da Wooddale Church, em Eden Prairie, Minnesota, diz: “Como pastor titular, é como se eu tivesse um suprimento ilimitado de moedas no bolso. Sempre que dou crédito a um membro da equipe por uma boa ideia, elogio o trabalho de um voluntário ou agradeço a alguém, é como se estivesse enfiando uma moeda do meu bolso no dele. Esse é o meu trabalho como líder, passar moedas do meu bolso para o bolso dos outros, para aumentar o apreço que outras pessoas têm por elas.” [1]
Veja “De uma atitude de descontentamento ao contentamento”, em Visão geral de provisão e riqueza em www.teologiadotrabalho.org.
Jurisprudências no livro da aliança (Êxodo 21.1—23.33)
Voltar ao índice Voltar ao índiceSegue-se uma coleção de jurisprudências, decorrentes dos Dez Mandamentos. Em vez de desenvolver princípios detalhados, o texto dá exemplos de como aplicar a lei de Deus aos tipos de casos que comumente surgem na conduta da vida diária. Como casos, todos estão inseridos nas situações enfrentadas pelo povo de Israel. De fato, em todo o Pentateuco (a Torá), pode ser difícil separar o que são as leis específicas e o que é a narrativa e a exortação ao redor. Quatro seções da jurisprudência são particularmente aplicáveis ao trabalho hoje.
Escravidão ou contrato de servidão (Êxodo 21.1-11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEmbora Deus tenha libertado os hebreus da escravidão no Egito, a escravidão não é universalmente proibida na Bíblia. A escravidão era permitida em certas situações, desde que os escravos fossem considerados membros plenos da comunidade (Gn 17.12), recebessem os mesmos períodos de descanso e feriados que os não escravos (Êx 23.12; Dt 5.14-15; 12.12) e fossem tratados com humanidade (Êx 21.7,26-27). Mais importante ainda, a escravidão entre os hebreus não pretendia ser uma condição permanente, mas um refúgio voluntário e temporário para pessoas que sofriam o que, de outra forma, seria uma pobreza desesperada. “Se você comprar um escravo hebreu, ele o servirá por seis anos. Mas no sétimo ano será liberto, sem precisar pagar nada” (Êx 21.2). A crueldade por parte do proprietário resultava em liberdade imediata para o escravo (Êx 21.26-27). Isso tornava a escravidão hebraica masculina mais como um tipo de contrato de trabalho de longo prazo entre indivíduos do que o tipo de exploração permanente que caracterizou a escravidão nos tempos modernos.
A escravidão feminina hebraica era, em certo sentido, ainda mais protetora. O principal propósito contemplado para a compra de uma escrava era que ela pudesse se tornar esposa do comprador ou do filho do comprador (Êx 21.8-9). Como esposa, ela se tornava socialmente igual ao proprietário de escravos, e a compra funcionava muito como a doação de um dote. De fato, ela é até chamada de “esposa” pela lei (Êx 21.10). Além disso, se o comprador deixasse de tratar a escrava com todos os direitos devidos a uma esposa comum, ele era obrigado a libertá-la. “Ela poderá ir embora sem precisar pagar nada” (Êx 21.11). No entanto, em outro sentido, as mulheres tinham muito menos proteção do que os homens. Potencialmente, toda mulher solteira enfrentava a possibilidade de ser vendida para um casamento contra sua vontade. Embora isso a tornasse uma “esposa” em vez de uma “escrava”, será que o casamento forçado era menos questionável do que o trabalho forçado?
Além disso, uma brecha óbvia é que uma menina ou mulher poderia ser comprada como esposa para um escravo, e não para o proprietário do escravo ou o filho. Como resultado, ela seria escrava permanente do proprietário (Êx 21.4), mesmo quando o período de escravidão do marido terminasse. A mulher se tornava escrava permanente de um proprietário que não se tornou seu marido e que não se via obrigado a dar nenhuma das proteções devidas a uma esposa.
A proteção contra a escravidão permanente também não se aplicava a estrangeiros (Lv 25.44-46). Os homens capturados na guerra eram considerados espólio e se tornavam propriedade perpétua de seus donos. Mulheres e meninas capturadas na guerra — que aparentemente eram a grande maioria dos cativos (Nm 31.9-11,32-35; Dt 20.11-14) — enfrentavam a mesma situação que as escravas de origem hebraica (Dt 21.10-14), incluindo a escravidão permanente. Os escravos também podiam ser comprados de nações vizinhas (Ec 2.7), e nada os protegia contra a escravidão perpétua. As outras proteções concedidas aos escravos hebreus se aplicavam aos estrangeiros, mas isso deve ter sido um pequeno consolo para aqueles que enfrentaram uma vida inteira de trabalhos forçados.
Em contraste com a escravidão como se deu nos Estados Unidos, que geralmente proibia o casamento entre escravos, os regulamentos em Êxodo visam preservar as famílias intactas. “Se chegou solteiro, solteiro receberá liberdade; mas se chegou casado, sua mulher irá com ele” (Êx 21.3). No entanto, muitas vezes, como vimos, o resultado real dos regulamentos foi o casamento forçado.
Independentemente de quaisquer proteções oferecidas pela lei, a escravidão não era de forma alguma um modo de vida agradável. Os escravos eram uma propriedade, independentemente da duração de sua escravização. Quaisquer que fossem as regulamentações, na prática provavelmente havia pouca proteção contra maus-tratos, e abusos ocorriam. Como em grande parte da Bíblia, a palavra de Deus em Êxodo não aboliu a ordem social e econômica existente, mas instruiu o povo de Deus a viver com justiça e compaixão em suas circunstâncias atuais. Aos nossos olhos, os resultados parecem — e devem parecer — muito inquietantes.
De qualquer forma, antes de nos tornarmos presunçosos demais, devemos dar uma olhada nas condições de trabalho que prevalecem hoje entre as pessoas pobres em todos os cantos do mundo, incluindo os países desenvolvidos. Labor incessante para aqueles que trabalham em dois ou três empregos para sustentar as famílias, abuso e exercício arbitrário de poder por aqueles que estão no poder e apropriação indevida dos frutos do trabalho por operadores de negócios ilícitos, funcionários corruptos e chefes com conexões políticas. Milhões de pessoas trabalham hoje sem os regulamentos fornecidos pela Lei de Moisés. Se era a vontade de Deus proteger Israel da exploração, mesmo na escravidão, o que Deus espera que os seguidores de Cristo façam por aqueles que sofrem a mesma opressão, ou pior, hoje?
Restituição comercial e Lei do Talião (Êxodo 21.18—22.15)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAs leis casuísticas estabeleciam penalidades para infrações, incluindo muitas relacionadas diretamente ao comércio, especialmente no caso de responsabilidade por perdas ou danos. A chamada Lei do Talião, que também aparece em Levítico 24.17-21 e Deuteronômio 19.16-21, é central para o conceito de retribuição. [1] Literalmente, a lei diz para pagar “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida e contusão por contusão” (Êx 21.23-25). A lista é notavelmente específica. Quando os juízes de Israel faziam seu trabalho, devemos realmente acreditar que eles aplicavam punições dessa maneira? Será que um queixoso que foi queimado devido à negligência de alguém realmente ficaria satisfeito em ver o ofensor literalmente queimado no mesmo grau? Curiosamente, nesta mesma parte do Êxodo, não vemos a Lei do Talião sendo aplicada dessa maneira. Em vez disso, um homem que fere gravemente outro em uma briga deve pagar pelo tempo perdido da vítima e cobrir suas despesas médicas (Êx 21.18-19). O texto não diz que ele deve ficar parado para receber uma surra pública e comparável de sua ex-vítima. Parece que a Lei do Talião não determinou a penalidade padrão para crimes graves, mas estabeleceu um teto máximo para danos que poderiam ser reivindicados. Gordon Wenham observa: “Nos tempos do Antigo Testamento, não havia polícia ou ministério público, de modo que todo processo e punição tinham de ser realizados pela parte ofendida e sua família. Assim, seria bem possível que as partes lesadas não insistissem em seus plenos direitos sob a Lei do Talião, mas negociasse um acordo mais baixo ou até perdoasse o ofensor por completo”. [2] Essa lei pode ser percebida por alguns hoje como selvagem, mas Alec Motyer observou: “Quando a lei inglesa enforcava uma pessoa por roubar uma ovelha, não era porque o princípio de ‘olho por olho’ estava sendo praticado, mas porque tinha sido esquecido.” [3]
Essa questão de interpretar a Lei do Talião ilustra que pode haver uma diferença entre fazer o que a Bíblia diz literalmente e aplicar o que a Bíblia instrui. Obter uma solução bíblica para nossos problemas nem sempre será uma questão simples. Os cristãos devem usar maturidade e discernimento, especialmente à luz do ensinamento de Jesus, para renunciar à Lei do Talião e não resistir a um malfeitor (Mt 5.38-42). Ele estava falando de uma ética pessoal ou esperava que seus seguidores aplicassem esse princípio nos negócios? Funciona melhor para pequenas ofensas do que para grandes? Aqueles que fazem o mal criam vítimas que devemos defender e proteger (Pv 31.9).
As instruções específicas sobre restituição e penalidades para roubo atingiam dois objetivos. Primeiro, eles responsabilizavam o ladrão por devolver o roubo ao proprietário original ou por compensá-lo totalmente por sua perda. Em segundo lugar, eles puniam e educavam o ladrão, fazendo com que ele experimentasse toda a dor que havia causado à vítima. Esses objetivos podem formar uma base cristã para o trabalho do direito civil e criminal hoje. O trabalho judiciário atual opera de acordo com estatutos e diretrizes específicas estabelecidas pelo Estado. Mas, mesmo assim, os juízes têm certa liberdade para estabelecer sentenças e penalidades. Para disputas que são resolvidas fora dos tribunais, os advogados negociam para ajudar seus clientes a chegarem a um acordo conclusivo. Em tempos recentes, surgiu uma perspectiva chamada “justiça restaurativa”, com ênfase na punição que restaura a condição original da vítima e, na medida do possível, restaura o agressor como um membro produtivo da sociedade. Uma descrição e avaliação completas de tais abordagens estão além do nosso escopo aqui, mas queremos observar que as Escrituras têm muito a oferecer aos sistemas contemporâneos de justiça a esse respeito.
Nos negócios, os líderes às vezes precisam mediar entre funcionários que têm sérios problemas relacionados ao trabalho entre si. Decidir o que é certo e justo afeta não apenas os envolvidos na disputa, mas também pode afetar toda a atmosfera da organização e até servir para abrir precedentes sobre como os trabalhadores podem esperar que seja no futuro. Os riscos imediatos podem ser muito altos. Além disso, quando os cristãos devem tomar esse tipo de decisão, os espectadores tiram conclusões sobre nós como pessoas, bem como sobre a legitimidade da fé pela qual alegamos viver. Claramente, não podemos prever todas as situações (e o livro de Êxodo também não o faz). Mas sabemos que Deus espera que apliquemos suas instruções e podemos ter certeza de que perguntar a Deus como amar nosso próximo como a nós mesmos é o melhor ponto de partida.
Oportunidades produtivas para os pobres — respiga (Êxodo 22.21-27; 23.10-11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeus deseja fornecer oportunidades para os pobres, e isso é visto nos regulamentos que beneficiam estrangeiros, viúvas e órfãos (Êx 22.21-22). O que esses três grupos tinham em comum era que não possuíam terras para se sustentar. Muitas vezes, isso os deixava pobres, de modo que estrangeiros, viúvas e órfãos são os que primeiro vêm à mente sempre que “os pobres” são mencionados no Antigo Testamento. Em Deuteronômio, a preocupação de Deus por essa tríade de pessoas vulneráveis exigia que Israel lhes fornecesse justiça (Dt 10.18; 27.19) e acesso à comida (Dt 24.19-22). A jurisprudência sobre o assunto também é desenvolvida em Isaías 1.17,23; 10.1-2; Jeremias 5.28; 7.5-7; 22.3; Ezequiel 22.6-7; Zacarias 7.8-10; e Malaquias 3.5 .
Um dos mais importantes desses regulamentos é a prática de permitir que os pobres colham, ou “recolham”, os grãos restantes dos campos ativos e colham todas as colheitas voluntárias em campos em repouso. A prática conhecida como respigar não era uma esmola, mas uma oportunidade para os pobres se sustentarem. Os proprietários de terras eram obrigados a deixar cada campo, vinha e pomar em repouso um ano a cada sete, e os pobres tinham permissão para colher qualquer coisa que pudesse crescer lá (Êx 23.10-11). Mesmo em campos ativos, os proprietários deveriam deixar parte do grão no campo para que os pobres colhessem, em vez de limpá-lo exaustivamente (Lv 19.9-10). Por exemplo, um olival ou uma vinha deveriam ser colhidos apenas uma vez a cada estação (Dt 24.20). Depois disso, os pobres tinham o direito de recolher o que sobrava, talvez o que fosse de menor qualidade ou que demorasse mais para amadurecer. Essa prática não era apenas uma expressão de bondade, mas também uma questão de justiça. O livro de Rute gira em torno dessa prática com efeitos encantadores (veja “Rute 2.17-23” em Rute e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org).
Hoje, há muitas maneiras pelas quais plantadores, produtores e distribuidores de alimentos compartilham com os pobres. Muitos deles doam para despensas e abrigos aquilo que sobra do dia, mas que ainda serve como alimento saudável. Outros trabalham para tornar os alimentos mais acessíveis, aumentando sua própria eficiência. Mas a maioria das pessoas, pelo menos nos países desenvolvidos, não se dedica mais à agricultura como meio de vida, e são necessárias oportunidades para os pobres em outros setores da sociedade. Nas sociedades industriais e tecnológicas de hoje, a utilização eficiente de recursos é a base do sucesso da produção. Não há nada para se colher no chão de uma bolsa de valores, de uma montadora ou de um laboratório de programação. Mas o princípio de fornecer trabalho produtivo para trabalhadores vulneráveis ainda é relevante. As corporações podem empregar de forma produtiva pessoas com deficiências mentais e físicas, com ou sem assistência do governo. Com treinamento e apoio, pessoas de origens desfavorecidas, prisioneiros que retornam à sociedade e outros que têm dificuldade em encontrar um emprego convencional podem se tornar trabalhadores produtivos e ganhar a vida.
Outras pessoas economicamente vulneráveis podem ter de depender de contribuições em dinheiro, em vez de receber oportunidades de trabalho. Aqui, novamente, a situação moderna é complexa demais para proclamarmos uma aplicação simplista da lei bíblica. Mas os valores subjacentes à lei podem oferecer uma contribuição significativa para o projeto e a execução de sistemas de bem-estar público, caridade pessoal e responsabilidade social corporativa. Muitos cristãos têm papéis significativos na contratação de trabalhadores ou na elaboração de políticas de emprego. Êxodo nos lembra que empregar trabalhadores vulneráveis é uma parte essencial do que significa para um povo viver sob a aliança de Deus. Junto com o Israel da antiguidade, os cristãos também experimentaram a redenção de Deus, embora não necessariamente em termos idênticos. Mas nossa simples gratidão pela graça de Deus é certamente um motivo poderoso para encontrar maneiras criativas de servir aos necessitados ao nosso redor.
Empréstimos e garantias (Êxodo 22.25-27)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOutro conjunto de leis regulamentava o dinheiro e as garantias (Êx 22.25-27). Duas situações estão em vista. A primeira se refere a um membro necessitado do povo de Deus que precisa de um empréstimo financeiro. Este empréstimo não deve ser feito de acordo com os padrões usuais de empréstimo de dinheiro. Deve ser feito sem “juros”. A palavra hebraica neshekh (que em alguns contextos significa “mordida”) atraiu muita atenção acadêmica. Será que neshek se referia à cobrança de juros excessivos e, portanto, injustos, além da quantia razoável de juros necessária para manter financeiramente viável a prática de emprestar dinheiro? Ou se referia a algum tipo de juros? O texto não tem detalhes suficientes para estabelecer isso de forma conclusiva, mas a última opção parece mais provável, porque, no Antigo Testamento, neshek sempre se refere a emprestar àqueles que estão em circunstâncias miseráveis e vulneráveis, para quem pagar qualquer tipo de juros seria um fardo excessivo. [1] Colocar os pobres em um ciclo interminável de endividamento financeiro estimulará o compassivo Deus de Israel a agir. Se essa lei foi ou não boa para os negócios, não é isto que está em questão aqui. Walter Brueggemann observa: “A lei não discute sobre a viabilidade econômica de tal prática. Simplesmente requer a necessidade de cuidados de maneira concreta e espera que a comunidade resolva os detalhes práticos”. [2] A outra situação é a de um homem que coloca seu único casaco como garantia de um empréstimo. Este deve ser devolvido a ele à noite, para que ele possa dormir sem pôr em perigo sua saúde (Êx 22.26-27). Isso significa que o credor deve visitá-lo pela manhã para pegar o casaco do dia e continuar fazendo isso até que o empréstimo seja pago? No contexto de tão óbvia miséria, um credor piedoso poderia evitar o quase absurdo desse ciclo simplesmente não esperando que o tomador do empréstimo desse qualquer garantia. Essas regulamentações podem ter menos aplicação ao sistema bancário atual em geral do que aos sistemas atuais de proteção e assistência aos pobres. Por exemplo, o microcrédito em países menos desenvolvidos foi desenvolvido com taxas de juros e políticas de garantias sob medida para atender às necessidades das pessoas pobres que, de outra forma, não teriam acesso ao crédito. O objetivo — pelo menos nos primeiros anos, a partir da década de 1970 — não era maximizar o lucro para os credores, mas fornecer instituições de crédito sustentáveis para ajudar os pobres a escapar da pobreza. Mesmo assim, o microfinanciamento luta para equilibrar a necessidade do credor por um retorno sustentável e taxas de inadimplência com a necessidade do devedor de taxas de juros acessíveis e termos de garantia não restritivos. [3]
A presença de regulamentos específicos seguindo os Dez Mandamentos significa que Deus quer que seu povo o honre, colocando em prática suas instruções para atender a necessidades reais. A preocupação emocional sem ação deliberada não dá aos pobres o tipo de ajuda de que precisam. Como disse o apóstolo Tiago: “A fé sem obras está morta” (Tg 2.26). Estudar as aplicações específicas dessas leis no antigo Israel nos ajuda a pensar sobre as maneiras específicas pelas quais podemos agir hoje. Mas lembramos que, mesmo naquela época, essas leis eram apenas ilustrações. Terence Fretheim conclui assim: “Há uma abertura para a aplicação da lei. O texto convida o ouvinte/leitor a estender essa passagem a todas as esferas da vida em que a injustiça possa ser encontrada. Em outras palavras, alguém é convidado pela lei a ir além da lei”. [4]
Uma leitura cuidadosa revela três razões pelas quais o povo de Deus deve guardar essas leis e aplicá-las a novas situações. [5] Primeiro, os próprios israelitas foram oprimidos como estrangeiros no Egito (Êx 22.21; 23.9). Ensaiar essa história não apenas mantém a redenção de Deus em vista, mas a memória se torna uma motivação para tratar os outros como gostaríamos de ser tratados (Mt 7.12). Segundo, Deus ouve o clamor dos oprimidos e faz algo a respeito, especialmente quando não o fazemos (Êx 22.22-24). Terceiro, devemos ser seu povo santo (Êx 22.31; Lv 19.2).
O tabernáculo (Êxodo 25.1—40.38)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO trabalho de construção do tabernáculo pode parecer estar fora do escopo do Projeto de Teologia do Trabalho por causa de seu foco litúrgico. Devemos observar, no entanto, que o livro de Êxodo não separa tão facilmente a vida de Israel nas categorias de sagrado e secular, tal como estamos tão acostumados. Mesmo se traçarmos uma linha entre as atividades litúrgicas e extralitúrgicas de Israel, nada em Êxodo sugere que uma seja mais importante que a outra. Além disso, o que realmente aconteceu no tabernáculo não pode ser equiparado com justiça ao “trabalho da igreja” hoje. Certamente, sua construção não tem paralelo próximo com a construção de prédios de igrejas. Os capítulos de Êxodo que tratam do tabernáculo são todos sobre o estabelecimento de uma instituição única. Embora o trabalho do tabernáculo continuasse de ano para ano e fosse subordinado ao templo, cada um desses edifícios era, por definição, central e único. Eles não eram exemplos a serem reproduzidos onde quer que os israelitas se estabelecessem para viver. De fato, a construção e a operação de santuários locais em todo o país provaram ser um enorme prejuízo para a saúde espiritual nacional de Israel. Finalmente, o propósito do tabernáculo não era dar a Israel um lugar autorizado para adoração. Era sobre a presença de Deus no meio deles. Isso fica claro desde o início nas palavras de Deus: “E farão um santuário para mim, e eu habitarei no meio deles” (Êx 25.8). Os cristãos de hoje entendem que Deus habitou entre nós na pessoa de seu Filho (Jo 1.14). Por meio de seu trabalho, toda a comunidade de crentes se tornou o templo de Deus no qual o Espírito de Deus vive (1Co 3.16). À luz dessas observações, consideraremos duas afirmações relacionadas ao trabalho. Primeiro, Deus é um arquiteto. Segundo, Deus capacita seu povo para fazer sua obra.
A grande seção em Êxodo sobre o tabernáculo é organizada de acordo com a ordem de Deus (Êx 25.1—31.11) e a resposta de Israel (Êx 35.4—40.33). Mas Deus fez mais do que dizer a Israel o que ele queria deles. Ele forneceu o projeto real para a obra. Isso fica claro em suas palavras a Moisés: “Segundo tudo o que eu mostrar a você como modelo do tabernáculo e como modelo de todos os seus móveis, assim mesmo vocês o farão” (Êx 25.9, NAA). [1] A palavra hebraica traduzida aqui como “modelo” (tavnit) se refere ao edifício e aos itens associados a ele. Os arquitetos de hoje usam plantas para direcionar a construção, mas pode ter sido que algum tipo de modelo arquetípico estivesse em vista. [2] Os templos eram frequentemente vistos como réplicas terrenas de santuários celestiais (Is 6.1-8). Pelo Espírito, o rei Davi recebeu esse modelo para o templo e o deu a seu filho Salomão, que organizou a construção do templo (1Cr 28.11-12,19). Pelas descrições que se seguem, fica claro que o projeto arquitetônico de Deus é requintado e engenhoso. O princípio de que o desígnio de Deus precede a edificação de Deus é verdade para os santuários de Israel, bem como para a comunidade mundial de cristãos do Novo Testamento (1Co 3.5-18). A futura Nova Jerusalém é uma cidade que só Deus poderia projetar (Ap 21.10-27). A obra de Deus como arquiteto confere dignidade a essa carreira em particular. Mas, em um sentido geral, o povo de Deus pode se envolver em seu trabalho (seja ele qual for) com a consciência de que Deus também tem um plano para ele. Como veremos a seguir, há muitos detalhes a serem trabalhados dentro dos contornos do plano de Deus, mas o Espírito Santo ajuda até mesmo nisso.
Os relatos de Bezalel, Aoliabe e de todos os obreiros qualificados do tabernáculo estão cheios de termos relacionados ao trabalho (Êx 31.1-11 ; 35.30—36.5). Bezalel e Aoliabe são importantes não apenas por seu trabalho no tabernáculo, mas também como modelos para Salomão e Hirão, que construíram o templo. [3] O conjunto abrangente de ofícios incluía trabalhos em metal em ouro, prata e bronze, bem como trabalhos em pedra e madeira. A fabricação de roupas exigiria obter lã, fiá-la, tingi-la, tecê-la, desenhar roupas, fabricá-las e costurá-las sob medida, além do trabalho de bordado. Os artesãos até prepararam óleo de unção e incenso aromático. O que une todas essas práticas é Deus enchendo os obreiros com seu Espírito. A palavra hebraica para “habilidade” nesses textos (hokhmah) é geralmente traduzido como “sabedoria”, o que nos leva a pensar sobre o uso das palavras e a tomada de decisões. Aqui, ele descreve um trabalho que é claramente prático, mas espiritual no sentido teológico mais completo (Êx 28.3; 31.3,6; 35.26,31,35; 36.1-2).
A ampla gama de atividades de construção nesta passagem ilustra, mas não esgota, o que a construção no antigo Oriente Médio envolvia. Visto que Deus os inspirou, podemos presumir com segurança que ele os desejou e os abençoou. Mas será que realmente precisamos de textos como esses para nos assegurar que Deus aprova esse tipo de trabalho? E quanto às habilidades relacionadas que não são mencionado? Fazendo uma brincadeira, se o tabernáculo precisasse de um sistema de ar-condicionado, presumimos que Deus teria dado planos para um bom sistema. Robert Banks recomenda sabiamente: “Nos escritos bíblicos, não devemos interpretar comparações com o processo [moderno] de construção de uma maneira muito estreita ou específica para cada trabalho. Ocasionalmente, isso pode ser justificado, mas geralmente não.” [4] O ponto aqui não é que Deus se importa mais com certos tipos de trabalho do que com outros. A Bíblia não precisa citar todas as profissões nobres para que as vejamos como algo piedoso a fazer. Assim como as pessoas não foram feitas para o sábado, mas o sábado para as pessoas (Mc 2.27), edifícios e cidades também foram feitos para as pessoas. A lei de que as casas antigas sejam construídas com um parapeito de proteção ao redor do telhado plano (Dt 22.8) ilustra a preocupação de Deus com uma construção responsável que realmente sirva e proteja as pessoas. O ponto sobre o Espírito capacitando os obreiros do tabernáculo é que Deus se importava com este particular projeto para esses particulares propósitos. Com base nessa verdade, a lição duradoura para nós em nosso trabalho hoje pode ser que, seja qual for a obra de Deus, ele não deixa sua grande obra em nossas mãos inábeis. As maneiras pelas quais ele nos equipa para seu trabalho podem ser tão variadas quanto essas muitas tarefas. Na fidelidade divina, os dons espirituais que Deus nos dá nos fortalecerão para fazer a obra de Deus até o fim (1Co 1.4-9). Ele nos fornece todas as bênçãos em abundância, para que possamos participar abundantemente de toda boa obra (2Co 9.8).
Conclusões de Êxodo
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm Êxodo, vemos Deus tirar seu povo do trabalho opressivo para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Não significa estar livres do trabalho, mas ser livres para amar e servir ao Senhor por meio do trabalho em todos os aspectos da vida. Deus fornece orientação para a vida e o trabalho que o glorificarão e abençoarão Israel. E ele fornece um lugar para sua presença, a fim de abençoar tudo o que eles fazem.
Introdução — Levítico tem algo a nos dizer sobre nosso trabalho?
Voltar ao índice Voltar ao índiceLevítico é uma ótima fonte para pessoas que buscam orientação sobre seu trabalho. O livro está repleto de instruções diretas e práticas, embora a ação ocorra em um ambiente de trabalho diferente do que a maioria de nós vivencia hoje. Além disso, Levítico é um dos lugares centrais onde Deus revela a si mesmo e seus objetivos para nossa vida e nosso trabalho. O livro está no centro físico do Pentateuco, o terceiro dos cinco livros de Moisés que formam a narrativa e o fundamento teológico do Antigo Testamento. O segundo livro, Êxodo, conta do que Deus tirou seu povo. Levítico diz para onde Deus guia seu povo, [1] uma vida cheia da própria presença de Deus. Em Levítico, o trabalho é uma das arenas mais importantes em que Deus está presente com Israel, e Deus ainda está presente conosco em nosso trabalho hoje.
Levítico também é central para o ensino de Jesus e para o restante do Novo Testamento. O Grande Mandamento que Jesus ensinou (Mc 12.28-31) vem diretamente de Levítico 19.18: “Ame cada um o seu próximo como a si mesmo”. O “ano sabático” ou “ano do jubileu” em Levítico 25 está no centro da declaração de missão de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para... proclamar o ano da graça [o Jubileu] do Senhor” (Lc 4.18-19). Quando Jesus disse que nem “a menor letra ou o menor traço” da lei passaria (Mt 5.18), muitas dessas letras e traços são encontrados em Levítico. Jesus ofereceu uma nova visão sobre a lei — que a maneira de cumprir a lei não é encontrada no cumprimento de regras, mas na cooperação com os propósitos para os quais Deus a criou. Devemos cumprir a lei “com dedicação” (1Co 12.31), de um modo que excede — não ignora — a letra da lei. Se desejamos cumprir o Espírito da lei, como Jesus fez, devemos começar aprendendo o que a lei realmente diz. Grande parte dela se encontra em Levítico, e grande parte se aplica ao trabalho.
Visto que Levítico é central para o ensino de Jesus sobre o trabalho, como seguidores de Jesus, estamos certos em recorrer ao livro em busca de orientação sobre a vontade de Deus para nosso trabalho. É claro que devemos ter em mente que os códigos de Levítico devem ser entendidos e aplicados às diferentes situações econômicas e sociais de hoje. A sociedade atual não está em um paralelo próximo com o antigo Israel, tanto em termos de nossa estrutura social como de nosso relacionamento de aliança. A maioria dos trabalhadores de hoje, por exemplo, tem pouca necessidade de saber o que fazer com um boi ou uma ovelha que foi dilacerada por animais selvagens (Lv 7.24). O sacerdócio levítico, a quem grande parte do livro é dirigido — sacerdotes que realizam sacrifícios de animais ao Deus de Israel — não existe mais. Além disso, em Cristo, entendemos que a lei é um instrumento da graça de Deus de uma maneira diferente de como o antigo Israel o fazia. Portanto, não podemos simplesmente citar Levítico como se nada tivesse mudado no mundo. Não podemos ler um versículo e proclamar “Assim diz o Senhor” como um juízo contra aqueles de quem discordamos. Em vez disso, temos de entender o significado, os propósitos e a mente de Deus revelados em Levítico e, em seguida, pedir a sabedoria de Deus para aplicar Levítico aos dias de hoje. Somente assim nossa vida refletirá sua santidade, honrará suas intenções e decretará o governo de seu Reino celestial na terra.
O conceito fundamental de santidade em Levítico
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Levítico está fundamentado na verdade de que Deus é santo. A palavra qodesh ocorre mais de cem vezes no texto hebraico de Levítico. Dizer que Deus é santo significa que ele está completamente separado de todo mal ou defeito. Ou, em outras palavras, Deus é completa e perfeitamente bom. O Senhor é digno de total lealdade, adoração exclusiva e obediência amorosa.
A identidade de Israel surge porque, pelas ações de Deus, o povo é santo, mas também porque o Senhor espera de Israel um agir santo de maneiras práticas. Israel é chamado para ser santo porque o próprio Senhor é santo (Lv 11.44-45; 19.2; 20.7; 21.8). As leis aparentemente distantes de Levítico, que lidam com os aspectos rituais, éticos, comerciais e penais da vida, todas se baseiam nessa noção central de santidade.
Alexander Hill, então, está seguindo o princípio central de Levítico quando fundamenta sua discussão sobre a ética empresarial cristã na santidade, na justiça e no amor de Deus. “Um ato comercial é ético se reflete o caráter santo e justo de Deus.” [1] Hill afirma que, nos negócios, os cristãos refletem a santidade divina quando têm zelo por Deus, que é sua prioridade final, e agem com pureza, responsabilidade e humildade. Em vez de tentar reproduzir o código comercial projetado para uma sociedade agrária, é isso o que significa colocar o Levítico em prática hoje. Não se trata de ignorar as especificidades da lei, mas de discernir como Deus está nos guiando para cumpri-la no contexto de hoje.
Santidade em Levítico não é separação pelo separatismo, mas para que haja uma comunidade próspera do povo de Deus e a reconciliação de cada pessoa com Deus. A santidade não se trata apenas do comportamento dos indivíduos de acordo com os regulamentos, mas sobre como aquilo que cada pessoa faz afeta todo o povo de Deus em sua vida conjunta e em seu trabalho como agentes do Reino de Deus. Sob essa luz, o chamado de Jesus para que seu povo seja “sal” e “luz” para os de fora (Mt 5.13-16) faz todo o sentido. Ser santo é ir além da lei para amar o próximo, amar até mesmo o inimigo e ser “perfeitos como perfeito é o Pai celestial” (Mt 5.48, ecoando Lv 19.2).
Em suma, o antigo Israel não obedecia a Levítico como um conjunto peculiar de regras, mas como uma expressão da presença de Deus em seu meio. Isso é tão relevante para o povo de Deus hoje quanto era então. Em Levítico, Deus está pegando um grupo de tribos nômades e moldando sua cultura como povo. Da mesma forma, hoje, quando o povo de Deus entra em seu ambiente de trabalho, por meio deles, Deus está moldando as culturas de suas unidades de trabalho, organizações e comunidades. O chamado de Deus para ser santo, assim como ele é santo, é um chamado para moldar nossas culturas para o bem.
O sistema sacrificial de Israel (Levítico 1—10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Levítico começa com regulamentos para o sistema sacrificial de Israel, transmitidos a partir de duas perspectivas. A primeira perspectiva é a dos leigos que trazem o sacrifício e participam de sua oferta (capítulos 1—5). A segunda perspectiva é a dos sacerdotes que ministram (capítulos 6—7). Depois disso, aprendemos como os sacerdotes foram ordenados e começaram seu ministério no tabernáculo (capítulos 8—9), seguidos por regulamentos adicionais para os sacerdotes, à luz de como Deus matou os sacerdotes Nadabe e Abiú por violarem o mandamento de Deus sobre suas responsabilidades rituais (capítulo 10). Não devemos presumir que esse material seja uma liturgia vazia e irrelevante para o mundo do trabalho moderno. Em vez disso, devemos examinar a maneira como o povo de Israel lidou com seus problemas, a fim de explorar como nós, como pessoas em Cristo, podemos lidar com os nossos — incluindo os desafios que enfrentamos nos negócios e no trabalho.
A habitação de Deus na comunidade (Levítico 1—10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO propósito do sacrifício não era apenas remediar lapsos ocasionais de pureza. O verbo hebraico para “oferecer” um sacrifício significa literalmente “aproximar”. Trazer um sacrifício para perto do santuário aproximava o adorador de Deus. O grau individual de mau comportamento do adorador não era a questão principal. A poluição causada pela impureza é a consequência de toda a comunidade, composta pelos poucos que cometeram pecados descarados ou inadvertidos junto com a maioria silenciosa que permitiu que os ímpios florescessem em seu meio. O povo como um todo carrega a responsabilidade coletiva de corromper a sociedade e, assim, dar a Deus uma razão legítima para deixar seu santuário, um evento que equivale à destruição da nação. [1] Aproximar-se de Deus ainda é o objetivo daqueles que chamam Jesus de “Emanuel” (“Deus conosco”). A habitação de Deus com seu povo é, de fato, um assunto sério.
Os cristãos em seu ambiente de trabalho devem olhar além, buscando dicas piedosas para encontrar o que o mundo define como “sucesso”. Estar ciente de que Deus é santo e que ele deseja habitar no centro de nossa vida muda nossa orientação do sucesso para a santidade, seja qual for a obra que Deus nos chamou para fazer. Isso não significa fazer atividades religiosas no trabalho, mas fazer todo o nosso trabalho como Deus deseja que o façamos. O trabalho não é principalmente uma maneira de aproveitar o fruto de nosso trabalho, mas uma maneira de experimentar a presença de Deus. Assim como os sacrifícios de Israel eram um “aroma agradável” ao Senhor (Lv 1.9 e dezesseis outros casos), Paulo chamou os cristãos a viverem “de maneira digna do Senhor e em tudo... agradá-lo” (Cl 1.10), “porque para Deus somos o aroma de Cristo” (2Co 2.15).
O que poderia resultar se caminhássemos por nosso ambiente de trabalho e fizéssemos a pergunta fundamental: “Como este poderia ser um lugar para a presença santa de Deus?” Nosso ambiente de trabalho incentiva as pessoas a expressarem o melhor que Deus lhes deu? É um lugar caracterizado pelo tratamento justo de todos? Protege os trabalhadores de danos? Produz bens e serviços que ajudam a comunidade a prosperar mais plenamente?
Todo o povo de Deus em ação (Levítico 1—10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceLevítico reúne as perspectivas de dois grupos que muitas vezes estavam em conflito um com o outro: os sacerdotes e o povo. Seu propósito é reunir todo o povo de Deus, sem levar em conta distinções de status. No ambiente de trabalho hoje, como os cristãos devem lidar com desavenças entre pessoas, independentemente de suas posses ou posição na empresa? Toleramos abusos de poder quando o resultado parece conveniente para nossa carreira? Participamos do julgamento de colegas de trabalho por meio de fofocas e insinuações, ou insistimos em expor nossas queixas por meio de sistemas imparciais? Prestamos atenção aos danos que o bullying e o favoritismo causam no trabalho? Promovemos uma cultura positiva, fomentamos a diversidade e construímos uma organização saudável? Permitimos uma comunicação aberta e confiável, combatemos a politicagem clandestina e buscamos o melhor desempenho? Criamos uma atmosfera em que as ideias surgem e são avaliadas, e as melhores são postas em ação? Focamos no crescimento sustentável?
O sistema sacrificial de Israel atendia não apenas às necessidades religiosas do povo, mas também às psicológicas e emocionais, abrangendo assim toda a pessoa e toda a comunidade. Os cristãos entendem que as empresas têm objetivos que geralmente não são de natureza religiosa. No entanto, também sabemos que as pessoas não são equivalentes ao que fazem ou produzem. Isso não reduz nosso compromisso de trabalhar para sermos produtivos, mas nos lembra que, porque Deus nos abraçou com seu perdão, temos ainda mais razões do que outros para ser atenciosos, justos e amáveis para com todos (Lc 7.47; Ef 4.32; Cl 3.13).
O significado da oferta pela culpa (Levítico 6.1-7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceCada oferta no sistema sacrificial de Israel tem seu lugar, mas há uma característica especial da oferta pela culpa (também conhecida como oferta de reparação) que a torna particularmente relevante para o mundo do trabalho. A oferta pela culpa de Levítico é a semente da doutrina bíblica do arrependimento.[1] (Números 5.5-10 é diretamente paralelo.) De acordo com Levítico, Deus exigia ofertas sempre que uma pessoa enganava outra com relação a um depósito ou promessa, cometesse roubo ou fraude, mentisse sobre bens perdidos que haviam sido encontrados ou jurasse falsamente sobre um assunto (Lv 6.2-3). Não foi uma multa imposta por um tribunal, mas uma reparação oferecida pelos autores que escaparam impunes da ofensa, mas que se sentiram culpados mais tarde, quando “perceberam” sua culpa (Lv 6.4-5). O arrependimento do pecador, e não a perseguição pelas autoridades, é a base da oferta pela culpa.
Muitas vezes, esses pecados teriam sido cometidos no contexto do comércio ou de outro trabalho. A oferta pela culpa exige que o pecador arrependido devolva o que foi tomado indevidamente acrescido de 20% (Lv 6.4-5). Somente depois de resolver a questão em nível humano, o pecador pode receber o perdão de Deus, apresentando um animal ao sacerdote para sacrifício (Lv 6.6-7).
A oferta de culpa enfatiza de maneira exclusiva vários princípios sobre a cura de relacionamentos pessoais que foram danificados por abuso financeiro.
1. O mero pedido de desculpas não é suficiente para corrigir o erro, nem a restauração completa do que foi tirado. Além disso, algo semelhante ao conceito atual de danos punitivos foi adicionado. Mas, com ofertas de culpa — ao contrário de indenizações punitivas ordenadas pelo tribunal —, os infratores voluntariamente assumem uma parte do dano, compartilhando assim o sofrimento que causaram à vítima.
2. Fazer todo o necessário para corrigir um erro contra outra pessoa não é apenas justo para o ofendido, mas também é bom para o ofensor. A oferta pela culpa reconhece o tormento que assola a consciência daqueles que reconhecem seu crime e seus efeitos danosos. Em seguida, fornece uma maneira de os culpados lidarem com o assunto de forma mais completa, trazendo um certo encerramento e paz. Essa oferta expressa a misericórdia de Deus, na medida em que a dor e a mágoa são neutralizadas, de modo a não inflamar e explodir em violência ou ofensas mais graves. Também extingue a necessidade de a vítima (ou sua família) resolver o problema com as próprias mãos para exigir a restituição.
3. Nada na obra expiatória de Jesus na cruz libera o povo de Deus hoje da necessidade de fazer restituição. Jesus ensinou a seus discípulos: “Portanto, se você estiver apresentando sua oferta diante do altar e ali se lembrar de que seu irmão tem algo contra você, deixe sua oferta ali, diante do altar, e vá primeiro reconciliar-se com seu irmão; depois volte e apresente sua oferta” (Mt 5.23-24). Amar nosso próximo como a nós mesmos está no cerne dos requisitos da lei (Lv 19.18, como citado em Rm 13.9), e fazer restituição é uma expressão essencial de qualquer tipo genuíno de amor. Jesus concedeu a salvação ao rico cobrador de impostos Zaqueu, que ofereceu mais restituição do que a lei exigia, elevando-o como um exemplo daqueles que realmente entendiam o perdão (Lc 19.1-10).
4. As palavras de Jesus em Mateus 5.23-24 também nos ensinam que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para nos reconciliarmos com as pessoas é um aspecto essencial para acertar as coisas com Deus e viver em paz sempre que possível. Receber o perdão de Deus vai além, mas não devemos deixar de fazer restituição, sempre que possível, àqueles a quem prejudicamos. Em resposta ao perdão que Deus nos dá, nosso coração é movido a fazer tudo o que pudermos para reverter o dano que causamos aos outros. Raramente teremos a capacidade de desfazer completamente o dano que nosso pecado causou, mas o amor de Cristo nos impele a fazer o máximo que podemos.
A oferta pela culpa é um lembrete poderoso de que Deus não exerce seu direito de perdão às custas das pessoas prejudicadas por nossos erros. Ele não nos oferece libertação psicológica de nossa culpa como um substituto barato para reparar o dano e a mágoa que causamos.
O imundo e o puro (Levítico 11—16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo cerne disso, Levítico 11.45 explica a lógica temática de toda esta seção. “Eu sou o Senhor que os tirou da terra do Egito para ser o seu Deus; por isso, sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 11.45). Deus chama Israel para refletir sua santidade em todos os aspectos da vida. Levítico 11—16 lida com a classificação de alimentos “limpos” e “impuros” (capítulo 11) e ritos de purificação (capítulos 12—15). Ele termina com o procedimento para celebrar o Dia da Expiação para purificar o povo e o santuário de Deus (capítulo 16).
Os cristãos também reconhecem que todos os aspectos de nossa vida devem ser uma resposta à santa presença de Deus entre nós. Mas os assuntos e o escopo das leis em Levítico tendem a nos deixar perplexos hoje. Existem princípios éticos duradouros a serem encontrados nessas regulamentações específicas? Por exemplo, é difícil entender a razão pela qual Deus permitiu que Israel comesse alguns animais e não outros. Por que há tanta preocupação com doenças de pele específicas (que nem hoje podemos identificar com certeza) e não com outras doenças mais graves? De todos os males que a sociedade enfrenta, a questão do mofo é realmente tão importante? Estreitando nosso foco para questões de trabalho, devemos esperar que esses textos nos digam algo que possamos aplicar à indústria de alimentos, medicamentos ou à contaminação ambiental de casas e ambientes de trabalho? Como observado anteriormente, encontraremos respostas não perguntando se devemos obedecer a regulamentos feitos para uma situação diferente, mas procurando como as passagens nos orientam a servir ao bem-estar da comunidade.
A permissão para comer animais específicos (Levítico 11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceExistem várias teorias plausíveis sobre as regras que tratam dos animais para consumo humano em Levítico 11. Cada uma cita evidências de apoio, mas nenhuma alcança um consenso geral. Classificá-los está além do nosso escopo aqui, mas Jacob Milgrom oferece uma perspectiva diretamente relacionada ao ambiente de trabalho. [1] Ele observa três elementos dominantes: Deus limitou severamente a escolha de alimentos de origem animal por parte de Israel, deu-lhes regras específicas para o abate e os proibiu de comer sangue, que representa a vida e, portanto, pertence somente a Deus. À luz disso, Milgrom conclui que o sistema alimentar de Israel era um método de controlar o instinto humano de matar. Em resumo: “Embora possam satisfazer seu apetite por comida, devem conter sua fome de poder. Como a vida é inviolável, ela não pode ser adulterada indiscriminadamente”. [2] Se Deus escolhe se envolver nos detalhes de quais animais podem ser mortos e como isso deve ser feito, como podemos não perceber que a matança de seres humanos é ainda mais restrita e sujeita ao escrutínio de Deus? Essa visão sugere mais aplicabilidade aos dias atuais. Por exemplo, se todas as instalações agrícolas, de criação de animais e de alimentação prestassem contas a Deus diariamente pelo tratamento e pela condição de seus animais, não estariam ainda mais atentas à segurança e às condições de trabalho de seu pessoal?
Apesar dos extensos detalhes em Levítico que iniciam a discussão contínua sobre alimentos na Bíblia, seria inapropriado para qualquer cristão tentar ditar o que os crentes devem fazer e evitar fazer em relação à provisão, preparação e consumo de alimentos. No entanto, o que quer que comamos ou não comamos, Derek Tidball lembra corretamente os cristãos da centralidade da santidade. Qualquer que seja a posição de alguém sobre essas questões complexas, ela não pode ser separada do compromisso do cristão com a santidade. A santidade nos convida a comer e beber “para a glória de Deus”. [3] O mesmo se aplica ao trabalho de produzir, preparar e consumir alimentos e bebidas.
Lidando com doenças de pele e infecções por mofo (Levítico 13—14)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm contraste com as leis alimentares, as leis sobre doenças e contaminação ambiental de fato parecem estar principalmente preocupadas com a saúde. A saúde também é uma questão crítica hoje e, mesmo que o livro de Levítico não estivesse na Bíblia, ainda seria uma preocupação nobre e piedosa. Mas seria imprudente supor que Levítico fornece instruções para lidar com doenças contagiosas e contaminação ambiental que podemos aplicar diretamente hoje. Com milhares de anos distantes desse período, é difícil até mesmo ter certeza de que doenças exatamente as passagens tratam. A mensagem duradoura de Levítico é de que o Senhor é o Deus da vida e que ele guia, honra e enobrece todos aqueles que trazem cura às pessoas e ao meio ambiente. Se as regras específicas de Levítico não ditam a maneira como realizamos o trabalho de cura e proteção ambiental, certamente esse ponto maior o faz.
Código de santidade (Levítico 17—27)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAlgumas das instruções do código de santidade parecem relevantes apenas no mundo antigo de Israel, enquanto outras parecem atemporais. Por um lado, Levítico diz aos homens para não estragar as pontas de suas barbas (Lv 19.27), mas, por outro lado, os juízes não devem proferir julgamentos injustos no tribunal, devendo mostrar justiça a todos (Lv 19.15). Como sabemos quais se aplicam diretamente hoje? Mary Douglas explica de maneira útil como uma compreensão clara da santidade como ordem moral tanto coloca o fundamento dessas instruções em Deus como dá sentido à sua variedade.
Desenvolver a ideia de santidade como ordem, não confusão, defende a retidão e a integridade como algo sagrado, tendo a contradição e a dubiedade como algo contrário à santidade. Roubo, mentira, falso testemunho, trapaça em pesos e medidas, todo tipo de dissimulação, como falar mal dos surdos (enquanto finge sorrir diante deles), odiar seu irmão em seu coração (enquanto aparenta falar com ele gentilmente), são claramente contradições entre o que parece e o que é. [1]
Alguns aspectos do que leva à boa ordem (por exemplo, aparar a barba) podem ser importantes em um contexto, mas não em outro. Outros são essenciais em todas as situações. Podemos identificá-los perguntando o que contribui para a boa ordem em nossos contextos específicos. Aqui, exploraremos passagens que tocam diretamente em questões de trabalho e economia.
Colheita e respiga (Levítico 19.9-10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEmbora os métodos antigos de colheita não fossem tão eficientes quanto hoje, Levítico 19.9-10 instrui os israelitas a torná-los ainda menos eficientes. Primeiro, eles deveriam deixar as margens de seus campos de grãos sem colheita. A largura dessa margem parece ser uma decisão do proprietário. Em segundo lugar, eles não deveriam recolher qualquer produto que caísse no chão. Isso se aplicaria quando um ceifeiro pegasse um feixe de caules e os cortasse com a foice, bem como quando as uvas caíssem de um cacho recém-cortado da videira. Terceiro, eles deveriam colher seus vinhedos apenas uma vez, presumivelmente pegando apenas as uvas maduras, de modo a deixar as uvas ainda não maduras para os pobres e os imigrantes que viviam entre eles. [1] Essas duas categorias de pessoas — os pobres e os estrangeiros — estavam unidas pela falta de propriedade de terras e, portanto, dependiam de seu próprio trabalho manual para se alimentar. As leis que beneficiavam os pobres eram comuns no antigo Oriente Próximo, mas apenas os regulamentos de Israel estendiam esse tratamento ao estrangeiro residente. Essa era mais uma maneira pela qual o povo de Deus deveria ser distinto das nações vizinhas. Outros textos especificam a viúva e o órfão como membros dessa categoria. (Outras referências bíblicas à respiga incluem Êx 22.21-27; Dt 24.19-21; Jz 8.2; Rt 2.17-23; Jó 24.6; Is 17.5-6; 24.13; Jr 6.9; 49.9; Ob 1.5; Mq 7.1.)
Podemos classificar a respiga como uma expressão de compaixão ou justiça, mas, de acordo com Levítico, permitir que outros façam isso em nossa propriedade é fruto da santidade. Fazemos isso porque Deus diz: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.10). Isso destaca a distinção entre caridade e respiga. Na caridade, as pessoas doam voluntariamente a outros que estão em necessidade. Isso é uma coisa boa e nobre de se fazer, mas não é disso que Levítico está falando. A respiga é um processo no qual os proprietários de terras têm a obrigação de fornecer às pessoas pobres e marginalizadas acesso aos meios de produção (em Levítico, a terra) e de eles mesmos trabalharem. Ao contrário da caridade, ela não depende da generosidade dos proprietários de terras. Nesse sentido, era muito mais um imposto do que uma oferta de caridade. Além disso, diferentemente da caridade, ela não foi dada aos pobres como pagamento de transferência. Por meio da respiga, os pobres ganhavam a vida da mesma forma que os proprietários de terras, trabalhando nos campos com seu próprio trabalho. Era simplesmente uma ordem mostrando que todos tinham o direito de acessar os meios de provisão criados por Deus.
Nas sociedades contemporâneas, pode não ser fácil discernir como aplicar os princípios da respiga. Em muitos países, a reforma agrária é certamente necessária para que a terra esteja disponível com segurança para os agricultores, em vez de ser controlada por funcionários caprichosos do governo ou proprietários de terras que a obtiveram de forma corrupta. Em economias mais industrializadas e baseadas no conhecimento, a terra não é o principal fator de produção. O acesso à educação, ao capital, aos mercados de trabalho e de produtos, aos sistemas de transporte e a leis e regulamentos não discriminatórios pode ser o que as pessoas pobres precisam para serem produtivas. Como os cristãos podem não ser mais capazes do que qualquer outra pessoa de determinar com precisão quais soluções serão mais eficazes, as soluções precisam vir de toda a sociedade. Certamente, Levítico não contém um sistema pronto para as economias de hoje. Mas o sistema de respiga em Levítico impõe aos proprietários de ativos produtivos a obrigação de garantir que as pessoas marginalizadas tenham a oportunidade de trabalhar para ganhar a vida. Nenhum proprietário individual pode fornecer oportunidades para todos os trabalhadores desempregados ou subempregados, é claro, assim como nenhum agricultor no antigo Israel poderia garantir a respiga para todo o distrito. Mas os proprietários são chamados a ser as pessoas mais importantes na criação de oportunidades de trabalho. Talvez os cristãos em geral também sejam chamados a apreciar o serviço que os empresários prestam em seu papel de criadores de empregos em suas comunidades.
(Para mais informações sobre respiga na Bíblia, veja “Êxodo 22.21-27”em Êxodo e o Trabalho e “Rute 2.17-23”em Rute e o Trabalho em www.teologiadotrabalho.org.)
Agir com honestidade (Levítico 19.11-12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs mandamentos em Levítico contra o roubo, a falsidade, a mentira e a violação do nome de Deus por meio de juramentos falsos encontram expressão mais familiar entre os Dez Mandamentos de Êxodo 20. (Para mais informações sobre honestidade, veja “Dizer a verdade na Bíblia” e “Pode haver exceções à verdade no local de trabalho”, no artigo Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org.) Exclusiva de Levítico, no entanto, é a expressão hebraica por trás de “Não enganem uns aos outros” (Lv 19.11; grifo nosso). Literalmente, ele diz que “uma pessoa não deve mentir para seu amit”, que significa “companheiro”, “amigo” ou “próximo”. Isso certamente inclui membros da comunidade de Israel; mas com base em Levítico 24.19 no contexto de Levítico 24.17-22, também parece incluir o estrangeiro que vivia entre eles. A ética e a moralidade de Israel deveriam ser distintamente melhores do que as das nações ao seu redor, a ponto de tratar os imigrantes de outras nações da mesma maneira que tratavam os cidadãos nativos.
De qualquer forma, o ponto aqui é o aspecto relacional de dizer a verdade em vez de mentir. Uma mentira não é apenas uma distorção de um fato, mas também uma traição a um companheiro, amigo ou vizinho. O que dizemos uns aos outros deve realmente fluir da santidade de Deus em nós, não apenas de uma análise técnica para evitar mentiras descaradas. Quando o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, disse: “Eu não tive relações sexuais com aquela mulher”, ele pode ter tido alguma lógica tortuosa em mente, segundo a qual a declaração não era tecnicamente uma mentira. Mas seus concidadãos sentiram, com razão, que ele havia quebrado a confiança deles, e mais tarde ele reconheceu e aceitou essa avaliação. Ele havia violado o dever de não mentir aos outros.
Em muitos ambientes de trabalho, é necessário promover os aspectos positivos ou negativos de um produto, serviço, pessoa, organização ou situação. Os cristãos não precisam se recusar a se comunicar vigorosamente para defender um ponto de vista. Mas eles não devem se comunicar de tal maneira que aquilo que transmitem aos outros seja falso. Se palavras tecnicamente verdadeiras se somam a uma falsa impressão na mente de outros, então o dever de dizer a verdade é quebrado. Na prática, sempre que uma discussão sobre veracidade desce para um debate técnico sobre terminologia, é aconselhável nos perguntar se o debate é sobre se devemos mentir aos outros neste sentido.
Tratar os trabalhadores com justiça (Levítico 19.13)
Voltar ao índice Voltar ao índice“Não oprimam nem roubem o seu próximo. Não retenham até a manhã do dia seguinte o pagamento de um diarista” (Lv 19.13). Os diaristas eram geralmente pessoas mais pobres, que não tinham terra para cultivar. Eles dependiam especialmente do pagamento imediato por seu trabalho e, portanto, precisavam ser pagos no final de cada dia (cf. Dt 24.14-15). Em nosso mundo, uma situação comparável ocorre quando os empregadores têm o poder de ditar termos e condições de trabalho que tiram proveito das vulnerabilidades dos trabalhadores. Isso ocorre, por exemplo, quando os funcionários são pressionados a contribuir com os candidatos políticos favoritos de seus chefes ou quando se espera que continuem trabalhando de graça após o horário de expediente. Essas práticas são ilegais na maioria dos lugares, mas, infelizmente, continuam sendo comuns.
Uma situação mais controversa diz respeito aos diaristas que não possuem documentação para um emprego formal. Essa situação ocorre em todo o mundo, aplicando-se a refugiados, migrantes, pessoas que mudam do campo para a cidade, imigrantes ilegais, menores de idade e outros. Essas pessoas geralmente trabalham na agricultura, paisagismo, trabalhos braçais, serviços de alimentação e pequenos projetos, além de ocupações ilegais. Visto que tanto empregadores quanto funcionários estão trabalhando fora da lei, esses trabalhadores raramente recebem a proteção de contratos de trabalho e regulamentos governamentais. Os empregadores podem tirar proveito de sua situação pagando menos do que é pago aos trabalhadores legais, negando benefícios e oferecendo condições de trabalho precárias ou perigosas. Tais funcionários podem estar sujeitos a abuso e assédio sexual. Em muitos casos, ficam completamente à mercê do empregador. É legítimo que os empregadores os tratem dessa maneira? Certamente não.
Mas e se as pessoas em tais situações se oferecerem para empregos abaixo do padrão, aparentemente de boa vontade? Em muitos lugares, trabalhadores não registrados estão disponíveis do lado de fora de lojas de jardinagem e materiais de construção, em mercados agrícolas e outros locais de encontro. É correto empregá-los? Em caso afirmativo, será que é responsabilidade dos empregadores fornecer os benefícios que os trabalhadores legais têm garantido por direito, como salário mínimo, auxílio-saúde, planos de aposentadoria, fundo de garantia e indenização por demissão? Como cristãos, devemos ser rigorosos sobre a legalidade de tal emprego, ou devemos ser flexíveis, com base no fato de que a legislação ainda não alcançou a realidade? Cristãos ponderados inevitavelmente vão diferir em suas conclusões a respeito disso e, portanto, é difícil justificar uma solução do tipo “tamanho único”. Seja como for que um cristão enxergue essas questões, Levítico nos lembra que a santidade (e não a conveniência prática) deve estar no centro de nosso pensamento. E a santidade em questões trabalhistas surge da preocupação com as necessidades dos trabalhadores mais vulneráveis.
Direitos das pessoas com deficiência (Levítico 19.14)
Voltar ao índice Voltar ao índice“Não amaldiçoem o surdo nem ponham pedra de tropeço à frente do cego, mas temam o seu Deus. Eu sou o Senhor” (Lv 19.14). Esses mandamentos pintam um quadro vívido do tratamento cruel dado a pessoas com deficiência. Um surdo não poderia ouvir se fosse amaldiçoado, nem um cego poderia ver a pedra. Por essas razões, Levítico 19.14 lembra os israelitas a “temer o seu Deus”, que ouve e vê como cada um é tratado no ambiente de trabalho. Por exemplo, os trabalhadores com deficiência não precisam necessariamente dos mesmos móveis e equipamentos de escritório que aqueles sem deficiência. Mas eles precisam sim ter a oportunidade de emprego em todo o âmbito de sua produtividade, assim como todos os outros. Em muitos casos, o que uma pessoa com deficiência mais precisa é não ser impedida de trabalhar numa função em que ela é capaz. Novamente, a ordem em Levítico não é que o povo de Deus deva ser caridoso para com os outros, mas que a santidade de Deus dá a todas as pessoas criadas à sua imagem o direito a oportunidades adequadas de trabalho.
Fazer justiça (Levítico 19.15-16)
Voltar ao índice Voltar ao índice“Não cometam injustiça num julgamento; não favoreçam os pobres, nem procurem agradar os grandes, mas julguem o seu próximo com justiça. Não espalhem calúnias entre o seu povo. Não se levantem contra a vida do seu próximo. Eu sou o Senhor”. (Lv 19.15-16)
Esta breve seção defende o conhecido valor bíblico da justiça e, em seguida, amplia consideravelmente o tema. O trecho começa com uma solicitação para juízes, mas termina com uma solicitação para todos. Não julgue processos judiciais com parcialidade e não julgue seu próximo injustamente. A redação do hebraico destaca a tentação de julgar a aparência externa de uma pessoa ou problema. Traduzido ao pé da letra, Levítico 19.15 diz: “Não cometam injustiça no julgamento. Não levantem o rosto do pobre e não honrem o rosto do grande. Com justiça julguem o seu próximo”. Os juízes não devem se deixar levar por seus preconceitos (o “rosto” que percebem) para tratar da questão de forma imparcial. O mesmo vale para nossos relacionamentos sociais no trabalho, na escola e na vida cívica. Em todos os contextos, algumas pessoas são privilegiadas e outras oprimidas por causa de preconceitos sociais de todo tipo. Imagine a diferença que nós cristãos poderíamos fazer se simplesmente esperássemos para emitir julgamentos apenas depois de conhecer pessoas e situações em profundidade. E se dedicássemos um tempo para conhecer melhor a pessoa irritante em nossa equipe antes de reclamar dela pelas costas? E se ousássemos passar um tempo com pessoas fora de nossa zona de conforto na escola, na universidade ou na vida social? E se procurássemos jornais, TV e mídias que oferecessem uma perspectiva diferente daquela com a qual nos sentimos confortáveis? Escavar abaixo da superfície nos daria mais sabedoria para fazer nosso trabalho bem e com justiça?
A última parte de Levítico 19.16 nos lembra que o preconceito social não é uma questão simples. Literalmente, o hebraico diz: “Não se coloque contra o sangue do seu próximo”. Na linguagem do tribunal, no trecho anterior, o testemunho tendencioso (“calúnia”) põe em risco a vida (“sangue”) do acusado. Nesse caso, não apenas seria errado falar palavras tendenciosas, mas seria errado até ficar de braços cruzados, sem se oferecer para testemunhar em favor dos falsamente acusados.
Os líderes nos ambientes de trabalho devem frequentemente agir como árbitros. Os trabalhadores podem testemunhar uma injustiça no ambiente de trabalho e legitimamente questionar se é ou não apropriado se envolver. Levítico afirma que permanecer proativamente a favor dos maltratados é um elemento essencial para pertencer ao povo santo de Deus.
Em um nível mais amplo, Levítico traz sua visão teológica de santidade para toda a comunidade. A saúde da comunidade e a economia que compartilhamos está em jogo. Hans Kung aponta a inter-relação necessária entre negócios, política e religião:
Não se deve esquecer que o pensamento e as ações econômicas também não são isentos ou neutros em termos de valores... Assim como a responsabilidade social e ecológica das empresas não pode ser simplesmente imposta aos políticos, a responsabilidade moral e ética não pode ser simplesmente imposta para a religião... Não, a ação ética não deve ser apenas um acréscimo particular aos planos de marketing, estratégias de vendas, contabilidade ecológica e balanços sociais, mas deve formar a estrutura natural para a ação social humana. [1]
Todo tipo de ambiente de trabalho — doméstico, empresarial, governamental, acadêmico, médico, agrícola e todo o resto — tem um papel distinto a desempenhar. No entanto, todos são chamados a ser santos. Em Levítico 19.15-16, a santidade começa por ver os outros com uma profundidade de percepção que vai além do valor aparente.
Amar o próximo como a si mesmo (Levítico 19.17-18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO versículo mais famoso de Levítico pode ser o mandamento: “Ame cama um o seu próximo como a si mesmo” (Lv 19.18). Esse imperativo é tão abrangente que tanto Jesus quanto os rabinos o consideravam um dos dois “grandes” mandamentos, sendo o outro “Ouve, ó Israel, o Senhor, o nosso Deus, o Senhor é o único Senhor” (Mc 12.29-31; cf. Dt 6.4). Ao citar Levítico 19.18, o apóstolo Paulo escreveu que “o amor é o cumprimento da lei” (Rm 13.10).
Trabalhar pelos outros tanto quanto por nós mesmos
O cerne da ordem está nas palavras “como a si mesmo”. Pelo menos até certo ponto, a maioria de nós trabalha para se sustentar. Há um forte elemento de interesse próprio no trabalho. Sabemos que, se não trabalharmos, não comeremos. As Escrituras elogiam essa motivação (2Ts 3.10), mas o aspecto “como a si mesmo” de Levítico 19.18 sugere que devemos estar igualmente motivados a servir aos outros por meio de nosso trabalho. Esse é um chamado muito importante: trabalhar tanto para servir aos outros quanto para atender às nossas próprias necessidades. Se tivéssemos de trabalhar o dobro para conseguir isso — digamos, um turno por dia para nós mesmos e outro para o próximo — seria quase impossível.
Providencialmente, é possível amar a nós mesmos e ao próximo por meio do mesmo trabalho, pelo menos na medida em que nosso trabalho forneça algo de valor a clientes, cidadãos, estudantes, familiares e outros consumidores. Um professor recebe um salário que paga as contas e, ao mesmo tempo, transmite aos alunos conhecimentos e habilidades que serão igualmente valiosos para eles. Uma camareira de hotel recebe seu salário enquanto oferece aos hóspedes um quarto limpo e saudável. Na maioria dos empregos, não ficaríamos empregados por muito tempo se não oferecêssemos aos outros um valor pelo menos igual ao que recebemos de salário. Mas e se nos encontrarmos em uma situação em que possamos distorcer os benefícios a nosso favor? Algumas pessoas podem ter poder suficiente para exigir salários e bônus que excedam o valor que realmente fornecem. Pessoas com conexões políticas ou envolvida em corrupção podem conseguir grandes recompensas para si mesmos na forma de contratos, subsídios, bônus e empregos temporários, enquanto fornecem pouco valor para os outros. Quase todos nós temos momentos em que podemos fugir de nossos deveres e, ainda assim, ser pagos.
Pensando de forma mais ampla, se temos uma ampla gama de opções em nosso trabalho, qual é o papel de servir aos outros em nossas decisões de trabalho, em comparação com fazer o máximo para nós mesmos? Quase todo tipo de trabalho pode servir aos outros e agradar a Deus. Mas isso não significa que todo emprego ou oportunidade de trabalho seja igualmente útil para os outros. Amamos a nós mesmos quando fazemos escolhas de trabalho que nos trazem altos salários, prestígio, segurança, conforto e trabalho fácil. Amamos os outros quando escolhemos um trabalho que forneça bens e serviços necessários, oportunidades para pessoas marginalizadas, proteção para a criação de Deus, justiça e democracia, verdade, paz e beleza. Levítico 19.18 sugere que os últimos devem ser tão importante para nós quanto os primeiros.
Ser legal?
Em vez de nos esforçarmos para cumprir esse alto chamado, é fácil transformar nosso entendimento de “amar ao próximo como a si mesmo” em algo banal como “ser legal”. Mas ser legal muitas vezes nada mais é do que uma fachada e uma desculpa para nos desconectarmos das pessoas ao nosso redor. Levítico 19.17 nos ordena fazer o oposto. “Repreendam com franqueza o seu próximo para que, por causa dele, não sofram as consequências de um pecado” (Lv 19.17). Esses dois mandamentos — tanto amar quanto repreender o próximo — parecem improváveis, mas são reunidos no provérbio: “Melhor é a repreensão feita abertamente do que o amor oculto” (Pv 27.5).
Lamentavelmente, muitas vezes a lição que aprendemos na igreja é sempre sermos legais. Se isso se tornar nossa regra no ambiente de trabalho, os efeitos pessoais e profissionais podem ser desastrosos. A gentileza pode induzir os cristãos a permitirem que agressores e predadores manipulem e abusem deles — e que façam o mesmo com outros. Para ser legal, um gerente cristão pode encobrir as deficiências dos trabalhadores nas avaliações de desempenho, privando-os de um motivo para aprimorar suas habilidades e manter seus empregos a longo prazo. Ao querer ser legal, qualquer pessoa pode guardar ressentimento, alimentar rancor ou buscar vingança. Levítico nos diz que amar as pessoas às vezes significa repreender honestamente. Esta não é uma licença para a insensibilidade. Quando repreendemos, precisamos fazê-lo com compaixão e humildade — afinal, também podemos precisar ser repreendidos na situação.
Para uma discussão mais completa sobre o que significa amar ao próximo como a si mesmo no ambiente de trabalho, veja “A abordagem de comando na prática” e “A abordagem do caráter” em Visão geral da ética no trabalho em www.teologiadotrabalho.org.
Quem é meu próximo? (Levítico 19.33-34)
Voltar ao índice Voltar ao índiceLevítico ensina que os israelitas não devem maltratar (ou oprimir) os estrangeiros que viviam entre eles (Lv 19.33). (O mesmo verbo hebraico aparece em Lv 25.17, “Não explorem um ao outro.”) A ordem continua: “O estrangeiro residente que viver com vocês deverá ser tratado como o natural da terra. Amem-no como a si mesmos, pois vocês foram estrangeiros no Egito. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês” (Lv 19.34). Esse versículo é um exemplo particularmente forte da conexão inquebrável em Levítico entre a força moral da lei (amar o estrangeiro “como a si mesmos”) e o próprio ser de Deus: “Eu sou o Senhor, o Deus de vocês”. Você não oprime estrangeiros pois pertence a um Deus que é santo.
Estrangeiros residentes, junto com viúvas e pobres (veja Lv 19.9-10 acima), tipificam os forasteiros sem poder. Nos ambientes de trabalho de hoje, as diferenças de poder surgem não apenas das diferenças de nacionalidade e gênero, mas também de uma variedade de outros fatores. Seja qual for a causa, a maioria dos ambientes de trabalho desenvolve uma hierarquia de poder que é bem conhecida por todos, independentemente de ser abertamente reconhecida. Com Levítico 19.33-34, podemos concluir que os cristãos devem tratar outras pessoas com justiça nos negócios, como uma expressão de adoração genuína a Deus.
Negociar com justiça (Levítico 19.35-36)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEssa passagem proíbe trapaças nos negócios, usando medidas enganosas de comprimento, peso ou quantidade, e isso se torna ainda mais específica ao mencionar balanças e pesos, equipamentos comuns do comércio. As várias medidas mencionadas indicam que essa regra se aplicaria a um amplo espectro, desde vastas extensões de terra até a menor quantidade de mercadorias secas e úmidas. A palavra hebraica tsedeq (“honesto”) que aparece quatro vezes em Levítico 19.36 denota um caráter que é certo em termos de integridade e de irrepreensibilidade. Todos os pesos e medidas devem ser precisos. Em suma, os compradores devem receber aquilo pelo que pagaram.
Os vendedores possuem inúmeras e variadas maneiras de entregar menos do que os compradores pensam que estão recebendo. Essas medidas não se limitam a medidas falsificadas de peso, área e volume. Afirmações exageradas, estatísticas enganosas, comparações irrelevantes, promessas que não podem ser cumpridas, propaganda enganosa e termos e condições ocultos são apenas a ponta do iceberg. (Para aplicações em vários ambientes de trabalho, veja “Apreciação da verdade no ambiente de trabalho” em www.teologiadotrabalho.org.)
Uma mulher que trabalha para uma grande emissora de cartões de crédito conta uma história perturbadora:
Nosso negócio é fornecer cartões de crédito a pessoas pobres com histórico de crédito ruim. Embora cobremos altas taxas de juros, a taxa de inadimplência de nossos clientes é tão alta que não podemos lucrar simplesmente cobrando juros. Temos de encontrar uma maneira de cobrar encargos.
Um desafio é que a maioria de nossos clientes tem medo de se endividar ainda mais e, por isso, paga o saldo mensal em dia. Assim, não há encargos para cobrarmos. Portanto, temos um truque para pegá-los desprevenidos. Nos primeiros seis meses, enviamos uma conta no dia 15 do mês, com vencimento no dia 15 do seguinte. Eles aprendem o padrão e diligentemente fazem o pagamento no dia 14 todos os meses. No sétimo mês, enviamos a fatura no dia 12, com vencimento para o dia 12 do mês seguinte. Eles não percebem a mudança e fazem o pagamento no dia 14, como de costume. Agora nós os pegamos. Cobramos uma taxa de serviço de US$ 30 pelo atraso no pagamento. Além disso, como eles estão inadimplentes, podemos aumentar sua taxa de juros. No mês seguinte, eles já estão em atraso e em um ciclo que gera encargos para nós, mês após mês.[1]
É difícil ver como qualquer comércio ou negócio que dependa de mentir ou enganar as pessoas para obter lucro possa ser uma linha de trabalho adequada para aqueles que são chamados a seguir um Deus santo.
O ano sabático e o ano do jubileu (Levítico 25)
Voltar ao índice Voltar ao índiceLevítico 25 ordena um ano sabático, um em cada sete (Lv 25.1-7), e um ano de jubileu, um em cada cinquenta (Lv 25.8-17), para santificar a economia interna de Israel. No ano sabático, cada campo deveria ficar em repouso, o que parece ser uma boa prática agrícola. O ano do jubileu era muito mais radical. A cada 50 anos, todas as terras arrendadas ou hipotecadas deveriam ser devolvidas a seus proprietários originais, e todos os escravos e trabalhadores em servidão deveriam ser libertados (Lv 25.10). Isso naturalmente apresentou dificuldades nas transações bancárias e de terras, e disposições especiais foram projetadas para melhorá-las (Lv 25.15-16), que exploraremos em seguida. A intenção subjacente é a mesma vista na lei da respiga (Lv 19.9-10), ou seja, garantir que todos tenham acesso aos meios de produção, seja a fazenda da família ou simplesmente os frutos de seu próprio trabalho.
Não se sabe com certeza se Israel realmente observou o ano do jubileu ou as disposições antiescravidão associadas a ele (por exemplo, Lv 25.25-28,39-41) em larga escala. Independentemente disso, o simples detalhe de Levítico 25 sugere fortemente que tratemos as leis como algo que Israel fez ou deveria ter implementado. Em vez de ver o ano do jubileu como uma ficção literária utópica, parece melhor acreditar que sua negligência generalizada ocorreu não porque o jubileu era inviável, mas porque os ricos não estavam dispostos a aceitar as implicações sociais e econômicas que teriam sido dispendiosas e perturbadoras para eles. [1]
Proteção para os necessitados
Depois que Israel conquistou Canaã, a terra foi atribuída aos clãs e famílias de Israel, conforme descrito em Números 26 e Josué 15—22. Esta terra nunca deveria ser vendida definitivamente, pois pertencia ao Senhor, não ao povo (Lv 25.23-24). [2] O efeito do jubileu era impedir que qualquer família se tornasse permanentemente sem terra por meio da venda, hipoteca ou arrendamento permanente da terra que lhe havia sido designada. Em essência, qualquer venda de terra era realmente um contrato de arrendamento que não poderia durar mais do que o próximo ano do jubileu (Lv 25.15). Isso fornecia um meio para que os necessitados arrecadassem dinheiro (arrendando a terra) sem privar as futuras gerações da família dos meios de produção. As regras de Levítico 25 não são fáceis de decifrar, e Milgrom as entende ao definir três estágios progressivos de pobreza. [3]
- O primeiro estágio é descrito em Levítico 25.25-28. Uma pessoa poderia simplesmente se tornar pobre. O cenário presumido é o de um agricultor que pediu dinheiro emprestado para comprar sementes, mas não colheu o suficiente para pagar o empréstimo. Ele, portanto, deve vender parte da terra a um comprador, a fim de cobrir a dívida e comprar sementes para o próximo plantio. Se houvesse uma pessoa pertencente ao clã do agricultor que desejasse atuar como “resgatador”, ela poderia pagar ao comprador de acordo com o número de colheitas anuais restantes até o ano do jubileu; depois disso, a terra voltaria para o agricultor. Até lá, a terra pertenceria ao resgatador, que cederia a terra para que o fazendeiro a cultivasse.
- O segundo estágio era mais sério (Lv 25.35-38). Supondo que a terra não fosse resgatada e que o agricultor voltasse a ter uma dívida da qual não pudesse se recuperar, ele perderia todas as suas terras para o credor. Nesse caso, o credor deveria emprestar ao agricultor os fundos necessários para continuar trabalhando como arrendatário em sua própria terra, mas sem cobrar juros. O agricultor amortizava esse empréstimo com o lucro obtido com as colheitas, talvez eliminando a dívida. Nesse caso, o agricultor recuperaria sua terra. Se o empréstimo não fosse totalmente pago antes do jubileu, então a terra voltaria para o fazendeiro ou seus herdeiros.
- O terceiro estágio era ainda mais sério (Lv 25.39-43). Supondo que o agricultor no estágio anterior não pudesse pagar o empréstimo nem mesmo sustentar a si mesmo e sua família, ele ficaria temporariamente vinculado à família do credor. Como trabalhador vinculado, ele trabalharia por salários, que eram inteiramente voltados para redução da dívida. No ano do jubileu, ele recuperaria sua terra e sua liberdade (Lv 25.41). Ao longo desses anos, o credor não deveria escravizá-lo, vendê-lo como escravo ou dominá-lo impiedosamente (Lv 25.42-43). O credor deve “temer a Deus”, aceitando o fato de que todo o povo de Deus é “escravo” (ou “servo”) de Deus que ele graciosamente tirou do Egito. Ninguém mais pode possuí-los, porque Deus já os possui.
O ponto principal dessas regras é que os israelitas nunca deveriam se tornar escravos de outros israelitas. Era concebível, porém, que israelitas empobrecidos pudessem se vender como escravos a ricos estrangeiros residentes que viviam na terra (Lv 25.47-55). Mesmo que isso tenha acontecido, a venda não deveria ser permanente. As pessoas que se vendiam deviam manter o direito de se livrar da escravidão, se viessem a prosperar. Caso contrário, um parente próximo poderia intervir como “resgatador”, pagando ao estrangeiro de acordo com o número de anos restantes até o jubileu, quando os israelitas empobrecidos seriam libertados. Durante esse tempo, eles não deveriam ser tratados com severidade, mas seriam considerados trabalhadores contratados.
O que o ano do jubileu significa para hoje?
O ano do jubileu operava dentro do contexto do sistema de parentesco de Israel para a proteção do direito inalienável do clã de trabalhar em sua terra ancestral, que eles entendiam ser propriedade de Deus e que deveria ser desfrutada por eles como um benefício de seu relacionamento com Deus. Essas condições sociais e econômicas não existem mais e, do ponto de vista bíblico, Deus não administra mais o resgate por meio de um único estado político. Devemos, portanto, ver o jubileu do nosso ponto de vista atual.
Existe uma grande variedade de perspectivas sobre a aplicação adequada — se é que há uma — do jubileu às sociedades de hoje. Para citar um exemplo que se relaciona seriamente com as realidades contemporâneas, Christopher Wright escreveu extensivamente sobre a apropriação cristã das leis do Antigo Testamento. [4] Ele identifica princípios implícitos nessas leis antigas, a fim de compreender suas implicações éticas para os dias de hoje. Seu tratamento do ano do jubileu considera, portanto, três ângulos básicos: o teológico, o social e o econômico. [5]
Teologicamente, o jubileu afirma que o Senhor não é apenas o Deus que possui a terra de Israel; ele é soberano sobre todo o tempo e a natureza. Seu ato de resgatar seu povo do Egito trazia o compromisso de sustentá-los em todos os níveis, porque eles eram seus. Portanto, a observância de Israel quanto ao sábado, ao ano sabático e ao ano do jubileu era uma questão de obediência e confiança. Em termos práticos, o ano do jubileu encarna a confiança que todos os israelitas poderiam ter de que Deus proveria suas necessidades imediatas e o futuro de suas famílias. Ao mesmo tempo, exorta os ricos a confiarem que tratar os credores com compaixão ainda trará um retorno adequado.
Olhando para o ângulo social, a menor unidade da estrutura de parentesco de Israel era a família, que incluiria de três a quatro gerações. O jubileu forneceu uma solução socioeconômica para manter a família inteira, mesmo diante da calamidade econômica. A dívida familiar era uma realidade nos tempos antigos, como é hoje, e seus efeitos incluem uma lista assustadora de males sociais. O jubileu procurou conter essas consequências sociais negativas, limitando sua duração, para que as gerações futuras não tivessem de arcar com o fardo de seus ancestrais distantes. [6]
O ângulo econômico revela os dois princípios que podemos aplicar hoje. Primeiro, Deus deseja uma distribuição justa dos recursos da terra. De acordo com o plano de Deus, a terra de Canaã foi distribuída de forma equitativa entre o povo. O jubileu não dizia respeito a redistribuição, mas a restauração. De acordo com Wright, “o jubileu, portanto, representa uma crítica não apenas à massiva acumulação privada de terra e de riqueza relacionada, mas também a formas em larga escala de coletivismo ou nacionalização que destroem qualquer senso significativo de propriedade pessoal ou familiar”. [7] Em segundo lugar, as unidades familiares devem ter a oportunidade e os recursos para se sustentarem.
Na maioria das sociedades modernas, as pessoas não podem ser vendidas como escravas para pagar dívidas. As leis de falência fornecem alívio para aqueles que têm dívidas impagáveis, e os descendentes não são responsáveis pelas dívidas dos antepassados. A propriedade básica necessária para a sobrevivência pode ser protegida contra apreensão. No entanto, Levítico 25 parece oferecer uma base mais ampla do que as leis de falências contemporâneas. Ela se baseia não apenas em proteger a liberdade pessoal e um pouco de propriedade para pessoas carentes, mas em garantir que todos tenham acesso aos meios de ganhar a vida e escapar da pobreza multigeracional. Como mostram as leis de respiga em Levítico, a solução não é esmola nem a apropriação em massa da propriedade, mas valores e estruturas sociais que dão a cada pessoa a oportunidade de trabalhar de forma produtiva. As sociedades modernas realmente ultrapassaram o antigo Israel nesse aspecto? E quanto aos milhões de pessoas escravizadas ou em trabalho escravo, ainda hoje, enfrentando situações em que as leis antiescravidão não são aplicadas adequadamente? O que seria necessário para que os cristãos fossem capazes de oferecer soluções reais?
Conclusões de Levítico
Voltar ao índice Voltar ao índiceA conclusão mais importante que podemos tirar de Levítico é que somos chamados como povo de Deus a refletir a santidade de Deus em nosso trabalho. Isso nos chama a nos separar das ações de qualquer pessoa ao nosso redor que se oponha aos caminhos de Deus. Quando refletimos a santidade de Deus, nos encontramos na presença de Deus, seja no trabalho, em casa, na igreja ou na sociedade. Refletimos a santidade de Deus não pendurando versículos das Escrituras, recitando orações, usando cruzes ou mesmo sendo gentis. Fazemos isso amando nossos colegas de trabalho, clientes, alunos, investidores, concorrentes, rivais e todos que encontramos, tanto quanto amamos a nós mesmos. Em termos práticos, isso significa fazer tanto bem aos outros por meio de nosso trabalho quanto fazemos a nós mesmos. Isso anima nossa motivação, nossa diligência, nosso exercício de poder, nosso desenvolvimento de habilidades e talvez até nossa escolha de trabalho. Também significa trabalhar em benefício de toda a comunidade e em harmonia com o restante da sociedade, na medida em que depende de nós. E significa trabalhar para mudar as estruturas e os sistemas da sociedade para que reflitam a santidade de Deus como aquele que libertou Israel da escravidão e da opressão. Quando fazemos isso, descobrimos, pela graça de Deus, que suas palavras se cumprem: “Estabelecerei a minha habitação entre vocês e não os rejeitarei. Andarei entre vocês e serei o seu Deus, e vocês serão o meu povo” (Lv 26.11-12).
Introdução a Números
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Números contribui significativamente para nossa compreensão e prática do trabalho. O livro apresenta o povo de Deus, Israel, lutando para trabalhar de acordo com os propósitos de Deus em tempos difíceis. Em suas lutas, eles experimentam conflitos sobre identidade, autoridade e liderança, enquanto atravessam o deserto em direção à terra prometida de Deus. A maior parte da percepção que podemos obter para nosso trabalho vem pelo exemplo, onde vemos o que agrada a Deus e o que não agrada a Deus, e não por uma série de mandamentos.
O livro é chamado de “Números” em português porque registra uma série de censos que Moisés fez das tribos de Israel. Censos foram feitos para quantificar os recursos humanos e naturais disponíveis para os assuntos econômicos e governamentais, incluindo o serviço militar (Nm 1.2-3; 26.2-4), deveres religiosos (Nm 4.2-3,22-23), tributação (Nm 3.40-48) e agricultura (Nm 26.53-54). A alocação eficaz de recursos depende de dados confiáveis. Mas esses censos servem como estrutura para uma narrativa que vai além de apenas relatar os números. Nas narrativas, as estatísticas são frequentemente mal utilizadas, levando à dissensão, rebelião e agitação social. O raciocínio quantitativo em si não é o problema — o próprio Deus ordena censos (Nm 1.1-2). Mas, quando a análise numérica é usada como pretexto para se desviar da palavra do Senhor, segue-se o desastre (Nm 14.20-25). Um eco distante dessa manipulação de números como um substituto para o raciocínio moral genuíno pode ser ouvido nos escândalos contábeis e nas crises financeiras de hoje.
O relato de Números se passa naquela região desértica que não é o Egito nem a terra prometida. O título hebraico do livro, bemidbar, é uma abreviação para a frase “no deserto do Sinai” (Nm 1.1), que descreve a ação principal do livro — a jornada de Israel pelo deserto. A nação progride do Sinai em direção à terra prometida, terminando com a chegada de Israel à região a leste do rio Jordão. Eles chegaram a esse local porque a “mão poderosa” de Deus (Êx 6.1) os libertou da escravidão no Egito, a história contada no livro do Êxodo. Uma coisa era tirar o povo da escravidão; tirar a escravidão do povo provaria ser outra coisa bem diferente. Em suma, o livro de Números fala sobre a vida com Deus durante a jornada para o destino de suas promessas, uma jornada que nós, como povo de Deus, ainda estamos empreendendo. Na experiência de Israel no deserto, encontramos recursos para os desafios em nossa vida e trabalho hoje, e podemos obter encorajamento da ajuda sempre presente de Deus.
Deus numera e ordena a nação de Israel (Números 1.1—2.34)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAntes do Êxodo, Israel nunca havia sido uma nação. Israel começou como a família de Abraão e Sara e seus descendentes, prosperou como um clã sob a liderança de José, mas caiu em escravidão como minoria étnica no Egito. A população israelita no Egito cresceu e se tornou do tamanho de uma nação (Êx 12.37), mas, como povo escravizado, não lhes era permitido instituições ou organizações nacionais. Eles haviam partido do Egito como uma multidão desorganizada de refugiados (Êx 12.34-39), que agora precisava ser organizada em uma nação funcional.
Deus instrui Moisés a enumerar a população (o primeiro censo, Nm 1.1-3) e criar um governo provisório chefiado por líderes tribais (Nm 1.4-16). Sob a direção adicional de Deus, Moisés nomeia uma ordem religiosa, os levitas, e os equipa com recursos para construir o tabernáculo da aliança (Nm 1.48-54). Ele estabelece acampamentos para todo o povo, depois arregimenta os homens em idade de combate em escalões militares e nomeia comandantes e oficiais (Nm 2.1-9). Ele cria uma burocracia, delega autoridade a líderes qualificados e institui um judiciário civil e um tribunal de apelação (isso é dito em Êx 18.1-27, em vez de Números). Antes que Israel possa entrar na posse da terra prometida (Gn 28.15) e cumprir sua missão de abençoar todas as nações (Gn 18.18), a nação teve de ser organizada de forma eficaz.
As atividades de organização, liderança, governança e desenvolvimento de recursos dirigidas por Moisés encontram paralelos em praticamente todos os setores da sociedade atual — negócios, governo, forças armadas, educação, religião, organizações sem fins lucrativos, associações de bairro e até famílias. Nesse sentido, Moisés é o padrinho de todos os gerentes, contadores, estatísticos, economistas, oficiais militares, governadores, juízes, policiais, diretores, líderes comunitários e uma infinidade de outros. A atenção detalhada que Números dá à organização de obreiros, ao treinamento de líderes, à criação de instituições civis, ao desenvolvimento de capacidades logísticas, à estruturação de defesas e ao desenvolvimento de sistemas contábeis sugere que Deus ainda orienta e capacita a organização, o governo, os recursos e a manutenção das estruturas sociais hoje.
Os levitas e a obra de Deus (Números 3—8)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO texto de Números 3—8 se concentra no trabalho dos sacerdotes e levitas. (Os levitas são a tribo cujos homens servem como sacerdotes — em grande parte, os termos são intercambiáveis em Números.) Eles têm o papel essencial de mediar a redenção de Deus para todo o povo (Nm 3.40-51). Como outros trabalhadores, eles são enumerados e organizados em unidades de trabalho, embora estejam isentos do serviço militar (Nm 4.2-3,22-23). Pode parecer que o trabalho deles receba um destaque como mais importante do que o trabalho dos outros, pois lida com as “coisas santíssimas” (Nm 4.4). É verdade que a atenção particularmente detalhada dada à Tenda do Encontro e seus utensílios parece elevar o papel dos sacerdotes a um nível mais alto do que o restante do povo. Mas o texto, na verdade, retrata o quão intrincadamente seu trabalho está relacionado ao trabalho de todos os israelitas. Os levitas ajudam todas as pessoas a alinharem sua vida e seu trabalho com a lei e os propósitos de Deus. Além disso, o trabalho realizado pelos levitas na tenda é bastante semelhante ao trabalho da maioria dos israelitas — desmontar, mover e montar acampamento, acender fogo, lavar roupa, abater animais e processar grãos. A ênfase, então, está na integração do trabalho dos levitas com o de todos os outros. Números dá uma atenção cuidadosa ao trabalho dos sacerdotes de mediar a presença de Deus, não porque o trabalho religioso seja a ocupação mais importante, mas porque Deus é o ponto central de cada ocupação.
Oferecendo a Deus os produtos de nosso trabalho (Números 4 e 7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO Senhor dá instruções detalhadas para montar a Tenda do Encontro, o local de sua presença com Israel. A Tenda do Encontro requer materiais produzidos por uma grande variedade de trabalhadores — couro fino, tecido azul, tecido vermelho, cortinas, varas e molduras, pratos, travessas, tigelas, jarros, candelabros, apagadores, bandejas, óleo e vasos para guardá-lo, um altar de ouro, panelas de fogo, garfos, pás, bacias e incenso aromático (Nm 4.5-15). (Para uma descrição semelhante, veja “O tabernáculo”, em Êxodo 31.1-12.) No decorrer da adoração, o povo traz para ela outros produtos do trabalho humano, como ofertas de bebidas (Nm 4.7 e outros), grãos (4.16 e outros), óleo (7.13 e outros), cordeiros e ovelhas (6.12 e outros), cabras (7.16 e outros) e metais preciosos (7.25 e outros). Praticamente todas as ocupações — na verdade, quase todas as pessoas — em Israel são necessárias para tornar possível a adoração a Deus na Tenda do Encontro.
Os levitas alimentavam suas famílias principalmente com uma parte dos sacrifícios. Estes foram distribuídos aos levitas porque, ao contrário das outras tribos, eles não receberam terras para cultivar (Nm 18.18-32). Os levitas não recebiam sacrifícios porque eles eram homens santos, mas porque, presidindo os sacrifícios, levavam todos a uma relação santa com Deus. O povo, e não os levitas, era o principal beneficiário dos sacrifícios. Na verdade, o próprio sistema sacrificial era um componente do sistema de suprimento de alimentos de Israel. Além de algumas porções queimadas no altar e da porção dos levitas, mencionada acima, as partes principais das ofertas de cereais e de animais eram destinadas ao consumo daqueles que as traziam. [1] Assim, todos em Israel foram, em parte, alimentados pelo sistema. No geral, o sistema sacrificial não servia para isolar algumas coisas sagradas do restante da produção humana, mas para mediar a presença de Deus em toda a vida e obra da nação.
Da mesma forma, hoje, os produtos e serviços de todo o povo de Deus são expressões do poder de Deus em ação nos seres humanos, ou pelo menos deveriam ser. O Novo Testamento desenvolve esse tema explicitamente a partir do Antigo Testamento. “Vocês, porém, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus, para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1Pe 2.9). Todo o trabalho que fazemos, quando a bondade de Deus é proclamada, é um trabalho sacerdotal. Os itens que produzimos — couro e tecidos, pratos e recipientes, materiais de construção, planos de aula, previsões financeiras e todo o resto — são itens sacerdotais. O trabalho que fazemos — lavar roupas, plantar, criar filhos e todas as outras formas de trabalho legítimo — é um serviço sacerdotal a Deus. Todos nós devemos perguntar: “Como meu trabalho reflete a bondade de Deus, torna-o visível para aqueles que não o reconhecem e serve a seus propósitos no mundo?” Todos os crentes, não apenas o clero, são descendentes dos sacerdotes e levitas em Números, fazendo a obra de Deus todos os dias.
Arrependimento, restituição e reconciliação (Números 5.5-10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUm papel essencial do povo de Deus é levar reconciliação e justiça a cenas de conflito e abuso. Embora o povo de Israel se comprometesse a obedecer aos mandamentos de Deus, eles rotineiramente falhavam, assim como nós fazemos hoje. Muitas vezes, isso acontecia na forma de maltratar outras pessoas. “Quando um homem ou uma mulher prejudicar outra pessoa e, portanto, ofender o Senhor, será culpado” (Nm 5.6). Por meio da obra dos levitas, Deus fornece um meio de arrependimento, restituição e reconciliação após tais erros. Um elemento essencial é que a parte culpada não apenas retribua a perda que causou, mas também acrescente 20% (Nm 5.7), presumivelmente como uma forma de sofrer a perda em solidariedade à vítima. (Esta passagem é paralela à oferta pela culpa descrita em Levítico; veja “O significado da oferta pela culpa”, em Levítico e o trabalho.)
O Novo Testamento dá um exemplo vívido desse princípio em ação. Quando o cobrador de impostos Zaqueu vem para a salvação em Cristo, ele se oferece para devolver quatro vezes a quantia que cobrou a mais de seus concidadãos. Um exemplo mais moderno — embora não fundamentado explicitamente na Bíblia — é a prática crescente de hospitais admitirem erros, pedirem desculpas e oferecerem restituição financeira imediata e assistência aos pacientes e famílias envolvidas. [1] Mas você não precisa ser um coletor de impostos ou um médico para cometer erros. Todos nós temos amplas oportunidades de confessar nossos erros e nos oferecer para compensá-los e muito mais. É no local de trabalho que grande parte desse desafio ocorre. No entanto, realmente fazemos isso ou tentamos encobrir nossas falhas e minimizar nossa responsabilidade?
A bênção de Arão para o povo (Números 6.22-27)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUm dos principais papéis dos levitas é invocar a bênção de Deus. Deus ordena estas palavras para a bênção sacerdotal:
O Senhor te abençoe e te guarde;
o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça;
o Senhor volte para ti o seu rosto e te dê paz. (Nm 6.24-26)
Deus abençoa as pessoas de inúmeras maneiras — espiritual, mental, emocional e material. Mas o foco aqui é abençoar as pessoas com palavras. Nossas boas palavras se tornam o momento da graça de Deus na vida das pessoas. “Assim eles invocarão o meu nome sobre os israelitas, e eu os abençoarei”, Deus promete (Nm 6.27).
As palavras que usamos em nosso ambiente de trabalho têm o poder de abençoar ou amaldiçoar, edificar ou destruir outros. Nossa escolha de palavras muitas vezes tem mais poder do que imaginamos. A bênção em Números 6.24-26 declara que Deus o “guardará”, concederá “graça” a você e lhe dará “paz”. No trabalho, nossas palavras podem “guardar” outra pessoa — ou seja, tranquilizar, proteger e apoiar. “Se precisar de ajuda, venha até mim. Não vou usar isso contra você.” Nossas palavras podem ser cheias de “graça”, fazendo com que uma situação seja melhor do que seria de outra forma. Podemos aceitar a responsabilidade por um erro compartilhado, por exemplo, em vez de transferir a culpa e minimizar nosso papel. Nossas palavras podem trazer paz ao restaurar relacionamentos que foram rompidos. “Percebo que as coisas deram errado entre nós, mas quero encontrar uma maneira de ter um bom relacionamento novamente”, por exemplo. Claro, há momentos em que temos de contestar, criticar, corrigir e talvez punir os outros no trabalho. Mesmo assim, podemos escolher entre criticar a ação errada ou condenar a pessoa como um todo. Por outro lado, quando os outros se saem bem, podemos optar por elogiar em vez de ficar em silêncio, apesar do pequeno risco para nossa reputação ou situação.
Aposentadoria do serviço regular (Números 8.23-26)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNúmeros contém a única passagem da Bíblia que especifica um limite de idade para o trabalho. Os levitas começaram em seu serviço ainda jovens, sendo fortes o suficiente para erguer e transportar o tabernáculo com todos os seus elementos sagrados. Os censos de Números 4 não incluíam nomes de levitas com mais de cinquenta anos, e Números 8.25 especifica que, aos cinquenta anos de idade, os levitas deviam se aposentar de seus deveres. Além do trabalho pesado do tabernáculo, o trabalho dos levitas também incluía inspecionar de perto as doenças da pele (Lv 13). Em uma época anterior aos óculos de grau, praticamente ninguém com mais de cinquenta anos seria capaz de ver qualquer coisa de perto. O ponto aqui não é definir que cinquenta anos seja a idade universal para a aposentadoria, mas mostrar que chegará um momento em que um corpo que envelhece terá menos eficácia no trabalho. O processo varia muito entre indivíduos e ocupações. Moisés tinha oitenta anos quando começou seus deveres como líder de Israel (Êx 7.7).
A aposentadoria, no entanto, não foi o fim do trabalho dos levitas. O objetivo não era retirar do serviço os trabalhadores produtivos, mas redirecionar seu serviço para uma direção mais madura, dadas as condições de sua ocupação. Após a aposentadoria, eles ainda podiam “ajudar seus companheiros de ofício na responsabilidade de cuidar da Tenda do Encontro” (Nm 8.26). Às vezes, algumas faculdades — juízo, sabedoria e perspicácia, talvez — podem realmente melhorar com o avançar da idade. Ao “ajudar seus irmãos”, os levitas mais velhos passaram a adotar diferentes maneiras de servir suas comunidades. As noções modernas de aposentadoria, que consistem em deixar de trabalhar e dedicar tempo exclusivamente ao lazer, não são encontradas na Bíblia.
Como os levitas, não devemos buscar a cessação total do trabalho significativo na velhice. Podemos querer ou precisar abrir mão de nossas posições, mas nossas habilidades e sabedoria ainda são valiosas. Podemos continuar a servir aos outros em nossas ocupações por meio da liderança em associações comerciais, organizações sociais, conselhos de administração e órgãos de licenciamento. Podemos prestar consultoria, treinar, ensinar ou orientar. Podemos finalmente ter tempo para servir ao máximo na igreja, nos clubes, nos cargos eletivos ou nas organizações de serviço. Talvez possamos investir mais tempo com nossa família, ou, se for tarde demais para isso, na vida de outras crianças e jovens. Muitas vezes, nosso novo serviço mais valioso é treinar e encorajar (abençoar) os trabalhadores mais jovens (veja Nm 6.24-27).
Dadas essas possibilidades, a velhice pode ser um dos períodos mais satisfatórios da vida de uma pessoa. Infelizmente, a aposentadoria deixa muitas pessoas de lado no momento em que seus dons, recursos, tempo, experiência, redes de relacionamentos, influência e sabedoria podem ser mais benéficos. Alguns decidem buscar apenas lazer e entretenimento ou simplesmente desistir da vida. Outros acham que as regulamentações relacionadas à idade e a marginalização social os impedem de trabalhar tão plenamente quanto desejam. Um artigo de Ian Rose para a BBC, “Por que mentimos sobre estar aposentado”, explora os desafios que as pessoas enfrentam na aposentadoria, especialmente se entram na aposentadoria esperando parar de trabalhar pelo resto da vida.
Há muito pouco material nas Escrituras de onde podemos extrair uma teologia abrangente sobre a aposentadoria. Mas, à medida que envelhecemos, cada um de nós pode se preparar para a aposentadoria com tanto ou mais cuidado quanto nos preparamos para o trabalho. Quando jovens, podemos respeitar e aprender com colegas mais experientes. Em todas as idades, podemos trabalhar em prol de políticas e práticas de aposentadoria mais justas e produtivas para trabalhadores mais jovens e mais velhos.
O desafio à autoridade de Moisés (Números 12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm Números 12, o irmão e a irmã de Moisés, Arão e Miriã, tentam iniciar uma revolta contra sua autoridade. Eles parecem ter uma reclamação justificável. Moisés ensina que os israelitas não devem se casar com estrangeiros (Dt 7.3), mas ele mesmo tem uma esposa estrangeira (Nm 12.1). Se essa reclamação tivesse sido sua verdadeira preocupação, eles poderiam tê-la levado a Moisés ou ao conselho de anciãos que ele havia formado recentemente (Nm 11.16-17) para resolução. Em vez disso, eles se mobilizam para se colocar no lugar de Moisés como líderes da nação. Na realidade, sua reclamação foi apenas um pretexto para começar uma rebelião geral com o objetivo de se elevar a posições de poder supremo.
Deus os pune severamente em nome de Moisés. Ele relembra que escolheu Moisés como seu representante para Israel, falando “face a face” com Moisés, e confia a ele “toda a minha casa” (Nm 12.7-8). “Por que não temeram criticar meu servo Moisés?” ele questiona (Nm 12.8). Como não recebe resposta, Números nos diz que “a ira do Senhor acendeu-se contra eles” (Nm 12.9). Seu castigo recai primeiro sobre Miriã, que se torna leprosa a ponto de quase morrer, e Arão implora a Moisés que lhes perdoe (Nm 12.10-12). A autoridade do líder escolhido por Deus deve ser respeitada, pois rebelar-se contra esse líder é rebelar-se contra o próprio Deus.
Quando temos queixas contra aqueles que estão em posição de autoridade
Deus estava presente de forma singular na liderança de Moisés. “Em Israel nunca mais se levantou profeta como Moisés, a quem o Senhor conheceu face a face” (Dt 34.10). Os líderes de hoje não manifestam a autoridade de Deus face a face, como Moisés fez. No entanto, Deus ordena que respeitemos a autoridade de todos os líderes, “pois não há autoridade que não venha de Deus” (Rm 13.1-3). Isso não significa que os líderes nunca devam ser questionados, responsabilizados ou mesmo substituídos. Significa que, sempre que tivermos uma queixa contra aqueles que detêm autoridade legítima — como Moisés tinha —, nosso dever é discernir as maneiras pelas quais a liderança deles é uma manifestação da autoridade de Deus. Devemos respeitá-los por qualquer porção da autoridade de Deus que eles realmente detenham, mesmo quando procuramos corrigi-los, limitá-los ou até removê-los do poder.
Um detalhe revelador da história é que o propósito de Arão e Miriã era se colocar em posições de poder. A sede de poder nunca pode ser uma motivação legítima para se rebelar contra a autoridade. Se tivermos uma queixa contra nosso chefe, nossa esperança deve ser primeiramente resolvê-la com ele. Se o abuso de poder ou a incompetência do chefe impedirem isso, nosso próximo objetivo seria substituí-lo por alguém íntegro e capaz. Mas, se nosso propósito é ampliar nosso próprio poder, então nosso objetivo é falso e perdemos até mesmo a capacidade de perceber se o chefe está agindo legitimamente ou não. Nossos próprios desejos nos tornaram incapazes de discernir a autoridade de Deus na situação.
Quando os outros se opõem à nossa autoridade
Embora Moisés fosse poderoso e estivesse certo, ele responde ao desafio da liderança com gentileza e humildade. “Ora, Moisés era um homem muito paciente [“humilde”, NVT], mais do que qualquer outro que havia na terra” (Nm 12.3). Ele permanece com Arão e Miriã durante todo o episódio, mesmo quando eles começam a receber sua merecida punição. Ele intercede para que Deus restaure a saúde de Miriã, e consegue reduzir sua punição de morte para sete dias de isolamento fora do acampamento (Nm 12.13-15). Ele os mantém na liderança máxima da nação.
Se estivermos em posições de autoridade, provavelmente enfrentaremos oposição, tal como Moisés enfrentou. Considerando que nós, assim como Moisés, chegamos à autoridade legitimamente, podemos ficar ofendidos quando enfrentamos oposição e até reconhecê-la como uma ofensa contra o propósito de Deus para nós. Podemos muito bem nos sentir no direito de tentar defender nossa posição e derrotar aqueles que a estão atacando. No entanto, assim como Moisés, devemos cuidar primeiro das pessoas sobre as quais Deus nos colocou em posição de autoridade, incluindo aqueles que se opõem a nós. Eles podem ter queixas legítimas contra nós ou podem estar aspirando à tirania. Podemos ter sucesso em resistir a eles ou podemos perder. Podemos ou não continuar na organização, assim como eles também podem ou não continuar. Podemos encontrar um terreno comum, ou podemos achar impossível restaurar boas relações de trabalho com nossos oponentes. No entanto, em todas as situações, temos o dever de humildade, o que significa que agimos para o bem daqueles que Deus nos confiou, mesmo às custas de nosso conforto, poder, prestígio e autoimagem. Saberemos que estamos cumprindo esse dever quando estivermos defendendo aqueles que se opõem a nós, como Moisés fez com Miriã.
Quando a liderança leva à impopularidade (Números 13—14)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOutro desafio à autoridade de Moisés surge em Números 13—14. O Senhor pede que Moisés envie espiões à terra de Canaã, a fim de se prepararem para a conquista. Os espiões são nomeados de todas as tribos (Nm 13.18-20) e devem obter informações tanto na área militar quanto econômica. Isso significa que o relatório dos espiões poderia ser usado não apenas para planejar a conquista, mas também para iniciar discussões sobre a alocação de território entre as tribos israelitas. O relatório dos espiões confirma que a terra é muito boa, “onde manam leite e mel” (Nm 13.27). No entanto, os espias também relatam que “o povo que lá vive é poderoso, e as cidades são fortificadas e muito grandes” (Nm 13.28). Moisés e seu tenente, Calebe, usam a inteligência para planejar o ataque, mas os espiões ficam com medo e declaram que a terra não pode ser conquistada (Nm 13.30-32). Seguindo a liderança dos espiões, o povo de Israel se rebela contra o plano do Senhor e decide encontrar um novo líder que os leve de volta à escravidão no Egito. Apenas Arão, Calebe e um jovem chamado Josué permanecem com Moisés.
Mas Moisés permanece firme, apesar da impopularidade do plano. O povo está prestes a substituí-lo, mas ele se apega ao que o Senhor lhe revelou como certo. Ele e Arão imploram ao povo que cesse sua rebelião, mas sem sucesso. Finalmente, o Senhor repreende Israel por sua falta de fé e declara que os ferirá com uma peste mortal (Nm 14.5-12). Ao abandonar o plano, eles se lançaram em uma situação ainda pior — destruição iminente e total. Somente Moisés, firme em seu propósito original, sabe como evitar o desastre. Ele apela ao Senhor para que perdoe o povo, como já havia feito antes. (Vimos em Números 12 como Moisés está sempre pronto a colocar o bem-estar de seu povo em primeiro lugar, mesmo às suas próprias custas.) O Senhor cede, mas declara que há consequências inevitáveis para o povo. Nenhum daqueles que se juntaram à rebelião terá permissão para entrar na terra prometida (Nm 14.20-23).
As ações de Moisés demonstram que os líderes são escolhidos para assumir um compromisso decisivo, não para se insuflar no vento da popularidade. A liderança pode ser um dever solitário e, se estivermos em posição de liderança, podemos ser severamente tentados a concordar com a opinião popular. É verdade que bons líderes ouvem as opiniões dos outros. Mas, quando um líder sabe qual é a melhor decisão a ser tomada e testou esse conhecimento da melhor maneira possível, ele tem a responsabilidade de fazer o que é melhor, não o que é mais popular.
Na situação de Moisés, não havia dúvida sobre o que deveria ser feito. O Senhor ordenou a Moisés que ocupasse a terra prometida. Como vimos, o próprio Moisés permaneceu humilde em seu comportamento, mas não vacilou em sua direção. Ele, na verdade, não conseguiu cumprir o mandamento do Senhor. Se as pessoas não o seguirem, o líder não poderá cumprir a missão sozinho. Nesse caso, a consequência para o povo foi o desastre de uma geração inteira que perdeu a terra que Deus havia escolhido para eles. Pelo menos o próprio Moisés não contribuiu para o desastre, mudando seu plano em resposta às opiniões deles.
A era moderna está repleta de exemplos de líderes que cederam à opinião popular. A rendição do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain às exigências de Hitler em Munique, em 1938, vem prontamente à mente. Em contraste, Abraham Lincoln se tornou um dos maiores presidentes dos Estados Unidos, recusando-se firmemente a ceder à opinião popular para acabar com a Guerra Civil Americana, aceitando a divisão da nação. Embora tivesse a humildade de reconhecer a possibilidade de estar errado (“como Deus nos permite ver o que é certo”), ele também teve a coragem de fazer o que sabia ser certo, apesar da enorme pressão para ceder. O livro Leadership on the Line (Liderança na linha), de Ronald Heifetz e Martin Linsky, explora o desafio de permanecer aberto às opiniões dos outros, mantendo uma liderança firme em tempos de desafio. [1] (Para mais informações sobre este episódio, veja, “Israel se recusa a entrar na terra prometida” em Deuteronômio 1.19-45.)
Oferecendo a Deus nossos primeiros frutos (Números 15.20-21; 18.12-18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceCom base no sistema sacrificial descrito em Números 4 e 7, duas passagens em Números 15 e 18 descrevem a oferta a Deus do primeiro fruto do trabalho e da terra. Além das ofertas descritas anteriormente, os israelitas devem oferecer a Deus “todos os primeiros frutos da terra” (Nm 18.13). Visto que Deus é o soberano que possui todas as coisas, tudo o que é produzido pela terra e pelas pessoas realmente já pertence a Deus. Quando as pessoas trazem os primeiros frutos ao altar, elas reconhecem que Deus é o dono de tudo, e não apenas do que sobra depois que elas atendem às suas próprias necessidades. Ao trazer os primeiros frutos antes de fazer uso do restante para si mesmos, eles expressam respeito pela soberania de Deus, bem como a esperança urgente de que Deus abençoará a produtividade contínua de seu trabalho e recursos. [1]
As ofertas e sacrifícios no sistema sacrificial de Israel são diferentes das dádivas e ofertas que fazemos hoje para a obra de Deus, mas o conceito de dar nossos primeiros frutos a Deus ainda é aplicável. Ao dar primeiro a Deus, reconhecemos que Deus é o dono de tudo o que temos. Portanto, damos a ele o nosso primeiro e melhor. Dessa forma, oferecer nossas primícias se torna uma bênção para nós, assim como foi para o antigo Israel.
Lembretes da aliança (Números 15.37-41)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUma breve passagem em Números 15 ordena aos israelitas que façam borlas ou franjas nos cantos de suas vestes, com um cordão azul em cada canto: “Quando virem essas borlas vocês se lembrarão de todos os mandamentos do Senhor, para que lhes obedeçam”. No trabalho, assim como em outros lugares, sempre há a tentação de que “sigam as inclinações do seu coração e dos seus olhos” (Nm 15.39). Na verdade, quanto mais diligentemente você prestar atenção ao seu trabalho (seus “olhos”), maior será a chance de que coisas em seu ambiente de trabalho que não são do Senhor o influenciem (seu “coração”). A resposta não é parar de prestar atenção no trabalho ou levá-lo menos a sério. Em vez disso, pode ser bom plantar lembretes que o lembrem de Deus e de seu caminho. Pode não ser borlas, mas pode ser uma Bíblia que cruzará sua visão, um alarme lembrando você de orar momentaneamente de vez em quando ou um símbolo que se possa usar ou carregar em um lugar que chame sua atenção. O objetivo não é se exibir para os outros, mas atrair seu próprio coração de volta a Deus. Embora isso seja algo pequeno, pode ter um efeito significativo. Ao fazer isso, “vocês se lembrarão de obedecer a todos os meus mandamentos, e para o seu Deus vocês serão um povo consagrado” (Nm 15.40).
A infidelidade de Moisés em Meribá (Números 20.2-13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO momento de maior fracasso de Moisés veio quando o povo de Israel voltou a reclamar, desta vez por comida e água (Nm 20.1-5). Moisés e Arão decidiram levar a queixa ao Senhor, que lhes ordenou que pegassem seu cajado e, na presença do povo, ordenassem que uma rocha providenciasse água suficiente para o povo e seu gado (Nm 20.6-8). Moisés fez como o Senhor instruiu, mas acrescentou dois floreios próprios. Primeiro, ele repreendeu o povo, dizendo: “Escutem, rebeldes, será que teremos que tirar água desta rocha para lhes dar?” Então ele bateu na rocha duas vezes com seu cajado. A água derramou em abundância (Nm 20.9-11), mas o Senhor ficou extremamente descontente com Moisés e Arão.
O castigo de Deus foi severo. “Como vocês não confiaram em mim para honrar minha santidade à vista dos israelitas, vocês não conduzirão esta comunidade para a terra que lhes dou” (Nm 20.12). Moisés e Arão, como todas as pessoas que se rebelaram contra o plano de Deus anteriormente (Nm 14.22-23), não terão permissão para entrar na terra prometida.
Argumentos acadêmicos sobre a ação exata pela qual Moisés foi punido podem ser encontrados em qualquer comentário, mas o texto de Números 20.12 cita diretamente a ofensa que estava implícita: “Vocês não confiaram em mim”. A liderança de Moisés vacilou no momento crucial em que ele deixou de confiar em Deus e começou a agir por impulso.
Honrar a Deus na liderança — como todos os líderes cristãos em todas as esferas devem tentar fazer — é uma responsabilidade aterrorizante. Podemos liderar um negócio, uma sala de aula, uma organização de ajuda humanitária, uma família ou qualquer outra organização, sempre devemos ter cuidado para não confundir nossa autoridade com a autoridade de Deus. O que podemos fazer para nos manter em obediência a Deus? Podemos nos reunir regularmente com um grupo de prestação de contas, orar diariamente sobre as tarefas da liderança, guardar um sábado semanal para descansar na presença de Deus e buscar a perspectiva de outros sobre a orientação de Deus — estes são métodos que alguns líderes empregam. Mesmo assim, a tarefa de liderar com firmeza, permanecendo totalmente dependente de Deus, está além da capacidade humana. Se o homem mais humilde sobre a face da terra (Nm 12.3) pôde falhar dessa maneira, nós também podemos. Pela graça de Deus, mesmo fracassos tão grandes quanto os de Moisés em Meribá, com consequências desastrosas nesta vida, não nos separam do cumprimento final das promessas de Deus. Moisés não entrou na terra prometida, mas o Novo Testamento o declara “fiel em toda a casa de Deus” e nos lembra da confiança que todos na casa de Deus têm no cumprimento de nossa redenção em Cristo (Hb 3.2-6).
Quando Deus fala por meio de fontes inesperadas (Números 22—24)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm Números 22—23, o protagonista não é Moisés, mas Balaão, um homem que morava perto do caminho pelo qual Israel lentamente passava em direção à terra prometida. Embora não fosse israelita, era sacerdote ou profeta do Senhor. O rei de Moabe reconheceu o poder de Deus nas palavras de Balaão, dizendo: “Sei que aquele que você abençoa é abençoado, e aquele que você amaldiçoa é amaldiçoado”. Temendo a força dos israelitas, o rei de Moabe enviou emissários pedindo a Balaão que fosse a Moabe e amaldiçoasse os israelitas para livrá-lo da ameaça percebida (Nm 22.1-6).
Deus informa a Balaão que ele escolheu Israel como uma nação abençoada e ordena a Balaão que não vá a Moabe nem amaldiçoe Israel (Nm 22.12). No entanto, depois de várias embaixadas do rei de Moabe, Balaão concorda em ir a Moabe. Suas hostes tentam suborná-lo para amaldiçoar Israel, mas Balaão avisa que ele fará apenas o que o Senhor ordenar (Nm 22.18). Deus parece concordar com esse plano, mas, enquanto Balaão monta seu jumento em direção a Moabe, um anjo do Senhor bloqueia seu caminho três vezes. O anjo é invisível para Balaão, mas a jumenta vê o anjo e se desvia a cada vez. Balaão fica furioso com a jumenta e começa a bater no animal com seu cajado. “Então o Senhor abriu a boca da jumenta, e ela disse a Balaão: ‘Que te fiz eu, que me golpeou três vezes?’” (Nm 22.28). Balaão conversa com a jumenta e percebe que o animal percebeu a orientação do Senhor com muito mais clareza do que Balaão. Os olhos de Balaão são abertos; ele vê o anjo e recebe instruções adicionais de Deus sobre como lidar com o rei de Moabe. “Vá com os homens, mas fale apenas o que eu lhe disser”, o Senhor reforça (Nm 22.35). Ao longo dos capítulos 23 e 24, o rei de Moabe continua a suplicar que Balaão amaldiçoe Israel, mas toda vez Balaão responde que o Senhor declara Israel abençoado. Finalmente, ele consegue dissuadir o rei de atacar Israel (Nm 24.12-25), poupando assim Moabe da destruição imediata pela mão do Senhor.
Balaão é semelhante a Moisés porque consegue seguir a orientação do Senhor, apesar das falhas pessoais às vezes. Como Moisés, ele desempenha um papel significativo no cumprimento do plano de Deus de levar Israel à terra prometida. Mas Balaão também é muito diferente de Moisés e da maioria dos outros heróis da Bíblia hebraica. Ele mesmo não é um israelita. E sua principal realização é salvar Moabe, não Israel, da destruição. Por essas duas razões, os israelitas ficariam bastante surpresos ao ler que Deus falou a Balaão de forma tão clara e direta, tal como falou aos próprios profetas e sacerdotes de Israel. Ainda mais surpreendente — tanto para Israel quanto para o próprio Balaão — é que a orientação de Deus, no momento crucial, veio a ele pela boca de um animal, uma jumenta humilde. De duas maneiras surpreendentes, vemos que a orientação de Deus não vem das fontes mais favorecidas pelas pessoas, mas das fontes que Deus escolhe. Se Deus escolhe falar por meio das palavras de um inimigo em potencial ou mesmo de um animal do campo, devemos prestar atenção.
A passagem não nos diz que a melhor fonte de orientação de Deus são necessariamente profetas estrangeiros ou jumentos, mas nos dá algumas dicas sobre como ouvir a voz de Deus. É fácil para nós ouvir a voz de Deus apenas de fontes que conhecemos. Isso geralmente significa ouvir apenas as pessoas que pensam como nós, pertencem a nossos círculos sociais ou falam e agem como nós. Isso pode significar que nunca prestamos atenção a outras pessoas que tomariam uma posição diferente da nossa. Torna-se fácil acreditar que Deus está nos dizendo exatamente o que já pensávamos. Os líderes muitas vezes reforçam isso cercando-se de um grupo restrito de assessores e conselheiros com ideias semelhantes. Talvez sejamos mais parecidos com Balaão do que gostaríamos de acreditar. Mas, pela graça de Deus, poderíamos de alguma forma aprender a ouvir o que Deus pode estar nos dizendo, mesmo por meio de pessoas em quem não confiamos ou de fontes com as quais não concordamos?
Propriedade da terra e direitos de propriedade (Números 26—27; 36.1-12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceÀ medida que o tempo passa e a demografia muda, é necessário outro novo censo (Nm 26.1-4). Um propósito crucial desse censo é começar a desenvolver estruturas socioeconômicas para a nova nação. A produção econômica e a organização governamental devem ser organizadas em torno de tribos, com suas unidades menores de clãs e famílias. A terra deve ser dividida entre os clãs em proporção à sua população (Nm 26.52-56), e a designação deve ser feita aleatoriamente. O resultado é que cada família (família extensa) recebe um lote de terra suficiente para se sustentar. Ao contrário do Egito — e, mais tarde, do Império Romano e da Europa medieval — a terra não deve se tornar propriedade de uma classe de nobres e ser trabalhada por uma classe de plebeus ou escravos despossuídos. Em vez disso, cada família deve possuir seus próprios meios de produção agrícola. Fundamentalmente, a terra nunca pode ser perdida permanentemente pela família por meio de dívidas, impostos ou mesmo venda voluntária. (Veja Lv 25 para as proteções legais que visavam evitar que as famílias perdessem suas terras). Mesmo que uma geração de uma família falhe na agricultura e fique endividada, a próxima geração tem acesso à terra necessária para ganhar a vida.
O censo é enumerado de acordo com os chefes de tribos e clãs, cujos chefes de família recebem cada um uma cota. Mas, nos casos em que as mulheres são as chefes de família (por exemplo, se seus pais morrem antes de receber sua porção), as mulheres podem possuir terras e passá-las a seus descendentes (Nm 27.8). No entanto, isso poderia complicar o ordenamento de Israel, visto que uma mulher pode se casar com um homem de outra tribo. Aquela mulher acabaria transferindo a terra da tribo de seu pai para a de seu marido, enfraquecendo a estrutura social. A fim de evitar isso, o Senhor decreta que, embora as mulheres possam “casar-se com quem lhes agradar” (Nm 36.6), “nenhuma herança poderá passar de uma tribo para outra” (Nm 36.9). Esse decreto garante os direitos de todas as pessoas — inclusive as mulheres — de possuir propriedades e se casar como quiserem, em equilíbrio com a necessidade de preservar as estruturas sociais. As tribos devem respeitar os direitos de seus membros. Os chefes de família devem respeitar as necessidades da sociedade.
Em grande parte da economia de hoje, possuir terras não é o principal meio de ganhar a vida, e as estruturas sociais não estão organizadas em torno de tribos e clãs. Portanto, os regulamentos específicos em Números e Levítico não se aplicam diretamente aos dias de hoje. As condições atuais exigem diferentes soluções específicas. Leis sábias, justas e aplicadas com justiça, que respeitem a propriedade e as estruturas econômicas, os direitos individuais e o bem comum são essenciais em todas as sociedades. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, “o avanço do Estado de direito nos níveis nacional e internacional é essencial para o crescimento econômico sustentado e inclusivo, o desenvolvimento sustentável, a erradicação da pobreza e da fome e a plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”. [1] Os cristãos têm muito a contribuir para o bom governo da sociedade, não apenas por meio da lei, mas também por meio da oração e da transformação da vida. E, cada vez mais, nós cristãos estamos descobrindo que, trabalhando juntos, podemos oferecer oportunidades eficazes para que pessoas marginalizadas tenham acesso permanente aos recursos necessários para prosperar economicamente. Um exemplo é Agros International, que é guiada por uma “bússola moral” cristã para ajudar famílias rurais pobres da América Latina a adquirir e cultivar terras com sucesso. [2]
Planejamento de sucessão (Números 27.12-23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceConstruir uma organização sustentável — neste caso, a nação de Israel — requer transições ordenadas de autoridade. Sem continuidade, as pessoas ficam confusas e com medo, as estruturas de trabalho desmoronam e os trabalhadores se tornam ineficazes, “como ovelhas sem pastor” (Nm 27.17). A preparação de um sucessor leva tempo. Líderes fracos podem ter medo de equipar alguém capaz de sucedê-los, mas grandes líderes como Moisés começam a desenvolver sucessores muito antes de esperarem deixar o cargo. A Bíblia não nos diz que processo Moisés usa para identificar e preparar Josué, exceto que ele ora pela orientação de Deus (Nm 27.16). Números nos diz que ele se certifica de reconhecer e apoiar publicamente Josué e de seguir o procedimento reconhecido para confirmar sua autoridade (Nm 27.17-21).
O planejamento da sucessão é responsabilidade tanto do executivo atual (como Moisés) quanto daqueles que exercem autoridade complementar (como Eleazar e os líderes da congregação), como vemos em Números 27.21. As instituições, sejam elas grandes como uma nação ou pequenas como um grupo de trabalho, precisam de processos eficazes para treinamento e sucessão.
Oferta diária: orar pelos outros (Números 28—29)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEmbora as pessoas façam ofertas individuais e familiares em horários determinados, também há um sacrifício em nome de toda a nação todos os dias (Nm 28.1-8). Há ofertas adicionais no sábado (Nm 28.9-10), luas novas (Nm 28.11-15), Páscoa (Nm 28.16-25) e a festa das semanas (Nm 28.26-31), as trombetas (Nm 29.1-6), a Expiação (Nm 29.7-10) e as tendas (Nm 29.12-40). Por meio dessas ofertas comunitárias, as pessoas recebem os benefícios da presença e do favor do Senhor, mesmo quando não estão pessoalmente na adoração.[1]
O sistema israelita de sacrifícios não está mais em operação e é impossível aplicá-lo diretamente à vida e ao trabalho hoje. Mas a importância de sacrificar, oferecer e adorar em benefício dos outros permanece (Rm 12.1-6). Alguns crentes — principalmente certas ordens de monges e freiras — passam a maior parte do dia orando por aqueles que não conseguem ou não adoram ou oram por conta própria. Em nosso trabalho, não seria certo negligenciar nossos deveres para orar. Mas, nos momentos em que oramos, podemos orar pelas pessoas com quem trabalhamos, especialmente se soubermos que ninguém mais está orando por elas. Afinal, somos chamados a trazer bênçãos ao mundo ao nosso redor (Nm 6.22-27). Certamente podemos seguir o que vemos em Números 28.1-8 orando diariamente. Orar todos os dias, ou várias vezes ao longo do dia, parece nos manter mais próximos da presença de Deus. A fé não é apenas para o sábado.
Honrando os compromissos (Números 30)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO capítulo 30 de Números fornece um sistema elaborado para determinar a validade de promessas, juramentos e votos. A posição básica, no entanto, é simples: faça o que diz que fará.
Quando um homem fizer um voto ao Senhor ou um juramento que o obrigar a algum compromisso, não poderá quebrar a sua palavra, mas terá que cumprir tudo o que disse. (Nm 30.2)
Elaborações são dadas para lidar com exceções à regra, quando alguém faz uma promessa que excede sua autoridade. (Os regulamentos no texto tratam de situações em que certas mulheres estão sujeitas à autoridade de homens específicos.) Embora as exceções sejam válidas — você não pode fazer cumprir a promessa de uma pessoa que não tem autoridade para fazê-la, em primeiro lugar —, quando Jesus comentou essa passagem, propôs uma regra prática muito mais simples: não faça promessas que não pode ou não vai cumprir (Mt 5.33-37).
Compromissos relacionados ao trabalho podem nos levar a acumular elaborações, qualificações, exceções e justificativas para não fazer o que prometemos. Sem dúvida, muitas delas são razoáveis, como cláusulas de força maior em contratos, que dispensam uma parte de cumprir suas obrigações, se impedida por ordens judiciais, desastres naturais e similares. Não se limita a honrar a letra do contrato. Muitos acordos são feitos com um aperto de mão. Às vezes, há brechas. Podemos aprender a honrar a intenção do acordo e não apenas a letra da lei? A confiança é o ingrediente que faz com que o ambiente de trabalho funcione, e a confiança é impossível se prometermos mais do que podemos cumprir ou entregarmos menos do que prometemos. Isso não é apenas um fato da vida, mas um mandamento do Senhor.
Planejamento civil para cidades levíticas (Números 35.1-5)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo contrário do restante das tribos, os levitas deveriam viver em cidades espalhadas por toda a terra prometida, onde poderiam ensinar a lei ao povo e aplicá-la nos tribunais locais. Números 35.2-5 detalha a quantidade de pastagens que cada cidade deve ter. Medindo a partir dos limites da cidade, a área de pastagem deveria se estender por cerca de 450 metros (lit., “mil côvados”) em cada direção: leste, sul, oeste e norte.
Jacob Milgrom mostrou que esse layout geográfico era um exercício realista de planejamento urbano.[1]
O diagrama mostra uma cidade com pastagens que se estendem além do diâmetro da cidade em cada direção. À medida que o diâmetro da cidade cresce e absorve o pasto mais próximo, mais pastagens são adicionadas, de modo que o pasto permaneça 450 metros além dos limites da cidade em cada direção. (No diagrama, as áreas mais claras permanecem do mesmo tamanho à medida que se movem para fora, mas as áreas com linhas ficam mais amplas à medida que o centro da cidade se alarga.)
Do lado de fora da cidade, meçam novecentos metros para o lado leste, para o lado sul, para o lado oeste e para o lado norte, tendo a cidade no centro (Nm 35.5).
Matematicamente, à medida que a cidade cresce, o mesmo acontece com a área de suas pastagens, mas a uma taxa menor do que a área do centro habitado da cidade. Isso significa que a população está crescendo mais rápido do que a área agrícola. Para que isso continue, a produtividade agrícola por metro quadrado deve aumentar. Cada pastor deve fornecer comida a mais pessoas, liberando mais pessoas para empregos industriais e de serviços. Isso é exatamente o que é necessário para o desenvolvimento econômico e cultural. Certamente, o planejamento urbano não causa aumento de produtividade, mas cria uma estrutura socioeconômica adaptada ao aumento da produtividade. É um exemplo notavelmente sofisticado de política civil que cria condições para um crescimento econômico sustentável.
Essa passagem em Números 35.5 ilustra novamente a atenção detalhada que Deus presta à capacitação do trabalho humano que sustenta as pessoas e cria bem-estar econômico. Se Deus se preocupa em instruir Moisés sobre o planejamento civil, com base no crescimento geométrico de pastagens, isso não sugere que o povo de Deus hoje deveria buscar vigorosamente todas as profissões, ofícios, artes, acadêmicos e outras disciplinas que sustentam e prosperam comunidades e nações? Talvez as igrejas e os cristãos pudessem fazer mais para incentivar e celebrar a excelência de seus membros em todos os campos de atuação. Talvez os obreiros cristãos pudessem fazer mais para se tornarem excelentes em seu trabalho, como forma de servir ao Senhor. Existe alguma razão para acreditar que um excelente planejamento urbano e econômico, uma creche ou um atendimento ao cliente trazem menos glória a Deus do que a adoração sincera, a oração ou o estudo da Bíblia?
Conclusões de Números
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Números mostra Deus trabalhando por meio de Moisés para ordenar e organizar a nova nação de Israel. A primeira parte do livro enfoca a adoração, que depende do trabalho dos sacerdotes em conjunto com trabalhadores de todas as profissões. O trabalho essencial daqueles que representam o povo de Deus não é realizar rituais, mas abençoar todas as pessoas com a presença de Deus e o amor reconciliador. Todos nós temos a oportunidade de trazer bênção e reconciliação por meio de nosso trabalho, quer pensemos em nós mesmos como sacerdotes ou não.
A segunda parte do livro de Números traça a ordem da sociedade à medida que as pessoas marcham em direção à terra prometida. Passagens em Números podem nos ajudar a obter uma perspectiva piedosa sobre questões de trabalho contemporâneas, como oferecer o fruto de nosso trabalho a Deus, resolução de conflitos, aposentadoria, liderança, direitos de propriedade, produtividade econômica, planejamento sucessório, relacionamentos sociais, honra aos compromissos e planejamento civil.
Os líderes em Números — especialmente Moisés — fornecem exemplos do que significa seguir ou não seguir a orientação de Deus. Os líderes precisam estar abertos à sabedoria de outras pessoas e de fontes inesperadas. No entanto, precisam permanecer firmes em seguir a orientação de Deus da melhor maneira possível. Devem ser ousados o suficiente para confrontar reis, mas humildes o suficiente para aprender com os animais do campo. Ninguém no livro de Números é completamente bem-sucedido na tarefa, mas Deus permanece fiel ao seu povo em seus sucessos e falhas. Nossos erros têm consequências negativas reais, mas não eternas, e procuramos uma esperança além de nós mesmos para a realização do amor de Deus por nós. Vemos o Espírito de Deus guiando Moisés e ouvimos a promessa de Deus de também dar aos líderes que vierem depois de Moisés uma porção do Espírito de Deus. Com isso, nós mesmos podemos ser encorajados a buscar a orientação de Deus para as oportunidades e os desafios em nosso trabalho. Em tudo que fizermos, podemos ter certeza da presença de Deus conosco enquanto trabalhamos, pois ele nos diz: “Eu, o Senhor, habito entre os israelitas” (Nm 35.34) em cujos passos trilhamos.
Introdução a Deuteronômio
Voltar ao índice Voltar ao índiceO trabalho é um assunto importante do livro de Deuteronômio, e os principais tópicos incluem os seguintes:
Significado e valor do trabalho. O mandamento de Deus para trabalhar em benefício dos outros, as bênçãos do trabalho para o indivíduo e para a comunidade, as consequências do fracasso e os perigos do sucesso e a responsabilidade que advém de representar Deus para os outros.
Relacionamentos no trabalho. A importância de bons relacionamentos, o desenvolvimento da dignidade e do respeito pelos outros e a exigência de não prejudicar os outros ou falar injustamente deles em nosso trabalho.
Liderança. O exercício sábio de liderança e autoridade, o planejamento e treinamento de sucessão e a responsabilidade dos líderes de trabalhar em benefício das pessoas que lideram.
Justiça econômica. Respeito à propriedade, aos direitos dos trabalhadores e aos tribunais, uso produtivo de recursos, empréstimos, e honestidade nos acordos comerciais e no comércio justo.
Trabalho e descanso. A exigência de trabalhar, a importância do descanso e o convite para confiar em Deus para nos prover o necessário, tanto no trabalho quanto no descanso.
Apesar dos séculos de mudanças no comércio e na vocação, Deuteronômio pode nos ajudar a entender melhor como viver em resposta ao amor de Deus e servir aos outros por meio de nosso trabalho.
A apresentação dramática e unificada do livro o torna especialmente memorável. Jesus citou Deuteronômio muitas vezes. Na verdade, suas primeiras citações das Escrituras foram três passagens de Deuteronômio (Mt 4.4,7,10). O Novo Testamento se refere a Deuteronômio mais de cinquenta vezes, número que é superado apenas por Salmos e Isaías. [1] E Deuteronômio contém a primeira formulação do Grande Mandamento: “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças” (Dt 6.4-5).
Implícita a todos os temas de Deuteronômio está a aliança de Israel com o único Deus verdadeiro. Tudo no livro flui da pedra angular da aliança: “Eu sou o Senhor, o teu Deus... Não terás outros deuses além de mim” (Dt 5.6-7). Quando as pessoas adoram somente ao Senhor, geralmente o resultado é boa governança, trabalho produtivo, comércio ético, bem civil e tratamento justo para todos. Quando as pessoas colocam outras motivações, valores e preocupações à frente de Deus, o trabalho e a vida enfrentam sofrimento.
Deuteronômio abrange o mesmo material que os outros livros da lei — Êxodo, Levítico e Números —, mas aumenta a atenção dada ao trabalho, principalmente nos Dez Mandamentos. Parece que, ao recontar os eventos e os ensinamentos dos outros livros, Moisés sentiu a necessidade de enfatizar a importância do trabalho na vida do povo de Deus. Talvez, em algum sentido, isso preveja a crescente atenção que os cristãos estão dando ao trabalho nos dias atuais. Olhando para as Escrituras com novos olhos, descobrimos que o trabalho é mais importante para Deus do que imaginávamos antes e que a palavra de Deus dá mais direção ao nosso trabalho do que pensávamos.
Rebelião e acomodação (Deuteronômio 1.1—4.43)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeuteronômio começa com um discurso de Moisés relatando os principais acontecimentos da história recente de Israel. Moisés tira lições desses acontecimentos e exorta Israel a responder à fidelidade de Deus, obedecendo a ele com confiança (Dt 4.40). Duas seções — sobre violar a confiança em Deus por meio de rebelião e sobre acomodação, respectivamente — são particularmente importantes para a teologia do trabalho.
Israel se recusa a entrar na terra prometida (Deuteronômio 1.19-45)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo deserto, o medo leva o povo a falhar em sua confiança em Deus. Como resultado, eles se rebelam contra o plano de Deus para entrar na terra que ele prometeu a Abraão, Isaque e Jacó (Dt 1.7-8). Deus havia tirado Israel da escravidão no Egito, dado a lei no Monte Horebe (Sinai) e levado o povo rapidamente às fronteiras da terra prometida (Dt 1.19-20). De acordo com o livro de Números, Deus pede a Moisés que envie espiões para inspecionar a terra que ele está dando aos israelitas, e Moisés obedece (Nm 13.1-3). Mas outros israelitas usam essa missão de reconhecimento como uma chance de desobedecer a Deus. Eles pedem a Moisés que envie espiões para que possam impedir a ação militar que Deus ordenou. Quando os espiões retornam com um relatório favorável, os israelitas ainda se recusam a ir (Dt 1.26). “O povo é mais forte e mais alto do que nós; as cidades são grandes, com muros que vão até o céu”, dizem eles a Moisés, acrescentando que “nossos compatriotas nos desanimaram” (Dt 1.28). Embora Moisés assegure ao povo que Deus lutará por eles, assim como fez no Egito, eles não confiam em Deus para cumprir suas promessas (Dt 1.29-33). O medo leva à desobediência, que leva a uma punição severa.
Por causa dessa desobediência, os israelitas que viviam na época são impedidos de entrar na terra prometida. “Ninguém desta geração má verá a boa terra que jurei dar aos seus antepassados” (Dt 1.35). As únicas exceções são Calebe e Josué, os únicos membros da expedição de reconhecimento que encorajaram os israelitas a obedecer à ordem de Deus (Nm 13.30). O próprio Moisés é impedido de entrar na terra devido a um ato diferente de desobediência. Em Números 20.2-12 Moisés suplica a Deus por uma fonte de água, e Deus diz a Moisés para ordenar a uma rocha que se torne uma fonte. Em vez disso, Moisés golpeia a rocha duas vezes com sua vara. Se Moisés tivesse falado com a rocha, como Deus ordenou, o milagre resultante poderia ter satisfeito tanto a sede física do israelita quanto sua necessidade de acreditar que Deus estava cuidando deles. Em vez disso, quando Moisés golpeia a rocha como se fosse abri-la, o momento oportuno passa. Como os israelitas em Deuteronômio 1.19-45 , Moisés é punido por sua falta de fé, o que sublinha sua desobediência. “Como vocês não confiaram em mim para honrar minha santidade à vista dos israelitas”, diz Deus, “vocês não conduzirão esta comunidade para a terra que lhes dou”
Quando sabemos o que é certo, mas somos tentados a violar isso, confiar em Deus é tudo o que temos para nos manter nos caminhos de Deus. Essa não é uma questão de fibra moral. Se até mesmo Moisés falhou em confiar completamente em Deus, podemos realmente imaginar que seremos bem-sucedidos? Em vez disso, é uma questão da graça de Deus. Podemos orar para que o Espírito de Deus nos fortaleça quando defendemos o que é certo, e podemos pedir o perdão de Deus quando caímos. Como Moisés e o povo de Israel, deixar de confiar em Deus pode ter sérias consequências na vida, mas, em última análise, nosso fracasso é redimido pela graça de Deus. (Para mais informações sobre este episódio, veja “Quando a liderança leva à impopularidade” em Números 13—14.)
Quando o sucesso leva à acomodação (Deuteronômio 4.25-40)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo deserto, o fato de Israel abandonar a confiança em Deus surge não apenas do medo, mas também do sucesso. Neste ponto de seu primeiro discurso, Moisés está descrevendo a prosperidade que aguarda a nova geração prestes a entrar na terra prometida. Moisés ressalta que o sucesso provavelmente gerará uma acomodação espiritual muito mais perigosa do que o fracasso. “Quando vocês tiverem filhos e netos, e já estiverem há muito tempo na terra, e se corromperem e fizerem ídolos de qualquer tipo... não viverão muito ali; serão totalmente destruídos” (Dt 4.25-26). Chegaremos à idolatria, por si só, em Deuteronômio 5.8, mas o ponto aqui é o perigo espiritual causado pela acomodação. Na esteira do sucesso, as pessoas param de temer a Deus e começam a acreditar que o sucesso é um direito inato. Em vez de gratidão, forjamos um senso de direito. O sucesso pelo qual lutamos não é errado, mas é um perigo moral. A verdade é que o sucesso que alcançamos é uma mistura de uma pitada de habilidade e trabalho árduo, combinado com um monte de circunstâncias afortunadas e a graça comum de Deus. Na verdade, não podemos atender às nossas próprias necessidades, desejos e segurança. O sucesso não é permanente. Não satisfaz verdadeiramente. Uma ilustração dramática dessa verdade é encontrada na vida do rei Uzias, em 2Crônicas. “Ele foi extraordinariamente ajudado [por Deus], e assim tornou-se muito poderoso e a sua fama espalhou-se para longe. Entretanto, depois que Uzias se tornou poderoso, o seu orgulho provocou a sua queda” (2Cr 26.15-16). Somente em Deus podemos encontrar a verdadeira segurança e satisfação (Sl 17.15).
Pode ser surpreendente que o resultado da acomodação não seja o ateísmo, mas a idolatria. Moisés prevê que, se o povo abandonar o Senhor, eles não se tornarão agentes espirituais livres. Eles se prenderão a “deuses de madeira e de pedra, deuses feitos por mãos humanas, deuses que não podem ver, nem ouvir, nem comer, nem cheirar” (Dt 4.28). Talvez, nos dias de Moisés, a ideia de uma existência sem religião não tenha ocorrido a ninguém. Mas, em nossos dias, sim. Uma onda crescente de secularismo tenta se livrar daquilo que entende — às vezes com bastante razão — como algemas da dominação por instituições, crenças e práticas religiosas corruptas. Mas isso resulta em uma verdadeira liberdade ou a adoração a Deus é necessariamente substituída pela adoração de invenções feitas pelo homem?
Embora essa pergunta pareça abstrata, ela tem efeitos tangíveis no trabalho e no ambiente de trabalho. Por exemplo, antes da última metade do século XX, as questões sobre ética nos negócios eram geralmente resolvidas com base nas Escrituras. Essa prática estava longe de ser perfeita, mas dava uma posição firme para aqueles que estavam do lado perdedor das lutas pelo poder relacionadas ao trabalho. O caso mais dramático foi provavelmente a oposição religiosa à escravidão na Inglaterra e nos Estados Unidos da América, que, em última análise, conseguiu abolir tanto o tráfico de escravos quanto a própria escravidão. Nas instituições secularizadas, não há autoridade moral à qual se possa apelar. Em vez disso, as decisões éticas devem ser baseadas na lei e no “costume ético”, como disse Milton Friedman. [1] Sendo a lei e os costumes éticos construções humanas, a ética nos negócios torna-se reduzida ao domínio dos poderosos e dos populares. Ninguém quer um ambiente de trabalho dominado pela elite religiosa, mas será que um ambiente de trabalho totalmente secularizado não abre a porta para um tipo diferente de exploração? Certamente, é possível que os crentes tragam as bênçãos da fidelidade de Deus para seu ambiente de trabalho sem tentar reimpor privilégios especiais para si mesmos.
Tudo isso não quer dizer que o sucesso deva necessariamente levar à acomodação. Se pudermos nos lembrar de que a graça de Deus, a palavra de Deus e a orientação de Deus estão na raiz de qualquer sucesso que tenhamos, podemos ser gratos, não acomodados. O sucesso que experimentamos poderia, então, honrar a Deus e nos trazer alegria. A cautela é simplesmente que, ao longo da história, o sucesso parece ser espiritualmente mais perigoso do que a adversidade. Moisés ainda adverte Israel sobre os perigos da prosperidade em Deuteronômio 8.11-20.
A lei de Deus e suas aplicações (Deuteronômio 4.44—30.20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeuteronômio continua com um segundo discurso contendo o corpo principal do livro. Esta seção se concentra na aliança de Deus com Israel, especialmente na lei, ou nos princípios e regras pelos quais Israel deve viver. Depois de uma introdução narrativa (Dt 4.44-49), o discurso em si consiste em três partes. Na primeira parte, Moisés expõe os Dez Mandamentos (Dt 5.1—11.33). Na segunda parte, ele descreve em detalhes os “decretos e ordenanças” que Israel deve seguir (Dt 12.1—26.19). Na terceira parte, Moisés descreve as bênçãos que Israel experimentará se guardarem a aliança, bem como as maldições que os destruirão se não o fizerem (Dt 27.1—28.68). O segundo discurso, portanto, tem o padrão de primeiramente fornecer os princípios governantes mais amplos (Dt 5.1—11.32), depois as regras específicas (Dt 12.1—26.19) e, então, as consequências para a obediência ou desobediência (Dt 27.1—28.68).
Os Dez Mandamentos (Deuteronômio 5.6-21)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs Dez Mandamentos trazem grandes contribuições para a teologia do trabalho. Eles descrevem os requisitos essenciais da aliança de Israel com Deus e são os princípios fundamentais que governam a nação e o trabalho de seu povo. A exposição de Moisés começa com a declaração mais memorável do livro: “Ouça, ó Israel: O Senhor, o nosso Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças” (Dt 6.4-5). Como Jesus apontou séculos depois, esse é o maior mandamento de toda a Bíblia. Então Jesus acrescentou uma citação de Levítico 19.18: “E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’” (Mt 22.37-40). Embora o “segundo” maior mandamento não seja declarado explicitamente em Deuteronômio, veremos que os Dez Mandamentos realmente nos apontam para o amor a Deus e ao próximo.
A passagem é praticamente idêntica à Êxodo 20.1-17 — variações gramaticais à parte — exceto por algumas diferenças no quarto (guardar o sábado), quinto (honrar mãe e pai) e décimo (cobiçar) mandamentos. Curiosamente, as variações desses mandamentos abordam especificamente o trabalho. Repetiremos o comentário de Êxodo e o trabalho aqui, com acréscimos que exploram as variações entre os relatos de Êxodo e Deuteronômio.
“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3; Deuteronômio 5.7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO primeiro mandamento nos lembra que tudo na Torá flui do amor que temos por Deus, que é uma resposta ao amor que ele tem por nós. Este amor foi demonstrado pela libertação de Israel operada por Deus “da terra da escravidão” no Egito (Dt 5.6). Nada na vida deve nos preocupar mais do que nosso desejo de amar e ser amado por Deus. Se nós tivermos alguma outra preocupação mais forte em relação a nós do que nosso amor por Deus, não significa tanto que estarmos quebrando as regras de Deus, mas sim que não estamos realmente em um relacionamento com Deus. A outra preocupação — seja dinheiro, poder, segurança, reconhecimento, sexo ou qualquer outra coisa — tornou-se nosso deus. Esse deus terá seus próprios mandamentos em desacordo com os de Deus, e inevitavelmente violaremos a Torá se cumprirmos as exigências desse deus. A observância dos Dez Mandamentos só é concebível para aqueles que começam não tendo outro deus além de Deus.
No campo do trabalho, isso significa que não devemos permitir que o trabalho ou seus requisitos e frutos substituam Deus como nossa preocupação mais importante na vida. “Nunca permita que alguém ou alguma coisa ameace o lugar central de Deus em sua vida”, como diz David Gill. [1]
Como muitas pessoas trabalham principalmente para ganhar dinheiro, um desejo excessivo por dinheiro provavelmente seja o perigo mais comum do trabalho em relação ao primeiro mandamento. Jesus advertiu exatamente sobre esse perigo. “Ninguém pode servir a dois senhores... Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6.24). Mas quase tudo relacionado ao trabalho pode se tornar distorcido em nossos desejos, a ponto de interferir em nosso amor por Deus. Quantas carreiras chegam a um fim trágico porque os meios para realizar coisas pelo amor de Deus — como poder político, sustentabilidade financeira, compromisso com o trabalho, status entre colegas ou desempenho superior — tornam-se um fim em si mesmos? Quando, por exemplo, o reconhecimento no trabalho se torna mais importante do que o caráter no trabalho, não é um sinal de que a reputação está substituindo o amor de Deus como a preocupação principal?
“Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4; Deuteronômio 5.8)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO segundo mandamento levanta a questão da idolatria. Ídolos são deuses que nós mesmos criamos, deuses que nada têm em si próprios a não ser o que nós mesmos criamos, deuses sobre os quais pensamos ter controle. Nos tempos antigos, a idolatria muitas vezes assumia a forma de adoração a objetos físicos. Mas a questão é realmente de confiança e devoção. Em última análise, em que depositamos nossa esperança de bem-estar e sucesso? Qualquer coisa que não seja capaz de cumprir nossa esperança — ou seja, qualquer coisa que não seja Deus — é um ídolo, seja ou não um objeto físico. A história de uma família que forja um ídolo com a intenção de manipular Deus, bem como as desastrosas consequências pessoais, sociais e econômicas que se seguem, são memoravelmente contadas em Juízes 17—21.
No mundo do trabalho, é comum falar em dinheiro, fama e poder como ídolos em potencial, e com razão. Eles não são ídolos em si e, de fato, podem ser necessários para cumprirmos nossos papéis na obra criadora e redentora de Deus no mundo. No entanto, começamos a cair na idolatria quando imaginamos que temos total controle sobre eles, ou que, ao alcançá-los, nossa segurança e prosperidade serão garantidas. O mesmo pode ocorrer com praticamente todos os outros elementos do sucesso, incluindo preparação, trabalho árduo, criatividade, risco, riqueza e outros recursos e circunstâncias favoráveis. Somos capazes de reconhecer quando começamos a idolatrar essas coisas? Pela graça de Deus, podemos vencer a tentação de adorar essas coisas no lugar de Deus.
“Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus” (Êxodo 20.7; Deuteronômio 5.11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO terceiro mandamento literalmente proíbe o povo de Deus de tomar “em vão” o nome de Deus. Isso não precisa se restringir ao nome “YHWH” (Dt 5.11), mas inclui “Deus”, “Jesus”, “Cristo” e assim por diante. Mas o que significa tomar em vão? Isso inclui, é claro, o uso desrespeitoso para xingar, caluniar e blasfemar. Mas, mais significativamente, inclui atribuir falsamente desígnios humanos a Deus. Isso nos proíbe de reivindicar a autoridade de Deus para nossas próprias ações e decisões. Lamentavelmente, alguns cristãos parecem acreditar que seguir a Deus no trabalho consiste principalmente em falar por Deus com base em seu entendimento individual, em vez de trabalhar respeitosamente com os outros ou assumir a responsabilidade por suas ações. “A vontade de Deus é que…” ou “Deus está punindo você por…” são coisas muito perigosas de se dizer e quase nunca válidas quando ditas por um indivíduo sem o discernimento da comunidade de fé (1Ts 5.20-21). À luz disso, talvez a tradicional reticência dos judeus em proferir até mesmo o termo traduzido por “Deus” — sem falar do próprio nome divino — demonstre uma sabedoria que os cristãos muitas vezes carecem. Se fôssemos um pouco mais cuidadosos ao usar a palavra “Deus”, talvez fôssemos mais criteriosos ao afirmar que conhecemos a vontade de Deus, especialmente no que se refere a outras pessoas.
O terceiro mandamento também nos lembra que respeitar os nomes humanos é importante para Deus. O Bom Pastor “chama as ovelhas pelo nome” (Jo 10.3), enquanto nos adverte que, se você chamar outra pessoa de “louco” (ou “tolo”, NAA), então “corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.22). Tendo isso em mente, não devemos fazer uso indevido do nome de outras pessoas ou chamá-las por apelidos desrespeitosos. Usamos o nome das pessoas de forma errada quando o fazemos para amaldiçoar, humilhar, oprimir, excluir e fraudar. Usamos bem o nome das pessoas quando o fazemos para encorajar, agradecer, demonstrar solidariedade e acolher. Simplesmente aprender e dizer o nome de alguém é uma bênção, especialmente se essa pessoa é frequentemente tratada como alguém sem nome, invisível ou insignificante. Você sabe o nome da pessoa que esvazia sua lixeira, atende sua ligação telefônica ou dirige o ônibus que você pega todos os dias? Se esses exemplos não dizem respeito ao próprio nome do Senhor, eles dizem respeito ao nome daqueles que foram feitos à sua imagem.
“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo” (Êxodo 20.8-11; Deuteronômio 5.12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA questão do sábado é complexa, não apenas nos livros de Deuteronômio, Êxodo e no Antigo Testamento, mas também na teologia e na prática cristãs. A aplicabilidade exata do quarto mandamento — guardar o sábado — aos crentes gentios tem sido uma questão de debate desde os tempos do Novo Testamento (Rm 14.5-6). No entanto, o princípio geral do sábado se aplica diretamente à questão do trabalho.
O sábado e o trabalho que fazemos (Deuteronômio 5.13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA primeira parte do mandamento exige que se pare de trabalhar um dia a cada sete. Por um lado, esse foi um presente incomparável para o povo de Israel. Nenhum outro povo antigo tinha o privilégio de descansar um dia em cada sete. Por outro lado, exigia uma confiança extraordinária na provisão de Deus. Seis dias de trabalho tinham de ser suficientes para plantar, colher, carregar água, fiar e tirar o sustento da criação. Enquanto Israel descansava um dia por semana, as nações ao redor continuavam a forjar espadas, preparar flechas e treinar soldados. Israel tinha de confiar em Deus para não deixar que um dia de descanso levasse a uma catástrofe econômica e militar.
Enfrentamos a mesma questão de confiança na provisão de Deus hoje. Se obedecermos ao mandamento de Deus de observar o próprio ciclo de trabalho e descanso de Deus, seremos capazes de competir na economia moderna? São necessários sete dias de trabalho para ter um emprego (ou dois ou três empregos), limpar a casa, preparar as refeições, cortar a grama, lavar o carro, pagar as contas, terminar os trabalhos da escola e comprar roupas? Ou podemos confiar em Deus para nos sustentar, mesmo que tiremos um dia de folga durante o curso de cada semana? Podemos reservar um tempo para adorar a Deus, orar e nos reunir com outras pessoas para estudo e encorajamento e, se o fizermos, isso nos tornará mais ou menos produtivos em geral? O quarto mandamento não explica como Deus fará com que tudo dê certo para nós. Ele simplesmente nos diz para descansar um dia a cada sete.
Os cristãos, com algumas exceções significativas, geralmente adotam como dia de descanso o Dia do Senhor (domingo, o dia da ressurreição de Cristo), mas a essência do sábado não é escolher um dia específico da semana em detrimento de outro (Rm 14.5-6). A polaridade que realmente está na base do sábado é trabalhar e descansar. Tanto o trabalho quanto o descanso estão incluídos no quarto mandamento. Os seis dias de trabalho fazem parte do mandamento tanto quanto o dia de descanso. Embora muitos cristãos corram o risco de permitir que o trabalho consuma o tempo reservado para o descanso, outros correm o risco de evitar o trabalho e tentar levar uma vida de lazer e preguiça. Isso é ainda pior do que negligenciar o sábado, pois “se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1Tm 5.8). O que precisamos é de um ritmo adequado de trabalho e descanso, que, juntos, sejam bons para nós, nossa família, nossos funcionários e nossos hóspedes. O ritmo pode ou não incluir vinte e quatro horas contínuas de descanso, caindo no domingo (ou sábado). As proporções podem mudar devido a necessidades temporárias ou a necessidades mutáveis das fases da vida.
Se o excesso de trabalho é o nosso principal perigo, precisamos encontrar uma maneira de honrar o quarto mandamento sem instituir um novo e falso legalismo que oponha o espiritual (adoração no domingo) contra o secular (trabalho de segunda a sábado). Se evitar o trabalho é o nosso perigo, precisamos aprender a encontrar alegria e significado em trabalhar como um serviço a Deus e ao próximo (Ef 4.28).
O sábado e o trabalho que as pessoas fazem por nós
Voltar ao índice Voltar ao índiceDas poucas variações entre as duas versões dos Dez Mandamentos, a maioria ocorre como acréscimos ao quarto mandamento em Deuteronômio. Primeiro, a lista daqueles que você não pode forçar a trabalhar no sábado é expandida para incluir “teu boi, teu jumento ou qualquer dos teus animais”. (Dt 5.14a). Em segundo lugar, é dada uma razão pela qual você não pode forçar escravos a trabalhar no sábado: “para que o teu servo e a tua serva descansem como tu. Lembra-te de que foste escravo no Egito” (Dt 5.14b-15a). Por fim, acrescenta-se um lembrete de que sua capacidade de descansar com segurança em meio à concorrência militar e econômica de outras nações é um dom de Deus, que protege Israel “com mão poderosa e com braço forte” (Dt 5.15b).
Uma distinção importante entre os dois textos sobre esse mandamento é seu fundamento na criação e na redenção, respectivamente. Em Êxodo, o sábado está enraizado nos seis dias da criação, seguidos por um dia de descanso (Gn 1.3—2.3). Deuteronômio acrescenta o elemento da redenção de Deus. “O Senhor, o teu Deus, te tirou de lá com mão poderosa e com braço forte. Por isso o Senhor, o teu Deus, te ordenou que guardes o dia de sábado” (Dt 5.15). Ao juntar os dois, vemos que os fundamentos para guardar o sábado são a maneira como Deus nos criou e a maneira como ele nos redime.
Esses acréscimos destacam a preocupação de Deus por aqueles que trabalham sob a autoridade de outros. Não é você apenas quem deve descansar, mas aqueles que trabalham para você — escravos, outros israelitas e até animais — também devem descansar. Quando você se lembra de que foi “escravo no Egito”, isso o lembra de não ter seu próprio descanso como um privilégio especial, mas de trazer descanso aos outros, assim como o Senhor o trouxe a você. Não importa que religião eles sigam ou o que possam escolher fazer com o tempo. Eles são trabalhadores, e Deus nos orienta a fornecer descanso para aqueles que trabalham. Podemos estar acostumados a pensar em guardar o sábado para nosso descanso, mas quanto pensamos no descanso daqueles que trabalham para nos servir? Muitas pessoas trabalham em horários que interferem em seus relacionamentos, ritmos de sono e oportunidades sociais, a fim de tornar a vida mais conveniente para os outros.
As chamadas “leis azuis” (ou “leis do domingo”) visavam proteger — ou impedir, dependendo do ponto de vista — as pessoas de trabalharem o tempo todo, mas acabaram desaparecendo na maioria dos países desenvolvidos. Sem dúvida, isso abriu muitas novas oportunidades para os trabalhadores e as pessoas a quem servem. Mas isso é sempre algo de que devemos fazer parte? Quando fazemos compras tarde da noite, vamos ao clube no domingo de manhã ou assistimos a eventos esportivos que continuam depois da meia-noite, consideramos como isso pode afetar aqueles que trabalham nesses horários? Talvez nossas ações ajudem a criar uma oportunidade de trabalho que, de outra forma, não existiria. Por outro lado, talvez simplesmente exigimos que alguém trabalhe em um horário miserável, sendo que poderia trabalhar em um horário mais conveniente.
A rede de restaurantes de fast-food Chick-fil-A é conhecida por fechar aos domingos. Muitas vezes, presume-se que isso se deva à interpretação particular do quarto mandamento do fundador Truett Cathy. Mas, de acordo com o site da empresa, “sua decisão foi tão prática quanto espiritual. Ele acredita que todos os dirigentes e funcionários dos restaurantes franqueados da Chick-fil-A devem ter a oportunidade de descansar, passar tempo com a família e os amigos e adorar a Deus, se assim o desejarem”. É claro que ler o quarto mandamento como uma forma de cuidar das pessoas que trabalham para você é uma interpretação particular, mas não uma interpretação sectária ou legalista. A questão é complexa e não há uma resposta única para todos. Mas, como consumidores e, em alguns casos, como empregadores, tomamos decisões que afetam as horas e as condições de descanso e trabalho de outras pessoas.
“Honra teu pai e tua mãe” (Êxodo 20.12; Deuteronômio 5.16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO quinto mandamento diz que devemos respeitar a autoridade mais básica entre os seres humanos, a dos pais em relação aos filhos. Em outras palavras, ser pai ou mãe está entre os tipos mais importantes de trabalho que existem no mundo e merece e requer o maior respeito. Há muitas maneiras de honrar — ou desonrar — seu pai e sua mãe. Nos dias de Jesus, os fariseus queriam restringir isso a falar bem deles. Mas Jesus salientou que obedecer a esse mandamento inclui trabalhar para sustentar seus pais (Mc 7.9-13). Honramos as pessoas trabalhando para o bem delas.
Para muitas pessoas, um bom relacionamento com os pais é uma das alegrias da vida. Servir com amor a eles é um deleite, e obedecer a esse mandamento é fácil. Mas somos postos à prova por esse mandamento quando achamos difícil trabalhar em favor de nossos pais. Podemos ter sido maltratados ou negligenciados por eles. Eles podem ser controladores e intrometidos. Estar perto deles pode minar nosso senso de identidade, nosso compromisso com nosso cônjuge (incluindo nossas responsabilidades sob o terceiro mandamento) e até mesmo nosso relacionamento com Deus. Mesmo que tenhamos um bom relacionamento com nossos pais, pode chegar um momento em que cuidar deles seja um grande fardo, simplesmente por causa do tempo e do trabalho que isso exige. Se o envelhecimento ou a demência começarem a roubar sua memória, suas capacidades e sua boa índole, cuidar deles pode se tornar uma profunda tristeza.
No entanto, o quinto mandamento vem com uma promessa: “para que tenhas longa vida e tudo te vá bem na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Dt 5.16). Por meio da devida honra aos pais, os filhos aprendem o respeito adequado em todos os outros tipos de relacionamento, incluindo aqueles em seus futuros ambientes de trabalho. A obediência a esse mandamento nos permite viver muito e fazer o bem, porque desenvolver relacionamentos adequados de respeito e autoridade é essencial para o sucesso individual e a ordem social.
Como essa é uma ordem para trabalhar em benefício dos pais, é inerentemente uma ordem do ambiente de trabalho. O ambiente de trabalho pode ser onde ganhamos recursos para sustentá-los ou pode ser onde os ajudamos nas tarefas da vida cotidiana. Ambos são trabalho. Quando aceitamos um emprego porque ele nos permite viver perto deles, enviamos dinheiro para eles, fazemos uso dos valores e dons que eles desenvolveram em nós ou ainda fazemos coisas que eles nos ensinaram como sendo importantes, então estamos honrando-os. Quando nós limitamos nossas carreiras para que possamos estar presentes com eles, limpar e cozinhar para eles, dar-lhes banho e abraçá-los, levá-los aos lugares de que gostam ou diminuir seus medos, estamos honrando-os.
Os pais, portanto, têm o dever de ser dignos de confiança, respeito e obediência. Criar filhos é uma forma de trabalho, e nenhum ambiente de trabalho exige padrões mais elevados de confiabilidade, compaixão, justiça e equidade. Como o apóstolo Paulo disse: “Pais, não irritem seus filhos; antes criem-nos segundo a instrução e o conselho do Senhor” (Ef 6.4). Somente pela graça de Deus alguém poderia esperar servir adequadamente como pai, outra indicação de que a adoração a Deus e a obediência aos seus caminhos estão implícitas em todo o Deuteronômio.
Em nosso ambiente de trabalho, podemos ajudar outras pessoas a cumprir o quinto mandamento, assim como nós mesmos obedecemos. Podemos lembrar que funcionários, clientes, colegas de trabalho, chefes, fornecedores e outros também têm família e, então, podemos ajustar nossas expectativas para apoiá-los a honrar suas famílias. Quando outras pessoas compartilham ou reclamam sobre suas dificuldades com os pais, podemos ouvi-las com compaixão, apoiá-las de forma prática (talvez oferecendo-se para fazer um turno no trabalho para que elas possam estar com os pais), talvez oferecer uma perspectiva piedosa para que considerem. Por exemplo, se um colega focado na carreira revela uma crise familiar, temos a chance de orar pela família e sugerir que ele pense em reequilibrar o tempo entre a carreira e a família.
“Não matarás” (Êxodo 20.13; Deuteronômio 5.17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceInfelizmente, o sexto mandamento tem uma aplicação muito prática no ambiente de trabalho moderno, onde 10% de todas as mortes relacionadas ao trabalho (nos Estados Unidos) são homicídios. [1] No entanto, admoestar os leitores deste artigo para que “não mate ninguém no trabalho”, provavelmente não mudará muito essa estatística.
Mas o assassinato não é a única forma de violência no ambiente de trabalho, apenas a mais extrema. Jesus disse que até mesmo a ira é uma violação do sexto mandamento (Mt 5.21-22). Como Paulo observou, podemos não ser capazes de evitar o sentimento de raiva, mas podemos aprender a lidar com ele. “Quando vocês ficarem irados, não pequem. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha” (Ef 4.26). A implicação mais significativa do sexto mandamento para o trabalho, então, pode ser: “Se você ficar com raiva no trabalho, procure ajuda para controlar a raiva”. Muitos empregadores, igrejas, entidades governamentais e organizações sem fins lucrativos oferecem aulas e aconselhamento sobre controle da raiva, e aproveitá-las pode ser uma maneira altamente eficaz de obedecer ao sexto mandamento.
Assassinato é homicídio intencional, mas a jurisprudência que decorre do sexto mandamento mostra que também temos o dever de evitar mortes não intencionais. Um caso que serve de ilustração é quando um boi (um animal de trabalho) chifra um homem ou uma mulher até a morte (Êx 21.28-29). Se o evento era previsível, o dono do boi deve ser tratado como um assassino. Em outras palavras, os proprietários/gerentes são responsáveis por garantir a segurança no ambiente de trabalho dentro do razoável. Esse princípio está bem estabelecido na lei na maioria dos países, e a segurança no ambiente de trabalho é objeto de atenção significativa do governo, da autorregulamentação do setor e de políticas e práticas organizacionais. No entanto, ambientes de trabalho de todos os tipos continuam a exigir ou permitir que as pessoas trabalhem em condições desnecessariamente inseguras. Os cristãos que de alguma maneira ajudam a estabelecer as condições de trabalho, supervisionar os trabalhadores ou modelar as práticas no ambiente de trabalho são lembrados pelo sexto mandamento de que condições seguras de trabalho estão entre suas maiores responsabilidades no mundo do trabalho.
“Não adulterarás” (Êxodo 20.14; Deuteronômio 5.18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO ambiente de trabalho é um dos ambientes mais comuns de adultério, não necessariamente porque o adultério ocorre no próprio ambiente de trabalho, mas porque surge das condições de trabalho e do relacionamento com colegas de trabalho. A primeira aplicação ao ambiente de trabalho, então, é literal. As pessoas casadas não devem fazer sexo com pessoas que não sejam seus cônjuges, no trabalho ou por causa de seu trabalho. Algumas profissões, como a prostituição e a pornografia, quase sempre violam esse mandamento, pois quase sempre envolvem sexo entre pessoas que são casadas com outras pessoas. Mas qualquer tipo de trabalho que corroa os laços do casamento infringe o sétimo mandamento. Existem muitas maneiras pelas quais isso pode ocorrer. Um trabalho que incentiva fortes laços afetivos entre colegas de trabalho, sem apoiar adequadamente seus compromissos com os cônjuges, como pode acontecer em hospitais, empreendimentos, instituições acadêmicas e igrejas, entre outros lugares. Condições de trabalho que colocam as pessoas em contato físico próximo por períodos prolongados ou que não incentivam limites razoáveis para encontros fora do expediente, como pode acontecer em tarefas de campo prolongadas. O trabalho pode sujeitar as pessoas a assédio sexual e a pressão para fazer sexo com aqueles que detêm poder sobre elas. O trabalho pode inflar o ego das pessoas ou expô-las à bajulação, como pode ocorrer com celebridades, atletas famosos, gurus dos negócios, altos funcionários do governo e os super-ricos. O trabalho pode exigir tanto tempo longe — física, mental ou emocionalmente — que desgasta os laços entre os cônjuges. Tudo isso pode representar perigos que os cristãos fariam bem em reconhecer e evitar, melhorar ou resguardar-se.
“Não furtarás” (Êxodo 20.15; Deuteronômio 5.19)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO oitavo mandamento é outro que tem o trabalho como seu assunto principal. Roubar é uma violação do trabalho adequado, porque priva a vítima dos frutos de seu trabalho. Também é uma violação do mandamento de trabalhar seis dias por semana, já que, na maioria dos casos, o roubo é um atalho em relação ao trabalho honesto, o que mostra novamente a inter-relação dos Dez Mandamentos. Portanto, podemos tomar como palavra de Deus que não devemos roubar daqueles para quem, com quem ou entre quem trabalhamos.
A própria ideia de que existe algo como “roubar” implica a existência de propriedade e direitos de propriedade. Existem apenas três maneiras de adquirir coisas — fabricando-as nós mesmos, pela troca voluntária de bens e serviços com outras pessoas (comércio ou presentes) ou pelo confisco. O roubo é a forma mais flagrante de confisco, quando alguém toma o que pertence a outro e foge. Mas o confisco também ocorre em uma escala maior e mais sofisticada, como quando uma corporação frauda clientes ou um governo impõe uma tributação desastrosa a seus cidadãos. Essas instituições não respeitam os direitos de propriedade. Este não é o lugar para fazer comparações entre o que constitui o comércio justo e o monopolista ou entre a tributação legítima e a excessiva. Mas o oitavo mandamento nos diz que nenhuma sociedade pode prosperar quando os direitos de propriedade são violados impunemente por indivíduos, gangues criminosas, empresas ou governos.
Em termos práticos, isso significa que o furto ocorre de muitas formas, além do roubo propriamente dito. Sempre que nos apossamos de algo de valor sem consentimento de seu legítimo dono, estamos cometendo um roubo. Apropriar-se indevidamente de recursos ou fundos para uso pessoal é roubar. Usar o engano para fazer vendas, ganhar participação no mercado ou aumentar os preços é roubar, porque o engano significa que aquilo que o comprador adquire não é o que realmente pensava ser. (Veja a seção sobre “Exagero” em Verdade e Engano em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.) Da mesma forma, lucrar tirando vantagem do medo, vulnerabilidade, impotência ou desespero das pessoas é uma forma de roubo, porque seu consentimento não é verdadeiramente voluntário. Violar patentes, direitos autorais e outras leis de propriedade intelectual é roubar porque priva os proprietários da capacidade de lucrar com sua criação, nos termos da lei civil.
O respeito pela propriedade e pelos direitos dos outros significa que não tomamos o que é deles nem nos intrometemos em seus assuntos. Mas isso não significa que olhamos apenas para nós mesmos. Deuteronômio 22.1 declara: “Se o boi ou a ovelha de um israelita se extraviar e você o vir, não ignore o fato, mas faça questão de levar o animal de volta ao dono”. Dizer “Não é da minha conta” não é desculpa para a insensibilidade.
Lamentavelmente, muitos trabalhos parecem incluir um elemento de aproveitar-se da ignorância dos outros ou da falta de alternativas para forçá-los a fazer transações com as quais, de outra forma, não concordariam. Empresas, governos, indivíduos, sindicatos e outros podem usar seu poder para coagir outras pessoas quanto a pagamento de salários, preços, termos financeiros, condições de trabalho, horários ou outros fatores injustos. Podemos até não estar roubando bancos, roubando de nossos empregadores ou furtando lojas, mas muito provavelmente podemos estar participando de práticas injustas ou antiéticas que privam outras pessoas de certos direitos que deveriam ser delas. Resistir a essas práticas pode ser difícil e até mesmo trazer consequências para nossa carreira, mas, mesmo assim, somos chamados a fazer isso.
“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20.16; Deuteronômio 5.20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO nono mandamento honra o direito à própria reputação. [1] Ele encontra aplicação direta em processos judiciais em que o que as pessoas dizem retrata a realidade e determina o curso da vida. Decisões judiciais e outros processos legais exercem grande poder. Manipulá-los mina o tecido ético da sociedade e, portanto, constitui uma ofensa muito grave. Walter Brueggemann diz que esse mandamento reconhece “que a vida em comunidade não é possível, a menos que haja uma arena na qual haja confiança pública de que a realidade social será descrita e relatada de forma confiável”. [2]
Embora afirmado na linguagem do tribunal, o nono mandamento também se aplica a uma ampla gama de situações que afetam praticamente todos os aspectos da vida. Nunca devemos dizer ou fazer algo que desvirtue outra pessoa. Brueggemann novamente fornece uma perspectiva:
Os políticos procuram destruir uns aos outros em campanhas negativas; colunistas de fofocas se alimentam de calúnias; e nas salas de estar cristãs, reputações são manchadas ou destruídas enquanto o café é servido em porcelana fina com a sobremesa. Esses tribunais informais são conduzidos sem o devido processo legal. Acusações são feitas; boatos são permitidos; difamações, perjúrios e comentários caluniosos são proferidos sem objeção. Sem provas, sem defesa. Como cristãos, devemos nos recusar a participar ou a tolerar qualquer conversa em que uma pessoa esteja sendo difamada ou acusada sem que a pessoa esteja presente para se defender. É errado transmitir boatos de qualquer forma, mesmo como pedidos de oração ou preocupações pastorais. Mais do que simplesmente não participar, cabe aos cristãos impedir os rumores e aqueles que os espalham. [3]
Isso sugere ainda que a fofoca no ambiente de trabalho é uma ofensa grave. Parte disso diz respeito a assuntos pessoais e externos, o que é bastante maligno. E quanto aos casos em que um funcionário mancha a reputação de um colega de trabalho? A verdade pode realmente ser dita quando aqueles de quem se fala não estão lá para falar por si mesmos? E as avaliações de desempenho? Que medidas devem ser adotadas para garantir que os relatórios sejam justos e precisos? Em larga escala, o negócio de marketing e propaganda opera no espaço público entre organizações e indivíduos. No interesse de apresentar os próprios produtos e serviços da melhor maneira possível, até que ponto se pode apontar as falhas e fraquezas da concorrência, sem incorporar a perspectiva dela? É possível que os direitos do seu “próximo” incluam os direitos de outras empresas? O escopo de nossa economia global sugere que esse mandamento pode ter uma aplicação muito ampla.
O mandamento proíbe especificamente falar falsamente sobre outra pessoa, mas levanta a questão de saber se devemos dizer a verdade em todo tipo de situação. A emissão de demonstrações financeiras falsas ou enganosas é uma violação do nono mandamento? E o que dizer de alegações de publicidade exageradas, mesmo que não depreciem falsamente os concorrentes? E quanto às garantias da administração que enganam os funcionários sobre demissões iminentes? Em um mundo em que a percepção muitas vezes conta para a realidade, a retórica da persuasão eficaz pode ou não ter muito a ver com a verdade genuína. A origem divina desse mandamento nos lembra de que as pessoas podem não ser capazes de detectar quando nossa representação dos outros é precisa ou não, mas Deus não pode ser enganado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que o engano às vezes é praticado, aceito e até aprovado nas Escrituras. Uma teologia completa da verdade e do engano baseia-se em textos que incluem, mas não se limitam ao nono mandamento. (Veja Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org para uma discussão muito mais completa desse tópico, incluindo se a proibição de “falso testemunho contra o próximo” abrange todas as formas de mentira e engano.)
“Não cobiçarás a casa do teu próximo [...] nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20.17; Deuteronômio 5.21)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO décimo mandamento proíbe cobiçar qualquer coisa que pertença ao próximo (Dt 5.21). Não é errado notar as coisas que pertencem ao próximo, nem mesmo desejar obter essas coisas para nós mesmos legitimamente. A cobiça acontece quando alguém vê a prosperidade, as conquistas ou os talentos de outra pessoa e, em seguida, se ressente com isso, ou quer tomar aquilo para si, ou quer punir a pessoa bem-sucedida. É o dano a outra pessoa, o “próximo” — não o desejo de ter algo — que é proibido aqui.
Podemos nos inspirar no sucesso dos outros ou podemos cobiçar. A primeira atitude leva ao trabalho árduo e à prudência. A segunda atitude causa preguiça, gera desculpas para o fracasso e provoca atos de confisco. Nunca teremos sucesso se nos convencermos de que a vida é um jogo de soma zero e que, de alguma forma, somos prejudicados quando outras pessoas se saem bem. Nunca faremos grandes coisas se, em vez de trabalhar arduamente, fantasiarmos que as conquistas de outras pessoas são nossas. Aqui, novamente, o fundamento último desse mandamento é o mandamento de adorar somente a Deus. Se Deus é o foco de nossa adoração, o desejo por ele substitui todo desejo profano e cobiçoso por qualquer outra coisa, incluindo o que pertence ao próximo. Como o apóstolo Paulo disse: “Aprendi a ficar satisfeito com o que tenho” (Fp 4.11, NVT).
Deuteronômio, em relação a Êxodo, acrescenta as palavras “nem sua propriedade” à lista das coisas do próximo que não se deve cobiçar. Como nas outras adições aos Dez Mandamentos em Deuteronômio, esta chama a atenção para o ambiente de trabalho. Uma propriedade ou campo é um ambiente de trabalho, e cobiçar isso é cobiçar os recursos produtivos que outra pessoa possui.
A inveja e a ganância são de fato especialmente perigosas no trabalho, onde status, salário e poder são fatores rotineiros em nossos relacionamentos com as pessoas com quem passamos muito tempo. Podemos ter muitos bons motivos para desejar realizações, promoções ou recompensas no trabalho. Mas a inveja não é um deles, assim como não é um bom motivo trabalhar obsessivamente por inveja da posição social que isso pode possibilitar.
Em particular, enfrentamos no trabalho a tentação de inflar falsamente nossas realizações às custas dos outros. O antídoto é simples, embora às vezes difícil de fazer. Torne uma prática consistente reconhecer as realizações dos outros e dar a eles todo o crédito que merecem. Se pudermos aprender a nos alegrar com — ou pelo menos reconhecer — os sucessos dos outros, cortaremos a força vital da inveja e da cobiça em ação. Melhor ainda, se pudermos aprender a trabalhar para que nosso sucesso ande de mãos dadas com o sucesso dos outros, a cobiça será substituída pela colaboração e a inveja, pela unidade.
Leith Anderson, ex-pastor da Wooddale Church, em Eden Prairie, Minnesota, diz: “Como pastor titular, é como se eu tivesse um suprimento ilimitado de moedas no bolso. Sempre que dou crédito a um membro da equipe por uma boa ideia, elogio o trabalho de um voluntário ou agradeço a alguém, é como se estivesse enfiando uma moeda do meu bolso no dele. Esse é o meu trabalho como líder, passar moedas do meu bolso para o bolso dos outros, para aumentar o apreço que outras pessoas têm por elas.” [1]
Decretos e ordenanças (Deuteronômio 4.44—28.68)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNa segunda parte de seu segundo discurso, Moisés descreve em detalhes os “decretos e ordenanças” que Deus ordena que Israel obedeça (Dt 6.1). Essas regras lidam com uma ampla gama de assuntos, incluindo guerra, escravidão, dízimos, festas religiosas, sacrifícios, comida kosher, profecia, monarquia e o santuário central. Esse material contém várias passagens que falam diretamente à teologia do trabalho. Vamos explorá-las em sua ordem bíblica.
As bênçãos de obedecer à aliança de Deus (Deuteronômio 7.12-15; 28.2-12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMesmo que os mandamentos, decretos e ordenanças da aliança de Deus possam parecer não passar de um fardo para Israel, Moisés nos lembra que seu propósito principal é nos abençoar.
Se vocês obedecerem a essas ordenanças, as guardarem e as cumprirem, então o Senhor, o seu Deus, manterá com vocês a aliança e a bondade que prometeu sob juramento aos seus antepassados. Ele os amará, os abençoará e fará com que vocês se multipliquem. Ele abençoará os seus filhos e os frutos da sua terra: o cereal, o vinho novo e o azeite, as crias das vacas e das ovelhas, na terra que aos seus antepassados jurou dar a vocês. (Dt 7.12-13)
Todas estas bênçãos virão sobre vocês e os acompanharão, se vocês obedecerem ao Senhor, o seu Deus: “Vocês serão abençoados na cidade e serão abençoados no campo. Os filhos do seu ventre serão abençoados, como também as colheitas da sua terra e os bezerros e os cordeiros dos seus rebanhos. A sua cesta e a sua amassadeira serão abençoadas. Vocês serão abençoados em tudo o que fizerem... O Senhor lhes concederá grande prosperidade, no fruto do seu ventre, nas crias dos seus animais e nas colheitas da sua terra, nesta terra que ele jurou aos seus antepassados que daria a vocês. O Senhor abrirá o céu, o depósito do seu tesouro, para enviar chuva à sua terra no devido tempo e para abençoar todo o trabalho das suas mãos”. (Dt 28.2-7,11-12)
A obediência à aliança deve ser uma fonte de bênção, prosperidade, alegria e saúde para o povo de Deus. Como Paulo diz: “A Lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm 7.12), e “O amor é o cumprimento da Lei” (Rm 13.10).
Isso não deve ser confundido com o chamado “Evangelho da Prosperidade”, que afirma incorretamente que Deus inevitavelmente traz riqueza e saúde aos indivíduos que ganham seu favor. Significa que, se o povo de Deus vivesse de acordo com sua aliança, o mundo seria um lugar melhor para todos. Obviamente, o testemunho cristão é que não somos capazes de cumprir a lei por meio de qualquer poder que possamos ter. É por isso que há uma nova aliança em Cristo, na qual a graça de Deus se torna disponível para nós por meio da morte e ressurreição de Cristo, em vez de ser limitada por nossa própria obediência. Ao viver em Cristo, descobrimos que somos capazes de amar e servir a Deus, e que, por fim, recebemos as bênçãos descritas por Moisés, de modo parcial nos dias atuais e de modo completo depois, quando Cristo levar o Reino de Deus ao seu cumprimento.
De qualquer forma, a obediência à aliança de Deus é o tema abrangente que atravessa o livro de Deuteronômio. Além dessas três passagens extensas, o tema é abordado em muitas ocasiões breves ao longo do livro, e Moisés retorna a ele em seu discurso final, ao fim de sua vida, nos capítulos 29 e 30.
Os perigos da prosperidade (Deuteronômio 8.11-20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm contraste com a alegre obediência a Deus está a arrogância que muitas vezes acompanha a prosperidade. Isso é semelhante ao perigo da acomodação sobre o qual Moisés adverte em Deuteronômio 4.25-40, mas com foco no orgulho ativo, em vez de no direito passivo.
Não aconteça que, depois de terem comido até ficarem satisfeitos, de terem construído boas casas e nelas morado, de aumentarem os seus rebanhos, a sua prata e o seu ouro, e todos os seus bens, o seu coração fique orgulhoso e vocês se esqueçam do Senhor, o seu Deus, que os tirou do Egito, da terra da escravidão. (Dt 8.12-14)
Quando, depois de muitos anos de suor, uma pessoa vê um negócio, uma carreira, um projeto de pesquisa, a criação dos filhos ou outro trabalho se tornar um sucesso, ela terá um senso de orgulho justificável. Mas podemos abrir as portas para que o orgulho alegre se transforme em arrogância. Deuteronômio 8.17-18 nos lembra: “Não digam, pois, em seu coração: ‘A minha capacidade e a força das minhas mãos ajuntaram para mim toda esta riqueza’. Mas, lembrem-se do Senhor, o seu Deus, pois é ele que lhes dá a capacidade de produzir riqueza, confirmando a aliança que jurou aos seus antepassados, conforme hoje se vê”. Como parte de sua aliança com seu povo, Deus nos dá a capacidade de nos engajarmos na produção econômica. Precisamos lembrar, no entanto, que isto é um dom de Deus. Quando atribuímos nosso sucesso inteiramente a nossas habilidades e esforços, esquecemos que Deus nos deu essas habilidades, bem como a própria vida. Não criamos a nós mesmos. A ilusão de autossuficiência nos torna insensíveis. Como sempre, a adoração adequada e a consciência da dependência de Deus fornecem o antídoto (Dt 8.18).
Generosidade e bênção de Deus (Deuteronômio 15.7-11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO tema da generosidade surge em Deuteronômio 15.7-8: “Se houver algum israelita pobre em qualquer das cidades da terra que o Senhor, o seu Deus, lhes está dando, não endureçam o coração, nem fechem a mão para com o seu irmão pobre. Ao contrário, tenham mão aberta”. Generosidade e compaixão são a essência da aliança. “Dê-lhe generosamente, e sem relutância no coração; pois, por isso, o Senhor, o seu Deus, o abençoará em todo o seu trabalho e em tudo o que você fizer” (Dt 15.10). Nosso trabalho só se torna plenamente abençoado quando abençoa os outros. Como Paulo disse: “o amor é o cumprimento da Lei” (Rm 13.10).
Para a maioria de nós, o dinheiro ganho com o trabalho nos dá os meios para sermos generosos. Será que realmente usamos isso generosamente? Além disso, há maneiras em que podemos ser generosos em nosso próprio trabalho? A passagem fala da generosidade especificamente como um aspecto do trabalho (“todo o seu trabalho”). Se um colega de trabalho precisa de ajuda para desenvolver uma habilidade ou capacidade, ou de uma palavra honesta de recomendação nossa, ou de paciência para lidar com suas deficiências, essas poderiam ser oportunidades de praticar a generosidade? Esses tipos de generosidade podem nos custar tempo e dinheiro, ou podem ainda exigir que reconsideremos nossa autoimagem, examinemos nossa conivência e questionemos nossos motivos. Se pudéssemos de bom grado fazer esses sacrifícios, será que abriríamos uma nova porta para a bênção de Deus por meio de nosso trabalho?
Escravidão (Deuteronômio 15.12-18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUm tópico preocupante em Deuteronômio é a escravidão. A permissão da escravidão no Antigo Testamento gera muito debate, e não podemos resolver todas as questões aqui. Não devemos, no entanto, equiparar a escravidão israelita à escravidão na era moderna. A última envolveu o sequestro de africanos ocidentais de sua terra natal para venda como escravos, seguido pela escravização perpétua de seus descendentes. O Antigo Testamento condena esse tipo de prática (Am 1.6) e a torna punível com a morte (Dt 24.7; Êx 21.16). Os israelitas se tornavam escravos uns dos outros, não por sequestro ou nascimento infeliz, mas por causa de dívidas ou pobreza (Dt 15.12). A escravidão era preferível à fome, e as pessoas podiam se vender como escravas para pagar uma dívida e pelo menos ter onde morar. Mas a escravidão não deveria durar a vida toda. “Se seu compatriota hebreu, homem ou mulher, vender-se a você e servi-lo seis anos, no sétimo ano dê-lhe a liberdade” (Dt 15.12). Após a libertação, os ex-escravos deveriam receber uma parte da riqueza que seu trabalho havia gerado. “Não o mande embora de mãos vazias. Dê-lhe com generosidade dos animais do seu rebanho e do produto da sua eira e do seu tanque de prensar uvas. Dê-lhe conforme a bênção que o Senhor, o seu Deus, lhe tem dado” (Dt 15.13-14).
Em algumas partes do mundo, as pessoas ainda são vendidas (geralmente pelos pais) para pagar uma dívida — uma forma de trabalho que é escravidão em tudo, menos no nome. Outros podem ser atraídos para o tráfico sexual, do qual é difícil ou impossível escapar. Em alguns lugares, os cristãos estão liderando a erradicação dessas práticas, mas muito mais pode ser feito. Imagine a diferença que faria se muito mais igrejas e cristãos fizessem disso uma alta prioridade para a missão e a ação social.
Nos países mais desenvolvidos, trabalhadores desesperados não são vendidos para o trabalho involuntário, mas aceitam quaisquer empregos que possam encontrar. Se Deuteronômio contém proteções até mesmo para escravos, essas proteções não se aplicam também aos trabalhadores? Deuteronômio exige que os senhores cumpram os termos do contrato e os regulamentos trabalhistas, incluindo a data fixa de liberação, o fornecimento de comida e abrigo e a responsabilidade pelas condições de trabalho. As horas de trabalho devem ser razoavelmente limitadas, incluindo um dia de folga semanal (Dt 5.14). Mais significativamente, os senhores devem considerar os escravos como iguais aos olhos de Deus, lembrando que todo o povo de Deus é formado por escravos resgatados. “Lembre-se de que você foi escravo no Egito e que o Senhor, o seu Deus, o redimiu. É por isso que hoje lhe dou essa ordem” (Dt 15.15).
Empregadores modernos podem abusar de trabalhadores desesperados de maneira semelhante à forma como os antigos senhores abusavam de escravos. Será que os trabalhadores perdem essas proteções simplesmente porque não são realmente escravos? De qualquer maneira, os empregadores têm o dever de, pelo menos, não tratar os trabalhadores como se fossem escravos. Os trabalhadores vulneráveis de hoje podem enfrentar imposições para trabalhar horas extras sem remuneração, dar comissões a gerentes, trabalhar em condições perigosas ou tóxicas, pagar pequenos subornos para conseguir turnos, sofrer assédio sexual ou tratamento degradante, receber benefícios inferiores, sofrer discriminação ilegal e outras formas de maus-tratos. Mesmo trabalhadores abastados podem ver que lhes é negada injustamente uma parte razoável dos frutos de seu trabalho.
Para os leitores modernos, a aceitação da escravidão temporária pela Bíblia parece difícil de aceitar — embora reconheçamos que a escravidão antiga não era o mesmo que a escravidão dos séculos 16 ao 19 — e podemos ser gratos pelo fato de a escravidão ser, pelo menos tecnicamente, ilegal em todos os lugares hoje. Mas, em vez de considerar obsoleto o ensino bíblico sobre a escravidão, faríamos bem em trabalhar para abolir as formas modernas de servidão involuntária, ao mesmo tempo em que devemos seguir e promover as proteções da Bíblia para os membros economicamente desfavorecidos da sociedade.
Suborno e corrupção (Deuteronômio 16.18-20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA eficácia dos direitos de propriedade e da proteção dos trabalhadores geralmente depende da aplicação da lei e dos sistemas judiciais. A imposição de Moisés para com os juízes e oficiais é especialmente importante quando se trata de trabalho. “Não pervertam a justiça nem mostrem parcialidade. Não aceitem suborno, pois o suborno cega até os sábios e prejudica a causa dos justos” (Dt 16.19). A justiça imparcial seria fundamental: “Sigam única e exclusivamente a justiça, para que tenham vida e tomem posse da terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá” (Dt 16.20).
Os ambientes de trabalho e as sociedades modernas não estão menos suscetíveis ao suborno, à corrupção e ao preconceito do que o antigo Israel. De acordo com as Nações Unidas, o maior impedimento ao crescimento econômico nos países menos desenvolvidos são as falhas na aplicação imparcial das leis. [1] Em lugares onde a corrupção é endêmica, pode ser impossível ganhar a vida, atravessar a cidade ou viver em paz sem pagar suborno. Essa lei parece reconhecer que, em geral, aqueles que têm o poder de exigir subornos são mais culpados do que aqueles que concordam em pagá-los, pois a proibição é contra aceitar subornos, não contra pagá-los. Mesmo assim, tudo o que os cristãos podem fazer para reduzir a corrupção — seja no dar ou no receber — é uma contribuição para as decisões justas (Dt 16.18), que são sagradas para o Senhor. (Para uma exploração mais aprofundada das aplicações econômicas do estado de direito, veja “Propriedade da terra e direitos de propriedade” em Números 26—27; 36.1-12.
Obedecer às decisões dos tribunais (Deuteronômio 17.8-13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMoisés estabelece um sistema de tribunais de primeira instância e tribunais de apelação que são surpreendentemente semelhantes à estrutura dos tribunais de justiça modernos. Ele ordena ao povo que obedeça às suas decisões. “Procedam de acordo com a sentença e as orientações que eles lhes derem. Não se desviem daquilo que eles lhes determinarem, nem para a direita, nem para a esquerda” (Dt 17.11).
Os ambientes de trabalho hoje são regidos por leis, regulamentos e costumes, com procedimentos, tribunais e processos de apelação para interpretá-los e aplicá-los adequadamente. Devemos obedecer a essas estruturas legais, como Paulo também afirmou (Rm 13.1). Em alguns países, leis e regulamentos são rotineiramente ignorados por quem está no poder ou burlados por suborno, corrupção ou violência. Em outros países, as empresas e outras instituições de trabalho raramente infringem a lei intencionalmente, mas podem tentar infringi-la por meio de ações judiciais incômodas, favores políticos ou lobbies que se opõem ao bem comum. Mas os cristãos são chamados a respeitar o estado de direito, bem como obedecer, defender e procurar fortalecê-lo. Isso não quer dizer que a desobediência civil nunca tenha lugar. Algumas leis são injustas e devem ser quebradas se a mudança não for viável. Mas esses casos são raros e sempre envolvem sacrifício pessoal em busca do bem comum. Subverter a lei para fins de interesse próprio, por outro lado, não é justificável.
De acordo com Deuteronômio 17.9, tanto sacerdotes quanto juízes — ou, como poderíamos dizer hoje, tanto o espírito quanto a letra — são essenciais para a Lei. Se nos encontrarmos presos a certos pontos, explorando tecnicalidades legais para justificar práticas questionáveis, talvez precisemos de um bom teólogo tanto quanto de um bom advogado. Precisamos reconhecer que as decisões que as pessoas tomam no trabalho “secular” são questões teológicas, não meramente jurídicas e técnicas. Imagine um cristão moderno pedindo a seu pastor que o ajude a pensar em uma decisão importante no trabalho, quando as questões éticas ou legais parecerem complicadas. Para que isso valha a pena, o pastor precisa entender que o trabalho é um empreendimento profundamente espiritual e que eles precisam aprender a oferecer assistência útil aos trabalhadores. Talvez um primeiro passo seja simplesmente perguntar às pessoas sobre seu trabalho. “Que ações e decisões você toma diariamente?” “Quais desafios você enfrenta?” “Sobre quais assuntos você gostaria de ter alguém para conversar?” “Como posso orar por você?"
Usando a autoridade com justiça (Deuteronômio 17.14-20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAssim como pessoas e instituições não devem violar a autoridade legítima, pessoas em posições de poder não devem usar sua autoridade de forma ilegítima. Moisés lida especificamente com o caso de um rei.
Esse rei, porém, não deverá adquirir muitos cavalos... Ele não deverá tomar para si muitas mulheres; se o fizer, desviará o seu coração. Também não deverá acumular muita prata e muito ouro. Quando subir ao trono do seu reino, mandará fazer num rolo, para o seu uso pessoal, uma cópia da lei... Trará sempre essa cópia consigo e terá que lê-la todos os dias da sua vida, para que aprenda a temer o Senhor, o seu Deus, e a cumprir fielmente todas as palavras desta lei, e todos estes decretos (Dt 17.16-19).
Nesse texto, vemos duas restrições ao uso da autoridade — aqueles que exercem autoridade não estão acima da lei, mas devem sujeitar-se a ela e defendê-la; e aqueles que exercem autoridade não devem abusar de seu poder para enriquecer.
Hoje, pessoas em posições de autoridade podem tentar se colocar acima da lei, como, por exemplo, quando policiais e agentes judiciais “dão um jeitinho” em multas de trânsito para si e para seus amigos, ou quando funcionários públicos de alto escalão ou funcionários de empresas não obedecem às políticas de despesas a que outros estão sujeitos. Da mesma forma, os funcionários podem usar seu poder para enriquecer recebendo subornos, isenções de zoneamento e licenciamento, acesso a informações privilegiadas ou uso pessoal de propriedade pública ou privada. Às vezes, benefícios especiais são concedidos aos que estão no poder por uma questão de política ou lei, mas isso não elimina realmente a infração. A ordem de Moisés aos reis não é para se certificar de obter autorização legal para seus excessos, mas para evitar completamente os excessos. Quando aqueles que estão no poder usam sua autoridade não apenas para obter privilégios especiais, mas para criar monopólios para seus comparsas, apropriar-se de terras e de bens ou, ainda, prender, torturar ou matar oponentes, as apostas se tornam mortais. Não há diferença de tipo entre pequenos abusos de poder e opressão totalitária, apenas em grau.
Quanto mais autoridade você tiver, maior será a tentação de agir como se estivesse acima da lei. Moisés prescreve um antídoto. O rei deve ler a lei (ou palavra) de Deus todos os dias de sua vida. Ele não apenas deve ler, mas deve desenvolver a habilidade de interpretar e aplicar essa lei de maneira correta e justa. Ele deve desenvolver o hábito de obedecer à palavra de Deus, de colocá-la em prática em seu trabalho, a fim de “cumprir fielmente todas as palavras desta lei” (Dt 17.19). Por meio disso, o rei aprende a reverenciar o Senhor e a cumprir as responsabilidades que Deus lhe deu. Assim ele é lembrado de que também está debaixo de uma autoridade. Deus não lhe dá o privilégio de fazer uma lei para si mesmo, mas o dever de cumprir a lei de Deus para o benefício de todos.
O mesmo vale hoje para aqueles que exercem autoridade de qualquer tipo, mesmo que seja mera autoridade para fazer seu próprio trabalho. Para exercer autoridade com justiça, você precisa se envolver novamente com as Escrituras todos os dias de sua vida e procurar aplicá-las todos os dias às circunstâncias comuns do trabalho. Isso sugere que os trabalhadores cristãos precisam saber o suficiente sobre as Escrituras para aplicá-las ao seu trabalho, e as igrejas precisam treinar pessoas na habilidade de aplicá-las ao ambiente de trabalho. Somente pela arte da prática contínua, não nos voltando nem para a esquerda nem para a direita da palavra de Deus, podemos domar o impulso de fazer mau uso da autoridade. O resultado é que o líder serve à comunidade (Dt 17.20), e não o contrário.
Combine essa percepção com nossa observação anterior de que pastores e teólogos precisam aprender o suficiente sobre o trabalho para saber como oferecer assistência útil aos trabalhadores. Isso sugere que as igrejas e as instituições que treinam e apoiam os líderes da igreja precisam criar diálogos significativos entre pastores e trabalhadores, para que possam entender mais sobre o trabalho uns dos outros.
Empregando recursos para o bem comum (Deuteronômio 23.1—24.13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeuteronômio exige que os proprietários de recursos produtivos os empreguem para beneficiar a comunidade, e faz isso de maneira clara. Por exemplo, os proprietários de terras devem permitir que os vizinhos usem suas terras para ajudar a atender às suas necessidades imediatas. “Se vocês entrarem na vinha do seu próximo, poderão comer as uvas que desejarem, mas nada poderão levar em sua cesta. Se entrarem na plantação de trigo do seu próximo, poderão apanhar espigas com as mãos, mas nunca usem foice para ceifar o trigo do seu próximo” (Dt 23.24-25). Essa era a lei que permitia aos discípulos de Jesus colher grãos dos campos locais enquanto seguiam seu caminho (Mt 12.1). Os respigadores eram responsáveis por colher alimentos para si mesmos, e os proprietários de terras eram responsáveis por dar-lhes acesso para fazê-lo. (Veja “Colheita e respiga” em Levítico 19.9-10 para saber mais sobre essa prática.)
Da mesma forma, aqueles que emprestam dinheiro não devem exigir termos que ponham em risco a saúde ou a subsistência que quem toma o empréstimo (Dt 23.19-20; 24.6,10-13). Em alguns casos, eles devem até estar dispostos a emprestar quando houver probabilidade de perda, simplesmente porque a necessidade do próximo é muito grande (Dt 15.7-9). Veja “Empréstimos e garantias” em Êxodo 22.25-27 para obter mais detalhes.
Deus exige que nossos recursos estejam disponíveis aos necessitados, ao mesmo tempo em que devemos exercer uma boa mordomia dos recursos que ele nos confia. Por um lado, tudo o que temos pertence a Deus, e seu mandamento é que usemos o que é dele para o bem da comunidade (Dt 15.7). Por outro lado, Deuteronômio não trata o campo de uma pessoa como propriedade comum. Os forasteiros não podiam levar tanto quanto quisessem. A exigência de contribuição para o bem público é estabelecida dentro de um sistema de propriedade privada como principal meio de produção. O equilíbrio entre propriedade privada e pública e a adequação de vários sistemas econômicos às sociedades de hoje são questões de debate para a qual a Bíblia pode contribuir com princípios e valores, mas não pode prescrever regulamentos.
Justiça econômica (Deuteronômio 24.14-15; 25.19; 27.17-25)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDiferenças de classe e riqueza podem criar oportunidades para injustiça. O que se exige é que os trabalhadores sejam tratados com justiça. Lemos em Deuteronômio 24.14: “Não se aproveitem do pobre e necessitado, seja ele um irmão israelita ou um estrangeiro que viva numa das suas cidades”. Nem os pobres nem os estrangeiros tinham posição na comunidade para desafiar os ricos proprietários de terras nos tribunais e, portanto, eram vulneráveis a esse tipo de abuso. Tiago 5.4 contém uma mensagem semelhante. Os empregadores devem considerar como sagradas e irrevogáveis suas obrigações para com todos os funcionários, mesmo os mais humildes.
O que se espera também é que os clientes com justiça. “Não tenham na bolsa dois padrões para o mesmo peso, um maior e outro menor” (Dt 25.13). Os pesos em questão são usados para medir grãos ou outras commodities em uma venda. O vendedor poderia obter vantagens se pesasse o grão usando um peso mais leve do que o informado. O comprador lucraria usando um peso falsamente mais pesado. Mas Deuteronômio exige que uma pessoa sempre use o mesmo peso, seja comprando ou vendendo. A proteção contra fraudes não se limita a vendas feitas a clientes, mas a todos os tipos de negócios com todas as pessoas ao nosso redor.
Maldito quem mudar o marco de divisa da propriedade do seu próximo. (Dt 27.17)
Maldito quem fizer o cego errar o caminho. (Dt 27.18)
Maldito quem negar justiça ao estrangeiro, ao órfão ou à viúva. (Dt 27.19)
Maldito quem aceitar pagamento para matar um inocente. (Dt 27.25)
Em princípio, essas regras proíbem todo tipo de fraude. Como uma analogia moderna, uma empresa pode conscientemente vender um produto defeituoso, sem se importar com as implicações morais. Os clientes podem abusar das políticas da loja ao devolver mercadorias usadas. As empresas podem emitir demonstrações financeiras sem respeitar os princípios contábeis geralmente aceitos. Os trabalhadores, durante seu horário de trabalho, podem cuidar de assuntos pessoais e deixar de realizar seu trabalho. Essas práticas não são apenas injustas, mas também violam o compromisso de adorar somente a Deus: “Vocês serão um povo santo para o Senhor, o seu Deus” (Dt 26.19).
Apelo final de Moisés por obediência a Deus (Deuteronômio 29.1—30.20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMoisés conclui com um terceiro discurso, um apelo final por obediência à aliança de Deus, que resultará em prosperidade humana. Isso reforça suas exortações anteriores em Deuteronômio 7.12-15 e 28.2-12. Deuteronômio 30.15 resume bem: “Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição”. A obediência a Deus leva à bênção e à vida, enquanto a desobediência leva à maldição e à morte. Nesse contexto, “obediência a Deus” significava guardar a aliança do Sinai e, portanto, era uma obrigação que se relacionava exclusivamente a Israel. No entanto, a obediência a Deus, que leva à bênção, é um princípio atemporal, que não se limita ao antigo Israel, mas se aplica ao trabalho e à vida de hoje. Se amarmos a Deus e fizermos o que ele ordena, veremos que este é o melhor plano para nossa vida e nosso trabalho. Isso não significa que seguir a Cristo nunca envolve dificuldades e necessidades (os cristãos podem ser perseguidos, marginalizados ou presos). Significa que aqueles que vivem com genuína piedade e integridade se sairão bem não apenas porque têm um bom caráter, mas também porque estão sob a bênção de Deus. Mesmo em tempos difíceis, quando a obediência a Deus pode levar à perseguição, o doce fruto da bênção de Deus é melhor do que o resíduo azedo da cumplicidade com o mal. No quadro geral, estamos sempre em melhor situação nos caminhos de Deus do que em qualquer outro.
O fim da obra de Moisés (Deuteronômio 31.1-34.12)
Voltar ao índice Voltar ao índicePlanejamento de sucessão (Deuteronômio 31.1—32.47)
Após os discursos, Josué sucede Moisés como líder de Israel. “Então Moisés convocou Josué e lhe disse na presença de todo o Israel: ‘Seja forte e corajoso, pois você irá com este povo para a terra que o Senhor jurou aos seus antepassados que lhes daria, e você a repartirá entre eles como herança’” (Dt 31.7). Moisés conduz a transição publicamente por dois motivos. Primeiro, Josué tem de reconhecer perante toda a nação que aceitou os deveres que lhe foram impostos. Em segundo lugar, toda a nação deve reconhecer que Josué é o único e legítimo sucessor de Moisés. Depois disso, Moisés se afasta da maneira mais completa possível — ele morre. Qualquer organização, seja uma nação, uma escola, uma igreja ou uma empresa, ficará confusa se a questão da sucessão legítima não for clara ou não for resolvida.
Observe que Josué não é uma escolha aleatória de última hora. Os líderes têm o dever de preparar as pessoas em suas organizações para assumir a liderança no devido tempo. Isso não significa que os líderes tenham o direito de designar seus próprios sucessores. Esse poder geralmente pertence a outros, seja por nomeação, eleição, comissão ou outros meios. É o Senhor quem designa o sucessor de Moisés. Sob a direção do Senhor, Moisés há muito tempo prepara Josué para sucedê-lo. Desde cedo, como se vê em Deuteronômio 1.38, o Senhor se refere a Josué como “auxiliar” de Moisés. Moisés tinha notado a capacidade militar de Josué pouco depois de sua partida do Egito e, com o tempo, delegou a liderança do exército a ele (Dt 31.3). Moisés observou que Josué era capaz de ver as coisas da perspectiva de Deus e estava disposto a arriscar sua própria segurança para defender o que era certo (Nm 14.5-10). Moisés havia treinado Josué na arte de governar no incidente com os reis dos amorreus (Dt 3.21). Orar a Deus em favor de Josué era um elemento importante do regime de treinamento de Moisés (Dt 3.28). No momento em que Josué assume o lugar de Moisés, ele está totalmente preparado para a liderança, e o povo está totalmente preparado para segui-lo (Dt 34.9). Para a passagem paralela em Números, veja Números 27.12-23 .
Moisés também entoa seu cântico final (Dt 32.1-43), um texto profético advertindo que Israel não obedecerá à aliança, sofrerá terrivelmente, mas finalmente experimentará a redenção por um ato poderoso de Deus. Entre outras coisas, as palavras de Moisés são um lembrete dos perigos que podem advir do sucesso. “Você engordou, tornou-se pesado e farto de comida. Abandonou o Deus que o fez e rejeitou a Rocha, que é o seu Salvador” (Dt 32.15). Em tempos de dificuldade, muitas vezes recorremos a Deus em busca de ajuda, quando chega o desespero e não temos mais a quem recorrer. Mas, quando o sucesso vem, é fácil desmerecer a ação de Deus em nosso trabalho. Podemos até acreditar que nossas realizações se devem exclusivamente a nossos próprios esforços, e não à graça de Deus. Moisés lembra ao povo que o sucesso pode nos tornar vulneráveis a abandonar o Deus que nos criou, com resultados desastrosos. Para saber mais sobre esse tópico, veja o relato de Uzias no comentário sobre 2Crônicas 26.
Então Moisés exorta o povo uma última vez para que a lei seja levada a sério (Dt 32.46-47).
Os últimos atos de Moisés (Deuteronômio 32.48—34.12)
O ato final de Moisés antes de partir de Israel e deste mundo é abençoar a nação, tribo por tribo, no cântico registrado em Deuteronômio 33.1-29. Esse cântico é análogo à bênção de Jacó às tribos pouco antes de sua morte (Gn 49.1-27). Isso é apropriado, pois Jacó era o pai biológico das doze tribos, mas Moisés é o pai espiritual da nação. Além disso, nesse cântico, Moisés se despede de Israel com palavras de bênção e não com palavras de repreensão e exortação. “Moisés, o servo do Senhor, morreu ali” (Dt 34.5). O texto honra Moisés com um título ao mesmo tempo humilde e exaltado: “o servo do Senhor”. Ele não havia sido perfeito, e Israel, sob sua liderança, não havia sido perfeito, mas Moisés havia sido grande. Mesmo assim, ele não era insubstituível. Israel continuaria, e os líderes que viessem depois dele teriam seus próprios sucessos e fracassos. Quando as pessoas de qualquer instituição consideram seu líder insubstituível, elas já estão em crise. Quando um líder se considera insubstituível, é uma calamidade para todos.
Conclusões do livro de Deuteronômio
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo recontar os eventos do início da história de Israel e a entrega da lei por Deus, Deuteronômio retrata vividamente a importância do trabalho para o cumprimento da aliança de Deus com seu povo. Os temas abrangentes do livro são a necessidade de confiar em Deus, obedecer a seus mandamentos e recorrer a ele em busca de ajuda. Abandonar qualquer uma dessas atividades é cair na idolatria, na adoração de falsos deuses que nós mesmos criamos. Embora esses temas possam inicialmente parecer abstratos ou filosóficos, eles são encenados de maneiras concretas e práticas no trabalho e na vida diários. Quando confiamos em Deus, damos-lhe graças pelas coisas boas que ele nos capacita a produzir. Reconhecemos nossas limitações e nos voltamos para Deus em busca de orientação. Tratamos os outros com respeito. Observamos um ritmo de trabalho e descanso que revigora a nós mesmos e às pessoas que trabalham em nosso benefício. Exercemos autoridade, obedecemos à autoridade diligentemente com um senso preciso de justiça e exercemos a autoridade com sabedoria para o bem comum. Limitamo-nos a um trabalho que, em vez de prejudicar, sirva os outros e que, em vez de destruir, construa famílias e comunidades. Fazemos uso generoso dos recursos que Deus coloca à nossa disposição e não nos apropriamos de recursos que pertencem a outros. Somos honestos em nossos relacionamentos com os outros. Nós nos treinamos para ser alegres no trabalho que Deus nos dá e não para invejar outras pessoas.
Cada dia nos dá oportunidades de ser gratos e generosos em nosso trabalho, de tornar nosso ambiente de trabalho mais justo, mais livre e mais gratificante para aqueles com quem trabalhamos, e de trabalhar pelo bem comum. À nossa maneira, cada um de nós tem a oportunidade — seja ela grande ou pequena — de transformar a si mesmo, a nossa família, as nossas comunidades e as nações do mundo, a fim de erradicar práticas idólatras, como escravidão e exploração de trabalhadores, corrupção e injustiça e indiferença à falta de recursos sofrida pelos mais pobres.
Mas, se Deuteronômio não fosse nada além de uma longa lista de coisas que devemos e não devemos fazer para nosso trabalho, o fardo sobre nós seria intolerável. Quem poderia cumprir a lei, mesmo que apenas na esfera do trabalho? Pela graça de Deus, Deuteronômio não é, em sua essência, uma lista de regras e regulamentos, mas um convite a um relacionamento com Deus. “E lá procurarão o Senhor, o seu Deus, e o acharão, se o procurarem de todo o seu coração e de toda a sua alma” (Dt 4.29). “Pois vocês são um povo santo para o Senhor, o seu Deus. O Senhor, o seu Deus, os escolheu dentre todos os povos da face da terra para ser o seu povo, o seu tesouro pessoal” (Dt 7.6). Se acharmos que nosso trabalho fica aquém do quadro pintado por Deuteronômio, que nossa resposta não seja uma determinação sombria de nos esforçarmos mais, mas uma aceitação revigorante do convite de Deus para um relacionamento mais próximo com ele. Um relacionamento vivo com Deus é nossa única esperança de podermos viver de acordo com sua palavra. Esse, é claro, é o evangelho que Jesus pregou e estava profundamente enraizado no livro de Deuteronômio. Como Jesus disse: “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11.30). Não é uma lista impossível de exigências, mas um convite para nos aproximarmos de Deus. Nisso, ele ecoa Moisés: “E agora, ó Israel, que é que o Senhor, o seu Deus, lhe pede, senão que tema o Senhor, o seu Deus, que ande em todos os seus caminhos, que o ame e que sirva ao Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração e de toda a sua alma, e que obedeça aos mandamentos e aos decretos do Senhor, que hoje lhe dou para o seu próprio bem?” (Dt 10.12-13).
Introdução a Josué e Juízes
Voltar ao índice Voltar ao índiceJosué e Juízes contam a história da ocupação israelita da terra prometida por Deus e da formação de um governo nacional. Seu tema geral é que, quando o povo de Deus segue seus mandamentos e sua orientação, seu trabalho prospera e eles experimentam paz e alegria. Mas, quando o povo segue suas próprias inclinações e se estabelece como a autoridade suprema, a pobreza, a discórdia e todo tipo de mal trazem tristeza e sofrimento.
Conquistar, estabelecer e governar um território era o trabalho dos líderes designados por Deus, dos profetas, dos exércitos e de todo o povo de Israel. Embora tenhamos todos os motivos para esperar que esses livros contribuam para nossa compreensão do trabalho a partir de uma perspectiva bíblica, é preciso algum esforço de nossa parte para descobrir como o trabalho que vemos em Josué e Juízes se aplica às circunstâncias de nossos ambientes de trabalho contemporâneos. Mas, se olharmos com cuidado, descobriremos que algumas perspectivas para as questões de hoje surgem dos incidentes relatados no texto, incluindo o desenvolvimento e o gerenciamento de liderança, a proximidade dos papéis desempenhados pelo trabalho árduo e pela orientação de Deus para alcançar nossos objetivos, o conflito por recursos, a tensão entre dirigir para ter sucesso e servir aos outros, a orientação de Deus em nosso trabalho e o perigo sempre presente de fazer de nosso trabalho um ídolo. Os acontecimentos em Josué e Juízes nos dão modelos — bons e ruins — para resolver conflitos no ambiente de trabalho, motivar funcionários, enfrentar os desafios de cargos eletivos e planejar novos líderes para suceder aqueles que se aposentam ou partem. Os personagens que encontramos nos livros ilustram o notável valor da liderança feminina, os efeitos econômicos da guerra e a cumplicidade dos poderosos no abuso dos vulneráveis no trabalho.
A principal linha na história de Josué e Juízes é que, embora o povo escolhido de Deus seja repetidamente rebelde contra Deus, voltando-se para servir outros deuses e esquecendo-se da aliança de Deus com eles, Deus está sempre pronto para responder às suas crises e libertá-los. Somente quando param de desejar as bênçãos de Deus é que caem na miséria e na devastação social. Essa também é uma mensagem notavelmente contemporânea. Muitas vezes, nos afastamos de Deus ao decidirmos como lidar com as muitas oportunidades e desafios que surgem em nosso trabalho. Descobrimos que colocamos outras preocupações acima de receber seu amor, amá-lo e servi-lo por meio de nosso trabalho. A mensagem de Josué e de Juízes é que Deus está pronto, aqui e agora, para que voltemos a ele e recebamos suas bênçãos em nossa vida e trabalho.
Organizaremos nossa análise dos livros em torno de quatro temas principais, que correspondem aproximadamente ao fluxo da narrativa: conquista, coordenação, aliança e caos. [1]
Conquista (Josué 1—12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Josué começa com a reiteração a Josué da promessa de terra e da presença divina.
“Meu servo Moisés está morto. Agora, pois, você e todo este povo preparem-se para atravessar o rio Jordão e entrar na terra que eu estou para dar aos israelitas. Como prometi a Moisés, todo lugar onde puserem os pés eu darei a vocês. Seu território se estenderá do deserto ao Líbano, e do grande rio, o Eufrates, toda a terra dos hititas até o mar Grande, no oeste. Ninguém conseguirá resistir a você todos os dias da sua vida. Assim como estive com Moisés, estarei com você; nunca o deixarei, nunca o abandonarei.” (Josué 1.2-5)
Josué, a terra e a presença de Deus são todos dignos de nota, como exploraremos nas seções seguintes.
Josué (Josué 1)
Voltar ao índice Voltar ao índiceJosué é o sucessor de Moisés como líder de Israel. Embora não seja um rei, de certa forma prefigura os reis que governarão Israel nos séculos seguintes. Ele lidera a nação na batalha, executa o julgamento quando necessário e tenta manter o povo nos termos da aliança que Deus fez com os israelitas no monte Sinai.
Para usar termos modernos, poderíamos considerar a transição de Moisés para Josué um exemplo de bom planejamento sucessório. Seguindo a orientação de Deus, Moisés designou Josué como um líder que corresponde ao caráter de fidelidade do próprio Moisés a Deus. Ele é descrito como um homem de valor e erudição, forte e corajoso (Js 1.6-7), bem informado e obediente à lei de Deus (Js 1.8-9). Mais importante ainda, ele é um homem espiritual. Em última análise, o fundamento da liderança de Josué não é sua própria força, nem mesmo a tutela de Moisés, mas a orientação e o poder de Deus. Deus lhe promete: “O Senhor, o seu Deus, estará com você por onde você andar” (Js 1.9). Mais informações sobre a preparação de Josué para suceder Moisés podem ser encontradas em “Planejamento de sucessão (Números 27.12-23)” e “O Fim da Obra de Moisés (Deuteronômio 31.1—34.12)” em www.teologiadotrabalho.org.
Como exemplo para os líderes de hoje, a característica mais notável de Josué pode ser sua disposição de continuar crescendo em virtude ao longo da vida. Ao contrário de Sansão, que parece preso à teimosia infantil, Josué é marcado pela transição de um jovem impetuoso (Nm 14.6-10) para um comandante militar (Js 6.1-21) e para um chefe do executivo nacional (Js 20) e, no fim das contas, para um visionário profético (Js 24). Ele está mais do que disposto a se sujeitar a um longo período de treinamento sob Moisés e a aprender com os que eram mais experientes do que ele (Nm 27.18-23; Dt 3.28). Ele não tem medo de dar ordens em tempos de ação, mas continua a compartilhar a liderança entre uma equipe que inclui o sacerdote Eleazar e os anciãos das Doze Tribos (por exemplo, Josué 19.51). Ele parece nunca recusar uma oportunidade de crescer em caráter ou de se beneficiar da sabedoria dos outros.
A terra (Josué 2—12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo longo de Josué e Juízes, a terra assume tal importância central que se torna virtualmente um personagem em si: “E a terra teve paz” (Jz 3.11; 3.30, etc.). A principal ação do livro de Josué é Israel conquistando a terra que Deus havia prometido a seus antepassados (Js 2.24, cf. 1.6). A terra é o palco central sobre o qual o drama de Deus com Israel se desenrola e está no centro das promessas de Deus à nação. A própria Lei de Moisés está inseparavelmente ligada à terra. Muitas das principais disposições da Lei só fazem sentido para Israel na terra, e a principal punição prevista na aliança consiste na expulsão da terra.
Desolarei a terra a ponto de ficarem perplexos os seus inimigos que vierem ocupá-la. Espalharei vocês entre as nações e empunharei a espada contra vocês. Sua terra ficará desolada; as suas cidades, em ruínas. (Levítico 26.32-33)
A terra — o solo, o chão sob nossos pés — é onde nossa existência acontece. (Mesmo aqueles que vão para o mar e para o ar passam a maior parte da vida em terra.) A promessa de Deus a seu povo não é uma abstração desencarnada, mas um lugar concreto onde sua vontade é feita e sua presença é encontrada. O lugar em que estamos a qualquer momento é o lugar em que encontramos Deus e o único lugar que temos para realizar sua obra. A criação pode ser um lugar onde habita o mal ou o bem. Nossa tarefa é trabalhar o bem na criação e na cultura em que trabalhamos. Josué recebeu a tarefa de santificar a terra de Canaã, aderindo à aliança de Deus ali. Recebemos a tarefa de santificar nosso ambiente de trabalho, trabalhando também de acordo com a aliança de Deus.
Trabalhando a terra (Josué 5)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA terra, é claro, era abundante para os padrões do Antigo Oriente Próximo. Mas as bênçãos da terra iam além do clima favorável, da água abundante e de outros benefícios naturais fornecidos pela mão do Criador. Israel também herdaria uma infraestrutura bem desenvolvida dos cananeus. “Dei a vocês uma terra que não cultivaram e cidades que vocês não construíram. Nelas vocês moram e comem de vinhas e olivais que não plantaram” (Js 24.13; cf. Dt 6.10-11). Mesmo a descrição característica da terra como uma “terra onde há leite e mel com fartura” (Js 5.6; cf. Êx 3.8) pressupõe algum grau de manejo de gado e apicultura.
Há, portanto, uma ligação inseparável entre terra e trabalho. Nossa capacidade de produzir não decorre apenas de nossa própria capacidade ou diligência, mas também dos recursos disponíveis. Por outro lado, a terra não trabalha sozinha. Pelo suor de nosso rosto devemos produzir o pão (Gn 3.19). Esse ponto é enfatizado com bastante precisão em Josué 5.11-12. “No dia seguinte ao da Páscoa, nesse mesmo dia, eles comeram pães sem fermento e grãos de trigo tostados, produtos daquela terra. Um dia depois de comerem do produto da terra, o maná cessou. Já não havia maná para os israelitas, e naquele mesmo ano eles comeram do fruto da terra de Canaã”. Israel sobreviveu com o dom divino do maná ao longo de suas peregrinações no deserto, mas Deus não tinha intenção de tornar isso uma solução permanente para o problema da provisão. A terra deveria ser trabalhada. Recursos suficientes e trabalho frutífero eram elementos integrantes da terra prometida.
O ponto pode parecer óbvio, mas mesmo assim vale a pena ser mencionado. Embora às vezes Deus possa suprir milagrosamente nossas necessidades físicas, a norma é que nossa subsistência venha do fruto de nosso trabalho.
Conquistando a terra — Deus endossa a conquista? (Josué 6—12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO fato de que a economia produtiva dos israelitas foi fundada na expropriação dos cananeus da terra, no entanto, levanta questões desconfortáveis. Deus endossa a conquista como uma maneira de uma nação adquirir terras? Deus tolera a guerra étnica? Israel era mais merecedor da terra do que os cananeus? Uma análise teológica completa da conquista está além do escopo deste artigo. [1] Embora não possamos esperar responder às inúmeras questões que surgem, há pelo menos algumas coisas que devemos ter em mente:
Deus escolhe vir ao seu povo na agitação do Antigo Oriente Próximo, onde as forças reunidas contra Israel são vastas e violentas.
O trabalho de conquista militar é certamente o trabalho mais proeminente do livro de Josué, mas não é apresentado como modelo para qualquer trabalho que o siga. Encontramos aspectos de trabalho ou liderança em Josué e Juízes que são aplicáveis hoje, mas a expropriação de pessoas da terra não é um deles.
A ordem para expulsar os cananeus (Js 1.1-5) é altamente específica e não indica a disposição geral dos mandamentos de Deus para os israelitas ou qualquer outro grupo de pessoas.
A erradicação dos cananeus decorre de seus caminhos notoriamente iníquos. Os cananeus eram conhecidos por praticar sacrifícios de crianças, adivinhação, feitiçaria e necromancia, coisas que Deus não podia tolerar no meio do povo que ele havia escolhido para ser uma bênção para o mundo (Dt 18.10-12). A terra deveria ser despojada da idolatria, para que o mundo pudesse ter a oportunidade de ver a natureza do único Deus verdadeiro, criador do céu e da terra. [2]
Cananeus arrependidos, como Raabe (Js 2.1-21; 6.22-26), são poupados — e, de fato, a suposta destruição em massa dos cananeus nunca é totalmente realizada (veja abaixo).
Israel, por sua vez, praticará muita da mesma maldade que os cananeus, dando um firme “não” como resposta à pergunta se Israel era mais merecedor da terra. Como os cananeus, os israelitas também sofrerão o deslocamento da terra por meio da conquista por outros, o que a Bíblia também atribui à mão de Deus. Israel também está sujeito ao julgamento de Deus (veja Amós 3.1-2, por exemplo).
A plena ética cristã do poder não pode ser encontrada no livro de Josué, mas na vida, morte e ressurreição de Jesus, que encarna toda a Palavra de Deus. O modelo definitivo da Bíblia para o uso do poder não é que Deus conquista nações por seu povo, mas que o Filho de Deus dá sua vida por todos os que vêm a ele (Mc 10.42; Jo 10.11-18). A ética bíblica do poder é, em última análise, fundamentada na humildade e no sacrifício.
Lembrando-se da presença de Deus na terra (Josué 4.1-9)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA bênção suprema para o povo da terra é a presença de Deus entre eles. O povo celebra essa bênção passando em frente à arca do Senhor — a habitação de sua presença — e deixando pedras memoriais no leito do rio Jordão. A prosperidade e a segurança de Israel na terra devem vir das mãos de Deus. A obra de Israel é sempre derivada da obra anterior de Deus em seu favor. Sempre que eles se desconectam da presença de Deus, a trajetória de seu trabalho se volta para baixo. Testemunhe a nota sombria que soou em Juízes 2.10-11: “Depois que toda aquela geração foi reunida a seus antepassados, surgiu uma nova geração que não conhecia o Senhor e o que ele havia feito por Israel. Então os israelitas fizeram o que o Senhor reprova e prestaram culto aos baalins”. Os problemas subsequentes de Israel decorrem de sua falha em reconhecer a obra de Deus em seu favor.
Também podemos nos perguntar se estamos prestando atenção à obra de Deus em nosso favor. A questão aqui não é se estamos trabalhando bem para Deus, mas se podemos vê-lo trabalhando por nós. No trabalho, a maioria de nós encontra uma tensão entre promover a si mesmo e servir aos outros, ou entre “um sistema de interesse próprio muito centrado no eu” e “o bem-estar do outro lado”, como Laura Nash coloca em sua excelente exploração dessa dinâmica. [1] Será que estamos nos esforçando demais para ficar em primeiro lugar porque temos medo de que ninguém mais se importe conosco?
E se tivéssemos o hábito de acompanhar as coisas que Deus faz em nosso favor? Muitos de nós guardamos lembranças de nossos sucessos no trabalho — prêmios, placas, fotos, comendas, certificados e coisas assim. E se, toda vez que nossos olhos passassem por eles, pensássemos: “Deus tem estado comigo todos os dias aqui”, em vez de “Eu me esforcei para isso”. Isso nos libertaria para cuidar mais generosamente dos outros, mas ainda assim sentiríamos que estamos cuidando mais de nós mesmos? Uma maneira simples de começar seria anotar mentalmente ou mesmo registrar cada coisa boa inesperada que acontece durante o dia, seja com você ou com outra pessoa por meio de você. Cada uma delas poderia se tornar uma espécie de pedra memorial para Deus, como as pedras que os israelitas colocaram nas águas do Jordão para lembrar como Deus os trouxe à terra prometida. De acordo com o texto, esse foi um lembrete muito poderoso para eles e “estão lá até hoje” (Josué 4.1-9).
Engajando o Senhor em nossas decisões (Josué 9.12-15)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO capítulo 9 de Josué descreve como o povo de Gibeão enganou o povo de Israel. Eles queriam que os israelitas acreditassem que viviam longe da terra de Canaã e, portanto, não representavam ameaça para Israel. Na verdade, eles moravam nas proximidades. Para pôr em prática seu plano enganador, eles usavam roupas velhas e sandálias remendadas, e carregavam provisões que indicavam uma longa viagem.
Este nosso pão estava quente quando o embrulhamos em casa no dia em que saímos de viagem para cá. Mas vejam como agora está seco e esmigalhado. Estas vasilhas de couro que enchemos de vinho eram novas, mas agora estão rachadas. E as nossas roupas e sandálias estão gastas por causa da longa viagem”. Os israelitas examinaram as provisões dos heveus, mas não consultaram o Senhor. Então Josué fez um acordo de paz com eles, garantindo poupar-lhes a vida, e os líderes da comunidade o confirmaram com juramento. (Js 9.12-15).
Os israelitas foram enganados porque se basearam em suas próprias observações e não “consultaram o Senhor”. Isso também pode acontecer conosco hoje. Com base no que acreditamos, tiramos uma conclusão, tomamos uma decisão rapidamente, mas nos esquecemos de pedir a orientação de Deus. É muito fácil confiar em nossas próprias percepções quando pensamos que entendemos a situação, em vez de pedir a Deus por seu discernimento.
Coordenação (Josué 13—22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA extensão do texto dedicado à distribuição de terras (Josué 13—22) reflete o papel essencial da terra na formação da identidade de Israel, embora possa ser uma leitura de cair as pálpebras, se não olharmos para o quadro geral da ação. Esses capítulos detalham o trabalho de estabelecer limites, designar cidades e vilas e criar procedimentos para resolver conflitos — o trabalho de organizar e cultivar uma sociedade para o florescimento humano e a glorificação de Deus. Josué tomou medidas criteriosas para garantir que a distribuição fosse feita de forma justa (Js 14.1). Tais passagens nos lembram que o trabalho produtivo depende em grande parte da cooperação e do jogo limpo, o que significa organização e justiça. Os israelitas precisam saber o que pertence a quem, para que possam organizar suas comunidades de maneira pacífica e produtiva. É preciso trabalho (neste caso, bastante trabalho) para abordar as realidades da organização geográfica e social.
Essas realidades se manifestam com força especial em Josué 22, quando as tribos da Transjordânia são acusadas de separatismo depois de erguerem um altar em seu território. Como se vê, a instalação do altar memorial é um movimento astuto por parte dessas tribos, que serve para manter sua posição dentro de Israel.
“Se agimos com rebelião ou infidelidade para com o Senhor, não nos poupem hoje. Se construímos nosso próprio altar para nos afastarmos do Senhor e para oferecermos holocaustos e ofertas de cereal, ou sacrifícios de comunhão sobre ele, que o próprio Senhor nos peça contas disso!
“Ao contrário! Fizemos isso temendo que no futuro os seus descendentes digam aos nossos: ‘Que relação vocês têm com o Senhor, com o Deus de Israel? Homens de Rúben e de Gade! O Senhor fez do Jordão uma fronteira entre nós e vocês. Vocês não têm parte com o Senhor’. Assim os seus descendentes poderiam levar os nossos a deixarem de temer o Senhor.
“É por isso que resolvemos construir um altar, não para holocaustos ou sacrifícios, mas para que esse altar sirva de testemunho entre nós e vocês e as gerações futuras de que cultuaremos o Senhor em seu santuário com nossos holocaustos, sacrifícios e ofertas de comunhão. Então, no futuro, os seus descendentes não poderão dizer aos nossos: ‘Vocês não têm parte com o Senhor’.” (Juízes 22.22-27)
A partir de todos os detalhes, vemos que distribuir a terra de forma justa, criar estruturas de governança, resolver conflitos e manter uma missão unida foi um processo complexo. Josué estava no comando geral, mas todas as pessoas tinham papéis a desempenhar, e mesmo as disputas e o posicionamento astuto eram necessários para manter uma nação de indivíduos imperfeitos trabalhando em harmonia. Isso poderia nos dar subsídios para a prática e a ciência da administração hoje. Construir uma cadeia de suprimentos internacional, por exemplo, requer alinhar incentivos, comunicar especificações, compartilhar ideias, resolver interesses competitivos mas cooperativos, aumentar sua própria lucratividade sem levar outros elementos a perdas, atrair e motivar colaboradores qualificados e superar obstáculos imprevisíveis, algo semelhante ao que os líderes de Israel tiveram de fazer. O mesmo vale para universidades, agências governamentais, bancos, cooperativas agrícolas, empresas de mídia e praticamente todo tipo de ambiente de trabalho. A sociedade também depende daqueles que pesquisam e ensinam métodos de gestão e que moldam as políticas corporativas e governamentais em conformidade.
Se Deus guiou Josué, os outros líderes e o povo de Israel, podemos esperar que ele guie os gerentes de hoje? Temos os recursos das Escrituras, oração, adoração, estudos em grupo e o conselho de outros cristãos. Como, exatamente, cada um de nós pode entrelaçar isso em nossa própria maneira de receber orientação de Deus sobre a administração, o gerenciamento e a liderança que exercemos?
Embora a posse da terra e o governo do povo fossem de primeira importância para a nação, os capítulos posteriores desta seção nos mostram que nem a conquista da terra nem a organização da nação foram totalmente concluídas. Capítulo após capítulo, ouvimos o refrão perturbador de que “não conseguiram expulsar” as várias tribos cananeias de seus territórios (Js 15.63; 16.10; 17.12-13). O Senhor havia ordenado a Israel que expulsasse os cananeus, a fim de estabelecer uma nova ordem que não fosse degradada pelas práticas abomináveis dos ocupantes anteriores. A presença contínua dos cananeus se torna uma das principais causas da posterior infidelidade de Israel à aliança de Deus, embora isso não ocorra durante o período coberto pelo livro de Josué.
Aliança: Israel assume um compromisso (Josué 23—24)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA renovação da aliança de Deus com Israel conclui o livro de Josué. O ponto alto ocorre no último capítulo, quando Josué inspira o povo com um desafio empolgante ao seu compromisso de servir somente a Deus. Seu discurso é um modelo de comunicação. Primeiro, ele relata os maravilhosos atos de Deus em favor de Israel no Egito, no deserto e na terra prometida. Então, Josué pergunta, por que eles ainda carregam ídolos e falsos deuses com eles? Usando o que hoje podemos chamar de psicologia reversa, ele os desafia: “Se, porém, não agrada a vocês servir ao Senhor, escolham hoje a quem irão servir” (Js 24.15). Isso chama a atenção deles. “Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses!” (Js 24.16). Mas Josué os desafia ainda mais. “Vocês não têm condições de servir ao Senhor”, diz ele. “Ele é Deus santo” (Js 24.19). “Se abandonarem o Senhor e servirem a deuses estrangeiros, ele se voltará contra vocês e os castigará. Mesmo depois de ter sido bondoso com vocês, ele os exterminará” (Js 24.20). Isso os leva a um ponto de decisão real e eles afirmam: “De maneira nenhuma! Nós serviremos ao Senhor” (Js 24.21) Vamos colocar por escrito, diz Josué, e ele faz o povo assinar, testemunhando seu compromisso (Js 24.15-27). Em tempos mais recentes, John Wesley publicou um culto de renovação da aliança que é amplamente usado hoje, e muitas igrejas desenvolveram suas próprias abordagens para renovar a aliança. [1]
Quando as pessoas parecem estar vacilando em seu compromisso, os líderes podem ser tentados a minimizar a tarefa em mãos ou induzir as pessoas a pensar que as coisas serão mais fáceis do que realmente são. Talvez haja momentos em que essa técnica possa ganhar adesão por um tempo. Mas, como Ronald Heifetz argumenta em seu livro [2], seguidores enganados diminuem rapidamente a autoridade de um líder. Isso não ocorre apenas porque os seguidores acabam descobrindo o engano, mas porque isso os impede de contribuir para a solução dos desafios do grupo. A menos que o líder conheça a solução para cada desafio — uma possibilidade extremamente improvável — as soluções terão de vir da criatividade e do compromisso dos membros do grupo. Mas, se o líder enganou o povo sobre a natureza dos desafios, o povo não pode contribuir para encontrar uma solução. Isso praticamente garante que o líder fracassará. Em vez disso, os líderes que são honestos com seus seguidores sobre a dificuldade dos desafios têm a oportunidade de envolver seu pessoal na criação de soluções. Josué, por meio de seu relacionamento com Deus, fornece um excelente modelo para líderes que buscam construir um compromisso com um curso de ação difícil por meio de honestidade e transparência, em vez de sigilo e falsas esperanças.
Caos (Juízes 1—21)
Voltar ao índice Voltar ao índiceApós a morte de Josué, Israel não tem alguém em posição de liderança nacional permanente. Em vez disso, à medida que surgem ameaças — um ataque militar, por exemplo — homens e mulheres são promovidos à liderança no período de cada crise. O termo “juízes” não capta realmente o papel que esses homens e mulheres desempenham na nação. (A palavra hebraica shopet, geralmente traduzida como “juiz”, significa árbitro de conflitos, comandante militar e governador de um território. [1]) Os juízes resolvem disputas, mas também assumem a responsabilidade pelos assuntos militares e governamentais da nação em face dos povos vizinhos hostis. Embora mantenhamos a designação tradicional de juízes, o epíteto “libertadores” é uma descrição mais precisa desses líderes.
No livro de Juízes, encontramos uma visão bem mais sombria dos líderes de Israel do que no livro de Josué. Pouco a pouco, a sucessão de juízes diminui em qualidade, até finalmente levar Israel ao caos total. O livro termina com histórias de estupro, assassinato e guerra civil, com a conclusão apropriadamente sombria: “Naquela época, não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” (Jz 21.25). Fazer o que parece certo aos seus próprios olhos não se refere a pessoas virtuosas agindo eticamente por vontade própria, mas à busca irrestrita de conseguir o primeiro lugar, como poderíamos colocar hoje. Significa a falha em obedecer à ordem de Deus, por meio de Josué, para que “não se desvie dela, nem para a direita nem para a esquerda, para que você seja bem-sucedido por onde quer que andar. ” (Js 1.7). A ordem é fazer o que é certo aos olhos de Deus, não o que parece bom em nossa própria visão tendenciosa e egoísta. Os juízes falharam em liderar o povo na observância da lei de Deus e, assim, falharam tanto em administrar a justiça quanto em governar a nação. [2]
Falha no teste de condução: a idolatria de Israel (Juízes 1—2)
Voltar ao índice Voltar ao índiceJuízes 1—2 retoma de onde Josué 13—22 parou, com o fracasso de Israel em expulsar as nações cananeias da terra. “Quando os israelitas se fortaleceram, submeteram os cananeus a trabalhos forçados, mas não os expulsaram totalmente” (Js 17.13). Há certa ironia no fato de os israelitas recém-libertados se tornarem proprietários de escravos na primeira oportunidade. Mas a principal razão pela qual Israel deveria expulsar os cananeus era impedir que sua idolatria infectasse Israel. Como a serpente no jardim, a idolatria dos cananeus testará a lealdade dos israelitas a Deus e sua aliança. Israel não se sai melhor do que Adão ou Eva. Não conseguindo remover a tentação dos cananeus, eles logo começaram a “servir” aos deuses cananeus, Baal e Astarte (Jz 2.11-13; 10.16, etc.) (A NVI traduz o hebraico como “prestar culto”, mas praticamente todas as outras traduções são mais precisar ao usar “servir”.) Esta não é apenas uma questão de ocasionalmente se curvar diante de uma imagem ou proferir uma oração a uma divindade estrangeira. Em vez disso, a vida de Israel e seu trabalho são gastos em serviço fútil aos ídolos, pois Israel passa a acreditar que seu sucesso no trabalho depende de aplacar as divindades cananeias locais. [1]
A maior parte de nosso trabalho hoje é dedicada a servir alguém ou algo que não seja o Deus de Israel. As empresas servem aos clientes e acionistas. Os governos servem aos cidadãos. As escolas servem aos alunos. Ao contrário de adorar os deuses cananeus, esse tipo de serviço não é um mal em si. Na verdade, servir a outras pessoas é uma das maneiras pelas quais servimos a Deus. Mas, se servir a clientes, acionistas, cidadãos, estudantes e afins se tornar mais importante para nós do que servir a Deus, ou, se isso se tornar simplesmente um meio de nos expandirmos, estamos seguindo os antigos israelitas na adoração a falsos deuses. Tim Keller observa que os ídolos não são uma relíquia obsoleta da religiosidade antiga, mas uma espiritualidade sofisticada, embora falsa, que encontramos todos os dias.
O que é um ídolo? É qualquer coisa mais importante para você do que Deus, qualquer coisa que absorva seu coração e sua imaginação mais do que Deus, qualquer coisa que você busque para receber o que somente Deus pode dar. Um deus falso é algo tão central e essencial para sua vida que, se você o perdesse, sua vida dificilmente valeria a pena ser vivida. Um ídolo tem uma posição tão controladora em seu coração que você pode gastar a maior parte de sua paixão e energia, seus recursos emocionais e financeiros, sem pensar duas vezes. Pode ser família e filhos, ou carreira e ganhar dinheiro, ou realizações e aclamação da crítica, ou salvar a “aparência” e a posição social. Pode ser um relacionamento romântico, aprovação de colegas, competência e habilidade, circunstâncias seguras e confortáveis, sua beleza ou seu cérebro, uma grande causa política ou social, sua moralidade e virtude ou até mesmo o sucesso no ministério cristão. [2]
Por exemplo, uma autoridade eleita deseja, com razão, servir ao público. Para fazer isso, ele deve continuar a ter um público para servir, ou seja, permanecer no cargo e continuar vencendo as eleições. Se o serviço ao público se tornar seu maior objetivo, então tudo o que for necessário para vencer uma eleição se tornará justificável, incluindo bajulação, engano, intimidação, acusações falsas e até fraude eleitoral. Um desejo ilimitado de servir ao público — combinado com uma crença inabalável de que ele era a única pessoa que poderia liderá-lo com eficácia — parece ser exatamente o que motivou o presidente dos EUA, Richard Nixon, na eleição de 1972. Parece que um desejo ilimitado de servir ao público foi o que o levou a tentar vencer a eleição a todo custo, incluindo espionar o Comitê Nacional Democrata no Watergate Hotel. Isso, por sua vez, levou ao seu impeachment, à perda do cargo e à desgraça. Servir a um ídolo sempre termina em desastre.
Pessoas em todas as posições — mesmo as posições familiares de cônjuge, pai e filho — enfrentam a tentação de elevar algum bem intermediário acima do serviço a Deus. Quando servir qualquer bem se torna um objetivo final, em vez de uma expressão de serviço a Deus, a idolatria se instala. Para saber mais sobre os perigos de idolatrar o trabalho, consulte as seções sobre o primeiro e o segundo mandamentos em Êxodo e o trabalho (“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3); “Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4)) e Deuteronômio e o trabalho (“Não terás outros deuses além de mim” Dt 5.7; Êx 20.3); “Não farás para ti nenhum ídolo” (Dt 5.8; Êx 20.4) em www.teologiadotrabalho.org.
Débora (Juízes 4—5)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO melhor dentre os juízes é Débora. O povo reconhece sua sabedoria e a procura em busca de conselho e resolução de conflitos (Jz 4.5). A hierarquia militar a reconhece como comandante suprema e, de fato, só entrará em guerra sob seu comando pessoal (Jz 4.9). Seu governo é tão bom que “a terra teve paz durante quarenta anos” (Jz 5.31), uma ocorrência rara em qualquer momento da história de Israel.
Alguns hoje podem achar surpreendente que uma mulher, e não a viúva ou a filha de um governante, possa se tornar a chefe nacional de uma nação pré-moderna. Mas o livro de Juízes a considera a maior dos líderes de Israel durante esse período. Sozinha entre os juízes, ela é chamada de profetisa (Jz 4.4), indicando o quanto ela se parece muito com Moisés e Josué, a quem Deus também falou diretamente. Nem as mulheres, incluindo o agente disfarçado Jael, nem os homens, incluindo o general comandante Baraque, demonstram qualquer preocupação em ter uma líder mulher. O serviço de Débora como juíza e profetisa de Israel sugere que Deus não considera problemática a liderança política, judicial ou militar das mulheres. Também é evidente que seu marido, Lapidote, e sua família imediata não tiveram problemas para estruturar o trabalho doméstico, de modo que ela tivesse tempo e “se sentava debaixo da tamareira de Débora” para cumprir seus deveres, quando “os israelitas a procuravam, para que ela decidisse as suas questões”. (Jz 4.5).
Hoje, em algumas sociedades, em muitos setores de trabalho, em certas organizações, a liderança das mulheres tornou-se tão incontroversa quanto a de Débora. Mas, em muitas outras culturas, setores e organizações contemporâneos, as mulheres não são aceitas como líderes ou estão sujeitas a restrições que não são impostas aos homens. Refletir sobre a liderança de Débora no antigo Israel poderia ajudar os cristãos de hoje a esclarecer nossa compreensão da intenção de Deus nessas situações? Poderíamos servir a nossas organizações e sociedades ajudando a derrubar obstáculos impróprios à liderança feminina? Nós nos beneficiaríamos pessoalmente ao buscar mulheres como chefes, mentoras e modelos em nosso trabalho?
Os efeitos econômicos da guerra (Juízes 6.1-11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois de Débora, a qualidade dos juízes começa a declinar. O texto de Juízes 6.1-11 ilustra o que provavelmente era uma característica comum da vida israelita naquela época — as dificuldades econômicas decorrentes da guerra.
De novo os israelitas fizeram o que o Senhor reprova, e durante sete anos ele os entregou nas mãos dos midianitas. Os midianitas dominaram Israel; por isso os israelitas fizeram para si esconderijos nas montanhas, nas cavernas e nas fortalezas. Sempre que os israelitas faziam as suas plantações, os midianitas, os amalequitas e outros povos da região a leste deles as invadiam. Acampavam na terra e destruíam as plantações ao longo de todo o caminho, até Gaza, e não deixavam nada vivo em Israel, nem ovelhas nem gado nem jumentos. Eles subiam trazendo os seus animais e suas tendas, e vinham como enxames de gafanhotos; era impossível contar os homens e os seus camelos. Invadiam a terra para devastá-la. Por causa de Midiã, Israel empobreceu tanto que os israelitas clamaram por socorro ao Senhor.
Os efeitos da guerra sobre o trabalho são sentidos em muitas partes do mundo hoje. Além dos danos causados por ataques diretos contra alvos econômicos, a instabilidade causada por conflitos armados pode devastar a subsistência das pessoas. Os agricultores em áreas devastadas pela guerra relutam em plantar, pois é provável que sejam deslocados antes da colheita. Os investidores consideram os países devastados pela guerra um risco e provavelmente não canalizarão recursos para melhorar a infraestrutura. Com pouca esperança de desenvolvimento econômico, as pessoas podem ser atraídas para facções armadas que lutam por quaisquer recursos que possam ser explorados. Assim, o ciclo sombrio de guerra e miséria continua. A paz precede a abundância.
A situação econômica de Israel era tão precária sob os midianitas que encontramos o futuro juiz Gideão “malhando o trigo num tanque de prensar uvas, para escondê-lo dos midianitas” (Jz 6.11). Daniel Block mostra a lógica de seu comportamento.
Na ausência de tecnologia moderna, o grão era debulhado batendo primeiro as cabeças dos talos cortados com um mangual, descartando a palha e, em seguida, jogando a mistura de palha e grãos no ar, permitindo que o vento soprasse a palha enquanto os grãos mais pesados caíam no chão. Nas atuais circunstâncias críticas, isso obviamente teria sido imprudente. A atividade de debulhar no topo das colinas só teria despertado a atenção dos saqueadores midianitas. Portanto, Gideão recorre a bater os grãos em uma cuba abrigada usada para prensar as uvas. Geralmente os lagares envolviam duas depressões escavadas na rocha, uma sobre a outra. As uvas seriam colhidas e pisadas na parte superior, enquanto um canal drenaria o suco para a parte inferior. [1]
Hoje, cristãos e não-cristãos concordam amplamente que é imoral conduzir negócios de maneiras que perpetuem conflitos armados. A proibição internacional de “diamantes de conflito” é um exemplo atual. [2] Os cristãos estão assumindo a liderança em tais empreendimentos? Somos nós que rastreamos se empresas, governos, universidades e outras instituições em que trabalhamos estão involuntariamente participando da violência? Corremos o risco de levantar essas questões quando nossos superiores podem preferir ignorar a situação? Ou nos escondemos, como Gideão, atrás da desculpa de apenas fazer nosso trabalho?
O sucesso do passado não garante o futuro — a liderança ambivalente de Gideão (Juízes 6.12— 8.35)
Voltar ao índice Voltar ao índiceGideão é um excelente exemplo do caráter paradoxal dos juízes de Israel e das lições ambivalentes que eles oferecem para a liderança no ambiente de trabalho e em outros lugares. O nome de Gideão significa literalmente “destruidor”, [1] e parece apontar em uma direção positiva quando destrói os ídolos de seu pai em Juízes 6.25-27. (O fato de ele fazer isso à noite, por medo, é um detalhe perturbador.) [2] Apesar do fato de que Deus prometeu estar com ele, Gideão está sempre buscando sinais, principalmente no incidente da lã em Juízes 6.36-40. Deus concorda em dar a Gideão o sinal neste caso, mas dificilmente é um exemplo para outros seguirem, como muitos cristãos modernos argumentam em relação à orientação e, especificamente, à orientação vocacional. Em vez disso, é um sinal do compromisso vacilante que, no final da história, descambará para a idolatria. [3] Ver Tomada de decisão pelo livro [4] e Tomada de decisão e a vontade de Deus [5] para uma análise aprofundada dos métodos de discernimento de Gideão.
O ponto alto da história é, naturalmente, o surpreendente triunfo de Gideão sobre os midianitas (Juízes 7). Menos conhecidos são seus subsequentes fracassos de liderança (Juízes 8). Os habitantes de Sucote e Peniel se recusam a ajudar seus homens após a batalha, e a destruição brutal dessas cidades pode parecer desproporcional à ofensa. Gideão está novamente fazendo jus ao seu nome, mas agora está atacando qualquer um que cruze seu caminho. [6] Apesar de seus protestos de que não quer ser rei, ele se torna um déspota em tudo, mesmo sem o nome (Jz 8.22-26). Ainda mais preocupante é sua subsequente queda na idolatria. O éfode que ele faz torna-se uma “armadilha” para seu povo, e “todo o Israel prostituiu-se” (Jz 8.27). Como os poderosos caíram!
Uma lição para nós hoje pode ser encontrar gratidão pelos dons de grandes pessoas sem idolatrá-las. Como Gideão, um general hoje pode nos levar à vitória na guerra, mas se mostrar um tirano na paz. Um gênio pode nos trazer percepções sublimes na música ou no cinema, mas nos desviar do caminho em termos de família ou política. Um líder empresarial pode resgatar uma empresa em crise, apenas para destruí-la em tempos de tranquilidade. Podemos até encontrar as mesmas descontinuidades dentro de nós mesmos. Talvez subamos na hierarquia no trabalho, enquanto afundamos na discórdia em casa, ou vice-versa. Talvez nos provemos capazes como pessoas individuais, mas falhemos como gerentes. O mais provável de tudo, talvez, é que tenhamos sucesso quando reconhecemos nossa insegurança em nós mesmos e dependemos de Deus, mas causamos estragos quando o sucesso nos leva à autossuficiência. [7] Como os juízes, somos pessoas de contradição e fragilidade. Nossa única esperança, ou então desespero, é o perdão e a transformação que nos são possíveis em Cristo.
A falha de liderança dos juízes (Juízes 9—16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAs falhas de Gideão são intensificadas nos juízes que se seguem. Abimeleque, filho de Gideão, une o povo ao seu redor, mas apenas matando seus setenta irmãos que estavam em seu caminho (Jz 9). Jefté começa como um bandido, levanta-se para libertar o povo dos amonitas, mas destrói sua própria família e seu futuro com um voto terrível que leva à morte de sua filha (Jz 11). O mais famoso dos juízes, Sansão, causa estragos entre os filisteus, mas sucumbe infamemente às seduções da pagã Dalila, causando sua própria ruína (Jz 13—16).
O que devemos fazer com tudo isso para nosso trabalho no mundo de hoje? Em primeiro lugar, as histórias dos juízes afirmam a verdade de que Deus trabalha por meio de pessoas quebrantadas. Isso certamente é verdade, pois vários juízes — Gideão, Baraque, Sansão e Jefté — são louvados no Novo Testamento, junto com Raabe (Hb 11.31-34). O livro de Juízes não hesita em apontar que o Espírito de Deus os capacitou a realizar poderosos atos de libertação diante de adversidades esmagadoras (Jz 3.10; 6.34; 11.29; 13.25; 14.6-9; 15.14). Além disso, eles eram mais do que instrumentos nas mãos de Deus. Eles responderam positivamente ao chamado de Deus para libertar a nação e, por meio deles, Deus libertou seu povo repetidas vezes.
No entanto, o teor geral de Juízes não nos encoraja a transformar esses homens em modelos. A tônica do livro é que a nação está uma bagunça, inundada de transigências, e seus líderes são uma decepção por sua desobediência à aliança de Deus. Uma lição mais apropriada a ser extraída pode ser que o sucesso — até mesmo o sucesso dado por Deus — não é necessariamente um pronunciamento do favor de Deus. Quando nossos esforços no ambiente de trabalho são abençoados, especialmente diante de circunstâncias adversas, é tentador raciocinar: “Bem, Deus obviamente tem sua mão nisso, então ele deve estar me recompensando por ser uma boa pessoa”. Mas a história dos juízes mostra que Deus trabalha quando deseja, como deseja e por meio de quem deseja. Ele age de acordo com seus planos, não de acordo com nosso mérito ou falta dele. Não podemos receber o crédito como se merecêssemos as bênçãos do sucesso. Da mesma forma, não podemos julgar aqueles a quem consideramos menos merecedores do favor de Deus, como Paulo nos lembra em Romanos 2.1.
O evangelho da prosperidade desmascarado em sua forma inicial (Juízes 17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceSe a seção central de Juízes nos oferece heróis falhos presos em um ciclo deprimente de opressão e libertação, os capítulos finais retratam um povo caído, aparentemente sem esperança de redenção. Juízes 17 começa com quase uma paródia da idolatria. Um homem chamado Mica tem muito dinheiro, sua mãe usa o dinheiro para fazer um ídolo e Mica contrata um levita autônomo como seu sacerdote pessoal. Não é de surpreender que o culto caseiro espalhafatoso de Mica apresente uma teologia igualmente abismal. “Mica disse: ‘Agora sei que o Senhor me tratará com bondade, pois esse levita se tornou meu sacerdote” (Jz 17.13). Em outras palavras, ao contratar uma autoridade religiosa para abençoar seu empreendimento idólatra, Mica acredita que pode cooptar Deus para produzir os bens que deseja. A criatividade humana é aqui desperdiçada da pior maneira possível, na fabricação de deuses de faz de conta como um disfarce para a ganância e a arrogância.
O impulso de transformar Deus em uma máquina de prosperidade nunca desapareceu. Uma forma notória disso hoje é o chamado “evangelho da prosperidade” ou “evangelho do sucesso”, que afirma que aqueles que professam a fé em Cristo serão necessariamente recompensados com riqueza, saúde e felicidade. No que diz respeito ao trabalho, isso leva alguns a negligenciar seu trabalho e a cair na licenciosidade, enquanto esperam que Deus os cubra de riquezas. Tal pensamento leva outros — que esperam que Deus traga prosperidade apesar de seu trabalho — a negligenciar a família e a comunidade, abusar de colegas de trabalho e fazer negócios de forma antiética, certos de que o favor de Deus os isenta da moralidade comum.
A concubina do levita: a depravação humana e a cumplicidade das autoridades religiosas (Juízes 18—21)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO episódio final de Juízes é o acontecimento mais terrível na longa queda de Israel para a depravação, a idolatria e a anarquia. Alguns homens da tribo de Dã fogem com todo o empreendimento religioso de Mica, incluindo o levita e o ídolo (Jz 18.1-31). O levita leva uma concubina de uma aldeia distante (Belém, por acaso), mas, depois de uma briga doméstica, ela volta para a casa de seu pai. O levita vai a Belém para recuperá-la. Depois de uma bebedeira de cinco dias com o pai dela, o levita começa, tolamente, a jornada de volta para casa, pouco antes do pôr do sol. Eles se encontram sozinhos à noite, na praça de uma aldeia da tribo de Benjamim. Ninguém os acolheu, até que, por fim, um velho oferece a hospitalidade de um lugar para passar a noite.
Naquela noite, os homens da cidade cercam a casa e exigem que o velho traga o estranho para que possam abusar dele (Jz 19.22). O velho tenta proteger o estranho, mas sua ideia de proteger os visitantes é de virar o estômago, para dizer o mínimo. A fim de poupar o levita, o homem oferece sua própria filha e a concubina do levita para que os homens abusem delas. O próprio levita expulsa a concubina porta afora, talvez no mais antigo exemplo registrado em que uma autoridade religiosa se mostra cúmplice com o abuso sexual. “E eles a violentaram e abusaram dela a noite toda. Ao alvorecer a deixaram” (Jz 19.25). Seu corpo é posteriormente desmembrado e disperso para as tribos de Israel, que quase exterminam a tribo de Benjamim em represália (Jz 20—21). A influência cananeia sobre os israelitas era completa. [1]
A linha final do livro resume as coisas de forma sucinta. “Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” (Jz 21.25). Caso não seja óbvio, isso significa que, sem uma liderança que levasse o povo a servir ao Senhor, as pessoas seguiam seus próprios artifícios e desejos malignos, não que a bússola moral inerente às pessoas as levasse a fazer o que é certo sem precisar de supervisão.
Em nossas esferas de trabalho hoje, as ameaças contra os mais fracos — incluindo o abuso de mulheres e estrangeiros — continuam a ser surpreendentemente comuns. Individualmente, temos de escolher se ficamos ao lado daqueles que enfrentam injustiça — sem dúvida, um risco para nós mesmos — ou se ficamos quietos até que o dano tenha passado.
Organizacional e socialmente, temos de decidir se trabalhamos por sistemas e estruturas que restringem os males do comportamento humano ou se ficamos de lado enquanto todos fazem o que acham certo aos seus próprios olhos. Mesmo nossa passividade pode contribuir para abusos em nosso ambiente de trabalho, especialmente se não estivermos em posições de autoridade. Mas, sempre que os outros perceberem que você tem poder — por exemplo, porque você é mais velho, trabalha na empresa há mais tempo, está mais bem vestido, é visto frequentemente conversando com o chefe, pertence a um grupo étnico ou linguístico privilegiado, tem mais educação ou é melhor em se expressar — e você não consegue defender aqueles que estão sendo abusados, está contribuindo para o sistema de abuso. Por exemplo, se as pessoas tendem a pedir ajuda, isso significa que você tem uma quantidade significativa de poder percebido. Se, então, você fica de braços cruzados quando uma piada depreciativa é contada ou um novo funcionário é intimidado, está adicionando seu peso ao fardo da vítima e ajudando a preparar o caminho para o próximo abuso.
Ler os acontecimentos horríveis nos últimos capítulos de Juízes pode nos tornar gratos por não vivermos naqueles dias. Mas, se estivermos realmente conscientes, podemos ver que o simples ato de trabalhar é tão carregado de significado moral quanto o trabalho de qualquer líder ou pessoa no antigo Israel.
Conclusões de Josué e Juízes
Voltar ao índice Voltar ao índiceA jornada por meio de Josué e Juízes é preocupante. Começamos com o exemplo inspirador de Josué, em quem foram combinadas habilidade, sabedoria e virtude piedosa. O próprio Senhor guia o povo de Israel à terra da promessa, e eles prometem segui-lo por toda a vida. Deus lhes concede uma sociedade livre da tirania, com um novo começo, livre de corrupção, dominação e injustiça institucionalizada. Quando necessário, ele levanta líderes que livram a nação de todas as ameaças sucessivas, exemplificadas por Josué e Débora — sábios, corajosos e universalmente aclamados.
Vemos os primeiros líderes e o povo de Israel construindo as estruturas necessárias para a paz e a prosperidade na terra. Eles alocam recursos de forma justa e produtiva. Perseguem uma missão unificadora, ao mesmo tempo em que mantêm uma cultura diversificada e flexível. Distribuem o poder e, ao mesmo tempo, mantêm a responsabilidade mútua e aprendem como resolver conflitos de forma produtiva e criativa. Eles prosperam e têm paz.
Mas, logo depois, vemos Israel degenerar de uma nação da aliança bem governada, bem organizada e segura para uma massa de gente violenta e rebelde. Todos os aspectos de sua vida, incluindo o trabalho, tornam-se corrompidos pelo abandono dos preceitos e da presença de Deus. Deus lhes deu uma terra abundante, preparada para o trabalho produtivo, mas eles se esquecem de sua obra em favor deles e desperdiçam seus recursos em ídolos. Eles se abrem para a guerra e a consequente privação econômica e, em pouco tempo, começam a abraçar plenamente os males dos povos ao redor. No final, eles se tornaram seu pior inimigo.
A principal lição para nós, então, é a mesma com a qual João terminou sua primeira carta, séculos depois: “Filhinhos, guardem-se dos ídolos” (1Jo 5.21). Quando trabalhamos em fidelidade a Deus, obedecendo à sua aliança e buscando sua orientação, nosso trabalho traz um bem inimaginável para nós mesmos e para nossa sociedade. Mas, quando quebramos a aliança com o Deus que trabalha em nosso favor e começamos a praticar as injustiças que aprendemos tão facilmente com a cultura ao nosso redor, descobrimos que nosso trabalho é tão vazio quanto os ídolos que passamos a servir.
Introdução ao livro de Rute
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Rute conta a extraordinária história da fidelidade de Deus a Israel na vida e na obra de três pessoas comuns: Noemi, Rute e Boaz. À medida que eles trabalham tanto em momentos de dificuldades econômicas como em momentos de prosperidade, vemos a mão de Deus em ação mais claramente em seu trabalho agrícola produtivo, no gerenciamento generoso de recursos para o bem de todos, no tratamento respeitoso dos colegas de trabalho, na engenhosidade diante da necessidade e na concepção e criação dos filhos. Ao longo de tudo, a fidelidade de Deus a eles cria oportunidades para um trabalho frutífero, e fidelidade das pessoas a Deus traz a bênção da provisão e segurança uns para os outros e para as pessoas ao seu redor.
Os acontecimentos no livro de Rute ocorrem na época da festa da colheita da cevada (Rt 1.22; 2.17,23; 3.2,15,17), quando se celebrava a conexão entre a bênção de Deus e o trabalho humano. Duas passagens da Torá dão o pano de fundo do festival (grifo nosso):
Celebrem a festa da colheita dos primeiros frutos do seu trabalho de semeadura. (Êx 23.16)
Celebrem então a festa das semanas ao Senhor, o seu Deus, e tragam uma oferta voluntária conforme às bênçãos recebidas do Senhor, o seu Deus. E alegrem-se perante o Senhor, o seu Deus, no local que ele escolher para habitação do seu Nome, junto com os seus filhos e as suas filhas, os seus servos e as suas servas, os levitas que vivem na sua cidade, os estrangeiros, os órfãos e as viúvas que vivem com vocês. Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito e obedeçam fielmente a estes decretos. (Dt 16.10-12)
Juntas, essas passagens estabelecem uma base teológica para os acontecimentos do livro de Rute.
A bênção de Deus é a fonte da produtividade humana (“bênçãos recebidas do Senhor”).
Deus concede sua bênção de produtividade por meio do trabalho humano (“frutos do seu trabalho”).
Deus chama as pessoas para que forneçam oportunidades de trabalho produtivo (“Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito”, uma lembrança de que Deus libertou seu povo da escravidão no Egito e garantiu-lhes sua provisão no deserto e na terra de Canaã) para pobres e pessoas vulneráveis (“os estrangeiros, os órfãos e as viúvas”).
Em suma, a produtividade do trabalho humano é uma extensão da obra de Deus no mundo, e a bênção de Deus sobre o trabalho humano está inseparavelmente ligada ao mandamento de Deus de prover generosamente àqueles que não têm meios para se sustentar. Esses princípios fundamentam o livro de Rute. Mas o livro é uma narrativa, não um tratado teológico, e a história é envolvente.
Tragédia atinge a família de Rute e Noemi (Rute 1.1-22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA história começa com uma fome “na época dos juízes” (Rt 1.1). Esta foi uma época em que o povo de Israel havia abandonado os caminhos de Deus e caído na idolatria, em condições sociais horríveis e em uma guerra civil desastrosa, como é relatado nos capítulos de Juízes, imediatamente anteriores ao livro de Rute, nas Bíblias cristãs (nas Bíblias hebraicas, os livros aparecem em ordem diferente). Como um todo, a nação certamente não estava seguindo os preceitos da Torá no que diz respeito ao trabalho ou a qualquer outra coisa. Os personagens da história — pelo menos Noemi — reconheceram a perda da bênção de Deus que isso causou (Rt 1.13; 1.20-21). Como resultado, a estrutura socioeconômica da sociedade estava desmoronando e a fome assolava a terra.
Movidos pela fome, Elimeleque, sua esposa Noemi e seus dois filhos mudaram-se para Moabe — uma atitude de desespero, dada a longa inimizade entre Israel e Moabe —, onde pensaram que as perspectivas de trabalho produtivo eram maiores. Não sabemos se eles conseguiram encontrar trabalho, mas os dois filhos encontraram esposas em Moabe. Mas, em dez anos, elas experimentaram uma tragédia social e econômica: a morte de todos os homens, deixando Noemi e suas duas noras sem maridos (Rt 1.3-5). As três viúvas então tiveram de se sustentar sem os direitos legais e econômicos concedidos aos homens em sua sociedade. Em suma, elas não tinham maridos, nenhum título claro de propriedade da terra e nenhum recurso para ganhar a vida. “Não me chamem Noemi, melhor que me chamem de Mara [amarga], pois o Todo-poderoso tornou minha vida muito amarga”. Noemi lamentou (Rt 1.20), refletindo a dureza de sua situação.
Junto com os estrangeiros e os órfãos, as viúvas recebiam muita atenção na Lei de Israel. [1] Por terem perdido a proteção e o apoio de seus maridos, elas se tornavam alvos fáceis de abuso e exploração econômica e social. Muitas recorriam à prostituição simplesmente para sobreviver, uma situação muito comum para mulheres vulneráveis em nossos dias. Noemi não apenas ficou viúva, mas também era uma estrangeira em Moabe. No entanto, se ela voltasse a Belém com suas noras, as mulheres mais jovens seriam viúvas e estrangeiras em Israel. [2] Talvez, em resposta à vulnerabilidade que enfrentavam, não importa onde morassem, Noemi exortou-as a voltar para seus lares maternos e orou para que o Deus de Israel concedesse a cada uma delas segurança dentro da casa de um novo marido (moabita) (Rt 1.8-9). No entanto, uma das noras, Rute, não suportava a ideia de separar-se de Noemi, por mais que sofressem. Suas palavras para Noemi cantam a profundidade de seu amor e lealdade:
Não insistas comigo que te deixe e que não mais te acompanhe. Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus! Onde morreres morrerei, e ali serei sepultada. Que o Senhor me castigue com todo o rigor, se outra coisa que não a morte me separar de ti! (Rt 1.16-17)
A vida pode ser difícil, e essas mulheres enfrentaram o pior.
A bênção de Deus é a fonte da produtividade humana (Rute 2.1-4)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNoemi e Rute enfrentam dificuldades agonizantes, mas, em Deus, dificuldade não é desesperança. Embora não encontremos intervenções milagrosas óbvias no livro de Rute, a mão de Deus não está de forma alguma ausente. Pelo contrário, Deus está trabalhando a cada momento, especialmente por meio das ações de pessoas fiéis no livro. Há muito tempo, Deus havia prometido a Abraão: “Eu o tornarei extremamente prolífero; de você farei nações e de você procederão reis” (Gn 17.6). O Senhor cumpriu sua promessa, restaurando a produtividade agrícola de Israel (Rt 1.6), apesar da infidelidade de seu povo. Quando Noemi ouviu falar disso, decidiu voltar para casa, em Belém, para tentar encontrar comida. Rute, fiel à sua palavra, foi com ela, com a intenção de encontrar trabalho para sustentar a si mesma e a Noemi. À medida que a história se desenrola, as bênçãos de Deus se derramam sobre as duas — e, finalmente, sobre toda a humanidade — por meio do trabalho de Rute e seus resultados.
A fidelidade de Deus a nós é a base de toda a produtividade
No geral, as Escrituras Hebraicas retratam Deus como o Trabalhador divino, que fornece um paradigma para o trabalho humano. A Bíblia começa com uma imagem de Deus em ação — falando, criando, formando, construindo. Em toda a Bíblia hebraica, Deus não apenas aparece como o sujeito de muitos verbos “trabalhar”, mas as pessoas muitas vezes se referem a ele metaforicamente como “Trabalhador”. Em toda a Bíblia hebraica, Deus não apenas se envolve em muitos tipos de trabalho, [1] mas também ordena ao povo de Israel que trabalhe de acordo com o padrão divino (Êx 20.9-11). Ou seja, Deus trabalha diretamente e por meio das pessoas.
Os personagens principais do livro de Rute reconheceram Deus como o fundamento de seu trabalho, pela maneira como abençoavam uns aos outros e por suas repetidas declarações de fé. [2] Algumas dessas expressões são elogios por ações que Deus já tomou (ele não reteve sua bondade, mas forneceu um parente resgatador, Rt 4.14). Outros são pedidos de bênção divina (Rt 2.4,19; 3.10), presença (Rt 2.4) ou bondade (Rt 1.8). Um terceiro grupo envolve pedidos mais específicos de ação divina. Que Deus conceda segurança (Rt 1.9). Que Deus faça Rute igual a Raquel e Lia (Rt 4.11-12). A bênção em Rute 2.12 é particularmente significativa: “O Senhor lhe retribua o que você tem feito! Que seja ricamente recompensada pelo Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas você veio buscar refúgio!” Todas essas bênçãos expressavam a certeza de que Deus está trabalhando para prover o sustento de seu povo.
Rute desejava receber a bênção da produtividade de Deus, fosse do próprio Deus (Rt 2.12) ou por meio de um ser humano, “aquele que me permitir” (Rt 2.2). Apesar de ser moabita, ela era mais sábia do que muitos em Israel quando se tratava de reconhecer a mão do Senhor em seu trabalho.
Para a ação da história, uma das bênçãos mais importantes de Deus é que ele abençoou Boaz com uma fazenda produtiva (Rt 2.3). Boaz estava plenamente ciente do papel de Deus em seu trabalho, como mostrado em sua repetida invocação da bênção do Senhor (Rt 2.4; 3.10).
Deus usa acontecimentos aparentemente fortuitos para capacitar o trabalho das pessoas
Uma das maneiras pelas quais Deus cumpre sua promessa de produtividade é seu domínio das circunstâncias do mundo. O estranho emprego de “casualmente” (traduzida como “aconteceu de” pela NVT) em Rute 2.3 é deliberado. Coloquialmente, diríamos que “ela estava com sorte”. Mas a afirmação é irônica. O narrador usa intencionalmente uma expressão que força o leitor a se sentar e perguntar como Rute “casualmente” chegou ao campo de um homem que não era apenas bondoso e permitiu que ela ficasse ali (Rt 2.2), mas também era um parente (Rt 2.1). À medida que a história se desenrola, vemos que a chegada de Rute ao campo de Boaz foi uma evidência da mão providencial de Deus. O mesmo pode ser dito sobre o aparecimento do parente mais próximo (resgatador), assim que Boaz se sentou no portão, em Rute 4.1–2.
Como o mundo seria triste se tivéssemos de ir trabalhar todos os dias esperando nada além do que nós mesmos temos o poder de realizar. Devemos depender do trabalho dos outros, da oportunidade inesperada, da explosão de criatividade, da bênção não prevista. Certamente, uma das bênçãos mais consoladoras de seguir a Cristo é sua promessa de que, quando formos trabalhar, ele trabalhará ao nosso lado e carregará a carga conosco. “Tomem sobre vocês o meu jugo... Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11.29-30). Rute não tinha as palavras de Jesus, mas vivia na fé e confiança de que, sob as asas de Deus, encontraria tudo o que precisava (Rt 2.12).
A produtividade humana é uma consequência de nossa fidelidade a Deus
A fidelidade de Deus a Israel se refletiu na fidelidade de Rute a Noemi. Rute havia prometido: “Aonde fores irei, onde ficares ficarei! O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus!” (Rt 1.16). A promessa de Rute não era um apelo para permanecer como consumidora passiva no que restava da casa de Elimeleque, mas um compromisso de fornecer à sogra o máximo que pudesse. Embora não seja uma israelita, ela parece ter vivido de acordo com a Lei de Israel, conforme encarnada no Quinto Mandamento: “Honra teu pai e tua mãe”. A restauração do trabalho produtivo para ela e sua família começou com seu compromisso de trabalhar em fidelidade à lei de Deus.
Deus concede sua bênção de produtividade por meio do trabalho humano (Rute 2.5-7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA fidelidade de Deus é a base da produtividade humana, mas as pessoas precisam fazer o trabalho de verdade. Essa foi a intenção de Deus desde o princípio (Gn 1.28; 2.5; 2.15). Rute estava ansiosa para trabalhar arduamente e, assim, sustentar a si mesma e a Naomi. “Deixe-me ir para o campo”, implorou ela, e, quando teve a chance de trabalhar, seus colegas de trabalho relataram que “ela chegou cedo e está em pé até agora” (Rt 2.7). Seu trabalho era excepcionalmente produtivo. Quando ela voltou para casa, após seu primeiro dia de trabalho, tendo colhido a cevada dos talos, sua colheita rendeu “quase uma arroba” (Rt 2.17). Isso equivalia a aproximadamente um cesto de 20 litros de cevada. [1] Tanto Deus quanto Boaz a elogiaram (e a recompensaram) por sua fé e diligência (Rt 2.12,17-23; 3.15-18).
Em maior ou menor grau, todos somos vulneráveis a circunstâncias que tornam difícil ou impossível ganhar a vida. Desastres naturais, corte de jornada, corte de pessoal, preconceito, lesão, doença, falência, tratamento injusto, restrições legais, barreiras linguísticas, falta de treinamento ou experiência relevante, idade, sexo, má gestão econômica por parte do governo ou da indústria, barreiras geográficas, ser demitido, necessidade de cuidar dos membros da família, e uma série de outros fatores pode nos impedir de trabalhar para sustentar a nós mesmos e às pessoas que dependem de nós. No entanto, Deus espera que trabalhemos o máximo que pudermos (Êx 20.9).
Mesmo que não consigamos encontrar um emprego que atenda às nossas necessidades, precisamos trabalhar o máximo que pudermos. Rute não tinha um emprego estável, com horário regular e salário. Ela estava ansiosa para saber se sua posição na vida seria suficiente para encontrar oportunidades no ambiente de trabalho (Rt 2.12), e não podia necessariamente esperar ganhar o suficiente para alimentar sua família. Ela foi trabalhar mesmo assim. Muitas das condições que enfrentamos hoje em termos de desemprego e subemprego são profundamente desencorajadoras. Se a falta de empregos altamente qualificados nos deixa apenas o que parecem ser oportunidades inferiores, se a discriminação nos impede de conseguir o emprego para o qual somos qualificados, se as circunstâncias nos impedem de obter a educação de que precisamos para um bom emprego, se as condições fazem com que o trabalho pareça sem esperança, o exemplo de Rute é que, apesar disso, somos chamados a trabalhar. Nosso trabalho pode nem mesmo gerar renda a princípio, como quando voluntariamos para ajudar os outros, cuidar de membros da família, receber educação ou treinamento ou cuidar da própria casa.
A graça salvadora é que Deus é o poder por trás de nosso trabalho. Não dependemos de nossa própria capacidade ou das circunstâncias ao nosso redor para suprir nossas necessidades. Em vez disso, trabalhamos fielmente como podemos, sabendo que a fidelidade de Deus à sua promessa de gerar frutos é o que nos dá confiança de que nosso trabalho vale a pena, mesmo nas situações mais adversas. Raramente somos capazes de ver de antemão como Deus pode usar nosso trabalho para cumprir suas promessas, mas o poder de Deus se estende muito além do que podemos ver.
Receber a bênção de Deus para a produtividade significa respeitar os colegas de trabalho (Rute 2.8-16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceComo Rute 2.1 relata, Boaz era “um homem rico e influente”. Quaisquer que sejam as conotações que isso possa ter hoje, no caso de Boaz, isso significava que ele era um dos melhores chefes da Bíblia. Seu estilo de liderança começou com respeito. Quando ele saía para o campo onde seus homens estavam trabalhando, ele os cumprimentava com uma bênção (“O Senhor esteja com vocês”), e eles respondiam da mesma forma (“O Senhor te abençoe”; Rt 2.4). O local de trabalho de Boaz é notável em muitos níveis. Ele era dono e administrava uma empresa que dependia de uma força de trabalho contratada. Ele controlava o ambiente de trabalho dos outros. Em contraste com muitos ambientes de trabalho em que supervisores e proprietários tratam seus funcionários com desdém e os funcionários não têm respeito por seus chefes, Boaz promovia um relacionamento de confiança e respeito mútuo.
Boaz colocou em prática seu respeito por seus trabalhadores, fornecendo-lhes água enquanto trabalhavam (Rt 2.9), comendo com eles e, acima de tudo, compartilhando sua comida com a pessoa considerada a mais baixa entre eles (Rt 2.14). Mais tarde, aprendemos que, na época da colheita, Boaz, o proprietário da terra, limpava a cevada com seus ceifeiros e dormia com eles no campo (Rt 3.2-4,14).
Boaz demonstrou uma visão elevada de todo ser humano como portador da imagem de Deus (Gn 1.27; Pv 14.31; 17.5) pela maneira sensível com que tratou a mulher estrangeira em seu ambiente de trabalho. Quando a viu entre os trabalhadores, perguntou gentilmente: “A quem pertence aquela moça?” (Rt 2.5), supondo que ela fosse dependente ou ligada a algum homem — seja como esposa ou filha —, talvez algum proprietário de terras na área. Quando ele soube que ela era uma mulher moabita que havia retornado de Moabe com Noemi (Rt 2.6), e ouviu falar de seu pedido de permissão para respigar atrás de seus ceifeiros (Rt 2.7), chocantemente, as primeiras palavras que ele disse foram: “Ouça com atenção, minha filha” (Rt 2.8). Compartilhar sua comida com uma mulher estrangeira (Rt 2.14) foi um ato mais significativo do que poderia parecer. Homens respeitáveis, proprietários de terras, não estavam acostumados a conversar com mulheres estrangeiras, [1] como a própria Rute aponta (Rt 2.10). Um homem mais preocupado com aparências sociais e oportunidades de negócios — e menos compadecido por alguém em necessidade — poderia ter enviado uma intrusa moabita para fora de suas terras de imediato. Mas Boaz estava mais do que disposto a defender o trabalhador vulnerável em seu meio, qualquer que fosse a reação dos outros.
Na verdade, com esse relato, podemos ter encontrado a primeira política contra o assédio sexual no ambiente de trabalho registrada no mundo. Talvez ele estivesse ciente de que muitos proprietários e trabalhadores de fazendas eram homens abusivos [2] e talvez seja por isso que ele comunicou a Rute que havia falado a seus homens para que não a tocassem (Rt 2.9). O comentário de Noemi: “É melhor mesmo você ir com as servas dele, minha filha. Noutra lavoura poderiam molestá-la” (Rt 2.22), certamente mostra que ela temia pela segurança de sua nora. Os termos da política de Boaz são claros:
- Os trabalhadores do sexo masculino não deveriam “incomodar” essa mulher. Normalmente, a palavra naga, significa “tocar”, mas aqui funciona de forma mais geral para “golpear, assediar, tirar vantagem de, maltratar ”. [3] Boaz reconhece que a implicação de ser tocado é determinada por como a pessoa que está sendo tocada percebe o ato.
- Rute deveria ter acesso igual à água (Rt 2.9) e à mesa do almoço (Rt 2.14). Na hora da refeição, Boaz convidou Rute a sentar-se com ele e seus trabalhadores e mergulhar seu pedaço de pão no molho (Rt 2.14). Então ele mesmo a serviu até que ela estivesse mais do que satisfeita. A escolha do verbo nagash, “achegar-se, aproximar-se”, sugere que, como estrangeira, Rute havia deliberada e apropriadamente (de acordo com o costume) mantido distância. A política de assédio sexual de Boaz não é simplesmente restritiva — proibindo certas ações —, mas é positiva em sua intenção, o que significa que a reação da pessoa em perigo de assédio é o indicador do que os outros podem fazer. Boaz procurou descobrir se Rute se sentia segura como medida para saber se ele estava oferecendo a proteção de que ela precisava. Ele demonstrou, por exemplo, como esperava que as trabalhadoras vulneráveis fossem respeitadas.
- Os funcionários regulares de Boaz não deveriam repreendê-la (Rt 2.15) ou impedi-la (Rt 2.16). Junto com a palavra “tocar” em 2.9, essas expressões demonstram que o assédio vem de muitas formas: abuso físico, emocional e verbal. De fato, com seu pronunciamento efusivo de bênção sobre Rute (Rt 2.12), Boaz representa um modelo dramaticamente afirmativo.
- Os funcionários regulares deveriam tornar o ambiente de trabalho de Rute o mais seguro possível e fazer de tudo para ajudá-la a realizar suas tarefas de trabalho (Rt 2.15-16). No local de trabalho, prevenir o assédio significa não apenas criar um ambiente seguro, mas também produtivo para as pessoas em risco. As barreiras à produtividade, ao avanço e às recompensas que as acompanham devem ser eliminadas. Boaz poderia ter deixado Rute segura, mantendo-a a uma grande distância dos trabalhadores do sexo masculino. Mas isso teria negado seu acesso a água e comida, e poderia ter causado perda de grãos devido ao vento ou a animais antes que ela pudesse juntar os feixes. Boaz se certificou de que as salvaguardas que ele criou permitissem que ela fosse totalmente produtiva.
Parece que os trabalhadores de Boaz captaram seu espírito generoso. Quando seu chefe os saudava com uma bênção, eles também o abençoavam (Rt 2.4). Quando Boaz perguntou sobre a identidade da mulher que havia aparecido em seu campo, o supervisor da força de trabalho reconheceu que Rute era moabita, mas exibiu um tom gracioso (Rt 2.6-7). O fato de Rute ter trazido uma grande quantidade de grãos para casa, para Noemi, atesta a reação positiva dos trabalhadores às recomendações de Boaz de tratar bem Rute. Eles não apenas obviamente cortaram muitos grãos para ela, mas também aceitaram essa mulher moabita como colaboradora durante a colheita (Rt 2.21-23).
Os efeitos positivos da liderança de Boaz vão além do ambiente de trabalho. Quando Noemi vê os resultados dos esforços de Rute, ela abençoa o empregador que deu seu trabalho e louva a Deus por sua bondade e generosidade (Rt 2.20). Mais tarde, torna-se óbvio que a alta reputação de Boaz na comunidade está trazendo harmonia social e glória a Deus (Rt 4.11-12). Todos os líderes — na verdade, todos os trabalhadores — moldam a cultura na qual trabalham. Embora possamos pensar que somos coagidos por nossa cultura a nos conformarmos a maneiras de trabalhar que são injustas, sem sentido ou improdutivas, na realidade, a maneira como trabalhamos influencia profundamente os outros. Boaz, um homem de posses em meio a uma sociedade corrupta e sem fé (Rt 1.1, onde “na época dos juízes” é uma abreviação para uma sociedade corrupta) consegue criar um negócio honesto e bem-sucedido. O supervisor da colheita molda práticas igualitárias em uma sociedade repleta de misoginia e racismo (Jz 19—21). Rute e Noemi formam uma família amorosa mesmo diante de grandes perdas e dificuldades. Quando nos sentimos pressionados a nos conformarmos com um ambiente ruim no trabalho, a promessa da fidelidade de Deus pode superar todas as dúvidas que levamos em conta devido à disfunção cultural e social ao nosso redor.
Deus chama pessoas para que forneçam oportunidades para os pobres trabalharem produtivamente (Rute 2.17-23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA maneira mais importante pela qual Deus supera as barreiras à nossa produtividade é por meio das ações de outras pessoas. No livro de Rute, vemos isso tanto na lei de Deus na sociedade quanto em sua orientação aos indivíduos.
A lei de Deus chama pessoas de recursos para que forneçam oportunidades econômicas aos pobres (Rute 2.17-23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA ação do livro de Rute gira em torno da respiga, que era um dos elementos mais importantes da Lei para a proteção de pessoas pobres e vulneráveis. Os requisitos são estabelecidos em Levítico, Deuteronômio e Êxodo (clique nos links abaixo para ver mais sobre cada uma das passagens relevantes).
Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até as extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas de sua colheita. Não passem duas vezes pela sua vinha, nem apanhem as uvas que tiverem caído. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. (Lv 19.9-10, repetido em parte em Lv 23.22) Veja “Levítico 19.9-10” em Levítico e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org.
Quando vocês estiverem fazendo a colheita de sua lavoura e deixarem um feixe de trigo para trás, não voltem para apanhá-lo. Deixem-no para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, para que o Senhor, o seu Deus, os abençoe em todo o trabalho das suas mãos. Quando sacudirem as azeitonas das suas oliveiras, não voltem para colher o que ficar nos ramos. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. E quando colherem as uvas da sua vinha, não passem de novo por ela. Deixem o que sobrar para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. Lembrem-se de que vocês foram escravos no Egito; por isso lhes ordeno que façam tudo isso. (Dt 24.19-22)
Plantem e colham em sua terra durante seis anos, mas no sétimo deixem-na descansar sem cultivá-la. Assim os pobres do povo poderão comer o que crescer por si, e o que restar ficará para os animais do campo. Façam o mesmo com as suas vinhas e com os seus olivais. (Êx 23.10-11) Veja “Êxodo 22.21-27 e 23.10-11” em Êxodo e trabalho em www.teologiadotrabalho.org.
A base da lei é a intenção de que todas as pessoas tenham acesso aos meios de produção necessários para sustentar a si mesmas e suas famílias. Em geral, cada família (exceto no caso da tribo sacerdotal dos levitas, que eram sustentados por dízimos e ofertas) deveria ter uma porção perpétua de terra que nunca poderia ser alienada (Nm 27.5-11; 36.5-12; Dt 19.14, 27.17; Lv 25). Assim, todos em Israel teriam meios para cultivar alimentos. Mas estrangeiros, viúvas e órfãos normalmente não receberiam uma herança de terra, por isso eram vulneráveis à pobreza e ao abuso. A lei da respiga deu-lhes a oportunidade de se sustentarem, colhendo as sobras do campo, os grãos e os produtos que estavam verdes ou perdidos durante a colheita inicial, e o que quer que surgisse nos campos que estavam em descanso em um determinado ano. O acesso à respiga deveria ser fornecido gratuitamente por todos os proprietários de terras.
Essas passagens sugerem três fundamentos para as leis de respiga. A generosidade para com os pobres (1) era um pré-requisito para que Deus abençoasse o trabalho das mãos das pessoas (Dt 24.19); (2) deveria ser impulsionada pela memória da experiência vivida por Israel no Egito, sob senhores de escravos cruéis e abusivos (Dt 24.22a); e (3) é uma questão de obediência à vontade de Deus (Dt 24.22b). Vemos todas essas três motivações nas ações de Boaz: (1) ele abençoou Rute, (2) lembrou-se da graça de Deus para com Israel (3) e a elogiou por se colocar nas mãos de Deus (Rt 2.12). É uma questão em aberto até que ponto as leis sobre a terra e a colheita foram cumpridas no antigo Israel, mas Boaz as manteve de maneira exemplar.
As leis de respiga forneciam uma notável rede de apoio às pessoas pobres e marginalizadas, pelo menos na medida em que eram realmente praticadas. Já vimos que a intenção de Deus é que as pessoas recebam sua produtividade trabalhando. A respiga fazia exatamente isso. Ela proporcionava uma oportunidade de trabalho produtivo para aqueles que, de outra forma, teriam de depender da mendicância, da escravidão, da prostituição ou de outras práticas degradantes. Os respigadores mantinham as habilidades, o respeito próprio, o condicionamento físico e os hábitos de trabalho que os tornariam produtivos na agricultura comum, caso surgisse a oportunidade de casamento, adoção ou retorno ao seu país de origem. Os proprietários de terras forneciam oportunidades, mas aquilo não era uma oportunidade de exploração. Não havia trabalho forçado. O benefício estava disponível localmente em todo o país, sem a necessidade de uma burocracia pesada e propensa à corrupção. No entanto, dependia da formação do caráter de cada proprietário de terra para cumprir a lei da respiga, e não devemos romantizar as circunstâncias que os pobres enfrentavam no antigo Israel.
No caso de Boaz, Rute e Noemi, as leis de respiga funcionaram conforme o planejado. Se não fosse pela possibilidade de respiga, Boaz teria enfrentado duas alternativas, uma vez que tomou conhecimento da pobreza de Rute e Noemi. Ele poderia deixá-las morrer de fome ou poderia entregar comida pronta (pão) na casa delas. A primeira é impensável, mas a segunda, embora pudesse ter aliviado sua fome, teria tornado aquelas mulheres cada vez mais dependentes de Boaz. Por causa da oportunidade de respiga, no entanto, Rute não apenas poderia trabalhar na colheita, mas também poderia usar o grão para fazer pão por meio de seu próprio trabalho. O processo preservou sua dignidade, fez uso de suas habilidades e conhecimentos, libertou tanto ela como Naomi da dependência de longo prazo e as tornou menos vulneráveis à exploração.
Nos debates sociais, políticos e teológicos de hoje sobre a pobreza e as respostas públicas e privadas a ela, vale a pena ter em mente e debater vigorosamente esses aspectos da respiga. Os cristãos discordam uns dos outros sobre questões como responsabilidades individuais vs. sociais, meios privados vs. públicos e distribuição de renda. É improvável que uma reflexão cuidadosa sobre o livro de Rute resolva essas divergências, mas talvez possa destacar objetivos compartilhados e um terreno comum. A sociedade moderna pode não ser adequada para a respiga no sentido literal e agrícola, mas será que há aspectos que poderiam ser incorporados às maneiras pelas quais as sociedades cuidam das pessoas pobres e vulneráveis hoje? Em particular, como podemos oferecer oportunidades para que as pessoas tenham acesso aos meios de trabalho produtivo, em vez de serem sufocadas pela dependência ou pela exploração?
Deus guia indivíduos para que forneçam oportunidades econômicas aos pobres e vulneráveis (Rute 2.17-23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceBoaz foi inspirado a ir muito além do que a lei exigia para atender aos pobres e vulneráveis. As leis da respiga apenas exigiam que os proprietários deixassem alguns produtos nos campos para que estrangeiros, órfãos e viúvas respigassem. Isso geralmente significava que os pobres e vulneráveis tinham um trabalho difícil, perigoso e desconfortável, como colher grãos nas beiras dos campos cobertas de ervas daninhas ou no alto das oliveiras. Os produtos que obtinham dessa maneira eram geralmente de qualidade inferior, como uvas e azeitonas que haviam caído no chão ou não estavam totalmente maduras. Mas Boaz diz a seus trabalhadores que sejam ativamente generosos. Eles deveriam remover grãos de primeira qualidade dos talos que haviam cortado e deixá-los em cima do restolho, para que Rute precisasse apenas recolhê-los. A preocupação de Boaz não era cumprir minimamente um regulamento, mas genuinamente prover para Rute e sua família.
Além disso, ele insistiu que ela respigasse em seus campos (mantendo o que colheu para si e para Noemi, é claro) e se juntasse aos trabalhadores dele. Ele não apenas deu a ela acesso aos seus campos, mas também a tornou uma de suas assalariadas, a ponto de garantir que ela recebesse uma parte proporcional da colheita (Rt 2.16).
Em um mundo em que todas as nações, todas as sociedades contam com pessoas desempregadas e subempregadas que precisam de oportunidades de trabalho, como os cristãos podem imitar Boaz? Como podemos incentivar as pessoas a aplicarem suas habilidades e talentos dados por Deus para criar bens e serviços que empreguem pessoas de forma produtiva? Como podemos moldar a formação do caráter das pessoas que possuem e administram os recursos da sociedade, de modo que, com entusiasmo e criatividade, ofereçam oportunidades aos pobres e marginalizados?
Como, de fato, essas perguntas se aplicam a nós? Cada um de nós é uma pessoa abastada, mesmo que não sejamos ricos como Boaz? As pessoas de classe média têm os meios e a responsabilidade de oferecer oportunidades às pessoas pobres? E quanto às próprias pessoas pobres? O que Deus pode estar levando cada um de nós a fazer para trazer sua bênção de produtividade a outros trabalhadores e futuros trabalhadores?
A bênção de Deus é redobrada quando as pessoas trabalham de acordo com seus caminhos (Rute 3.1–4.18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo notável episódio em que Rute respiga no campo de Boaz, vemos uma demonstração vívida da compaixão, generosidade e tolerância étnica de Boaz. Isso levanta algumas questões: Por que o coração de Boaz era tão brando em relação a Rute e por que ele criaria esse ambiente em que qualquer pessoa, mesmo uma moabita estrangeira, se sentiria em casa? De acordo com o próprio testemunho de Boaz, Rute incorporou nobreza e fidelidade ao verdadeiro Deus (Rt 3.10-11). Como resultado, ele desejou a ela: “Que seja ricamente recompensada pelo Senhor, o Deus de Israel, sob cujas asas você veio buscar refúgio!” (Rt 2.12). Ela era nascida em Moabe, mas se voltou para o Deus de Israel em busca de salvação (Rt 1.16). Boaz reconheceu as asas de Deus sobre ela e estava ansioso para ser o instrumento da bênção de Deus para ela. Ao cuidar de um estrangeira necessitada, ele honrou o Deus de Israel. Nas palavras do provérbio israelita: “Oprimir o pobre é ultrajar o seu Criador, mas tratar com bondade o necessitado é honrar a Deus” (Pv 14.31; veja também Pv 17.5). O apóstolo Paulo expressou esse tema séculos depois: “Enquanto temos oportunidade, façamos o bem a todos, especialmente aos da família da fé” (Gl 6.10).
À medida que a história avançava, Boaz começou a ver em Rute mais do que uma trabalhadora diligente e a nora fiel de Noemi. Com o tempo, ele estendeu sua capa sobre Rute (Rt 3.9) — uma metáfora apropriada para o casamento, espelhando o amor e o compromisso representados pelas asas de Deus. Há um aspecto relacionado ao trabalho nessa história de amor, pois há bens imobiliários envolvidos. Noemi ainda tem algum direito à terra que pertencia a seu falecido marido e, de acordo com a lei israelita, seu parente mais próximo tinha o direito de adquirir a terra e mantê-la na família, casando-se com Noemi. Boaz, a quem Noemi mencionou ser parente de seu marido (Rt 2.1), era, na verdade, o segundo na linha de sucessão a esse direito. Ele informa o homem que era o parente mais próximo de seu direito, mas quando o homem descobre que reivindicar a terra significava também ter de levar a moabita Rute para sua casa, ele abre mão do direito (Rt 4.1-6).
Boaz, em contraste, ficou satisfeito por ser escolhido por Deus para mostrar favor a essa mulher, apesar de ela ser considerada racial, econômica e socialmente inferior (Rt 4.1-12). Ele exerce seu direito de resgatar a propriedade, não casando-se com a idosa Noemi, em um casamento de conveniência, mas, com a permissão de Noemi, casando-se com Rute, em um casamento de amor e respeito. Ao se casar com essa mulher moabita, ele cumpre, à sua maneira, um pouco da promessa de Deus a Abraão: “Por meio dela [da sua descendência], todos os povos da terra serão abençoados” (Gn 22.18). Ele também ganha ainda mais propriedades, que podemos presumir que serão administradas de forma tão produtiva e generosa quanto a propriedade que já possuía, prenunciando as palavras de Cristo de que “a quem tiver, mais lhe será dado” (Mc 4.25). Como logo aprenderemos, é perfeitamente adequado que Boaz sirva como precursor de Jesus. Ao longo do caminho, os acontecimentos da história revelam ainda mais sobre como Deus está trabalhando no mundo para o bem.
Deus opera por meio da engenhosidade humana (Rute 3.1-18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo instigar o namoro entre Boaz e Rute, a necessidade mais uma vez leva Noemi a ir além dos limites da convenção. Ela envia Rute à eira de Boaz, no meio da noite, para que “descubra os pés dele e deite-se” (Rt 3.4). Independentemente do significado de “pés” em Rute 3.4,7,8,14 — que pode ser um eufemismo sexual [1] — o esquema que Noemi inventa é suspeito do ponto de vista dos costumes e da moralidade, e está repleto de perigos. Os preparativos de Rute e a escolha do local do encontro sugerem as ações de uma prostituta. Em circunstâncias normais, se um homem de respeito e moralmente nobre como Boaz, dormindo na eira, acordasse no meio da noite e descobrisse uma mulher ao seu lado, ele certamente a mandaria embora, protestando que não tinha nada a ver com mulheres como ela. O pedido de Rute para que Boaz se casasse com ela é igualmente ousado do ponto de vista do costume: uma estrangeira fazendo uma proposta a um israelita; uma mulher fazendo propostas a um homem; uma jovem fazendo propostas para uma pessoa mais velha; uma trabalhadora do campo indigente fazendo propostas a um rico proprietário de terras. Mas, em vez de se ofender com a atitude de Rute, Boaz a abençoou, elogiou-a por seu compromisso com o bem-estar de sua família, chamou-a de “minha filha”, tranquilizou-a dizendo-lhe que não temesse, prometeu fazer tudo o que ela pedisse e a declarou uma mulher nobre (Rt 3.10-13). Essa reação extraordinária é melhor atribuída à inspiração de Deus enchendo seu coração e sua língua quando ele acordou.
Deus opera por meio de processos legais (Rute 4.1-12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceBoaz aceita o pedido de Rute para se casar com ela, se seu parente mais próximo renunciasse ao seu direito de fazê-lo. Ele não perde tempo em providenciar a resolução legal da questão (Rt 4.1-12). A essa altura, o leitor já sabe que nada neste livro acontece por acaso e, quando, no dia seguinte, o parente mais próximo passa pelo portão onde Boaz estava sentado, isso também é atribuível à mão de Deus. Se Rute estivesse presente para os procedimentos legais no portão, seu coração teria sucumbido quando o homem que tinha prioridade aos direitos anunciou que reivindicaria as terras de Elimeleque. No entanto, quando Boaz o lembrou de que teria de casar com Rute para ficar com a terra, então ele mudou de ideia, e a esperança dela aumentaria. O que o levou a mudar de ideia? Ele diz que havia se lembrado de que tinha uma obrigação legal contraída. “Não poderei resgatá-la, pois poria em risco a minha propriedade” (Rt 4.6). A desculpa é torta e fraca. No entanto, é suficiente para Boaz, cujo discurso de aceitação do veredicto é um modelo de clareza e lógica. O caso poderia facilmente ter seguido de outra maneira, mas parece que o resultado foi guiado por Deus desde o início.
Deus opera por meio da fecundidade da gravidez (Rute 4.13-18)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm Rute 4.13, encontramos apenas a segunda vez no livro (além de Rt 1.6) em que um acontecimento é expressamente atribuído à mão de Deus. “Boaz casou-se com Rute, e ela se tornou sua mulher. Boaz a possuiu e o Senhor concedeu que ela engravidasse dele e desse à luz um filho.” Enquanto o termo hebraico para concepção/gravidez (herayon) ocorre em outros lugares apenas em Gênesis 3.16 e Oseias 9.11, a expressão idiomática em particular “conceder/engravidar” ocorre apenas aqui. Devemos interpretar essa declaração no contexto do casamento aparentemente de dez anos e sem filhos de Rute com Malom (Rt 1.4). Depois da fidelidade de Rute em vir a Israel com Noemi, depois da fidelidade de Boaz em providenciar para que Rute respigasse seus campos e sua fidelidade em servir como seu parente resgatador, depois da oração fiel das testemunhas no portão (Rt 1.11-12), e, aparentemente, assim que Rute e Boaz consumaram o casamento, Deus concedeu que Rute concebesse um filho. Todo esforço humano, mesmo a relação sexual, depende de Deus para a realização dos objetivos pretendidos ou desejados (Rt 4.13-15; cf. 1.4).
O nascimento de qualquer filho é um presente de Deus, mas houve uma história maior no nascimento de Obede, filho de Rute e Boaz. Ele se tornaria o avô de Davi, o maior rei de Israel (Rt 4.22) e, finalmente, o ancestral de Jesus, o Messias (Mt 1.5,16-17). Dessa forma, a estrangeira Rute se tornou uma bênção para Israel e para todos que seguem Jesus até hoje.
Conclusões sobre o livro de Rute
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Rute apresenta uma poderosa história de Deus em ação, direcionando acontecimentos de todos os lados para cuidar de seu povo e, mais importante, para cumprir seus propósitos. A fidelidade — tanto a fidelidade de Deus às pessoas quanto a fidelidade das pessoas a Deus — é exercida por meio do trabalho e da produtividade resultante. Os personagens do livro trabalham com diligência, justiça, generosidade e engenhosidade, de acordo com a lei e a inspiração de Deus. Eles reconhecem a imagem de Deus nos seres humanos e trabalham juntos em harmonia e compaixão.
A partir dos acontecimentos no livro de Rute, podemos concluir que os cristãos de hoje devem reconhecer não apenas a dignidade, mas também o valor do trabalho. O trabalho traz glória a Deus. Traz benefícios para os outros. Ele serve ao mundo em que vivemos. Como cristãos hoje, podemos estar acostumados a reconhecer a mão de Deus mais claramente no trabalho de pastores, missionários e evangelistas, mas o trabalho deles não é o único legítimo no Reino de Deus. O livro de Rute nos lembra que o trabalho comum, como a agricultura, é um chamado cheio de fé, seja ele realizado por ricos proprietários de terras ou estrangeiros atingidos pela pobreza. Alimentar nossa família é um trabalho sagrado, e qualquer pessoa que tenha meios de ajudar os outros a alimentar sua família se torna uma bênção de Deus. Toda ocupação legítima é obra de Deus. Por meio de nós, Deus cria, projeta, organiza, embeleza, ajuda, lidera, cultiva, cuida, cura, capacita, informa, decora, ensina e ama. Somos as asas de Deus.
Nosso trabalho honra a Deus quando tratamos os colegas de trabalho com honra e dignidade, independentemente de termos o poder de moldar as condições de trabalho dos outros ou de nos colocarmos em risco ao defender os outros. Vivemos nossa aliança com Deus quando trabalhamos para o bem de nossos semelhantes — especialmente os marginalizados social e economicamente. Honramos a Deus quando buscamos os interesses dos outros e fazemos tudo o que está ao nosso alcance para humanizar seu trabalho e promover seu bem-estar.
Introdução a Samuel, Reis e Crônicas
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs livros de 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e 1 e 2Crônicas têm um profundo interesse pelo trabalho. Seu interesse predominante é no trabalho dos reis, incluindo aspectos políticos, militares, econômicos e religiosos. Governar, na forma de “ter domínio”, é uma das tarefas que Deus deu aos seres humanos no início (Gn 1.28), e as questões de liderança ou governança ocupam o centro do palco em 1 e 2Samuel, 1 e 2Reis e 1 e 2Crônicas. Como os israelitas deveriam ser governados, por quem e com que propósitos? Quando as organizações são bem governadas, as pessoas prosperam. Quando a boa governança é violada, todos sofrem.
Os acontecimentos nos livros de Samuel, Reis e Crônicas estão completamente entrelaçados. Por causa disso, discutiremos todos os seis juntos, em vez de subdividir livro por livro. Para localizar a discussão de uma passagem específica, use o índice e os títulos.
Os reis são o foco, mas eles não são as únicas pessoas que vemos trabalhando nesses livros. Em primeiro lugar, o trabalho dos reis afeta o trabalho de muitos outros, como soldados, construtores, artesãos e sacerdotes, e os livros de Samuel, Reis e Crônicas prestam atenção em como o trabalho dos reis afeta esses outros trabalhadores. Em segundo lugar, os próprios reis têm outro trabalho além de governar, e a paternidade recebe particular interesse nesses livros. Por fim, como histórias de Israel, esses livros se interessam pelo povo como um todo e, em muitos casos, isso significa relatar o trabalho de pessoas que não estão ligadas ao trabalho da realeza.
Seguindo o exemplo dos próprios livros, prestaremos maior atenção às tarefas de liderança e governança dos reis de Israel, ao mesmo tempo em que exploraremos os muitos outros tipos de trabalhadores descritos. Incluem-se entre eles soldados e comandantes, juízes e líderes civis (muitas vezes chamados de “anciãos”), pais, pastores, agricultores, cozinheiros e padeiros, perfumistas, viticultores, músicos e artistas, inventores, empresários, diplomatas (formais e informais), manifestantes ou ativistas, conselheiros políticos, artesãos e trabalhadores manuais, arquitetos, supervisores, pedreiros, empreiteiros, metalúrgicos, carpinteiros, armeiros, tratadores de poços, negociantes de azeite, curandeiros, escravas, mensageiros, lenhadores e contadores. Profetas e sacerdotes também estão incluídos, mas, como o foco do Projeto Teologia do Trabalho está mais no trabalho não religioso, nos limitaremos ao seu papel no trabalho fora da esfera religiosa. Eles realmente desempenham um papel significativo nos assuntos políticos, militares e econômicos, como veremos.
Praticamente todo tipo de obreiro de hoje está representado nos livros de Samuel, Reis e Crônicas ou pode encontrar neles aplicações práticas para seu trabalho. De um modo geral, descobriremos como a boa governança e a liderança se aplicam ao nosso trabalho, em vez de encontrar instruções sobre como fazer nosso trabalho específico — a menos que governança ou liderança seja nosso trabalho.
O contexto histórico de Samuel, Reis e Crônicas
Voltar ao índice Voltar ao índiceO interesse primordial dos livros é o trabalho do rei, à medida que Israel se torna uma monarquia. Eles começam em um momento em que as doze tribos de Israel há muito violavam as regras, a ética e as virtudes de liderança que Deus havia estabelecido para elas, que podem ser encontradas nos livros de Gênesis a Deuteronômio. Depois de quase 200 anos de governança cada vez pior por uma sucessão de “juízes” (líderes temporários), Israel está em frangalhos. Samuel, Reis e Crônicas narram a intervenção de Deus no governo de Israel, à medida que seu povo passa de uma confederação tribal falida para uma monarquia promissora, que caminha para o fracasso à medida que gerações sucessivas de reis abandonam Deus e seus caminhos. Lamentavelmente, a história termina com a destruição de Israel como nação, que nunca mais será restaurada durante o período bíblico. Isso pode não parecer um pano de fundo promissor para um estudo de governança, mas a orientação de Deus está sempre em evidência na narrativa, quer as pessoas escolham segui-la ou não. Lendo a história milhares de anos depois, podemos aprender tanto com seus sucessos quanto com seus fracassos.
A posição teológica fundamental dos livros é que, se o rei é fiel a Deus, a nação prospera econômica, social e militarmente. Se o rei é infiel, segue-se uma catástrofe nacional. Portanto, a história do povo de Deus é contada principalmente por meio das ações dos principais líderes governamentais, para usar termos modernos. No entanto, a governança é necessária em todo tipo de comunidade ou instituição, seja política, civil, empresarial, sem fins lucrativos, acadêmica ou qualquer outra. As lições dos livros se aplicam à governança em todos os setores da sociedade hoje. Esses livros oferecem um rico estudo sobre liderança, demonstrando como a subsistência de muitos depende do que os líderes fazem e dizem.
Estudiosos acreditam que, originalmente, cada par de livros (1 e 2Samuel, 1 e 2Reis, 1 e 2Crônicas) era um único conjunto dividido entre dois pergaminhos. Os pergaminhos de Samuel e Reis formam uma história política integrada das monarquias israelitas. Crônicas conta a mesma história de Reis, mas com foco nos aspectos sacerdotais ou de adoração da história hebraica. Seguiremos a narrativa em três atos: (1) Da confederação tribal à monarquia, (2) A era de ouro da monarquia, (3) Das monarquias fracassadas ao exílio.
Da confederação tribal à monarquia: 1Samuel
Voltar ao índice Voltar ao índiceO primeiro livro de Samuel marca a transição de Israel de uma coalizão de tribos rebeldes para uma monarquia com um governo central em Jerusalém. A história começa com o nascimento e o chamado do profeta Samuel e continua com a transição para a monarquia e os reinados de Saul e Davi. Esta é a história da formação do Estado, da centralização do poder e do culto e do estabelecimento de uma nova ordem política, militar e social.
O chamado de Samuel (1Samuel 1—3)
Voltar ao índice Voltar ao índicePelas palavras finais do livro de Juízes e pelos capítulos iniciais de 1Samuel, sabemos que os israelitas não tinham liderança e estavam desconectados de Deus. A coisa mais próxima que eles têm de um líder nacional é o sacerdote Eli, que administra com seus filhos o santuário de Siló. A prosperidade política, militar e econômica dos israelitas depende de sua fidelidade a Deus. Assim, o povo traz suas ofertas e sacrifícios a Deus no santuário, mas os sacerdotes zombam da interação com Deus. “Os filhos de Eli eram ímpios... eles estavam tratando com desprezo a oferta do Senhor” (1Sm 2.12,17). Eles não são confiáveis como líderes humanos e não honram a Deus em seu coração. Os adoradores descobrem que aqueles que deveriam direcioná-los para uma experiência de adoração estão, em vez disso, roubando deles.
Os perigos da autoridade herdada
Um tanto ameaçador para uma nação prestes a se tornar uma monarquia, a primeira coisa que observamos é que a autoridade herdada é inerentemente perigosa por duas razões. A primeira é que não há garantia de que os descendentes, mesmo do maior líder, sejam competentes e fiéis. A segunda é que ter nascido para o poder é muitas vezes uma influência corruptora, resultando com muita frequência em complacência ou — como no caso dos filhos de Eli — em alegação de direitos. Eli realiza seu trabalho como um encargo sagrado de Deus (1Sm 2.25), mas seus filhos veem aquilo como uma propriedade pessoal (1Sm 2.14). Crescendo em uma atmosfera um tanto análoga a de uma empresa familiar, eles esperam, desde cedo, herdar os privilégios de seu pai. Como essa “empresa familiar” é o próprio santuário de Deus — o que dá à família o direito de ter autoridade divina sobre a população —, a má conduta de seus filhos é ainda mais prejudicial.
Empresas familiares e dinastias políticas no mundo de hoje têm paralelos com a situação de Eli. O fundador da empresa ou da organização política pode ter trazido um grande bem ao mundo, mas, se os herdeiros o virem como um meio de ganho pessoal, aqueles a quem eles devem servir sofrerão danos. Todos ganham quando os fundadores e seus sucessores são fiéis ao propósito original e bom. O mundo é um lugar melhor, os negócios e a comunidade prosperam e a família está bem abastecida. Mas, quando o propósito original é negligenciado ou corrompido, a empresa ou a comunidade sofre, e a organização e a família correm perigo.
A triste história do poder herdado em governos, igrejas, empresas e outras organizações nos adverte de que aqueles que esperam receber o poder como um direito muitas vezes não sentem necessidade de desenvolver a habilidade, a autodisciplina e a atitude de serviço necessárias para ser bons líderes. Essa realidade deixou o mestre de Eclesiastes perplexo. “Desprezei todas as coisas pelas quais eu tanto me esforçara debaixo do sol, pois terei que deixá-las para aquele que me suceder. E quem pode dizer se ele será sábio ou tolo? Todavia, terá domínio sobre tudo o que realizei com o meu trabalho e com a minha sabedoria” (Ec 2.18-19). O que era verdade para ele é verdade para nós hoje. As famílias que obtêm riqueza e poder com o sucesso de um empreendedor em uma geração costumam perder esses ganhos na terceira geração e também sofrem brigas familiares devastadoras e infortúnios pessoais. [1] Isso não quer dizer que o poder ou a riqueza herdados sempre levem a resultados ruins, mas que a herança é uma política perigosa para a governança. Famílias, organizações ou governos que passam autoridade por meio de herança farão bem em desenvolver uma multiplicidade de meios para neutralizar os perigos que a herança acarreta. Existem consultorias e organizações especializadas em apoiar famílias e empresas em processos de herança.
Deus chama Samuel para suceder a Eli
Se não fossem seus filhos ímpios, quem sucederia a Eli como sacerdote? Em 1Samuel 3.1—4.1 e 1Samuel 7.3-17 é revelado o plano de Deus para levantar o jovem Samuel como sucessor de Eli. Samuel recebe um dos poucos chamados audíveis de Deus registrados na Bíblia, mas observe que esse não é um chamado para um tipo de trabalho ou ministério. (Samuel servia na casa do Senhor desde os dois ou três anos de idade, e a escolha da profissão havia sido feita por sua mãe. Veja 1Sm 1.20-28 e 2.18-21.) No entanto, é um chamado para uma tarefa: dizer a Eli que Deus decidiu trazer castigo sobre ele e seus filhos, que em breve serão removidos do cargo de sacerdotes de Deus. Depois de cumprir esse chamado, Samuel continua a servir sob o comando de Eli até que seja reconhecido como profeta por direito próprio (1Sm 4.1) e suceda a Eli após a morte deste (1Sm 4.18). Samuel se torna o líder do povo de Deus, não por ambição egoísta ou por um senso de direito, mas porque Deus tinha lhe dado uma visão (1Sm 3.10-14) e os dons e habilidades para levar as pessoas a realizar aquela visão (1Sm 3.19-4.1). Ver Visão geral da vocação para saber mais sobre o tema do chamado para o trabalho.
Os perigos de tratar Deus como um amuleto de boa sorte (1Samuel 4)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNão está claro se a corrupção do líder, Eli, causa a corrupção do povo ou vice-versa, mas os capítulos 4—6 retratam o desastre que acontece àqueles que não são bem governados. Israel está engajado em uma luta secular contra o país vizinho dos filisteus. Um novo ataque é feito pelos filisteus, que derrotam os israelitas, resultando em 4.000 baixas (1Sm 4.1-3). Os israelitas reconhecem a derrota como um sinal do desfavor de Deus. Mas, em vez de examinar sua falta, arrepender-se e buscar orientação do Senhor, eles tentam manipular Deus para que sirva a seus propósitos. Eles pegam a arca da aliança de Deus e avançam para a batalha contra os filisteus, presumindo que a arca os tornará invencíveis. Os filhos de Eli emprestam uma aura de autoridade ao plano. Mas os filisteus massacram Israel na batalha, matando 30.000 soldados israelitas, capturando a arca, matando os filhos de Eli e causando a própria morte de Eli (1Sm 4.4-19).
Os filhos de Eli, ao lado dos líderes do exército, cometeram o erro de pensar que, por levarem o nome do povo de Deus e possuírem os símbolos da presença de Deus, podiam comandar o poder de Deus. Talvez os responsáveis acreditassem que poderiam realmente controlar o poder de Deus carregando a arca. Ou talvez tenham se enganado ao pensar que, por serem o povo de Deus, tudo o que quisessem para si seria o que Deus queria para eles. De qualquer forma, eles descobriram que a presença de Deus não é uma garantia para projetar o poder de Deus, mas um convite para receber a orientação de Deus. Ironicamente, a arca continha o maior meio de orientação de Deus — os Dez Mandamentos (Dt 10.5) — mas os filhos de Eli não se preocuparam em buscar qualquer tipo de orientação de Deus antes de atacar os filisteus.
Será que muitas vezes caímos no mesmo mau hábito em nosso trabalho? Quando enfrentamos oposição ou dificuldade em nosso trabalho, buscamos a orientação de Deus em oração ou apenas lançamos uma oração rápida pedindo a Deus que faça o que queremos? Consideramos os possíveis cursos de ação à luz das Escrituras ou apenas mantemos uma Bíblia em nossa mesa? Examinamos nossas motivações e avaliamos nossas ações com abertura à transformação de Deus ou simplesmente nos enfeitamos com símbolos cristãos? Se nosso trabalho parece insatisfatório ou se nossa carreira não está progredindo como esperamos, é possível que estejamos usando Deus como um amuleto da sorte, em vez de segui-lo como o mestre de nosso trabalho?
As oportunidades que surgem do trabalho fiel (1Samuel 5—7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs filisteus não se saem melhor com a arca do que os israelitas, e ela se torna uma propriedade perigosa para ambos os lados, até que seja retirada do uso militar e Samuel chame Israel para se comprometer novamente com o próprio Senhor (1Sm 5.1—7.3). O povo atende ao seu chamado e volta a adorar ao Senhor, e a carreira de Samuel se expande rapidamente. Seu papel como sacerdote logo cresce para “juiz” (ou seja, um governador militar) e ele lidera a defesa bem-sucedida contra os filisteus (1Sm 7.4-13). Seu papel logo abrange a realização de um tribunal itinerante para questões legais (1Sm 7.16). Por trás de todas as suas tarefas está seu chamado para ser “profeta do Senhor” (1Sm 3.20).
Obreiros habilidosos e confiáveis, que são fiéis aos caminhos de Deus, muitas vezes descobrem que seu trabalho vai além da descrição de seu trabalho. Diante de responsabilidades cada vez maiores, a resposta de Samuel não é: “Esse não é o meu trabalho”. Em vez disso, ele vê as necessidades cruciais à sua frente, reconhece que tem a capacidade de atendê-las e intervém para resolvê-las. Ao fazer isso, Deus aumenta sua autoridade e eficácia para corresponder à sua disposição.
Uma lição que podemos tirar disso é responder a Deus com a mesma disposição de servir demonstrada por Samuel. Você vê oportunidades à sua frente no trabalho que, estritamente falando, não se encaixam na descrição de sua função? Seus supervisores ou colegas parecem esperar que você assuma mais responsabilidades em áreas que não fazem parte formalmente de sua função? Geralmente, essas são oportunidades de crescimento, desenvolvimento e avanço (a menos que seus supervisores não gostem da ideia de você assumir responsabilidades adicionais). O que seria necessário para você aproveitar essas oportunidades? Da mesma forma, você pode ver necessidades ao seu redor que poderia ajudar a atender se tivesse confiança e coragem para responder. O que seria necessário para desenvolver sua confiança em Deus e receber a coragem necessária para seguir sua orientação?
O relato final do governo de Samuel (1Sm 7.15-17) diz que ele percorria ano após ano as cidades de Israel, governando e administrando a justiça. O capítulo termina dizendo: “e naquele lugar construiu um altar em honra ao Senhor”. Seus serviços civis e militares a Israel foram baseados em sua fidelidade e adoração ao Senhor ao longo da vida.
Os filhos de Samuel decepcionam (1Samuel 8.1-3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceÀ medida que Samuel envelhece, ele repete o erro de Eli e nomeia seus próprios filhos para suceder-lhe. Como os filhos de Eli, eles se revelaram gananciosos e corruptos (1Sm 8.1-3). A decepção causada por filhos de grandes líderes é um tema recorrente em Samuel e Reis. (A tragédia do filho de Davi, Absalão, ocupa a maior parte dos capítulos 13-19 de 2Samuel, e isso será abordado mais tarde. Veja “O tratamento disfuncional de Davi com os conflitos familiares leva à guerra civil (2Samuel 13-19)”.) Isso nos lembra que o trabalho dos pais é tão desafiador quanto qualquer outra ocupação, mas muito mais intenso emocionalmente. Nenhuma solução é dada no texto, mas podemos observar que Eli, Samuel e Davi parecem ter dado a seus filhos problemáticos muitos privilégios, mas pouco envolvimento paterno. No entanto, também sabemos que mesmo os pais mais dedicados podem enfrentar o desgosto de filhos rebeldes. Em vez de culpar ou criar estereótipos para as causas, observemos simplesmente que criar filhos é uma ocupação que exige tanta oração, habilidade, apoio da comunidade, boa sorte e amor quanto qualquer outra, se não mais. Em última análise, ser pai ou mãe — quer nossos filhos tragam alegria, decepção ou um pouco de ambos — é depender da graça e da misericórdia de Deus e esperar por uma redenção além do que vemos durante nossa vida. Talvez nosso conforto mais profundo seja lembrar que Deus também experimentou o desgosto de um pai por seu Filho condenado, mas superou tudo por meio do poder do amor.
Os israelitas pedem um rei (1Samuel 8.4-22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceVendo a inadequação dos filhos de Samuel, os israelitas pediram a ele: “Escolhe agora um rei para que nos lidere, à semelhança das outras nações”. Esse pedido desagrada a Samuel (1Sm 8.4-6). Samuel adverte o povo, mostrando que os reis costumam impor fardos pesados a uma nação.
O rei que reinará sobre vocês reivindicará como seu direito o seguinte: ele tomará os filhos de vocês para servi-lo em seus carros de guerra e em sua cavalaria, e para correr à frente dos seus carros de guerra. Colocará alguns como comandantes de mil e outros como comandantes de cinquenta. Ele os fará arar as terras dele, fazer a colheita, e fabricar armas de guerra e equipamentos para os seus carros de guerra. Tomará as filhas de vocês para serem perfumistas, cozinheiras e padeiras. Tomará de vocês o melhor das plantações, das vinhas e dos olivais, e o dará aos criados dele. (1Sm 8.10-17)
De fato, os reis seriam tão vorazes que, por fim, o povo acabaria clamando a Deus para salvá-los dos reis (1Sm 8.18).
Deus concorda que pedir um rei é uma má ideia, porque equivale a uma rejeição do próprio Deus como rei. No entanto, o Senhor decide permitir que o povo escolha sua forma de governo e diz a Samuel: “Atenda a tudo o que o povo está lhe pedindo; não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei” (1Sm 8.7). Como observa o estudioso bíblico John Goldingay: “Deus começa com seu povo onde eles estão; se eles não conseguem lidar com seu caminho mais elevado, ele entalha um caminho mais baixo. Quando eles não respondem ao espírito do Senhor ou quando todos os tipos de espíritos os levam à anarquia, ele fornece... a salvaguarda institucional dos governantes terrenos”. Às vezes, Deus permite instituições que não fazem parte de seu propósito eterno, e a monarquia de Israel é um dos exemplos mais flagrantes.
Tanto Deus quanto Samuel mostraram grande humildade, resiliência e graça ao permitir que Israel fizesse escolhas e cometesse erros, aprendendo com as consequências. Existem muitas situações institucionais e no ambiente de trabalho em que a liderança deve se ajustar às más escolhas das pessoas e, ao mesmo tempo, tentar oferecer oportunidades de crescimento e graça. A advertência de Samuel a Israel poderia facilmente servir de advertência a nações, empresas, igrejas, escolas e outras organizações do mundo de hoje. Em nosso mundo decaído, as pessoas abusam do poder e temos de nos ajustar e, ao mesmo tempo, fazer o que podemos para mudar as coisas. Nossa aspiração é amar a Deus e tratar as outras pessoas como Deus ordena na lei dada a Moisés, algo que o povo de Deus teve muita dificuldade em cumprir em todas as épocas.
A tarefa de escolher um rei (1Samuel 9—16)
Voltar ao índice Voltar ao índiceSaul é escolhido como primeiro rei de Israel
A primeira escolha de Deus para ser rei é Saul (c. 1050-1010 a.C.), alguém que se destacava — ele literalmente era “sem igual entre os israelitas; os mais altos batiam nos seus ombros” (1Sm 9.2). Além disso, ele obteve vitórias militares, a principal razão para ter um rei (1Sm 11.1-11). No início, ele serviu fielmente (1Sm 11.13-14), mas rapidamente se tornou desobediente a Deus (1Sm 13.8-15) e arrogante com seu povo (1Sm 14.24-30). Tanto Samuel quanto Deus ficaram exasperados com ele e começaram a procurar seu substituto (1Sm 16.1). Mas, antes de compararmos as ações de Saul com as expectativas da liderança do século 21, devemos observar que ele simplesmente fez o que faziam os reis no antigo Oriente Próximo. O povo conseguiu o que pediu (e contra o que Samuel havia advertido): um tirano militarista, carismático e que exaltava a si mesmo.
Como devemos avaliar o primeiro rei de Israel? Deus cometeu um erro ao levar Samuel a ungir o jovem Saul como rei? Ou a escolha de Saul foi uma lição prática para os israelitas não serem seduzidos pelas aparências externas — bonito por fora, mas vazio por dentro? Ao pedir um rei, os israelitas mostraram sua falta de fé em Deus. O rei que eles receberam, em última análise, demonstrou a mesma falta de fé em Deus. A principal tarefa de Saul como rei era garantir a segurança dos israelitas contra ataques dos filisteus vizinhos e de outras nações. Mas, quando enfrentou Golias, o medo de Saulo superou sua fé e ele se mostrou inapto para seu papel (1Sm 17.11). Ao longo de seu reinado, Saul igualmente duvidou de Deus, buscando conselho nos lugares errados e, finalmente, cometendo suicídio, enquanto seu exército era derrotado pelo inimigo (1Sm 31.4).
Davi é escolhido para suceder a Saul
Enquanto Samuel procura o substituto de Saul, ele quase comete o erro de julgar pelas aparências uma segunda vez (1Sm 16.1-4). O menino Davi parece insignificante para Samuel, mas, com a ajuda de Deus, ele finalmente reconhece em Davi o escolhido de Deus para ser rei de Israel. Na aparência externa, Davi não projeta a imagem de seriedade que as pessoas esperam de um líder (1Sm 16.6-11). Um pouco mais tarde na história, o gigante filisteu Golias se mostra igualmente desdenhoso (1Sm 17.42). Davi é um candidato não convencional por razões que vão além de sua juventude. Ele é o último filho em uma sociedade baseada na primazia do filho mais velho. Além disso, ele é etnicamente misto, não um israelita puro, porque uma de suas bisavós era Rute (Rt 4.21-22), uma imigrante do reino de Moabe (Rt 1.1-4). Embora Davi tenha contra ele vários aspectos, Deus vê nele uma grande promessa.
Ao pensarmos sobre a seleção de liderança hoje, é valioso lembrar a palavra de Deus a Samuel: “O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração” (1Sm 16.7). No reino invertido de Deus, o último ou o esquecido pode acabar sendo a melhor escolha. O melhor líder pode ser aquele que ninguém está procurando. Pode ser tentador partir para o candidato inicialmente impressionante, aquele que transborda carisma, a pessoa que outras pessoas parecem querer seguir. Mas o excesso de autoconfiança, na verdade, leva a um desempenho inferior, de acordo com um artigo de 2012 da Harvard Business Review. [1] O carisma não é o que Deus valoriza. O caráter é. O que seria necessário para aprender a ver o caráter de uma pessoa pelos olhos de Deus?
É significativo que Davi estivesse fazendo seu trabalho como pastor, cuidando conscientemente das ovelhas de seu pai, quando Samuel o encontrou. O desempenho fiel no trabalho em questão é uma boa preparação para um trabalho maior, como no caso de Davi (1Sm 17.34-37; veja também Lc 16.10; 19.17). Samuel logo descobre que Davi é o líder forte, confiante e competente pelo qual o povo ansiava, que “sairá à nossa frente para combater em nossas batalhas” (1Sm 8.20). Ao longo de sua carreira, Davi mantém em mente que está servindo à vontade de Deus para cuidar do povo de Deus (2Sm 6.21). Deus o chama de “homem segundo o meu coração” (At 13.22).
Deus escolheu Davi para suceder a Saul. Agora, Samuel deve ungir Davi como rei enquanto Saul ainda está no trono. Samuel duvida das perspectivas de sucesso. Samuel diz: “Como poderei ir? Saul saberá disto e me matará” (1Sm 16.2). A resposta de Deus é que Samuel vá disfarçado. “Leve um novilho com você e diga que foi sacrificar ao Senhor. Convide Jessé para o sacrifício, e eu lhe mostrarei o que fazer. Você irá ungir para mim aquele que eu indicar” (1Sm 16.2-3). Em outras palavras, vá abertamente à casa de Jessé (onde o novo rei será encontrado), mas disfarce seu propósito ao ir para lá. Seguindo a orientação de Deus, Samuel consegue ungir Davi como rei.
Em nosso trabalho, também podemos enfrentar o desafio de lidar com um sistema abusivo ou um líder tirânico. Falamos claramente, como se tivéssemos um alvo nas costas, esperando para ser abatidos? Ou transitamos sutilmente, esperando que isso nos dê a chance de afetar mais positivamente o resultado final? O que significa ser “astutos como as serpentes e sem malícia como as pombas”, como Jesus disse? (Mt 10.16). Para saber mais sobre o tópico de quando o engano pode ser moralmente necessário, veja o artigo “Quando alguém não tem direito à verdade”.
Há um momento para ser claro sobre o que defendemos, e há um momento para agir de forma mais discreta, mantendo o objetivo em mente. Como podemos identificar a diferença? A pista está aqui no texto, no qual Samuel está continuamente conversando com Deus em busca de orientação. Sob pressão, podemos tomar esse tipo de decisão por conta própria, mas é provável que isso gravite em direção ao que é mais confortável para nós mesmos, e não ao que Deus deseja. No entanto, temos a promessa de Jesus de que recebermos ajuda do Espírito Santo de Deus (Jo 14.26). Samuel tinha o hábito de conversar com Deus em seu ambiente de trabalho, e isso o levou a lidar com a situação moralmente ambígua à luz de Deus para entender os propósitos de Deus corretamente. Podemos fazer o mesmo em nosso próprio ambiente de trabalho, levar nossas dúvidas e incertezas a Deus em oração? Para obter ajuda com isso, veja o plano de leitura da Bíblia, “Como tomar a decisão certa”.
A ascensão de Davi ao poder (1Samuel 17—30)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo contrário de Saul, que começou seu reinado logo depois que Samuel o ungiu (1Sm 11.1), Davi tem um aprendizado longo e difícil antes de ser aclamado rei em Hebrom. Seu primeiro sucesso público veio ao matar o gigante Golias, que ameaçava a segurança militar de Israel. Quando o exército volta para casa, uma multidão de mulheres começa a cantar: “Saul matou milhares, e Davi, dezenas de milhares” (1Sm 18.7). Isso enfurece Saul (1Sm 18.8). Em vez de reconhecer como ele e a nação podem se beneficiar das capacidades de Davi, ele o considera uma ameaça. Ele decide eliminar Davi na primeira oportunidade (1Sm 18.9-13). Assim começou uma rivalidade que acabou forçando Davi a fugir para salvar a vida, evitando Saul enquanto liderava um bando de rebeldes no deserto de Judá por dez anos.
Quando Davi tem a oportunidade de assassinar o rei Saul, ele se recusa, sabendo que o trono não é dele: é de Deus, e só ele pode dar. Como os salmos expressam: “É Deus quem julga: Humilha a um, a outro exalta” (Sl 75.7). Davi respeita a autoridade que Deus deu a Saul, mesmo quando ele age de maneira desonrosa. Isso parece uma lição para aqueles que hoje trabalham para chefes difíceis ou estão esperando ser reconhecidos por sua liderança. Mesmo que sintamos que somos chamados por Deus para uma tarefa ou posição específica, isso não nos autoriza a tomar o poder, contrariando as autoridades existentes. Se todos os que pensavam que Deus queria que eles fossem o chefe tentassem acelerar o processo tomando o poder por conta própria, toda sucessão de autoridade seria marcada pelo caos. Deus é paciente, e nós também devemos ser pacientes, assim como Davi foi.
Podemos confiar que Deus nos dará a autoridade de que precisamos, em seu tempo, para fazer a obra que ele deseja que façamos? No ambiente de trabalho, ter mais autoridade é valioso para realizar o trabalho necessário. Agarrar-se a essa autoridade prematuramente, subestimando um chefe ou empurrando um colega para fora do caminho, não cria confiança com os colegas nem demonstra confiança em Deus. Às vezes, pode ser frustrante quando parece que está demorando muito para que a autoridade necessária apareça em seu caminho, mas a verdadeira autoridade não pode ser alcançada, apenas concedida. Davi estava disposto a esperar até que Deus colocasse essa autoridade em suas mãos.
Abigail acalma uma crise entre Davi e Nabal (1Samuel 25)
Voltar ao índice Voltar ao índiceÀ medida que o poder de Davi cresce, ele entra em conflito com um rico proprietário de terras chamado Nabal. Por acaso, o bando de rebeldes de Davi, contra o governo de Saul, está acampado na área de Nabal há algum tempo. Os homens de Davi trataram os pastores de Nabal com bondade, protegendo-os de danos ou, pelo menos, não roubando nada (1Sm 25.15-16). Davi imagina que isso significa que Nabal deve algo a ele, e ele envia uma delegação para pedir a Nabal que doe alguns animais para um banquete para o exército de Davi. Talvez percebendo a fraqueza de sua afirmação, Davi instrui sua delegação a ser ainda mais educada com Nabal.
Nabal não aceitará nada disso. Ele não apenas se recusa a dar a Davi qualquer coisa para a festa, mas também o insulta publicamente, nega conhecê-lo e contesta a integridade de Davi por ser um rebelde contra Saul (1Sm 25.10). Os próprios servos de Nabal descrevem seu amo como “um homem tão mau que ninguém consegue conversar com ele” (1Sm 25.17). Davi imediatamente sai com 400 homens armados para matar Nabal e todos os homens de sua casa.
De repente, Davi está prestes a cometer um assassinato em massa, enquanto Nabal se preocupa mais com seu orgulho do que com seus trabalhadores e sua família. Esses dois homens arrogantes são incapazes de resolver uma discussão sobre ovelhas sem derramar o sangue de centenas de pessoas inocentes. Graças a Deus, quem intervém na discussão é Abigail, a sábia esposa de Nabal. Ela rapidamente prepara um banquete para Davi e seus homens, depois sai ao encontro de Davi com um pedido de desculpas que estabelece um novo padrão de cortesia no Antigo Testamento (1Sm 25.26-31). No entanto, envoltas em palavras de cortesia, estão algumas verdades duras que Davi precisa ouvir. Ele está prestes a derramar sangue sem motivo, trazendo sobre si uma culpa da qual nunca poderia escapar.
Davi fica comovido com as palavras dela e abandona seu plano de matar Nabal e todos os seus homens e meninos. Ele até agradece a Abigail por desviá-lo de seu plano imprudente. “Seja você abençoada pelo seu bom senso e por evitar que eu hoje derrame sangue e me vingue com minhas próprias mãos. De outro modo, juro pelo nome do Senhor, o Deus de Israel, que evitou que eu lhe fizesse mal, que, se você não tivesse vindo depressa encontrar-me, nem um só do sexo masculino pertencente a Nabal teria sido deixado vivo ao romper do dia” (1Sm 25.33-34).
O incidente mostra que as pessoas precisam responsabilizar seus líderes, embora isso possa acarretar um grande risco pessoal. Você não precisa ter status de autoridade para ser chamado a exercer influência. Mas você precisa de coragem, o que, felizmente, é algo que você pode receber de Deus a qualquer momento. A intervenção de Abigail também demonstra que mostrar respeito, mesmo ao fazer uma crítica direta, fornece um modelo para desafiar a autoridade. Nabal transformou uma pequena discussão em uma situação de risco de vida, envolvendo uma pequena disputa em um insulto pessoal. Abigail resolve uma crise com risco de vida, disfarçando uma grande repreensão em um diálogo respeitoso.
De que maneiras Deus pode estar chamando você para exercer influência a fim de responsabilizar pessoas em posições de autoridade superior? Como você pode cultivar uma atitude piedosa de respeito, juntamente com um compromisso inabalável de dizer a verdade? Que coragem você precisa de Deus para realmente fazer isso?
A era de ouro da monarquia: 2Samuel 1—24, 1Reis 1—11, 1Crônicas 13; 21—25
Voltar ao índice Voltar ao índiceApós a morte de Saul, Davi é ungido rei sobre a tribo do sul de Judá, mas só depois de muito sangue derramado é que Davi finalmente é ungido rei sobre todo o Israel (2Sm 5.1-10). Quando Davi finalmente se destaca, ele investe seu talento no desenvolvimento de outras pessoas. Ao contrário dos medos de Saul quanto a um rival, Davi se cerca de uma companhia cujas façanhas rivalizam com as suas (2Sm 23.8-39; 1Cr 11.10-47). Ele os honra (1Cr 11.19), encoraja sua fama e os promove (1Cr 11.25). Deus usa a disposição de Davi para patrocinar e encorajar as pessoas a construir o próprio sucesso de Davi e abençoar as pessoas de seu reino.
Enfim, a frouxa confederação de tribos israelitas se uniu como nação. Por oitenta anos, primeiramente sob o governo de Davi (c. 1010-970 a.C.), depois de seu filho Salomão (c. 970-931 a.C.), Israel vive uma era de ouro de prosperidade e renome entre todas as nações do antigo Oriente Próximo. Mas, em meio a seus sucessos, esses dois governantes também violam a aliança de Deus. Embora isso cause apenas danos limitados em sua própria época, estabelece um padrão para aqueles que vierem depois deles se afastarem do Senhor e abandonarem sua aliança.
Os sucessos e fracassos de Davi como rei (2Samuel 1—24)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA Bíblia considera Davi o modelo de rei de Israel, e os livros de Samuel, Reis e Crônicas descrevem seus muitos sucessos. No entanto, mesmo Davi, um homem segundo o coração de Deus (1Sm 13.14), abusa de seu poder e às vezes age sem fé. Ele tende a ter sucesso quando não se leva muito a sério, mas entra em sérios problemas quando o poder sobe à sua cabeça — por exemplo, quando resolve fazer um censo, violando o mandamento de Deus (2Sm 24.10-17) ou quando explora sexualmente Bate-Seba e ordena o assassinato de seu marido, Urias (2Sm 11.2-17). No entanto, apesar das falhas de Davi, Deus cumpre sua aliança com ele e o trata com misericórdia.
O estupro de Bate-Seba e o assassinato de Urias por Davi (2Samuel 11—12)
Voltar ao índice Voltar ao índicePessoas no poder têm encoberto casos de abuso sexual há milênios, mas a Bíblia expõe corajosamente exemplos de abuso contra Sara, Hagar, Diná, Tamar (duas delas) e Bate-Seba, o assunto desta passagem. O abuso de Bate-Seba parece o mais chocante de todos, porque ocorre nas mãos de ninguém menos que o ancestral mais famoso de Jesus, o rei Davi. A história é antiga, mas a questão permanece tão atual quanto sempre. Nos últimos anos, uma onda de histórias de abuso sexual gerou o movimento #metoo que derrubou grandes nomes do entretenimento (Harvey Weinstein, Bill O'Reilly, Charlie Rose), da política (Al Franken, Patrick Meehan, John Conyers), dos negócios (Steve Wynn, Travis Kalanick), esportes (Larry Nassar), música (R. Kelly) e religião (Bill Hybels, Andy Savage, Paige Patterson). Todos esses nomes são dos EUA, mas o problema é mundial.
A história é conhecida. Do telhado, Davi percebe que sua atraente vizinha, Bate-Seba, está tomando banho. Ele envia seus homens para levá-la até ele no palácio, faz sexo com ela e ela fica grávida. Em uma tentativa de encobrir a gravidez, Davi chama Urias, marido de Bate-Seba, que estava lutando em Rabá, mas Urias tem integridade demais para dormir com sua esposa enquanto o restante do exército e a arca estão acampados em tendas. Depois que Davi orquestra a morte de Urias em batalha, ele assume que o desastre foi evitado. Mas Davi não leva Deus em consideração.
Ao longo da história, esse encontro entre Davi e Bate-Seba foi frequentemente descrito como adultério, o que implica consentimento mútuo. No entanto, ao examinarmos os detalhes, vemos que, na verdade, trata-se de abuso sexual por alguém com poder, em outras palavras, estupro. Nem o texto nem o contexto apoiam a conclusão de que foi um caso consensual entre dois adultos. As pessoas que pensam que Bate-Seba seduziu Davi tomando banho do lado de fora de sua janela podem não perceber que o verbo hebraico rachats, usado para a ação de Bate-Seba aqui (2Sm 11.2), significa literalmente “lavar”, e assim é traduzido em outras partes desta narrativa (2Sm 11.8; 12.20). Não há razão para supor que Bate-Seba estava nua, ou que ela estava ciente de que o rei, que deveria estar com seu exército, estaria espiando de seu telhado (2Sm 11.1-2).
As pessoas que pensam que ela concordou em ir ao palácio de bom grado não entendem que, quando um antigo governante convocava um súdito ao palácio, o súdito não tinha escolha a não ser obedecer (veja Et 2.14, 3.12 e 8.9, por exemplo). E Davi envia não um, mas vários mensageiros, para garantir a obediência de Bate-Seba (2Sm 11.4). Lembre-se, a única pessoa que se recusa a seguir as diretrizes de Davi nesta história é Urias, e ele acaba morto (2Sm 11.14-18). O texto não diz que Bate-Seba percebeu que estava sendo trazida ao palácio para fazer sexo com o rei. É até mais provável que ela tivesse presumido que a convocação era para ser informada da morte de seu marido, o que foi essencialmente o que aconteceu mais tarde (2Sm 11.26-27).
O texto declara a ação como uma perpetração unilateral de Davi. “Davi mandou que a trouxessem, e se deitou com ela”, não “eles se deitaram juntos” (2Sm 11.4). A linguagem usada aqui para descrever o encontro sugere estupro, não adultério. Davi “mandou trazer” (laqach, lit. “tomou”) Bate-Seba e “deitou” (shakav) com ela. O verbo shakav pode significar apenas relação sexual, mas é usado na maioria dos incidentes de estupro na Bíblia hebraica. Os verbos laqach e shakav só aparecem juntos em contextos de estupro (Gn 34.2; 2Sm 12.11; 16.22).
Não podemos culpar Bate-Seba por consentir quando levada à câmara de um homem que possuía grande poder e um histórico de violência. À medida que a narrativa continua, todas as pessoas censuram Davi, mas ninguém censura Bate-Seba. Deus culpa Davi. “O que Davi fez desagradou ao Senhor” (2Sm 11.27). O profeta Natã acusa Davi, contando uma parábola na qual um homem rico (representando Davi) “toma” uma ovelha preciosa (Bate-Seba) de um homem pobre (Urias). Depois de ouvir a parábola de Natã, até Davi o culpa. “O homem que fez isso merece a morte!” (2Sm 12.5). Caso ainda não tenha ficado claro, Natã responde: “Você é esse homem!” (2Sm 12.7). De acordo com as leis de estupro e adultério de Deuteronômio 22.22-29, se o homem merece morrer, o que aconteceu não foi adultério, mas estupro.
Quando chamamos esse incidente de adultério ou contestamos as ações de Bate-Seba, não estamos apenas ignorando o texto, mas essencialmente culpando a vítima. No entanto, quando chamamos isso de estupro e nos concentramos nas ações de Davi, não apenas levamos o texto a sério, mas validamos as histórias de outras vítimas de abuso sexual. Assim como Deus viu o que Davi fez com Bate-Seba, Deus vê o que os perpetradores fazem com as vítimas de abuso sexual hoje.
O crime de Davi foi um abuso de poder realizado na forma de violação sexual. Como soberano sobre o maior império de Israel, Davi tinha indiscutivelmente mais poder do que qualquer outro israelita no Antigo Testamento. Antes de Davi assumir o trono, ele usou seu poder para servir aos outros, talvez mais notavelmente às cidades indefesas de Queila e Ziclague (1Sm 23.1-14; 30.1-31). Já no caso de Bate-Seba, ele abusou de seu poder primeiro para servir sua própria luxúria e, em seguida, para preservar sua reputação.
Embora poucos de nós tenham tanta autoridade quanto Davi, muitos de nós têm poder em esferas menores em contextos familiares ou de trabalho, seja como resultado de nosso sexo, raça, posição, riqueza ou outros marcadores de status, ou simplesmente à medida que envelhecemos, ganhamos experiência e temos mais responsabilidade. É tentador tirar proveito de nosso poder e privilégio, pensando que trabalhamos duro por essas vantagens (melhores escritórios, vagas especiais de estacionamento, salários mais altos), mesmo que pessoas com menos poder não as compartilhem.
Por outro lado, muitos de nós somos vulneráveis aos que estão no poder pelas mesmas razões, embora estejam do lado oposto da distribuição de poder. Pode ser tentador pensar que aqueles em posições vulneráveis devam tentar se defender, como muitos pensaram em relação a Bate-Seba. O texto não apresenta nenhuma evidência de que ela tenha tentado recusar a imposição sexual de Davi, portanto — segundo esse tipo de pensamento — ela deve ter participado voluntariamente. Como vimos, a Bíblia rejeita esse tipo de pensamento. A vítima de um crime é sempre a vítima do crime, não importa quanta ou pouca resistência ela possa ter oferecido.
Davi mergulhou nesse crime depois de ter esquecido que foi Deus quem lhe deu sua posição de poder e que Deus se importava com o que ele fazia com ela. Os pastores deveriam cuidar das ovelhas de seu rebanho, e não devorá-las (Ez 34). Jesus, o bom pastor, usou seu poder para alimentar, servir, curar e abençoar as pessoas sob sua autoridade, e ordenou que seus seguidores fizessem o mesmo (Mc 9.35; 10.42-45).
O poder soberano de Davi permitiu que ele evitasse aspectos desagradáveis de sua responsabilidade, especificamente liderando seu exército na guerra, mesmo sendo um herói militar, derrotando Golias e “milhares” em batalha (1Sm 17; 18.7; 21.11; 29.5).Uma consequência de sua decisão de ficar em casa e tirar um cochilo foi que ele tinha pouca responsabilidade, já que seus amigos mais próximos (seus “homens poderosos”) estavam lutando. Muitas pessoas sabiam o que Davi estava fazendo, mas eles eram servos e, o que não é de surpreender, nenhum deles se manifestou. As pessoas que enfrentam o poder normalmente pagam por isso.
Mas isso não impediu Abigail, a sábia esposa do tolo Nabal, de se colocar em perigo para impedir que Davi, que ainda não era o governante, iniciasse um ataque sangrento (1Sm 25). Se um dos servos de Davi tivesse proferido uma palavra de advertência cedo, como Abigail fez, talvez o estupro de Bate-Seba e o assassinato de Urias pudessem ter sido evitados. Depois que os crimes foram cometidos, o profeta Natã foi inspirado por Deus a confrontar o rei, que, felizmente para sua alma, foi receptivo à mensagem (2Sm 12). Observe que tanto Abigail quanto Natã não eram propriamente os alvos dos abusos de poder de Davi. Eles estavam em posições de poder inferior ao do agressor, mas de alguma forma reconheciam que poderiam intervir e estavam dispostos a correr o risco de fazê-lo. Será que suas ações sugerem que aqueles de nós que estão cientes do abuso têm a responsabilidade de preveni-lo ou denunciá-lo, mesmo que isso represente um risco para nós ou para nossa reputação?
A maioria de nós não está em situações em que confrontar um chefe ou supervisor envolve arriscar a vida, mas falar nesses tipos de contexto pode significar perder status, uma promoção ou até o emprego. Mas, como esta e muitas outras histórias semelhantes nas Escrituras ilustram, Deus chama seu povo para agir como profetas em nossas igrejas, escolas, empresas e onde quer que trabalhemos e vivamos. Os exemplos de Abigail e Natã — além das instruções de Jesus em Mateus 18.15-17 — sugerem que, idealmente, devemos falar cara a cara com o agressor. (No entanto, Romanos 13.1-7 implica que os cristãos podem usar outros meios do devido processo legal que não exijam confronto individual com o agressor.)
Para aqueles de nós que evitam conflitos, aprender a falar a verdade para pessoas em posição de autoridade é algo que pode ser desenvolvido gradualmente ao longo do tempo, como fazer fisioterapia para um músculo fraco ou lesionado. Cultivamos a capacidade de confrontar começando com pequenos passos, fazendo perguntas ou apontando pequenos problemas. Podemos, então, passar para questões mais significativas, oferecendo diferentes perspectivas que podem não ser populares. Com o tempo, podemos nos tornar mais corajosos, de modo que, se estivermos cientes de uma falha moral significativa, como o abuso sexual cometido por um colega ou um superior, possamos falar a verdade de maneira sábia e graciosa. Do outro lado da equação, líderes sábios permitem com mais facilidade que seus subordinados os responsabilizem e levantem questões. Quando você atua como líder, o que faz para receber ou solicitar feedback negativo dos outros?
Davi aceita o severo feedback negativo de Natã e se arrepende. Mesmo assim, Natã aponta para Davi que seu arrependimento e perdão individuais não põem fim, por si só, às consequências que o pecado de Davi terá sobre os outros:
Então Davi disse a Natã: “Pequei contra o Senhor!”
E Natã respondeu: “O Senhor perdoou o seu pecado. Você não morrerá. Entretanto, uma vez que você insultou o Senhor, o menino morrerá”. (2Sm 12.13-14).
Mesmo pessoalmente arrependido, Davi não erradica a cultura de exploração que vigorava sob sua liderança. Natã declara a Davi que a punição por seu pecado será severa, e o restante do reinado de Davi é marcado por turbulências (2Sm 13—21, 1Rs 1). De fato, o filho de Davi, Amnom, comete o mesmo crime (estupro), mas de uma maneira ainda mais repreensível, pois é contra sua própria irmã Tamar (2Sm 13.1-19). O próprio Davi é cúmplice, embora talvez sem saber. Mesmo quando o assunto é trazido à sua atenção, Davi não faz nada para trazer justiça à situação. Finalmente, outro filho de Davi, Absalão, decide agir por conta própria. Ele mata Amnom e inicia uma guerra dentro da própria casa de Davi (2Sm 13), que se transforma em guerra civil e uma sequência de tragédias em todo o Israel.
Uma cultura que tolera o abuso é muito difícil de ser erradicada, muito mais difícil do que seus líderes supõem. Se Davi achava que seu arrependimento pessoal seria suficiente para restaurar a integridade de sua família, estava tragicamente enganado. Infelizmente, esse tipo de complacência e desrespeito voluntário em tolerar uma cultura de abuso continua até os dias atuais. Quantas igrejas, corporações, universidades, governos e organizações prometeram erradicar uma cultura de abuso sexual depois que um incidente for exposto, apenas para voltar imediatamente aos mesmos velhos hábitos e perpetrar ainda mais abusos?
Este episódio não termina em desespero, no entanto. O abuso sexual é um dos pecados mais graves, mas, mesmo assim, há esperança de justiça e restauração. Será que é possível deixar que os exemplos de Davi, Natã e Bate-Seba nos encorajem a admitir e nos arrepender (se formos os autores), a confrontar (se estivermos cientes do crime) ou a nos recuperar (se formos a vítima)? Em qualquer caso, o primeiro passo é fazer que o abuso cesse. Somente quando isso ocorre é que podemos falar de arrependimento, incluindo aceitação da culpa, punição e, se possível, restituição. Ao mencionar a linhagem de Jesus — o descendente mais famoso de Davi —, Mateus nos lembra do estupro de Davi. Mateus inclui Bate-Seba entre as quatro mães que ele menciona, não a chamando de esposa de Davi, mas de “mulher de Urias”, o homem que Davi assassinou (Mt 1.6). Esse aviso, no início dos Evangelhos, nos lembra que Deus é um Deus tanto de justiça quanto de restauração. Nessa faceta única, podemos de fato ver Davi como um modelo que vale a pena imitar. Esse homem de poder, quando confrontado com evidências de seus próprios erros, se arrepende e clama por justiça, mesmo sabendo que isso pode levar à sua ruína. Ele recebe misericórdia, mas não por seu próprio poder nem pelo poder de seus comparsas, mas por se submeter a uma autoridade que está além de seu poder de manipulação.
O tratamento disfuncional de Davi com os conflitos familiares leva à guerra civil (2Samuel 13—19)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA maioria das pessoas se sente desconfortável em situações de conflito, por isso tendemos a evitar conflitos, seja em casa ou no trabalho. Mas os conflitos são muito parecidos com doenças. Os menores podem desaparecer, mesmo que os ignoremos, mas os maiores penetrarão mais profundamente e de forma mais catastrófica em nossos sistemas, se não os tratarmos. Isso é verdade para a família de Davi. Davi permite que o conflito entre alguns de seus filhos mergulhe sua família na tragédia. Seu filho mais velho, Amnom, estupra e depois envergonha sua meia-irmã, Tamar (2Sm 13.1-19). O irmão de Tamar, Absalão, odeia Amnom por esse crime, mas não fala com ele sobre isso. Davi sabe o que se passa, mas decide ignorar a situação (2Sm 13.21). Para saber mais sobre filhos que decepcionam os pais, veja “Os filhos de Samuel decepcionam (1Sm 8.1-3)”.
Por dois anos, tudo parece ficar bem, mas conflitos não resolvidos dessa magnitude nunca desaparecem. Quando Amnom e Absalão viajam juntos pelo campo, Absalão embebeda seu meio-irmão com vinho e, em seguida, seus servos o matam (2Sm 13.28-29). O conflito atrai mais membros da família de Davi, os nobres e o exército, até que toda a nação acaba envolvida em uma guerra civil. A destruição causada por evitar o conflito é muitas vezes pior do que o desagrado que pode ter resultado de lidar com os problemas quando eles surgem.
Os professores de Harvard Ronald Heifetz e Marty Linsky descrevem como os líderes devem “orquestrar o conflito”, ou então ele se desenvolverá por conta própria, frustrará seus objetivos e colocará em risco suas organizações. [1] Da mesma forma, Jim Collins dá o exemplo de Alan Iverson, que era CEO da Nucor Steel em uma época em que havia profundas divisões sobre se a empresa deveria ou não diversificar para a reciclagem de sucata de aço. Iverson trouxe as divisões à tona, permitindo que todos expressassem sua opinião, protegendo-os de represálias de outros que pudessem discordar. Os “debates acalorados” que se seguiram foram desconfortáveis para todos. “As pessoas gritavam. Acenavam com os braços e batiam nas mesas. Os rostos ficavam vermelhos e as veias saltavam.” Mas reconhecer o conflito e trabalhá-lo abertamente impediu que ele se tornasse clandestino e explodisse mais tarde. Além disso, ao trazer à tona uma variedade de fatos e opiniões, o grupo foi levado a tomar as melhores decisões. “Os colegas entravam no escritório de Iverson e gritavam uns com os outros, mas depois chegavam a uma conclusão... A estratégia da empresa ‘evoluiu por meio de muitas discussões e brigas agonizantes’.” [2] Um conflito bem orquestrado pode, na verdade, ser uma fonte de criatividade.
Davi aprende que precisa da orientação divina de como fazer sua obra (1Crônicas 13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm 1Crônicas 13, Davi enfrenta um desafio em seu trabalho como rei e logo começa a resolvê-lo. Ele acredita que a arca de Deus deveria ser trazida de volta de Quiriate-Jearim, onde foi deixada durante o reinado de Saul. No entanto, em vez de agir por conta própria, ele conferencia com todos os seus líderes e ganha a concordância deles. Juntos, eles oram a Deus por sabedoria e concluem que realmente precisam trazer a arca de volta. É fácil para um líder cometer o erro de sair sozinho, sem o conselho de Deus ou de outras pessoas. Davi faz bem em reconhecer a necessidade de conselhos humanos e divinos. Ele recebe uma clara aprovação para seu projeto.
Mas o desastre ocorre. Uzá, que está ajudando a transportar a arca, põe a mão sobre ela para segurá-la, e Deus o mata (1Cr 13.9-10). Isso deixa Davi com raiva (1Cr 13.9-11) e com medo de Deus (1Cr 13.12), o que leva Davi a abandonar o projeto. O que começa como uma confirmação de Deus e de pessoas de confiança para realizar um projeto, de repente se transforma em um fracasso dramático. O mesmo acontece hoje. Por fim, quase todos nós experimentamos um doloroso revés em nosso trabalho. Pode ser profundamente desencorajador, e até ficamos tentados a abandonar a obra que Deus nos chamou para fazer.
No que parece ser um parêntese, Davi trava duas batalhas bem-sucedidas. Ele pergunta ao Senhor em cada caso se deve prosseguir, Deus o envia e ele obtém sucesso nas duas vezes. Mas a orientação de Deus para a segunda missão contém uma instrução peculiar. Deus diz: “Não ataque pela frente, mas dê a volta por trás deles e ataque-os em frente das amoreiras” (1Cr 14.14). Deus queria que Davi fosse, mas ele queria que ele fosse de uma maneira particular.
Depois desses sucessos, Davi reflete sobre essa experiência e ordena que ninguém, exceto os levitas, carregue a arca de Deus, porque o Senhor os escolheu para a tarefa (1Cr 15.2). Isso estava escrito no livro da Lei (Nm 4.15), mas havia sido esquecido ou negligenciado. Depois que Davi reúne os levitas para completar o trabalho de mover a arca, ele fala sobre o fracasso anterior: “Pelo fato de vocês [sacerdotes e levitas] não terem carregado a arca na primeira vez, a ira do Senhor, o nosso Deus, causou destruição entre nós. Nós não o tínhamos consultado sobre como proceder” (1Cr 15.13). Na segunda vez, porque eles seguiram o procedimento prescrito pela Lei, a arca foi movida com sucesso.
Esta história é um lembrete para nós em nosso próprio trabalho. É importante consultar a Deus e obter conselhos de pessoas de confiança sobre o que devemos fazer. Mas isso não é suficiente. Deus também se importa com como nós fazemos o trabalho. Como mostra a campanha fracassada de Davi, que negligenciou Números 4.15, fazer as coisas à maneira de Deus requer um conhecimento prático das Escrituras.
A desobediência de Davi a Deus causa uma praga nacional (1Crônicas 21.1-17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDavi também sofre outro fracasso que, para nós, no século 21, pode parecer estranho. Ele faz um censo do povo de Israel. Embora isso pareça prudente, o texto bíblico nos diz que Satanás incitou Davi a fazer isso, contrariando o conselho de Joabe, general de Davi. Além disso, a iniciativa “foi reprovada por Deus, e por isso ele puniu Israel” (1Cr 21.7).
Davi reconhece seu pecado ao fazer um censo contra a vontade de Deus. Como castigo, ele pode escolher entre três opções, cada uma das quais prejudicaria muitos no reino: (1) três anos de fome, ou (2) três meses de devastação pela espada de seus inimigos, ou (3) três dias de praga sobre a terra. Davi escolhe a terceira opção. Resultado: setenta mil pessoas morrem quando um anjo da morte passa pela terra. Diante disso, Davi clama a Deus: “Não fui eu que ordenei contar o povo? Fui eu que pequei e fiz o mal. Estes não passam de ovelhas. O que eles fizeram? Ó Senhor meu Deus, que o teu castigo caia sobre mim e sobre a minha família, mas não sobre o teu povo!” (1Cr 21.17).
Assim como Davi, provavelmente achamos difícil entender por que Deus puniria 70.000 outras pessoas pelo pecado de Davi. O texto não responde. Podemos observar, no entanto, que as transgressões dos líderes inevitavelmente prejudicam seu povo. Se os líderes empresariais tomarem más decisões sobre o desenvolvimento de produtos, as pessoas em sua organização perderão seus empregos quando as receitas despencarem. Se o gerente de um restaurante não aplicar as regras de saneamento, os clientes ficarão doentes. Se um professor der boas notas por um trabalho ruim, os alunos serão reprovados ou ficarão para trás no próximo nível de ensino. Aqueles que aceitam posições de liderança não podem fugir da responsabilidade pelos efeitos de suas ações sobre os outros.
O apoio de Davi às artes musicais (1Crônicas 25)
Voltar ao índice Voltar ao índice1Crônicas acrescenta um detalhe não encontrado em 2Samuel e 1Reis. Davi cria um corpo de músicos para “ministrar a música no templo do Senhor”.
Todos esses homens estavam sob a supervisão de seus pais quando ministravam a música do templo do Senhor, com címbalos, liras e harpas, na casa de Deus. Asafe, Jedutum e Hemã estavam sob a supervisão do rei. Eles e seus parentes, todos capazes e preparados para o ministério do louvor do Senhor, totalizavam 288. (1Cr 25.6-7)
Manter um conjunto do tamanho de duas orquestras sinfônicas modernas seria um grande empreendimento em uma nação emergente no século 10 a.C. Davi não considera isso um luxo, mas uma necessidade. De fato, ele o ordena em seu papel de comandante-em-chefe do exército, com o consentimento dos outros comandantes (1Cr 25.1).
Muitos corpos militares ainda hoje mantêm bandas e corais, mas isso é raro de ver em outros ambientes de trabalho, a menos que sejam organizações musicais. No entanto, há algo na música e nas outras artes que é essencial para o trabalho de todos os tipos. A criação de Deus — a fonte da atividade econômica humana — não é apenas produtiva, é bela (por exemplo, Gênesis 3.6; Salmos 96.6; Ezequiel 31.7-9), e Deus ama belas obras (por Há lugar para a beleza em seu trabalho? Você, sua organização ou as pessoas que fazem uso de seu trabalho se beneficiariam se seu trabalho criasse mais beleza? Qual o significado de beleza para o trabalho em sua ocupação?
Avaliando o reinado de Davi (1Reis)
Voltar ao índice Voltar ao índiceComo devemos avaliar Davi e seu reinado? É digno de nota que, embora Salomão tenha conquistado mais riquezas, terras e renome do que seu pai, Davi ainda é aquele que os livros de Reis e Crônicas aclamam como o maior rei de Israel, o modelo pelo qual todos os outros reis foram medidos.
Podemos ganhar esperança para nós mesmos com a resposta de Deus aos pontos positivos e negativos que vemos na vida e nas ações de Davi. Ficamos impressionados com sua piedade fundamental, mesmo quando empalidecemos diante de sua manipulação política, luxúria e violência. Quando vemos uma ambivalência semelhante em nosso próprio coração e em nossas ações, buscamos consolo e esperança no Deus que perdoa todos os nossos pecados. A presença do Senhor na vida de Davi nos dá esperança de que, mesmo diante de nossa fraqueza de fé, Deus permanecerá conosco o tempo todo.
Como Saul, Davi combinou grandeza e fidelidade com pecado e erro. Podemos nos perguntar, então, por que Deus preservou o reinado de Davi, mas não o de Saul. Em parte, pode ser porque o coração de Davi permaneceu fiel a Deus (1Rs 11.4; 15.3), por mais errôneas que tenham sido suas ações. A mesma coisa nunca é dita de Saul. Ou pode ser simplesmente porque a melhor maneira de Deus cumprir seus propósitos para seu povo era colocar Davi no trono e mantê-lo lá. Quando Deus nos chama para uma tarefa ou posição, não é necessariamente em nós que ele está pensando. Ele pode nos escolher por causa do efeito que teremos sobre outras pessoas. Por exemplo, Deus deu a Ciro, rei da Pérsia, a vitória sobre a Babilônia, não para recompensar ou beneficiar Ciro, mas para libertar Israel do cativeiro (2Cr 36.22-23).
Davi prepara Salomão para suceder-lhe como rei (1Reis 1; 1Crônicas 22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceVisto que Davi derramou muito sangue como rei, Deus decidiu não permitir que ele construísse um templo para o Senhor. Em vez disso, Salomão, filho de Davi, recebeu essa tarefa (1Cr 22.7-10). Assim, Davi aceitou que sua tarefa final seria preparar Salomão para o cargo de rei (1Cr 22.1-16) e cercá-lo com uma equipe capaz (1Cr 22.17-29). Davi forneceu as vastas reservas de materiais para a construção do templo de Deus em Jerusalém, dizendo: “Meu filho Salomão é jovem e inexperiente, e o templo que será construído para o Senhor deve ser extraordinariamente magnífico” (1Cr 22.5). Ele passou publicamente a autoridade a Salomão e certificou-se de que os líderes de Israel o reconhecessem como o novo rei e estivessem preparados para ajudá-lo a ter sucesso.
Davi reconheceu que a liderança é uma responsabilidade que dura mais do que a própria carreira. Na maioria dos casos, seu trabalho continuará depois que você deixá-lo (seja por promoção, aposentadoria ou por outro emprego). Você tem o dever de criar as condições necessárias para que seu sucessor seja bem-sucedido. Quando Davi preparou Salomão, vemos três elementos do planejamento sucessório. Primeiro, você precisa fornecer os recursos necessários para que seu sucessor conclua as tarefas que ficaram inacabadas. Se você foi, pelo menos, moderadamente bem-sucedido, terá aprendido como reunir os recursos necessários em sua posição. Muitas vezes, isso depende de relacionamentos que seu sucessor não herdará imediatamente. Por exemplo, o sucesso pode depender da ajuda de pessoas que não trabalham em seu departamento, mas que se dispuseram a ajudá-lo em seu trabalho. Você precisa se certificar de que seu sucessor saiba quem são essas pessoas e precisa obter delas o compromisso de continuar ajudando depois que você se for. Davi providenciou para que “especialistas em todo tipo de trabalho” com quem ele havia desenvolvido relacionamentos trabalhassem para Salomão depois que ele se foi (1Cr 22.15).
Em segundo lugar, você precisa transmitir seu conhecimento e seus relacionamentos à pessoa a quem o sucede. Em muitas situações, isso acontecerá trazendo seu sucessor para trabalhar ao seu lado muito antes de sua partida. Davi começou a incluir Salomão nas estruturas de liderança e nos rituais do reino pouco antes de sua morte, embora pareça que ele poderia ter feito um trabalho muito melhor se tivesse começado antes (1Rs 1.28-40). Em outro cenário, você pode não ter nenhum papel na designação de seu sucessor e pode não ter nenhum momento junto com ele. Nesse caso, você precisará transmitir as informações por escrito e por meio daqueles que permanecerão na organização. O que você pode fazer para preparar a obra e seu sucessor para que prosperem, para a glória de Deus, depois que você se for?
Terceiro, você precisa transferir o poder de forma definitiva para a pessoa que assume o cargo. Independentemente de você escolher seu próprio sucessor ou de outros tomarem essa decisão sem sua opinião, você ainda tem a opção de reconhecer ou não publicamente a transição e transmitir definitivamente a autoridade que tinha anteriormente. Suas palavras e ações conferirão uma bênção ou uma maldição ao seu sucessor. Um exemplo recente é a manipulação em que Vladimir Putin se envolveu para manter o poder, depois que limitações de mandato o impediram de buscar um terceiro mandato consecutivo como presidente da Rússia. Ele providenciou que alguns dos poderes do presidente fossem transferidos para o primeiro-ministro e, em seguida, usou sua influência para fazer com que um ex-subordinado fosse eleito presidente, que nomeou Putin como primeiro-ministro imediatamente depois. [1] Depois de um mandato como primeiro-ministro, Putin facilmente assumiu o cargo de presidente novamente, a convite do titular, que se afastou. [2] Como resultado, a concentração de poder nas mãos de Putin continua inabalável por décadas, exatamente o que os limites de mandato pretendiam evitar, possivelmente em detrimento da Rússia e de seus vizinhos. Em contraste, Davi providenciou para que Salomão fosse publicamente ungido como rei, transferiu os símbolos da monarquia para ele e o apresentou publicamente como o novo rei, enquanto o próprio Davi ainda estava vivo (1Rs 1.32-35,39-40).
Salomão sucede a Davi como rei (1Reis 1—11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAo suceder a Davi como rei, Salomão se depara com a vastidão de seus deveres (1Rs 3.5-15). Ele está perfeitamente ciente de que é inadequado para a tarefa (1Cr 22.5). O trabalho que lhe é confiado é imenso. Além do projeto do templo, ele tem uma nação grande e complexa sob seus cuidados, “um povo tão grande que nem se pode contar” (1Rs 3.8). Mesmo quando ganha experiência no trabalho, ele percebe que a tarefa é tão complexa que ele nunca será capaz de descobrir o curso de ação certo em todas as circunstâncias. Ele precisa de ajuda divina: por isso, pede a Deus: “Dá, pois, ao teu servo um coração cheio de discernimento para governar o teu povo e capaz de distinguir entre o bem e o mal. Pois, quem pode governar este teu grande povo?” (1Rs 3.9). Deus responde à sua oração e lhe dá “a Salomão sabedoria, discernimento extraordinário e uma abrangência de conhecimento tão imensurável quanto a areia do mar” (1Rs 4.29).
Salomão constrói o templo do Senhor (1Reis 5—8)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA primeira grande tarefa de Salomão foi construir o templo do Senhor. Para alcançar esse feito arquitetônico, Salomão emprega profissionais de todos os cantos de seu reino. Três capítulos (1Rs 5—7) são dedicados à descrição do trabalho de construção do templo, dos quais destacamos apenas uma pequena seleção:
Salomão tinha setenta mil carregadores e oitenta mil cortadores de pedra nas colinas, e três mil e trezentos capatazes que supervisionavam o trabalho e comandavam os operários. Por ordem do rei retiravam da pedreira grandes blocos de pedra de ótima qualidade para servirem de alicerce de pedras lavradas para o templo. (1Rs 5.15-17)
Ele fundiu duas colunas de bronze, cada uma com oito metros e dez centímetros de altura e cinco metros e quarenta centímetros de circunferência, medidas pelo fio apropriado. Também fez dois capitéis de bronze fundido para colocar no alto das colunas; cada capitel tinha dois metros e vinte e cinco centímetros de altura. Conjuntos de correntes entrelaçadas ornamentavam os capitéis no alto das colunas, sete em cada capitel. (1Rs 7.15-17)
Além desses, Salomão mandou fazer também estes outros utensílios para o templo do Senhor: O altar de ouro; a mesa de ouro sobre a qual ficavam os pães da Presença; 9os candelabros de ouro puro, cinco à direita e cinco à esquerda, em frente do santuário interno; as flores, as lâmpadas e as tenazes de ouro; as bacias, os cortadores de pavio, as bacias para aspersão, as tigelas e os incensários; e as dobradiças de ouro para as portas da sala interna, isto é, o Lugar Santíssimo, e também para as portas do átrio principal. (1Rs 7.48-51)
De profissionais talentosos a trabalhadores forçados, o povo do reino contribui com seus conhecimentos e habilidades para ajudar a construir o templo. Ao fazer isso, Salomão envolve inúmeras pessoas para ajudar a construir e sustentar seu reino. Sendo ou não a intenção de Salomão, empregar tantas pessoas de todas as esferas da vida garante que a vasta maioria dos cidadãos mantenha um investimento pessoal no bem-estar político, religioso, social e econômico do reino.
Salomão centraliza o governo do reino (1Reis 9—11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO enorme esforço nacional necessário para construir o templo deixa Salomão como governante de um reino poderoso. Durante seu reinado, o poderio militar e econômico de Israel atingiu seu auge, e o reino abrange mais território do que em qualquer outro momento da história de Israel. Ele completa a centralização do governo, da organização econômica e da adoração da nação.
Para reunir uma força de trabalho grande o suficiente, o rei Salomão recruta trabalhadores de todo o Israel, num total de trinta mil homens (1Rs 5.13-14). Salomão parece ter pago os israelitas que foram recrutados (1Rs 9.22), de acordo com Lv 25.44-46, que proíbe fazer israelitas escravos. Mas os estrangeiros residentes são simplesmente escravizados (1Rs 9.20-21). Além disso, uma multidão de trabalhadores é trazida de nações vizinhas. Seja qual for a sua origem, reúne-se uma grande variedade de profissionais altamente qualificados, incluindo os melhores artesãos da época. Os livros de Samuel, Reis e Crônicas —interessados principalmente no trabalho da realeza — dizem pouco sobre esses trabalhadores, exceto no que diz respeito ao templo. Mas eles são visíveis em segundo plano, tornando possível toda a sociedade.
Salomão vê que, à medida que o governo central se expande, precisará de alimento para uma força de trabalho cada vez maior. Os servos precisam de comida (1Rs 5.9-11), ao lado dos trabalhadores em todos os projetos de construção de Salomão. A crescente burocracia também precisa ser alimentada. Então, o rei organiza a nação em doze distritos e nomeia um governador como superintendente de cada distrito. Cada governador é encarregado de fornecer todas as provisões alimentares necessárias durante um mês de cada ano (1Rs 4.7). Como resultado, as filhas da nação são recrutadas para o trabalho como “cozinheiras e padeiras” (1Sm 8.13). Israel se torna como outros reinos, com trabalho forçado, tributação pesada e uma elite central que exerce poder sobre o resto do país.
Como Samuel havia predito, os reis trazem consigo um vasto exército (1Sm 8.11-12). A militarização floresceu plenamente durante o reinado de Salomão, à medida que as forças armadas se tornaram um componente essencial da estabilidade do reino. Militares de todas as categorias, de soldados de infantaria a generais, precisam de armas, incluindo dardos, lanças, arcos e flechas, espadas, punhais, facas e fundas. Eles precisam de equipamentos de proteção, incluindo escudos, capacetes e armaduras. Para administrar um exército em tão grande escala, uma organização militar nacionalizada deve ser mantida. Em contraste com seu pai, Davi, Salomão é chamado de “um homem de paz” (1Cr 22.9), mas a paz é assegurada pela presença de uma força militar bem organizada e bem provisionada.
Vemos na história de Salomão como a sociedade depende do trabalho de uma infinidade de pessoas, juntamente com estruturas e sistemas para organizar a produção e a distribuição em larga escala. A capacidade humana de organizar o trabalho é uma evidência de nossa criação à imagem de um Deus que traz ordem ao caos em escala mundial (Gênesis 1). É muito apropriado que a Bíblia retrate essa capacidade por meio da construção do local de encontro de Deus com a humanidade. É preciso uma habilidade dada por Deus para organizar o trabalho em escala grande o suficiente para construir a casa de Deus. Poucos de nós gostariam de voltar aos métodos de organização de Salomão — recrutamento, trabalho forçado e militarização — para podermos ser gratos por Deus nos levar a métodos mais justos e eficazes hoje. Talvez o que tiremos desse episódio seja que Deus está intensamente interessado na arte de coordenar a criatividade e o trabalho humanos para cumprir os seus propósitos no mundo.
Avaliando a era de ouro de Salomão (1Reis)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA profecia de Samuel sobre os perigos de um rei se cumpriu no tempo de Salomão.
O rei que reinará sobre vocês reivindicará como seu direito o seguinte: ele tomará os filhos de vocês... Tomará as filhas de vocês... Tomará de vocês o melhor das plantações, das vinhas e dos olivais... Tomará um décimo dos cereais e da colheita das uvas... Também tomará de vocês para seu uso particular os servos e as servas, e o melhor do gado e dos jumentos. E tomará de vocês um décimo dos rebanhos, e vocês mesmos se tornarão escravos dele. Naquele dia, vocês clamarão por causa do rei que vocês mesmos escolheram, e o Senhor não os ouvirá. (1Sm 8.11-18)
À primeira vista, as campanhas de administração e construção de Salomão parecem ter sido muito bem-sucedidas. O povo fica feliz em fazer os sacrifícios necessários para construir o templo (1Rs 8.65-66), um lugar onde todos podem ir para receber a justiça de Deus (1Rs 8.12-21), o perdão (1Rs 8.33-36), cura (1Rs 8.37-40) e misericórdia (1Rs 8.46-53).
Mas, depois que o templo é concluído, Salomão constrói um palácio da mesma proporção e magnificência do templo (1Rs 9.1,10). À medida que se acostuma ao poder e à riqueza, torna-se egoísta, arrogante e infiel. Ele se apropria de grande parte da capacidade produtiva da nação para seu benefício pessoal. Seu já impressionante trono de marfim é revestido de ouro (2Cr 9.17). Ele vivia luxuosamente (1Rs 10.5). Ele renega acordos com aliados (1Rs 9.12) e mantém um harém de “setecentas princesas e trezentas concubinas” (1Rs 11.3). Esta última é sua ruína final, pois “ele amou muitas mulheres estrangeiras” (1Rs 11.1), com o resultado de que “à medida que Salomão foi envelhecendo, suas mulheres o induziram a voltar-se para outros deuses, e o seu coração já não era totalmente dedicado ao Senhor, o seu Deus” (1Rs 11.4). Ele constrói santuários para Astarote, Camos e Moloque (1Rs 11.5-7). Como a aliança previa que a fidelidade do rei ao Senhor fosse a chave para a prosperidade da nação, Israel começaria a cair rapidamente de seu auge. Deus, ao que parece, se importa profundamente se fazemos nosso trabalho para seus propósitos ou contra eles. Proezas incríveis são possíveis quando trabalhamos de acordo com os planos de Deus, mas nosso trabalho se desintegra rapidamente quando não o fazemos.
Das monarquias fracassadas ao exílio (1Reis 11—2Reis 25; 2Crônicas 10—36)
Voltar ao índice Voltar ao índiceSalomão é apenas o terceiro rei de Israel, mas o reino já atingiu seu ponto alto. Nos quatrocentos anos seguintes, uma sucessão de reis maus leva a nação ao declínio, à desintegração e à derrota.
A poderosa nação de Salomão dividida em dois (1Reis 11.26—12.19)
Após a morte de Salomão, logo fica claro que a agitação estava fermentando sob o verniz de uma administração equilibrada e eficaz. Após a morte do grande rei, Jeroboão (anteriormente o chefe dos trabalhadores forçados) e “toda a assembleia de Israel” se aproxima do filho e sucessor do rei, Roboão (c. 931-914 a.C.) para pedir: “Teu pai colocou sobre nós um jugo pesado, mas agora diminui o trabalho árduo e este jugo pesado, e nós te serviremos” (1Rs 12.3-16; 2Cr 10). Eles estão prontos para prometer lealdade ao novo rei em troca da redução do trabalho forçado e dos altos impostos. [1] Mas, por quarenta anos, Roboão conheceu apenas uma vida luxuosa em palácios, recebendo funcionários e suprimentos do povo israelita. Seu senso de direito é forte demais para permitir concessões. Em vez de aliviar o fardo indevido colocado sobre o povo por seu pai, Roboão escolhe tornar o jugo ainda maior.
Cumprindo ainda mais a previsão de Samuel (1Sm 8.18), ocorre uma rebelião e a monarquia fica dividida para sempre. Por mais que o povo de Israel estivesse disposto a realizar sua parte justa do trabalho para apoiar o Estado, o surgimento de expectativas irreais e irracionais resulta em revolta e divisão. As dez tribos do norte se separam, ungindo Jeroboão (c. 931-910 a.C.) como seu rei. Embora ele tenha sido o líder da delegação que buscava isenção de impostos de Roboão, sua dinastia não se mostrou melhor para o povo.
A marcha do reino do norte em direção ao exílio (1Reis 12.25—2Reis 17.18)
Por dois séculos (910-722 aC), o reino do norte de Israel é governado por reis que fazem grande mal aos olhos do Senhor. Esses séculos foram marcados por constantes guerras, traição e assassinatos, que culminaram em uma derrota catastrófica para a nação da Assíria. Para destruir todo o senso de identidade nacional, os conquistadores assírios arrebatam a população, dispersando-a em diferentes partes de seu império e trazendo estrangeiros para povoar a terra conquistada (2Rs 17.5-24). Conforme discutido em “A desobediência de Davi a Deus causa uma praga nacional (1Crônicas 2.1-17)”, as falhas dos líderes geralmente têm um efeito devastador sobre seu povo.
Obadias salva cem pessoas trabalhando dentro de um sistema corrupto (1Reis 18)
Voltar ao índice Voltar ao índicePelo menos dois episódios durante esse período merecem nossa atenção. A primeira, a salvação de cem profetas por Obadias, pode ser útil para aqueles que enfrentam a decisão de deixar um emprego em uma organização que se tornou antiética, uma decisão que muitos enfrentam no mundo do trabalho.
Obadias é o chefe de gabinete do rei Acabe. (Acabe até hoje carrega a fama de ter sido o mais iníquo dos reis de Israel.) A rainha Jezabel, esposa de Acabe, ordena que os profetas do Senhor sejam mortos. Como alto funcionário da corte de Acabe, Obadias tem conhecimento prévio da operação, bem como dos meios para contorná-la. Ele esconde cem profetas em duas cavernas e fornece-lhes pão e água até que a crise diminua. Eles são salvos apenas porque ali havia um “homem que temia muito o Senhor” (1Rs 18.3), o qual estava em uma posição de autoridade para protegê-los. Uma situação semelhante ocorre no livro de Ester, contada com muito mais detalhes. Veja “Trabalhando dentro de um sistema caído (Ester)” em www.teologiadotrabalho.org.
É desmoralizante trabalhar em uma organização corrupta ou má. Seria muito mais fácil sair e encontrar um lugar “mais sagrado” para trabalhar. Muitas vezes, desistir é a única maneira de evitar fazer o mal. Mas nenhum ambiente de trabalho no mundo é puramente bom, e enfrentaremos dilemas éticos onde quer que trabalhemos. Além disso, quanto mais corrupto é o ambiente de trabalho, mais ele precisa de pessoas piedosas. Se há alguma maneira de permanecer no lugar sem aumentar o mal, pode ser que Deus queira que fiquemos. Durante a Segunda Guerra Mundial, um grupo de oficiais que se opunham a Hitler permaneceu no Abwher (inteligência militar) porque isso lhes dava uma plataforma para tentar remover Hitler. Seus planos falharam e a maioria foi executada, incluindo o teólogo Dietrich Bonhoeffer. Ao explicar por que permaneceu no exército de Hitler, ele disse: “A pergunta final para um homem responsável não é como ele deve se livrar heroicamente do caso, mas como a próxima geração deve viver”. [1] Nossa responsabilidade de fazer o que pudermos para ajudar os outros parece ser mais importante para Deus do que nosso desejo de pensar em nós mesmos como moralmente puros.
Acabe e Jezabel assassinam Nabote para obter sua propriedade (1Reis 21)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO rei Acabe abusa ainda mais de seu poder quando começa a cobiçar a vinha de seu próximo, Nabote. Acabe oferece um preço justo pela vinha, mas Nabote considera a terra como uma herança ancestral e diz que não tem interesse em vendê-la por qualquer preço. Acabe aceita desanimado essa limitação apropriada de seu poder, mas sua esposa Jezabel o impele à tirania. “É assim que você age como rei de Israel?”, ela zomba (1Rs 21.7). Se o rei não tem apetite por abuso de poder, a rainha tem. Ela paga dois vadios para fazerem uma falsa acusação de blasfêmia e traição contra Nabote, e ele é rapidamente condenado à morte e apedrejado pelos anciãos da cidade. Ficamos imaginando por que os anciãos agiram tão rapidamente, sem sequer conduzir um julgamento adequado. Eles eram cúmplices do rei? Estavam sob seu controle, com medo de enfrentá-lo? De qualquer forma, com Nabote fora do caminho, Acabe toma posse da vinha para si.
O abuso de poder, incluindo a apropriação de terras tão flagrante quanto a de Acabe, continua até hoje, como é possível notar em quase todos os jornais diários. E, como na época de Acabe, o abuso de poder exige a cumplicidade de outros, que preferem tolerar a injustiça e até o assassinato a arriscar sua própria segurança pelo bem do próximo. Somente Elias, o homem de Deus, ousa se opor a Acabe (1Rs 21.17-24). Embora seus protestos não possam fazer nada para ajudar Nabote, a oposição de Elias reprime o abuso de poder de Acabe, e nenhum outro abuso é registrado em Reis antes da morte de Acabe. Mais frequentemente do que poderíamos esperar, a oposição com princípios por parte de um pequeno grupo ou mesmo de um único indivíduo pode conter o abuso de poder. Caso contrário, por que os líderes se dariam ao trabalho de esconder seus erros? Qual você estima ser a probabilidade de tomar conhecimento de pelo menos um abuso de poder em sua vida profissional? Como você está se preparando para responder, se o fizer?
A atenção do profeta Eliseu ao trabalho comum (2Reis 2—6)
Voltar ao índice Voltar ao índiceÀ medida que os reis do norte mergulham cada vez mais na apostasia e na tirania, Deus levanta profetas para se opor a eles com mais força do que nunca. Os profetas eram figuras de imenso poder dado por Deus, que surgiam do nada para anunciar a verdade de Deus nos corredores do poder humano. Elias e Eliseu são, de longe, os profetas mais proeminentes nos livros de Reis e Crônicas e, dos dois, Eliseu é especialmente notável pela atenção que presta ao trabalho dos israelitas comuns. Eliseu é chamado a enfrentar os reis rebeldes de Israel durante uma longa jornada (2Rs 2.13—13.20). Suas ações mostram que ele considera a vida econômica do povo tão importante quanto as lutas dinásticas do reino, e ele tenta proteger o povo dos desastres causados pelos reis.
Eliseu restaura o sistema de irrigação de uma cidade (2Reis 2.19-22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO primeiro grande ato de Eliseu é limpar o poço poluído da cidade de Jericó. A principal preocupação na passagem é a produtividade agrícola. Sem um poço saudável, “a terra é improdutiva” (2Rs 2.19). Ao restaurar o acesso à água potável, Eliseu possibilita que as pessoas da cidade retomem a missão dada por Deus à humanidade de ser frutífera, se multiplicar e produzir alimentos (Gn 1.28-30).
A restauração da solvência financeira de uma família por Eliseu (2Reis 4.1-7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois que um dos profetas do círculo de Eliseu morreu, sua família fica endividada. O destino de uma família carente no antigo Israel era tipicamente vender alguns ou todos os seus membros como escravos, onde pelo menos seriam alimentados (veja “Escravidão ou contrato de servidão (Êxodo 21.1-11)” em www.teologiadotrabalho.org). A viúva está prestes a vender seus dois filhos como escravos e implora a ajuda de Eliseu (2Rs 4.1). Eliseu apresenta um plano para que a família se torne economicamente produtiva e se sustente. Ele pergunta à viúva o que ela tem para trabalhar. “Nada”, diz ela, exceto “uma vasilha de azeite” (2Rs 4.2). Aparentemente, esse capital é suficiente para que Eliseu possa começar. Ele diz a ela que fale com todas as suas vizinhas para pedir vasilhas vazias emprestadas e as encher com o óleo da sua vasilha. Ela é capaz de encher todas as vasilhas com azeite antes que sua própria vasilha acabe, e o lucro da venda do azeite é suficiente para pagar as dívidas da família (2Rs 4.9). Em essência, Eliseu cria uma comunidade empreendedora, na qual a mulher é capaz de iniciar um pequeno negócio. Isso é exatamente o que alguns dos métodos mais eficazes de combate à pobreza fazem hoje, seja por meio de microfinanciamento, sociedades de crédito, cooperativas agrícolas ou programas de fornecedores para pequenas empresas, por parte de grandes empresas e governos.
As ações de Eliseu em nome dessa família refletem o amor e a preocupação de Deus pelos necessitados. Como nosso trabalho pode criar oportunidades para que as pessoas em situação de pobreza abram caminho em direção à prosperidade? De que maneiras individual e coletivamente minamos a capacidade produtiva de pessoas e economias pobres, e o que podemos fazer, com a ajuda de Deus, para mudar isso?
A restauração da saúde de um comandante militar por Eliseu (2Reis 5.1-14)
Voltar ao índice Voltar ao índiceQuando Eliseu cura a lepra de Naamã, comandante do exército sírio e inimigo de Israel, isso tem efeitos importantes na esfera do trabalho. “Não é pouca coisa que uma pessoa doente fique boa, especialmente um leproso”, como observa Jacques Ellul em seu perspicaz ensaio sobre essa passagem, [1] porque a cura restaura a capacidade de trabalhar. Nesse caso, a cura restaura Naamã ao seu trabalho de governo, aconselhando seu rei sobre como lidar com o rei de Israel. Curiosamente, essa cura de um estrangeiro também leva à restauração da cultura ética na própria organização de Eliseu. Naamã se oferece para recompensar Eliseu generosamente pela cura, mas Eliseu não aceita nada, pois ele considerava simplesmente estar fazendo a vontade do Senhor. No entanto, um membro da comitiva de Eliseu, chamado Geazi, vê uma oportunidade para ter um pequeno ganho extra. Geazi corre atrás de Naamã e diz que Eliseu mudou de ideia — enfim, ele aceitará um pagamento muito significativo. Depois de receber o pagamento, Geazi esconde seu ganho ilícito e mente a Eliseu para encobrir suas ações. Eliseu responde anunciando que Geazi seria atingido pela mesma lepra que havia deixado Naamã. Aparentemente, Eliseu reconhece que tolerar a corrupção em sua organização minará rapidamente todo o bem que uma vida inteira de serviço a Deus já fez.
As próprias ações de Naamã demonstram outro ponto dessa história. Naamã tem um problema — lepra. Ele precisa ser curado. Mas sua noção pré-concebida de como deveria ser a solução — aparentemente esperava algum tipo de encontro dramático com um profeta — o leva a recusar a verdadeira solução (banhar-se no rio Jordão) quando lhe é oferecida. Quando ele ouviu esse remédio simples entregue pelo mensageiro de Eliseu — em vez do próprio Eliseu — Naamã “foi embora dali furioso” (2Rs 5.12). Nem a solução nem a fonte parecem grandiosas o suficiente para que Naamã desse atenção.
No mundo de hoje, esse duplo problema se repete com frequência. Primeiro, um líder sênior não vê a solução proposta por um funcionário de nível inferior porque não está disposto a considerar a perspectiva de alguém que considera não qualificado. Jim Collins, em seu livro Bom a ótimo, identifica que o primeiro sinal do que ele chama de líder do “nível cinco” é a humildade, a disposição de ouvir muitas fontes. [2] Em segundo lugar, a solução não é aceita porque não corresponde à abordagem imaginada pelo líder. Graças a Deus, muitos líderes de hoje, como Naamã, têm subordinados dispostos a correr o risco de falar com eles. Não são apenas necessários chefes humildes nas organizações, mas também subordinados corajosos. Curiosamente, a pessoa que põe todo o episódio em movimento é a pessoa de status mais baixo de todas, uma garota estrangeira que Naamã havia capturado em um ataque e dado à sua esposa como escrava (2Rs 5.13). Este é um lembrete maravilhoso de como a arrogância e as expectativas erradas podem bloquear o discernimento, mas a sabedoria de Deus continua tentando avançar de qualquer maneira.
Eliseu restaura o machado de um lenhador (2Reis 6.1-7)
Voltar ao índice Voltar ao índiceCortando lenha ao longo da margem do rio Jordão, um dos profetas companheiros de Eliseu perde a cabeça de um machado de ferro no rio. Ele havia emprestado o machado de um lenhador. O preço de um item de ferro tão substancial na idade do bronze significaria ruína financeira para o proprietário, e o profeta que o tomou emprestado está perturbado. Eliseu encara a perda econômica como uma questão de preocupação imediata e pessoal e faz com que o ferro flutue na superfície da água, onde pode ser recuperado e devolvido ao seu dono. Mais uma vez, Eliseu intervém para permitir que alguém trabalhe para viver.
O dom de um profeta é discernir os objetivos de Deus na vida cotidiana, bem como trabalhar e agir de acordo. Deus chama os profetas para restaurar a boa criação de Deus, em meio a um mundo caído, de maneiras que apontem para o poder e a glória de Deus. O aspecto teológico do trabalho de um profeta — chamar as pessoas para adorar o Deus verdadeiro — é inevitavelmente acompanhado por um aspecto prático, que restaura o bom funcionamento da ordem criada. O Novo Testamento nos diz que alguns cristãos também são chamados a ser profetas (1Co 12.28; Ef 4.11). Eliseu não é apenas uma figura histórica que demonstra a preocupação de Deus com a obra de seu povo, mas um modelo para os cristãos de hoje.
A marcha do reino do sul em direção ao exílio (1Reis 11.41—2Reis 25.26; 2Crônicas 16—36)
Voltar ao índice Voltar ao índiceSeguindo os passos do reino do norte, os governantes do reino do sul logo começaram a cair em idolatria e maldade. Sob o governo de Roboão, eles “construíram para si altares idólatras, colunas sagradas e postes sagrados sobre todos os montes e debaixo de todas as árvores frondosas. Havia no país até prostitutos cultuais; o povo se envolvia em todas as práticas detestáveis das nações” (1Rs 14.23-24). Os sucessores de Roboão oscilaram entre fidelidade e pecado diante de Deus. Por um tempo, Judá teve reis bons o suficiente para evitar o desastre, mas, nos anos finais, o reino caiu para o mesmo estado em que o reino do norte estava. A nação foi conquistada e os reis e as elites foram capturados e deportados pelos babilônios (2Rs 24—25). A falta de fé dos reis que o próprio povo havia exigido centenas de anos antes, contrariando o conselho de Deus, culminou em um colapso financeiro, na destruição da força de trabalho, na fome e no assassinato em massa ou na deportação de grande parte da população. O desastre previsto dura setenta anos, até que o rei Ciro, da Pérsia, autoriza o retorno de alguns judeus para reconstruir o templo e os muros de Jerusalém (2Cr 36.22-23).
Responsabilidade financeira no templo (2Reis 12.1-12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUm exemplo da degeneração do reino serve, ironicamente, para trazer à luz um modelo de boas práticas financeiras. Como praticamente todos os líderes do reino, os sacerdotes se tornaram corruptos. Em vez de usar as doações dos fiéis para a manutenção do templo, eles desviavam o dinheiro e o dividiam entre si. Sob a direção de Joás, um dos poucos reis que faziam “o que o Senhor aprova” (2Rs 12.2), os sacerdotes elaboraram um sistema contábil eficaz. Uma caixa com um pequeno orifício na tampa foi instalada no templo para receber as doações. Quando ela ficava cheia, o sumo sacerdote e o secretário do rei abriam a caixa juntos, contavam o dinheiro e contratavam carpinteiros, construtores e pedreiros para fazer os reparos. Isso garantia que o dinheiro fosse usado para seus propósitos adequados.
O mesmo sistema ainda está em uso hoje, por exemplo, quando é contado o dinheiro depositado em caixas eletrônicos. O princípio de que mesmo indivíduos confiáveis devem estar sujeitos a verificação e prestação de contas é a base da boa gestão. Sempre que uma pessoa no poder — especialmente no poder de lidar com as finanças — tenta evitar a verificação, a organização está em perigo. Como Reis inclui esse episódio, sabemos que Deus valoriza o trabalho de caixas de banco, contadores, auditores, reguladores bancários, motoristas de carros blindados, trabalhadores de segurança digital e outros que protegem a integridade das finanças. Também exorta todos os tipos de líderes a exercerem a liderança sendo um exemplo pessoal de responsabilidade pública, convidando outras pessoas a verificar seu trabalho.
Arrogância e o fim dos reinos (2Crônicas 26)
Voltar ao índice Voltar ao índiceComo é que rei após rei puderam cair tão facilmente no mal? A história de Uzias pode nos dar algumas dicas. Ele assume o trono aos dezesseis anos e, a princípio, “fez o que o Senhor aprova” (2Cr 26.4). Sua pouca idade prova ser uma vantagem, pois ele reconhece sua necessidade da orientação de Deus. Ele “buscou a Deus durante a vida de Zacarias, que o instruiu no temor de Deus. Enquanto buscou o Senhor, Deus o fez prosperar” (2Cr 26.5).
Curiosamente, muito do sucesso que o Senhor concede a Uzias está relacionado ao trabalho comum. “Construiu torres no deserto e cavou muitas cisternas, pois ele possuía muitos rebanhos na Sefelá e na planície. Ele mantinha trabalhadores em seus campos e em suas vinhas, nas colinas e nas terras férteis, pois gostava da agricultura” (2Cr 26.10). “Em Jerusalém construiu máquinas projetadas por peritos” (2Cr 26.15a).
“Ele foi extraordinariamente ajudado”, diz-nos a Escritura, “e assim tornou-se muito poderoso” (2Cr 26.15b). Então, sua força se torna sua ruína, porque ele passa a servir a si mesmo em vez de servir ao Senhor. “Depois que Uzias se tornou poderoso, o seu orgulho provocou a sua queda. Ele foi infiel ao Senhor, o seu Deus” (2Cr 26.16). Ele tenta usurpar a autoridade religiosa dos sacerdotes, levando a uma revolta no palácio que lhe custa o trono e o transforma num excluído pelo resto de sua vida.
A história de Uzias é preocupante para as pessoas que ocupam posições de liderança hoje. O caráter que leva ao sucesso — especialmente nossa confiança em Deus — é facilmente corroído pelos poderes e privilégios que o sucesso traz. Quantos líderes empresariais, militares e políticos passaram a acreditar que são invencíveis e, assim, perdem a humildade, a disciplina e a atitude de serviço necessárias para permanecerem bem-sucedidos? Quantos de nós, em qualquer nível de sucesso, prestamos mais atenção a nós mesmos e menos a Deus, à medida que nosso poder aumenta, mesmo que modestamente? Uzias até teve o benefício de subordinados que se opunham a ele quando ele errava, embora os ignorasse (2Cr 26.18). O que ou quem você precisa para impedir que se afaste do orgulho e se afaste de Deus, caso seu sucesso aumente?
O desprezo de Ezequias pela próxima geração (2Reis 20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO rei Ezequias, de Judá, apresenta outro exemplo da arrogância dos reis. A passagem começa com Ezequias com uma doença mortal. Ele implora a Deus que se recupere, e Deus, pela palavra do profeta Isaías, concede a ele mais quinze anos de vida. Enquanto isso, o vizinho rei da Babilônia ouve falar da doença de Ezequias e envia mensageiros para espionar se a situação em Israel é propícia para a conquista. Quando eles chegam, Ezequias está totalmente recuperado. Talvez a recuperação milagrosa tenha feito que ele se sentisse invencível, porque, em vez de provar sua saúde e despachar rapidamente os espiões, ele decide mostrar a eles as riquezas de seu tesouro. Isso torna Israel um alvo mais tentador do que nunca.
Deus responde a essa ação tola enviando Isaías para profetizar um pouco mais.
Então Isaías disse a Ezequias: “Ouça a palavra do Senhor: ‘Um dia, tudo o que se encontra em seu palácio, bem como tudo o que os seus antepassados acumularam até hoje, será levado para a Babilônia. Nada restará’, diz o Senhor. ‘Alguns dos seus próprios descendentes serão levados, e eles se tornarão eunucos no palácio do rei da Babilônia’”. (2Rs 20.16-18)
Essa passagem pode nos lembrar sobre nosso próprio trabalho. Em tempos de grande sucesso, é fácil ficar orgulhoso e imprudente. Isso pode levar a uma grande destruição, se esquecermos que dependemos da graça de Deus para nosso sucesso.
Ezequias combina seu primeiro erro com um segundo. Isaías acaba de profetizar que, depois que Ezequias se for, seus filhos serão capturados e mutilados, e o reino será destruído. Em vez de se arrepender e implorar a Deus novamente para salvar seu povo, ele não faz nada.
Respondeu Ezequias ao profeta: “Boa é a palavra do Senhor que anunciaste”, pois ele entendeu que durante sua vida haveria paz e segurança. (2Rs 20.19)
Parece que o rei está pensando apenas em si mesmo. Como essa destruição não virá durante sua vida, Ezequias não se importa com isso.
Este episódio nos desafia a pensar em como nossas ações afetam a próxima geração, em vez de pensar apenas em nossa própria vida. Marion Wade, fundador da ServiceMaster, concentrou-se em construir uma empresa duradoura, em vez de garantir seu próprio sucesso. Ele disse,
Eu não estava pedindo sucesso pessoal como indivíduo ou sucesso meramente material como corporação. Não comparo esse tipo de sucesso com o cristianismo. Tudo o que Deus quer é o que eu quero. Mas tentei construir um negócio que durasse mais do que eu no mercado, que testemunhasse sobre Jesus Cristo na maneira como o negócio era conduzido. [1]
Lewis D. Solomon observou que Wade conseguiu estabelecer uma cultura de liderança dirigida por Deus que durou muito depois de seu mandato. Durante esse longo período, a empresa foi altamente bem-sucedida. Com o tempo, no entanto, o controle passou para um CEO que adotou uma abordagem de liderança menos abertamente centrada em Deus, e o desempenho da empresa diminuiu.
A ServiceMaster, uma bem-sucedida corporação de capital aberto, listada entre as 500 maiores pela revista Fortune, cresceu de raízes humildes, liderada primeiro por um líder pregador-administrador e, depois, por uma sucessão de CEOs, que combinaram estilos de liderança pregador-administrador-servo. Mais recentemente, essa empresa em transição, agora liderada por um CEO não evangélico, segue uma abordagem inclusiva e não sectária. Coincidentemente com essa transição, as dificuldades legais da empresa aumentaram e seus resultados financeiros estagnaram. [2]
Autossuficiência no lugar da orientação de Deus (2Crônicas 16—20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMesmo com o declínio da força do reino, os reis continuam convencidos de que estão no controle de sua situação. Confiantes em suas próprias habilidades e confiando em conselheiros humanos, muitas vezes deixam de pedir a orientação de Deus, geralmente com resultados desastrosos.
Em um caso, o rei Acabe, de Israel, está prestes a entrar em batalha. O rei Josafá de Judá o lembra: “Peço-te que busques primeiro o conselho do Senhor” (2Cr 18.4). Acabe consulta os profetas da corte, mas Josafá pergunta se há um profeta genuíno de Deus disponível. Acabe responde: “Ainda há um homem por meio de quem podemos consultar o Senhor, porém eu o odeio, porque nunca profetiza coisas boas a meu respeito, mas sempre coisas ruins. É Micaías, filho de Inlá” (2Cr 18.7). Acabe não quer conselhos do Senhor porque estes não se alinham com suas intenções. Por fim, ele consulta Micaías, que de fato prediz o desastre na batalha; por causa dessa palavra, Acabe o prende e o deixo passar fome (2Cr 18.18-27). Acabe prossegue para a batalha e é morto (2Cr 19.33-34).
Da mesma forma, o rei Asa decide formar uma aliança com o rei da Síria, em vez de confiar na proteção de Deus. Depois disso, ele é desafiado por um vidente que lhe diz: “Por você ter pedido ajuda ao rei da Síria e não ao Senhor, ao seu Deus, o exército do rei da Síria escapou de suas mãos” (2Cr 16.7). Da mesma forma, quando Asa é atingido por uma grave doença nos pés, ele não busca a ajuda do Senhor, mas apenas de médicos (2Cr 16.12), levando à sua morte prematura.
Depois disso, o rei Josafá se lembra de depender da orientação de Deus. Ele instrui seus juízes: “Considerem atentamente aquilo que fazem, pois vocês não estão julgando para o homem, mas para o Senhor, que estará com vocês sempre que derem um veredicto. Agora, que o temor do Senhor esteja sobre vocês. Julguem com cuidado, pois o Senhor, o nosso Deus, não tolera nem injustiça nem parcialidade nem suborno”. (2Cr 19.6-7). Mesmo assim, quando o próprio Josafá enfrenta um vasto exército inimigo em batalha, o profeta Jaaziel precisa lembrá-lo: “Não tenham medo nem fiquem desanimados por causa desse exército enorme. Pois a batalha não é de vocês, mas de Deus” (2Cr 20.15).
Os tipos de trabalho nessas passagens — estratégia militar, medicina e sistema legal — exigem habilidade humana. No entanto, habilidade não é suficiente: a percepção de Deus também é necessária. A maioria dos tipos de trabalho moderno também exige habilidade, e podemos sentir que nossa percepção e treinamento são maiores do que nos tempos antigos. Podemos até pensar que não precisamos — ou não queremos — a orientação de Deus, então confiamos em nossas próprias forças. Deus nos presenteou com sabedoria e discernimento, mas ele quer que busquemos sua face, mesmo que pensemos ter todas as habilidades de que precisamos. Na verdade, as habilidades e o poder modernos tornam maior — não menor — nossa necessidade de confiar em Deus, porque nossa capacidade de causar danos na ausência da orientação de Deus é maior agora do que nunca. Deus nos dá talentos e habilidades por um motivo, e precisamos usá-los em consulta com ele.
A falha de Roboão em distinguir bons conselhos dos maus (2Crônicas 10.1-19)
Voltar ao índice Voltar ao índiceUm exemplo do fracasso da liderança de Israel ocorre quando o rei Roboão precisa de conselhos sobre um assunto difícil. Jeroboão e todo o Israel pedem que ele alivie o fardo do trabalho forçado que seu pai, o rei Salomão, havia imposto sobre eles (2Cr 8.8). Em troca, eles prometem a ele que o serviriam (2Cr 10.5). Roboão começa sabiamente ouvindo os anciãos de seu reino, que o aconselham a reduzir o fardo, tal como o povo pede. “Se hoje fores bom para esse povo, se o agradares e lhe deres resposta favorável, eles sempre serão teus servos” (2Cr 10.7). Roboão, aparentemente, não gostou dessa resposta. Então, ele pede a opinião de seus amigos mais jovens. Eles o aconselham a dominar o povo e se gabar: “Meu dedo mínimo é mais grosso do que a cintura do meu pai. Pois bem, meu pai lhes impôs um jugo pesado; eu o tornarei ainda mais pesado. Meu pai os castigou com simples chicotes; eu os castigarei com chicotes pontiagudos” (2Cr 10.10-11). Roboão decide seguir o conselho de seus amigos mais jovens, aparentemente porque isso acaricia seu ego. Ele responde a Jeroboão e ao povo, como sugerem seus jovens amigos, e depois nomeia um novo capataz sobre o trabalho forçado (2Cr 10.18). O povo responde matando o enviado do rei e rebelando-se contra Roboão, que nunca consegue reprimir a rebelião (2Cr 10.19).
Decisões difíceis também fazem parte da liderança hoje, estejamos liderando um reino inteiro ou simplesmente a nós mesmos. Onde você procura conselhos e como faz bom uso dos conselhos? Roboão começou pedindo conselhos a pessoas que ele reconhece como espiritualmente maduras. A idade em si não torna alguém sábio, nem as pessoas devotas são necessariamente mais sábias do que os não crentes. Mas os anciãos que ele consulta demonstraram maturidade espiritual e sabedoria ao longo de muitos anos servindo ao rei Salomão. Um sinal disso é sua capacidade de resposta a novos fatos e situações. Embora tenham sido nomeados por Salomão, eles ouvem Jeroboão com a mente aberta, resultando em seu conselho para derrubar as políticas de Salomão. Em contraste, os amigos mais jovens de Roboão parecem ter apenas uma maneira de chamar sua atenção — eles são seus amigos. É fácil pedir conselhos a pessoas que já pensam como você. Mas você tem acesso a pessoas que são espiritualmente maduras, que podem ouvir com a mente aberta, que não têm medo de lhe dizer algo que você preferiria não ouvir?
Quando nos deparamos com uma decisão difícil, buscar conselho, como Roboão fez, é um grande primeiro passo. O próximo passo é discernir qual conselho aplica a Bíblia corretamente à sua situação e qual conselho apenas confirma suas próprias ideias. Encontrar a diferença requer que você analise cuidadosamente os conselhos, comparando-os com a palavra de Deus e perguntando se eles promoveriam um bem maior. Na situação de Roboão, o bom conselho teria exigido que ele exercesse paciência, bondade, generosidade, mansidão e domínio próprio. Esses são cinco dos nove aspectos do “fruto do Espírito” listados em Gálatas 5.22. Essas não são apenas virtudes que alguém pode obter pela prática e trabalho árduo, mas são dons do Espírito de Deus (Gl 5.25). Se Roboão estivesse disposto a receber o Espírito de Deus, esse bom conselho teria levado à paz para toda a nação (2Cr 10.7). Em contraste, o mau conselho tentou Roboão para que cedesse à própria inveja, à arrogância, à presunção e à maldade, gratificando seu próprio ego. Essas são quatro das coisas que não devem ser praticadas, como se vê em Romanos 1.29-31. Não é coincidência que bons conselhos muitas vezes exijam que você cresça espiritualmente, enquanto maus conselhos levam você a cair em tentação. O melhor conselheiro geralmente é alguém que pode ajudá-lo a entender e aplicar a palavra de Deus e incentivá-lo a tomar sua própria decisão de crescer no Espírito de Deus.
Conclusões de Samuel, Reis e Crônicas
Voltar ao índice Voltar ao índiceAs questões de governança e liderança afetam toda a vida. Quando nações e organizações são bem governadas, as pessoas têm a oportunidade de prosperar. Quando os líderes falham e deixam de agir pelo bem de suas organizações e comunidades, o desastre ocorre. O sucesso ou fracasso dos reis de Israel e Judá, por sua vez, depende de sua adesão à aliança e às leis de Deus. Com as exceções parciais de Davi, Salomão e alguns outros, os reis optam por adorar falsos deuses, o que os leva a seguir princípios antiéticos e a enriquecer às custas de seu povo. Sua falta de fé leva à destruição final de Israel e de Judá.
Mas a culpa não recai apenas sobre os reis. O povo aceita assumir os riscos da tirania quando exige que o profeta Samuel nomeie um rei para eles. Não confiando em Deus para protegê-los, eles estão dispostos a submeter-se ao governo de um autocrata. “Cada nação tem o governo que merece”, observou Joseph de Maistre. [1] A influência corruptora do poder é um perigo sempre presente, mas nações e organizações devem ser governadas. Os antigos israelitas escolheram um governo forte às custas da corrupção e da tirania, uma tentação muito viva também hoje. Outros povos se recusaram a fazer qualquer um dos sacrifícios — pagar impostos, obedecer às leis, abrir mão de milícias tribais e pessoais — necessários para estabelecer um governo funcional e pagaram o preço com anarquia, caos e autoestrangulamento econômico. Infelizmente, isso continua até os dias atuais em vários países. É necessário um equilíbrio primoroso para produzir uma boa governança, um equilíbrio que está quase além da capacidade humana. Se há uma lição importante que podemos tirar de Samuel, Reis e Crônicas, é que somente nos comprometendo com a graça e a orientação de Deus, sua aliança e seus mandamentos, um povo pode encontrar as virtudes éticas necessárias para um governo bom e duradouro.
Esta lição se aplica não apenas a nações, mas a empresas, escolas, organizações não governamentais, famílias e todos os outros tipos de ambiente de trabalho. A boa governança e a liderança são essenciais para que as pessoas tenham sucesso e prosperem econômica, relacional, pessoal e espiritualmente. Samuel, Reis e Crônicas exploram vários aspectos de liderança e governança entre uma série de obreiros de todos os tipos. Os aspectos específicos incluem os perigos da autoridade e da riqueza herdadas, os perigos de tratar Deus como um amuleto da sorte em nosso trabalho, as oportunidades que surgem para obreiros fiéis, as alegrias e tristezas de ser pais, critérios piedosos para escolher líderes, a necessidade de humildade e colaboração na liderança, o papel essencial da inovação e da criatividade e a necessidade de planejamento de sucessão e desenvolvimento de liderança.
Os livros prestam muita atenção ao manejo de conflitos, mostrando tanto a carreira destrutiva do conflito reprimido quanto o potencial criativo da discordância aberta e respeitosa. Eles mostram a necessidade de diplomatas e conciliadores, formais e informais, e o papel essencial de subordinados com coragem de falar a verdade — respeitosamente — aos que estão no poder, apesar dos riscos para si mesmos. Nesses livros repletos de figuras de autoridade imperfeitas, os poucos líderes inequivocamente bons incluem Abigail, cujas boas habilidades de resolução de conflitos salvaram a vida de sua família e a integridade de Davi, e a escrava anônima da esposa de Naamã, cuja ousadia a serviço da própria pessoa que a escravizou (Naamã) trouxe paz entre nações em guerra.
O líder inequivocamente bom mais proeminente nos livros é Eliseu, o profeta de Deus. De todos os profetas, ele presta mais atenção à liderança na vida cotidiana, no trabalho e em questões econômicas. Ele restaura o sistema de água de uma cidade, capitaliza comunidades econômicas empreendedoras, reconcilia nações por meio de missões médicas (por instigação da escrava mencionada acima), cria uma cultura ética em sua própria organização e melhora a subsistência de viúvas, trabalhadores, comandantes e agricultores. Levar a palavra de Deus à humanidade resulta em boa governança, desenvolvimento econômico e produtividade agrícola.
Lamentavelmente, quando se trata dos próprios reis, há muito mais maus exemplos do que bons exemplos de liderança e governança. Além de lidar mal com os conflitos, como descrito acima, os reis, recrutam trabalhadores, separam famílias, promovem uma classe de elite de funcionários públicos e militares às custas do povo comum, exigem impostos insuportáveis ao povo para sustentar seu estilo de vida luxuoso, assassinam aqueles que estão em seu caminho, confiscam propriedades arbitrariamente, subvertem instituições religiosas e, por fim, levam seus reinos à subjugação e ao exílio. Surpreendentemente, a causa desses males não é o fracasso e a fraqueza por parte dos reis, mas o sucesso e a força. Eles distorcem o sucesso e a força que Deus lhes dá e os transformam em arrogância e tirania; como resultado, abandonam Deus e violam sua aliança e seus mandamentos. O coração sombrio da liderança desastrosa é a adoração de falsos deuses no lugar do Deus verdadeiro. Quando vemos uma liderança ruim hoje — nos outros ou em nós mesmos — uma boa primeira pergunta pode ser: “Que falsos deuses estão sendo adorados nesta situação?”
Assim como a luz brilha mais intensamente na escuridão, os fracassos dos reis destacam alguns episódios de boa liderança. A música e as artes florescem sob o governo de Davi. A construção do templo na época de Salomão é uma maravilha de arquitetura, construção, trabalho artesanal e organização econômica. Os sacerdotes da época de Jeoás desenvolveram um sistema de responsabilidade financeira que ainda é usado hoje. Obadias modela o bem que pessoas fiéis podem realizar em sistemas corruptos e situações adversas.
Obadias é um modelo muito melhor para nós hoje do que Davi, Salomão ou qualquer um dos reis. A principal preocupação dos reis era: “Como posso adquirir e manter o poder?” A de Obadias era: “Como posso servir às pessoas tal como Deus deseja na situação em que me encontro?” Ambas são questões de liderança. Um enfoca os bens necessários para o poder, o outro, o poder necessário para o bem. Oremos para que Deus chame seu povo para posições de poder e que ele traga a cada um de nós o poder necessário para cumprir nosso chamado. Mas, antes e depois de fazermos essas orações, comecemos e terminemos com “seja feita a tua vontade”.
Introdução a Esdras, Neemias e Ester
Voltar ao índice Voltar ao índiceA maioria dos cristãos não considera seu ambiente de trabalho muito favorável à sua fé. Geralmente, há oportunidades limitadas para o testemunho e atos explicitamente cristãos. Além disso, os trabalhadores podem se sentir pressionados a violar os requisitos éticos dos padrões bíblicos, explícita ou implicitamente. Em uma sociedade pluralista, alguns desses limites podem ser apropriados, mas podem fazer com que o ambiente de trabalho pareça um território estranho para os cristãos. Os livros de Esdras, Neemias e Ester descrevem como é para o povo de Deus trabalhar em ambientes hostis. Eles mostram o povo de Deus trabalhando em empregos que vão da construção à política e ao entretenimento, sempre em meio a ambientes abertamente hostis aos valores e aos planos de Deus. No entanto, ao longo do caminho, eles recebem ajuda surpreendente de descrentes nos mais altos cargos do poder cívico. O poder de Deus parece surgir para o bem de seu povo em lugares surpreendentes, mas eles enfrentam situações e decisões extremamente desafiadoras, sobre as quais nem sempre concordam.
Esdras teve de ponderar se deveria confiar em um governante incrédulo para proteger o povo judeu quando eles voltaram a Jerusalém e começaram a reconstruir o templo. Ele teve de encontrar apoio financeiro dentro do sistema econômico corrupto do Império Persa, mas ainda assim era fiel às leis de Deus sobre integridade econômica. Neemias teve de reconstruir os muros de Jerusalém, o que exigia que ele confiasse em Deus e fosse pragmático. Ele teve de liderar pessoas cuja motivação ia do altruísmo à ganância, e levá-las a superar seus próprios interesses divergentes para trabalhar tendo um propósito comum. Ester teve de sobreviver a um sistema que oprimia as mulheres e à intriga mortal dentro da corte real persa, mas permaneceu disposta a arriscar tudo para salvar seu povo do genocídio. Nossos títulos e instituições mudaram desde aqueles dias, mas, de muitas maneiras, nossos ambientes de trabalho hoje têm muito em comum — para melhor ou para pior — com os lugares onde Esdras, Neemias e Ester trabalharam. As situações, os desafios e as escolhas da vida real encontrados nesses livros bíblicos nos ajudam a desenvolver uma teologia do trabalho que importa em como vivemos a cada dia.
Esdras e Neemias
Em 587 a.C., os babilônios, sob o governo do rei Nabucodonosor, conquistaram Jerusalém. Eles mataram os líderes de Judá, saquearam o templo antes de incendiá-lo, destruíram grande parte da cidade, incluindo seus muros, e levaram a elite dos cidadãos de Jerusalém para a Babilônia. Lá, esses judeus viveram por décadas no exílio, sempre esperando que Deus libertasse e restaurasse Israel. Suas esperanças aumentaram em 539 a.C., quando a Pérsia, liderada pelo rei Ciro, derrotou a Babilônia. Pouco depois, Ciro emitiu um decreto convidando os judeus de seu reino a retornarem a Jerusalém e reconstruírem o templo e, portanto, sua vida como povo de Deus (Ed 1.1-4).
Os livros de Esdras e Neemias, originalmente duas partes de uma única obra, [1] narram aspectos cruciais dessa história de reconstrução, começando com o decreto de Ciro, em 539 a.C. Seu propósito, no entanto, não é simplesmente descrever o que aconteceu há muito tempo, como curiosidade de um antiquário. Em vez disso, Esdras e Neemias usam fatos históricos para ilustrar o tema da restauração. Esses livros mostram como Deus uma vez restaurou seu povo e como as pessoas desempenharam um papel central nessa obra de renovação. Esdras e Neemias foram escritos por um autor desconhecido, provavelmente no século IV a.C., [2] para encorajar o povo judeu a viver fielmente, mesmo sob domínio estrangeiro, para que pudessem ser participantes da obra divina de restauração, tanto presente como futura.
Esdras e Neemias são livros altamente teológicos, mas não abordam diretamente a teologia do trabalho. Eles não incluem imperativos legais ou visões proféticas que tenham a ver com nosso trabalho diário. As narrativas de Esdras e Neemias descrevem um trabalho árduo, no entanto, colocando implicitamente o trabalho em uma estrutura teológica. Assim, encontraremos sob a superfície desses livros um solo rico, do qual pode brotar uma teologia do trabalho. Em particular, Esdras e Neemias foram chamados para restaurar o Reino de Deus (Israel), em meio a um ambiente parcialmente hostil e parcialmente favorável. Os ambientes de trabalho de hoje também são parcialmente hostis e parcialmente favoráveis à obra de Deus. Isso nos encoraja a descobrir como nosso trabalho pode contribuir para a implantação do Reino de Deus no mundo de hoje.
Ester
O Livro de Ester conta a história de um episódio curioso durante a era descrita em Esdras e Neemias. O foco não está na restauração de Jerusalém, mas nos eventos que aconteceram na Pérsia, durante o reinado de Xerxes (485-465 a.C.; Xerxes é o nome grego, e ele também é conhecido pelo nome persa Assuero). A narrativa de Ester explica as origens da festa judaica de Purim. O autor não identificado deste livro escreveu, em parte, para explicar e incentivar a celebração desse feriado nacional (veja Ester 9.20-28). [3] Sua preocupação mais ampla era examinar como os judeus poderiam sobreviver e até prosperar como exilados em uma terra pagã e muitas vezes hostil. [4]
Em contraste com Esdras e Neemias, o livro de Ester não é explicitamente teológico. Na verdade, Deus mesmo nunca é mencionado. No entanto, nenhum leitor fiel poderia deixar de ver a mão de Deus por trás dos acontecimentos do livro. Isso convida o leitor a ponderar como Deus pode estar agindo no mundo, sem ser despercebido por aqueles que não têm olhos para ver.
Reconstruindo o templo (Esdras 1.1—6.22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Esdras começa com um decreto do rei Ciro, da Pérsia, permitindo que os judeus voltassem a Jerusalém para reconstruir o templo que havia sido destruído pelos babilônios em 587 a.C. (Ed 1.2-4). A introdução deste decreto especifica quando foi proclamado: “No primeiro ano do reinado de Ciro” (539-538 a.C., logo após a vitória persa sobre a Babilônia). Também nos apresenta um dos principais temas de Esdras-Neemias: a relação entre a obra de Deus e a obra humana. Ciro fez sua proclamação “a fim de que se cumprisse a palavra do Senhor falada por Jeremias” e porque “o Senhor despertou o coração de Ciro” (Ed 1.1). Ciro estava fazendo seu trabalho como rei, buscando seus objetivos pessoais e institucionais. No entanto, esse foi o resultado da obra de Deus dentro dele, promovendo os propósitos do próprio Deus. Sentimos no primeiro versículo de Esdras que Deus está no controle, mas escolhe trabalhar por meio de seres humanos, até mesmo reis gentios, para realizar sua vontade.
Hoje em dia, os cristãos no ambiente de trabalho também vivem na confiança de que Deus é ativo por meio das decisões e ações de pessoas e instituições não cristãs. Ciro foi o instrumento escolhido por Deus, quer o próprio Ciro tenha reconhecido isso ou não. Da mesma forma, as ações de nosso chefe, colegas de trabalho, clientes e fornecedores, concorrentes, reguladores ou uma infinidade de outros atores podem estar promovendo a obra do Reino de Deus sem ser reconhecida por nós ou por eles. Isso deve nos prevenir tanto do desespero quanto da arrogância. Se pessoas e valores cristãos parecem ausentes do seu ambiente de trabalho, não se desespere — ainda assim Deus está trabalhando. Por outro lado, se você é tentado a ver a si mesmo ou a sua organização como um modelo de virtude cristã, cuidado! Deus pode estar realizando mais por meio daqueles que têm menos conexão visível com ele do que você imagina. Certamente, a obra de Deus por meio de Ciro — que permaneceu rico, poderoso e incrédulo, mesmo enquanto muitos do povo de Deus estavam se recuperando lentamente da pobreza do exílio — deve nos alertar para não esperarmos riqueza e poder como uma recompensa necessária por nosso trabalho fiel. Deus está usando todas as coisas para trabalhar em direção ao seu Reino, não necessariamente em direção ao nosso sucesso pessoal.
A obra de Deus continuou, pois muitos judeus se aproveitaram do decreto de Ciro. “Todos aqueles cujo coração Deus despertou” se prepararam para retornar a Jerusalém (Ed 1.5). Quando chegaram a Jerusalém, sua primeira tarefa foi construir o altar e oferecer sacrifícios sobre ele (Ed 3.1-3). Isso resume o principal tipo de trabalho narrado em Esdras e Neemias. Está intimamente associado às práticas sacrificiais do judaísmo do Antigo Testamento, que ocorriam no templo. O trabalho descrito nesses livros reflete e apoia a centralidade do templo e de suas ofertas na vida do povo de Deus. Adoração e trabalho caminham lado a lado através das páginas de Esdras e Neemias.
Por causa do foco de Esdras na reconstrução do templo, os trabalhos das pessoas são mencionados quando são relevantes para esse esforço. Assim, a lista de pessoas que retornam a Jerusalém cita especificamente “os sacerdotes, os levitas, os cantores, os porteiros e os servidores do templo” (Ed 2.70). O texto identifica “pedreiros e carpinteiros” porque eram necessários para o projeto de construção (Ed 3.7). Pessoas cujas habilidades não as equipavam para trabalhar diretamente no templo contribuíram para a tarefa por meio do fruto de seu trabalho, na forma de “ofertas voluntárias” (Ed 2.68). Assim, em certo sentido, a reconstrução do templo foi obra de todas as pessoas, que contribuíram de uma forma ou de outra.
Esdras identifica líderes políticos, além de Ciro, por causa de seu impacto — positivo ou negativo — no esforço de construção. Por exemplo, Zorobabel é mencionado como líder do povo. Ele era o governador do território que supervisionava a reconstrução do templo (Ag 1.1). Esdras menciona “o comandante Reum e o secretário Sinsai”, oficiais que escreveram uma carta se opondo à reconstrução do templo (Ed 4.8-10). Outros reis e oficiais aparecem de acordo com sua relevância para o projeto de reconstrução.
O projeto era sobre o templo, mas seria um erro pensar que Deus abençoa os diversos tipos de trabalho apenas quando são dedicados a um propósito religioso. A visão de Esdras incluía a restauração de toda a cidade de Jerusalém (Ed 4.13), não apenas do templo. Discutiremos esse ponto mais adiante quando chegarmos a Neemias, que realmente empreendeu o trabalho além do templo.
Esdras descreve vários esforços para reprimir a construção (Ed 4.1-23). Eles foram bem-sucedidos por um tempo, interrompendo o projeto do templo por cerca de duas décadas (Ed 4.24). Finalmente, Deus encorajou os judeus, por meio das profecias de Ageu e Zacarias, a retomar e concluir o trabalho (Ed 5.1). Além disso, Dario, rei da Pérsia, financiou o esforço de construção, na esperança de que o Senhor pudesse abençoar a ele e a seus filhos (Ed 6.8-10). Assim, o templo foi finalmente concluído, graças ao fato de Deus “mudar o coração do rei da Assíria, levando-o a dar-lhes força para realizarem a obra de reconstrução do templo de Deus” (Ed 6.22).
Como esse versículo deixa claro, os judeus realmente fizeram a obra de reconstrução do templo. No entanto, seu trabalho foi bem-sucedido por causa da ajuda de dois reis pagãos, um que inaugurou o projeto e outro que pagou por sua conclusão. Por trás desses esforços humanos estava a abrangente obra de Deus, que tocava o coração dos reis e encorajava seu povo por meio dos profetas. Como vimos, Deus trabalha muito além do que seu povo vê.
Restauração da vida da aliança, fase um: a obra de Esdras (Ed 7.1—10.44)
Voltar ao índice Voltar ao índiceIronicamente, o próprio Esdras só aparece no livro que leva seu nome a partir do capítulo 7. Esse homem instruído, sacerdote e mestre da lei, veio a Jerusalém com a bênção do rei persa Artaxerxes, mais de cinquenta anos após a reconstrução do templo. Sua tarefa era apresentar ofertas no templo em nome do rei e estabelecer a lei de Deus em Judá, tanto ensinando quanto designando líderes que cumprissem a lei (Ed 7.25-26).
Esdras não explicou o favor do rei em termos de boa sorte. Em vez disso, ele deu os créditos a Deus, “que pôs no coração do rei o propósito” de enviar Esdras a Jerusalém (Ed 7.27). Esdras tomou coragem e agiu de acordo com a ordem do rei, porque, como ele disse, “a mão do Senhor, meu Deus, esteva sobre mim” (Ed 7.28). Essa linguagem da mão de Deus estar sobre alguém é a favorita de Esdras, visto que aqui a expressão aparece seis vezes (Ed 7.6,9,28; 8.18,22,31), além de mais duas ocorrências no restante da Bíblia. Deus estava trabalhando em Esdras e por meio dele, e isso explica seu sucesso em seus empreendimentos.
A confiança de Esdras na ajuda de Deus foi testada quando chegou a hora de sua comitiva viajar da Babilônia a Jerusalém. “Tive vergonha”, explicou Esdras, “de pedir soldados e cavaleiros ao rei para nos protegerem dos inimigos na estrada, pois lhe tínhamos dito: ‘A mão bondosa de nosso Deus está sobre todos os que o buscam, mas o seu poder e a sua ira são contra todos os que o abandonam’” (Ed 8.22). Para Esdras, depender de uma escolta real significava não confiar na proteção de Deus. Então, ele e sua comitiva jejuaram e oraram, em vez de buscar ajuda prática do rei (Ed 8.23). Nota: Esdras não estava seguindo nenhuma lei específica do Antigo Testamento ao escolher não receber proteção real. Em vez disso, essa decisão refletiu suas convicções pessoais sobre o que significava confiar em Deus nos desafios reais da liderança. Pode-se dizer que Esdras era um “crente idealista” nessa situação, porque estava disposto a apostar sua vida na ideia da proteção de Deus, em vez de garantir proteção com ajuda humana. Como veremos mais tarde, a posição de Esdras não foi a única considerada razoável pelos líderes piedosos nos livros de Esdras e Neemias.
A estratégia de Esdras provou ser bem-sucedida. “A mão do nosso Deus esteve sobre nós”, observou ele, “e ele nos protegeu do ataque de inimigos e assaltantes pelo caminho”. (Ed 8.31). Não sabemos, no entanto, se os membros do grupo de Esdras portavam armas ou as usavam para proteção. O texto parece sugerir que Esdras e companhia completaram sua jornada sem nenhum incidente ameaçador. Mais uma vez, o livro de Esdras mostra que os esforços humanos são bem-sucedidos quando Deus está trabalhando neles.
Os dois últimos capítulos de Esdras enfocam o problema de judeus se casando com gentios. A questão do trabalho não surge aqui, exceto no exemplo de Esdras, que exerce sua liderança em fidelidade à Lei e com determinação em oração.
Reconstruindo o muro de Jerusalém (Neemias 1.1—7.73)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO primeiro capítulo do livro de Neemias introduz o livro, mostrando que Neemias vivia em Susã, a capital do Império Persa. Quando Neemias ouviu que os muros de Jerusalém ainda continuavam derrubados, mais de meio século após a conclusão da reconstrução do templo, ele se sentou e chorou, jejuando e orando diante de Deus (Ne 1.4). Implicitamente, ele estava formulando um plano para remediar a situação em Jerusalém.
Transpondo a divisão entre sagrado e secular (Neemias 1.1—1.10)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA conexão entre o templo e o muro é significativa para a teologia do trabalho. O templo pode parecer uma instituição religiosa, enquanto os muros são seculares. Mas Deus levou Neemias a trabalhar nos muros, assim como levou Esdras a trabalhar no templo. Tanto o sagrado quanto o secular eram necessários para cumprir o plano de Deus de restaurar a nação de Israel. Se os muros estavam inacabados, o templo também estava inacabado. A obra era uma peça única. A razão para isso é fácil de entender. Sem um muro, nenhuma cidade no antigo Oriente Próximo estava a salvo de bandidos, gangues e animais selvagens, mesmo que o império pudesse estar em paz. Quanto mais desenvolvida econômica e culturalmente uma cidade era, maior o valor das coisas na cidade e maior a necessidade de um muro. O templo, com suas ricas decorações, estaria particularmente em risco. Em termos práticos, sem muro não há cidade, e sem cidade não há templo.
Por outro lado, a cidade e seus muros dependem do templo como fonte da provisão de Deus para lei, governo, segurança e prosperidade. Mesmo em termos estritamente militares, o templo e os muros são mutuamente dependentes. O muro é parte integrante da proteção da cidade, assim como o templo em que habita o Senhor (Ed 1.3), que reduz a nada os planos violentos dos inimigos da cidade (Ne 4.15). Isso vale também para o governo e a justiça. As portas do muro são onde os processos judiciais são julgados (Dt 21.19; Is 29.21), enquanto, ao mesmo tempo, o Senhor, de seu templo, “defende a causa do órfão e da viúva” (Dt 10.18). A falta do templo significa ausência de Deus, e a falta da presença de Deus significa ausência de força militar, justiça, civilização e necessidade de muros. O templo e os muros estão unidos em uma sociedade fundada na “aliança e misericórdia” de Deus (Ne 1.5). Esse pelo menos é o ideal pelo qual Neemias está jejuando, orando e trabalhando.
Confiar em Deus significa recorrer à oração, tomar medidas “práticas” ou ambos? (Neemias 1.11—4.23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA última linha de Neemias 1 o identifica como “copeiro do rei” (Ne 1.11). Isso significa não apenas que ele tinha acesso direto ao rei como aquele que experimentava e servia suas bebidas, mas também que Neemias era um conselheiro de confiança e um oficial de alto escalão no Império Persa. [1] Ele poderia usar sua experiência profissional e sua posição com grande vantagem ao embarcar na obra de reconstrução do muro de Jerusalém.
Quando o rei lhe concedeu permissão para supervisionar o projeto de reconstrução, Neemias pediu cartas aos governadores por cujo território ele passaria em sua viagem a Jerusalém (Ne 2.7). Na visão de Neemias, o rei concedeu esse pedido porque “a bondosa mão de Deus estava sobre mim” (Ne 2.8). Aparentemente, Neemias não acreditava que confiar em Deus significasse que ele não deveria buscar a proteção do rei para sua jornada. Além disso, ele ficou satisfeito de ter “uma escolta de oficiais do exército e de cavaleiros” acompanhando-o em segurança até Jerusalém (Ne 2.9).
O texto de Neemias não sugere que houvesse algo errado com a decisão de Neemias de buscar e aceitar a proteção do rei. Na verdade, ele afirma que a bênção de Deus foi responsável por essa ajuda real. É impressionante notar como a abordagem de Neemias a esse assunto era diferente da de Esdras. Enquanto Esdras acreditava que confiar em Deus significava que ele não deveria pedir proteção real, Neemias viu a oferta de tal proteção como uma evidência da mão graciosa de Deus. Essa discordância demonstra como é fácil para pessoas piedosas chegarem a conclusões diferentes sobre o que significa confiar em Deus em sua obra. Talvez cada um estivesse simplesmente fazendo o que estava mais familiarizado. Esdras era sacerdote, familiarizado com a habitação da presença do Senhor. Neemias era copeiro do rei, familiarizado com o exercício do poder real. Tanto Esdras quanto Neemias procuravam ser fiéis em seus trabalhos. Ambos eram líderes piedosos e fervorosos. Mas eles entendiam a confiança em Deus para prover proteção de forma diferente. Para Esdras, significava viajar sem a guarda do rei. Para Neemias, significava aceitar a oferta de ajuda real como evidência da bênção de Deus.
Em várias ocasiões encontramos sinais de que Neemias era o que poderíamos chamar de “crente pragmático”. Em Neemias 2, por exemplo, Neemias pesquisou secretamente os escombros do antigo muro antes mesmo de anunciar seus planos aos moradores de Jerusalém (Ne 2.11-17). Aparentemente, ele queria saber o tamanho e o escopo do trabalho que estava assumindo antes de se comprometer publicamente a fazê-lo. No entanto, depois de explicar o propósito de sua ida a Jerusalém e apontar para a mão graciosa de Deus sobre ele, quando algumas autoridades locais zombaram dele e o acusaram, Neemias respondeu: “O Deus dos céus fará que sejamos bem-sucedidos” (Ne 2.2.20). Deus daria esse sucesso, em parte, por meio da liderança inteligente e bem informada de Neemias. O fato de o sucesso vir do Senhor não significava que Neemias pudesse sentar e relaxar. Muito pelo contrário, Neemias estava prestes a iniciar uma tarefa árdua e exigente.
Sua liderança envolveu a delegação de partes do projeto de construção dos muros a uma ampla variedade de pessoas, incluindo “o sumo sacerdote Eliasibe e os seus colegas sacerdotes” (Ne 3.1), os “homens de Tecoa”, menos seus nobres, que “não quiseram se juntar ao serviço” (Ne 3.5), “Uziel, filho de Haraías, um dos ourives” e “Hananias, um dos perfumistas” (Ne 3.8), “Salum [...], governador da outra metade do distrito de Jerusalém [e] suas filhas”(Ne 3.12), além de muitos outros. Neemias foi capaz de inspirar cooperação entre as pessoas e de organizar o projeto de forma eficaz.
Mas então, assim como na história da reconstrução do templo em Esdras, surgiu a oposição. Os líderes dos povos locais tentaram impedir o esforço judaico por meio da zombaria, mas “o povo estava totalmente dedicado ao trabalho” (Ne 4.6). Como suas palavras não impediram que o muro fosse reconstruído, os líderes locais “todos juntos planejaram atacar Jerusalém e causar confusão” (Ne 4.8).
Então, o que Neemias levou seu povo a fazer? Orar e confiar em Deus? Ou se armar para a batalha? Previsivelmente, o crente pragmático os levou a fazer as duas coisas: “oramos ao nosso Deus e colocamos guardas de dia e de noite para proteger-nos deles” (Ne 4.9). Na verdade, quando as ameaças contra os construtores de muros aumentaram, Neemias também colocou guardas em posições-chave. Ele encorajou seu povo a não desanimar por causa de seus oponentes: “Não tenham medo deles. Lembrem-se de que o Senhor é grande e temível, e lutem por seus irmãos, por seus filhos e por suas filhas, por suas mulheres e por suas casas” (Ne 4.14). Por causa de sua fé, o povo deveria lutar. Então, não muito tempo depois, Neemias acrescentou mais uma palavra de encorajamento: “Nosso Deus lutará por nós!” (Ne 4.20). No entanto, esse não foi um convite para os judeus abaixarem suas armas e se concentrarem na construção, confiando apenas na proteção sobrenatural. Em vez disso, Deus lutaria por seu povo, ajudando-o na batalha. Ele estaria trabalhando em e por meio de seu povo, enquanto eles trabalhavam.
Nós, cristãos, às vezes parecemos agir como se houvesse um muro rígido entre buscar ativamente nossa própria agenda e esperar passivamente pela ação de Deus. Estamos cientes de que essa é uma falsa dualidade, e é por isso que, por exemplo, a teologia cristã ortodoxa/histórica rejeita a premissa da Ciência Cristã de que tratamentos médicos são atos de infidelidade a Deus. No entanto, em alguns momentos, somos tentados a nos tornar passivos enquanto esperamos que Deus aja. Se você está desempregado, sim, Deus quer que você tenha um emprego. Para conseguir o emprego que Deus quer que você tenha, você precisa escrever um currículo, procurar oportunidades, candidatar-se a cargos, fazer entrevistas e ser rejeitado dezenas de vezes antes de encontrar esse emprego, assim como todo mundo precisa fazer. Se você é pai ou mãe, sim, Deus quer que você tenha prazer em criar seus filhos. Mas você ainda terá de estabelecer e impor limites, estar disponível nos momentos em que for inconveniente, discutir assuntos difíceis com eles, chorar e sofrer com eles em meio a dificuldades, ossos quebrados e corações partidos, fazer a lição de casa com eles, pedir perdão quando você está errado e lhes oferecer perdão quando falharem. Você não tem folga como recompensa por bom comportamento, como levar seus filhos à igreja. O trabalho árduo de Neemias e companhia nos alerta que confiar em Deus não equivale a ficar sentado esperando por soluções mágicas para as dificuldades que enfrentamos.
Conectando as práticas de empréstimo ao temor do Senhor (Ne 5.1-19)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO projeto de Neemias para a construção dos muros foi ameaçado não apenas por elementos externos, mas também internos. Certos nobres e oficiais judeus ricos estavam aproveitando os tempos economicamente difíceis para encher seus próprios bolsos (Ne 5). Eles estavam emprestando dinheiro a outros judeus, esperando que fossem pagos juros sobre os empréstimos, embora isso fosse proibido na Lei judaica (por exemplo, Êx 22.25). [1] Quando os devedores não puderam pagar os empréstimos, eles perderam suas terras e foram forçados a vender seus filhos como escravos (Ne 5.5). Neemias respondeu exigindo que os ricos parassem de cobrar juros sobre empréstimos e devolvessem tudo o que haviam tirado de seus devedores.
Em contraste com o egoísmo daqueles que estavam se aproveitando de seus companheiros judeus, Neemias não usou sua posição de liderança para aumentar sua fortuna pessoal. “Por temer a Deus”, ele até se recusou a cobrar impostos do povo para pagar suas despesas pessoais, ao contrário de seus predecessores (Ne 5.14-16). Em vez disso, ele generosamente convidou muitos a comer em sua mesa, pagando essa despesa com suas economias pessoais, sem sobrecarregar o povo (Ne 5.17-18).
Em certo sentido, nobres e oficiais eram culpados do mesmo tipo de dualismo que acabamos de discutir. No caso deles, não estavam esperando passivamente que Deus resolvesse seus problemas. Em vez disso, estavam buscando ativamente seu próprio ganho, como se a vida econômica não tivesse nada a ver com Deus. Mas Neemias diz a eles que sua vida econômica é de extrema importância para Deus, porque Deus se preocupa com toda a sociedade, não apenas com seus aspectos religiosos: “Vocês devem andar no temor do nosso Deus para evitar a zombaria dos outros povos, os nossos inimigos [a quem os nobres forçaram a venda de devedores judeus como escravos]” (Ne 5.9). Neemias conecta uma questão econômica (usura) com o temor de Deus.
As questões de Neemias 5, embora surjam de um cenário legal e cultural distante do nosso, desafiam-nos a considerar o quanto devemos lucrar pessoalmente com nossa posição e privilégio, até mesmo com nosso trabalho. Devemos colocar nosso dinheiro em bancos que fazem empréstimos com juros? Devemos aproveitar as vantagens que nos são disponibilizadas em nosso ambiente de trabalho, mesmo que tenham um custo considerável para os outros? Os mandamentos específicos de Neemias (não cobrar juros, não executar garantias, não forçar a venda de pessoas como escravas) podem se aplicar de maneira diferente em nosso tempo, mas, por trás de seus mandamentos, há uma oração que ainda se aplica: “Lembra-te de mim, ó meu Deus, levando em conta tudo o que fiz por este povo” (Ne 5.19). Assim como foi com Neemias, o chamado de Deus para os trabalhadores de hoje é fazer tudo o que pudermos por nosso povo. Na prática, isso significa que cada um de nós tem diante de Deus o dever de cuidar da nuvem de pessoas que dependem de nosso trabalho: empregadores, colegas de trabalho, clientes, familiares, o público em geral e muitos outros. Neemias pode não nos dizer exatamente como lidar com as situações atuais no ambiente de trabalho, mas ele nos diz como orientar nossa mente à medida que tomamos decisões. Coloque as pessoas em primeiro lugar.
Neemias dá crédito a Deus (Neemias 6.1—7.73)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs problemas externos e internos que Neemias enfrentava não interromperam o trabalho no muro, que foi concluído em apenas cinquenta e dois dias (Ne 6.15). “Todas as nações vizinhas ficaram atemorizadas e com o orgulho ferido, pois perceberam que essa obra havia sido executada com a ajuda de nosso Deus” (Ne 6.16). Embora Neemias tenha exercido sua considerável liderança para inspirar e organizar os construtores, embora eles tenham trabalhado incansavelmente, e embora a sabedoria de Neemias tenha permitido afastar ataques e distrações, ele viu tudo isso como uma obra feita com a ajuda de Deus. Deus trabalhou por meio dele e de seu povo, usando seus dons e trabalho para cumprir seus propósitos.
Restauração da vida da aliança, fase dois: Esdras e Neemias juntos (Ne 8.1—13.31)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois que o muro ao redor de Jerusalém foi concluído, os israelitas se reuniram em Jerusalém para renovar sua aliança com Deus. Esdras reapareceu neste momento para ler a Lei ao povo (Ne 8.2-5). O povo chorava enquanto ouvia a lei (Ne 8.9). No entanto, Neemias os repreendeu por sua tristeza, acrescentando: “Podem sair, e comam e bebam do melhor que tiverem, e repartam com os que nada têm preparado. Este dia é consagrado ao nosso Senhor” (Ne 8.10). Por mais que o trabalho seja central para servir a Deus, a celebração também é. Nos dias santos, as pessoas devem desfrutar dos frutos de seu trabalho, bem como compartilhá-los com aqueles que não têm essas delícias.
No entanto, como Neemias 9 demonstra, também houve um tempo para a tristeza segundo Deus, quando o povo confessou seus pecados a Deus (Ne 9.2). Sua confissão veio no contexto de uma extensa recitação de todas as coisas que Deus havia feito, começando com a própria criação (Ne 9.6) e continuando ao longo dos acontecimentos cruciais do Antigo Testamento. O fracasso de Israel em ser fiel ao Senhor explicou, entre outras coisas, por que o povo escolhido de Deus era “escravo” de reis estrangeiros e por que esses reis desfrutavam dos frutos do trabalho israelita (Ne 9.36-37).
Entre as promessas feitas pelo povo ao renovar sua aliança com o Senhor estava o compromisso de honrar o sábado (Ne 10.31). Em particular, eles prometeram não fazer negócios no sábado com os povos vizinhos, que trabalhavam naquele dia. Os israelitas também prometeram cumprir sua responsabilidade de apoiar o templo e seus trabalhadores (Ne 10.31-39). Eles fariam isso dando ao templo e sua equipe uma porcentagem do fruto de seu próprio trabalho. Tanto agora como antes, o compromisso de doar uma porcentagem de nossa renda para sustentar o “serviço do templo de nosso Deus” (Ne 10.32) é um meio necessário de financiar a obra de adoração e um lembrete de que tudo o que temos vem da mão de Deus.
Depois de completar sua tarefa de construir o muro em Jerusalém e supervisionar a restauração da sociedade ali, Neemias voltou para servir ao rei Artaxerxes (Ne 13.6). Mais tarde, ele voltou a Jerusalém, onde descobriu que algumas das reformas que ele havia iniciado estavam prosperando, enquanto outras haviam sido negligenciadas. Por exemplo, ele observou algumas pessoas trabalhando no sábado (Ne 13.15). Oficiais judeus haviam permitido que comerciantes gentios levassem seus bens a Jerusalém para serem vendidos no dia de descanso (Ne 13.16). Então Neemias repreendeu aqueles que deixaram de honrar o sábado (Ne 13.7-18). Além disso, em sua abordagem tipicamente pragmática, ele fechou os portões da cidade antes do início do sábado, mantendo-os fechados até que o dia de descanso tivesse passado. Ele também colocou alguns de seus servos nos portões, para que pudessem dizer aos vendedores em potencial que saíssem (Ne 13.19).
A questão sobre se e/ou como os cristãos devem guardar o sábado não pode ser respondida por Neemias. É necessária uma discussão teológica muito mais ampla. [1] No entanto, este livro nos lembra da centralidade da guarda do sábado para o povo da primeira aliança de Deus e da ameaça representada pela interação econômica com aqueles que não honram o sábado. Em nosso próprio contexto, certamente era mais fácil para os cristãos guardarem o dia do descanso quando os shoppings estavam fechados no Dia do Senhor. No entanto, nossa cultura contemporânea de comércio 24 horas por dia nos coloca na situação de Neemias, na qual é necessária uma decisão consciente — e potencialmente custosa — sobre a guarda do sábado.
Trabalhando dentro de um sistema caído (Ester)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Ester começa com o rei Xerxes (este é seu nome grego, mas ele também é conhecido pelo nome persa Assuero) dando uma festa luxuosa para exibir sua glória (Et 1.1-8). Tendo consumido grande quantidade de vinho, Xerxes ordenou a seus servos que trouxessem a rainha Vasti diante dele, a fim de que ele pudesse exibi-la aos outros participantes da festa (Et 1.10-11). Mas Vasti, sentindo a indignidade do pedido, recusou-se a ir (Et 1.12). Sua recusa perturbou os homens presentes, que temiam que seu exemplo encorajasse outras mulheres no reino a enfrentar seus maridos (Et 1.13-18). Assim, Vasti foi “demitida”, por assim dizer, e um processo foi iniciado para encontrar uma nova rainha para Xerxes (Et 1.21—2.4). Para ficar claro, este episódio retrata um assunto de família. Mas toda família real também é um ambiente de trabalho político. Portanto, a situação de Vasti também é uma questão que se refere ao ambiente de trabalho, em que o chefe procura explorar uma mulher por causa de seu gênero e, em seguida, a demite quando ela não corresponde às fantasias dele.
Mas quem sucederia a rainha Vasti? Um concurso de beleza foi realizado para localizar as virgens mais bonitas de todas as 127 províncias da Pérsia, e Ester estava entre as que foram levadas ao palácio para passar pelo tratamento de beleza de um ano, exigido antes da apresentação ao rei. No final, Ester terminou o concurso em primeiro lugar e foi coroada como rainha. O único fato sobre ela que permaneceu oculto, a pedido de seu primo e tutor Mardoqueu, era sua origem judaica (Et 2.8-14). Mesmo aparentemente sendo a “vencedora” da disputa, ela se encontra em um sistema opressivo e sexista, e logo enfrentará a exploração sexual nas mãos de um tirano egoísta.
Embora Ester permaneça sujeita a esse sistema opressor, ela agora entra no palácio e tem acesso ao alto poder e à influência. Ela não parece interessada em saber se Deus tem algum plano ou propósito para ela ali. Na verdade, Deus nem é mencionado no livro de Ester. Mas isso não significa que Deus não tenha plano ou propósito para ela na corte de Xerxes. Por acaso, seu primo Mardoqueu, depois de algum tempo, entra em conflito com o mais alto oficial de Xerxes, Hamã (Et 3.1-6). Hamã responde planejando matar não apenas Mardoqueu, mas todo o povo judeu (Et 3.7-15). Devido à complexidade da lei dos medos e dos persas, uma vez que a aprovação do decreto foi assinada por Xerxes (sem saber que sua rainha era judia, o povo odiado por Hamã), nada poderia anular a lei.
O decreto é proclamado em várias cidades e províncias, causando a morte de muitos judeus. Quando Mardoqueu soube disso, ele se sentou à porta do rei, vestido de pano de saco e cinza. Ao saber disso, Ester envia um oficial para descobrir o que há de errado com ele, e ele responde mencionando o decreto e pedindo que ela intervenha (Et 4.1-9).
Ester protesta, dizendo que envolver-se poderia comprometer sua posição e até sua vida (Et 4.11). Ela já parece perceber que o rei está perdendo o interesse nela, pois ela não havia sido chamada à sua presença nos últimos 30 dias. É inconcebível que o rei esteja dormindo sozinho; portanto, alguma outra mulher ou mulheres eram chamadas para estar com o rei (Et 4.11). Intervir em nome de seu povo seria muito arriscado. Mardoqueu responde com dois argumentos. Primeiro, sua vida está em risco, independentemente de ela intervir ou não. “Não pense que pelo fato de estar no palácio do rei, você será a única entre os judeus que escapará, pois, se você ficar calada nesta hora, socorro e livramento surgirão de outra parte para os judeus, mas você e a família do seu pai morrerão” (Et 4.13-14a). E segundo: “Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha?” (Et 4.14b). Juntos, esses argumentos levam a uma notável reviravolta de Ester. Mesmo tendo o título de “rainha”, ainda estava sujeita ao capricho absoluto do rei. Por isso Ester não consegue imaginar que possa fazer algo a respeito do decreto. Mas ela finalmente concorda em ir ao rei, afirmando a Mardoqueu: “Se eu tiver que morrer, morrerei” (Et 4.16). Ester precisa fazer uma escolha. Ela pode continuar a esconder sua condição de judia e passar o resto de seus dias como primeira-dama do harém de Xerxes, ou pode arriscar sua vida e fazer o possível para salvar seu povo. Ela passa a entender que sua alta posição não é apenas um privilégio a ser desfrutado, mas uma grande responsabilidade a ser usada para salvar outros. Seu povo está em perigo, e o problema deles se tornou o problema dela, porque ela está na melhor posição para fazer algo a respeito.
Observe que os dois argumentos de Mardoqueu apelam para instintos diferentes. O primeiro argumento apela à autopreservação: “Você, Ester, é judia e, se todos os judeus forem condenados à morte, você será descoberta e morta”. O segundo argumento apela ao destino, com sua sugestão de serviço divino: “Se você se pergunta, Ester, por que, de todas as jovens, acabou sendo a esposa do rei, talvez seja porque há um propósito maior em sua vida”.
Finalmente, Ester se identifica com seu povo. Nesse sentido, ela dá o mesmo passo que Jesus deu em seu nascimento, a identificação de si mesmo com a humanidade. E talvez esse passo seja o que abre seu coração para os propósitos de Deus. Identificando-se agora com o perigo mortal que ameaçava seu povo, Ester assume a tarefa de intervir junto ao rei. Ela arrisca sua posição, suas posses, sua vida. Sua alta posição agora se torna um meio de serviço ao povo, em vez de serviço pessoal. [1]
O serviço de Ester corresponde ao ambiente de trabalho de hoje de várias maneiras:
- Muitas pessoas — cristãs ou não — se veem eticamente comprometidas como resultado de seu histórico de trabalho. Como todos nos colocamos no lugar de Ester, todos temos a oportunidade — e a responsabilidade — de deixar que Deus nos use de qualquer maneira. Você trapaceou para conseguir seu emprego? No entanto, Deus pode usar você para pôr fim às práticas enganosas em seu ambiente de trabalho. Você fez uso indevido de ativos corporativos? Deus ainda pode usá-lo para arrumar registros falsificados em seu departamento. A acomodação do passado a um sistema pecaminoso não é desculpa para deixar de atender ao que Deus precisa de você agora. O mau uso anterior de suas habilidades dadas por Deus não é razão para acreditar que você não pode empregá-las para os bons propósitos de Deus hoje. Ester é o modelo para todos nós que carecemos da glória de Deus, seja por escolha ou por necessidade. Você não pode dizer: “Se você soubesse quantos desvios éticos cometi para chegar aqui... Não posso ter nenhuma utilidade para Deus agora...”.
- Deus faz uso das circunstâncias reais de nossa vida. A posição de Ester lhe dá oportunidades únicas de servir a Deus. A posição de Mardoqueu lhe dá diferentes oportunidades. Devemos abraçar as oportunidades específicas que temos. Em vez de dizer: “Se tivesse oportunidade, eu faria algo grande para Deus”, devemos dizer: “Talvez eu tenha chegado a essa posição para um momento como este”.
- Nossas posições são espiritualmente perigosas. Podemos chegar a igualar nosso valor e nossa própria existência com nossas posições. Quanto mais altas nossas posições, maior o perigo. Se tornar-se CEO, conseguir estabilidade ou manter um bom emprego se tornar tão importante a ponto de cortarmos o resto de nós mesmos, então já nos perdemos.
- Servir a Deus requer arriscar nossas posições. Se você usar sua posição para servir a Deus, poderá perder sua posição e suas perspectivas futuras. Isso é duplamente assustador se você se identificou com seu trabalho ou sua carreira. No entanto, a verdade é que nossas posições também estarão em risco se não servirmos a Deus. O caso de Ester é extremo. Ela pode ser morta se arriscar sua posição intervindo, e será morta se não intervir. Nossas posições são realmente mais seguras do que as de Ester? Não é tolice arriscar o que você não pode manter para ganhar o que não pode perder. O trabalho feito a serviço de Deus nunca pode ser verdadeiramente perdido.
Para Ester e os judeus, a história teve um final feliz. Ester corre o risco ao se aproximar do rei sem ser convidada, mas recebe seu favor (Et 5.1-2). Ela emprega uma tática inteligente para agradá-lo ao longo de dois banquetes (Et 5.4-8; 7.1-5) e para manipular Hamã a expor sua própria hipocrisia ao procurar aniquilar os judeus (Et 7.6-10). O rei emite um novo julgamento libertando os judeus do esquema de Hamã (Et 8.11-14) e recompensa Mardoqueu e Ester com riquezas, honra e poder (Et 8. 1-2; 10.1-3). Eles, por sua vez, melhoram a sorte dos judeus em todo o Império Persa (Et 10.3). Hamã e os inimigos dos judeus são massacrados (Et 7.9-10; 9.1-17). As datas da libertação dos judeus — 14 e 15 de adar — são marcadas posteriormente como a festa de Purim (Et 9.17-23).
A mão oculta de Deus e a resposta humana (Ester)
Voltar ao índice Voltar ao índiceComo observado anteriormente, Deus não é mencionado no livro de Ester. No entanto, o livro faz parte da Bíblia. Os comentaristas, portanto, procuram a presença velada de Deus em Ester e geralmente apontam para o versículo crucial: “Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha?” (Et 4.14). A implicação é que ela chegou a essa posição não por sorte ou destino, nem por suas próprias artimanhas, mas pela vontade de um ator invisível. Podemos ver a caligrafia divina na parede aqui. Ester chegou à sua posição real porque “a bondosa mão de Deus estava sobre [ela]”, como Esdras e Neemias poderiam ter dito (Ed 8.18; Ne 2.18).
Isso nos desafia a refletir sobre como Deus pode estar operando de maneiras que não reconhecemos. Quando uma empresa secular elimina o preconceito em promoções e escalas salariais, Deus está trabalhando lá? Quando um cristão é capaz de acabar com a prática de registros enganosos, ele precisa anunciar que agiu assim porque é cristão? Se os cristãos têm a chance de se juntar a judeus e muçulmanos para defender acomodações religiosas razoáveis em uma corporação, eles devem ver isso como uma obra de Deus? Se você pode fazer o bem aceitando um emprego em uma administração política comprometida, Deus poderia estar chamando você para aceitar a oferta? Se você ensina em uma escola que o leva aos limites de sua consciência, deve procurar sair ou redobrar seu compromisso de ficar?
Conclusões a Esdras, Neemias e Ester
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs livros de Esdras, Neemias e Ester têm várias características em comum. Todos os três são narrativas relativamente curtas sobre fatos que aconteceram durante o reinado do Império Persa. Todos os três envolvem reis persas e outros funcionários do governo. Todos os três se concentram nas atividades de judeus que buscam prosperar em um ambiente que é, de muitas maneiras, hostil ao exercício da fé em Deus. Todos os três livros testemunham o fato de que um rei persa poderia ser útil aos judeus em seu esforço para sobreviver e prosperar. Todos os três apresentam líderes-chave cujas ações são apresentadas como modelos a serem seguidos. E todos os três livros mostram pessoas trabalhando, oferecendo assim uma oportunidade para refletirmos sobre como esses livros afetam nossa compreensão do trabalho e seu relacionamento com Deus.
No entanto, todos os três livros representam uma grande diferença de opinião sobre questões cruciais. Isso é verdade até mesmo para Esdras e Neemias, que originalmente eram duas partes de um livro. Em Esdras, confiar em Deus exige que o povo de Deus viaje por território perigoso sem escolta real. Em Neemias, a oferta de uma escolta real é tida como evidência da bênção de Deus. Esdras pratica o que pode ser chamado de “fé idealista”, enquanto Neemias representa a “fé pragmática”. Em Ester, a mão de Deus está oculta, revelada principalmente no uso sagaz que Ester faz de sua inteligência e posição a serviço de seu povo. Poderíamos chamar de “fé inteligente”.
No entanto, Esdras e Neemias defendem uma visão semelhante da obra de Deus no mundo. Deus está envolvido na vida de todas as pessoas, não apenas de seus escolhidos. Deus se move no coração dos reis pagãos, levando-os a apoiar os propósitos de Deus. O Senhor inspira seu povo a dedicar seu trabalho a ele, usando uma ampla variedade de líderes fortes e vozes proféticas para cumprir seus propósitos. Em Esdras, Deus usa um sacerdote fiel para reconstruir seu templo. Em Neemias, Deus usa um leigo fiel para reconstruir os muros de sua capital. Em Ester, Deus usa um judeu profundamente comprometido para salvar o povo judeu do genocídio. Da perspectiva dos três livros, Deus está operando em todo o mundo, fazendo uso do trabalho de todos os tipos de pessoas.
Versículos e temas-chave em Esdras, Neemias e Ester
Voltar ao índice Voltar ao índiceVersículo(s) |
Tema |
Esdras 1.1 No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia, a fim de que se cumprisse a palavra do Senhor falada por Jeremias, o Senhor despertou o coração de Ciro, rei da Pérsia, para redigir uma proclamação e divulgá-la em todo o seu reino, nestes termos... |
Deus está trabalhando em todo o mundo, mesmo em e por meio de um rei pagão. |
Esdras 7.28b Como a mão do Senhor, o meu Deus, esteve sobre mim, tomei coragem e reuni alguns líderes de Israel para me acompanharem. |
O trabalho humano é bem-sucedido quando Deus abençoa o trabalho. |
Esdras 8.22 Tive vergonha de pedir soldados e cavaleiros ao rei para nos protegerem dos inimigos na estrada, pois lhe tínhamos dito: “A mão bondosa de nosso Deus está sobre todos os que o buscam, mas o seu poder e a sua ira são contra todos os que o abandonam”. |
Às vezes, confiar em Deus significa não confiar na ajuda humana. |
Neemias 2.8b-9 Visto que a bondosa mão de Deus estava sobre mim, o rei atendeu os meus pedidos. Com isso fui aos governadores do Trans-Eufrates e lhes entreguei as cartas do rei. Acompanhou-me uma escolta de oficiais do exército e de cavaleiros que o rei enviou comigo. |
Às vezes, confiar em Deus significa reconhecer sua provisão de ajuda humana. |
Neemias 4.9 Mas nós oramos ao nosso Deus e colocamos guardas de dia e de noite para proteger-nos deles. |
A confiança em Deus não deve levar à passividade. |
Neemias 5.19 Lembra-te de mim, ó meu Deus, levando em conta tudo o que fiz por este povo. |
A chave para determinar a coisa certa a fazer é como isso afeta as pessoas envolvidas. |
Neemias 13.19 Quando as sombras da tarde cobriram as portas de Jerusalém na véspera do sábado, ordenei que estas fossem fechadas e só fossem abertas depois que o sábado tivesse terminado. Coloquei alguns de meus homens de confiança junto às portas, para que nenhum carregamento pudesse ser introduzido no dia de sábado. |
Guardar o sábado é ordenado, mesmo quando isso coloca os crentes em desvantagem econômica. |
Ester 2.14 À tarde ela ia para lá e de manhã voltava para outra parte do harém, que ficava sob os cuidados de Saasgaz, oficial responsável pelas concubinas. Ela não voltava ao rei, a menos que dela ele se agradasse e a mandasse chamar pelo nome. |
As pessoas — especialmente as mulheres — podem se encontrar em circunstâncias econômicas em que não há uma solução completamente virtuosa. No entanto, Deus continua presente. |
Ester 4.13b Não pense que pelo fato de estar no palácio do rei, você será a única entre os judeus que escapará. |
É uma ilusão pensar que poder, posição ou riqueza nos protege dos perigos da vida. |
Ester 4.14b Quem sabe se não foi para um momento como este que você chegou à posição de rainha? |
A obra de Deus entre nós às vezes é sutil e, às vezes, nem pode ser identificada especificamente. |
Ester 4.16b Se eu tiver que morrer, morrerei. |
A única maneira de servir a Deus é reconhecer que não podemos controlar os resultados de nossas ações. |
Introdução a Jó
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Jó explora a relação entre prosperidade, adversidade e fé em Deus. Nós realmente acreditamos que Deus é a fonte de todas as coisas boas? Então, o que significa se as coisas boas desaparecem de nossa vida? Abandonamos nossa fé em Deus ou em sua bondade? Ou consideramos isso um sinal de que Deus está nos castigando? Como podemos permanecer fiéis a Deus em tempos de sofrimento? Que esperança podemos ter quanto ao futuro?
Essas perguntas surgem em todas as esferas da vida. Mas eles têm uma conexão especial com o trabalho, porque uma das principais razões pelas quais trabalhamos é alcançar algum nível de prosperidade. Trabalhamos — entre muitas outras razões — para ter um teto sobre nossa cabeça, colocar comida na mesa e fornecer coisas boas para nós mesmos e para as pessoas que amamos. A adversidade pode ameaçar qualquer prosperidade que tenhamos encontrado, e é difícil manter a fé em tempos de adversidade econômica. O personagem principal do livro de Jó começa na prosperidade e passa por adversidades quase inimagináveis, incluindo a perda de seu sustento e riqueza. Ao longo do livro, sua fé é severamente testada, à medida que ele experimenta um sucesso impressionante e uma derrota esmagadora em seu trabalho e em sua vida.
Vamos explorar as muitas aplicações do livro no ambiente de trabalho. Vemos o sucesso econômico como um sinal de nossas habilidades ou da bênção de Deus? O que a perda ou o fracasso no emprego nos diz sobre a avaliação de Deus quanto a nosso trabalho? Como a fé em Deus pode nos ajudar a lidar com fracassos e perdas? Como o estresse no ambiente de trabalho afeta nossa vida familiar e nossa saúde? O que os cristãos podem fazer para apoiar uns aos outros nas adversidades do ambiente de trabalho? Como podemos lidar quando sentimos raiva de Deus, se ele permite que soframos tratamento injusto no trabalho? Aprofundaremos o tratado prático de Jó sobre as relações entre superiores e subordinados, baseadas no respeito igual devido a cada pessoa criada pelo único Deus. Por fim, consideraremos a notável contribuição de Jó aos direitos econômicos das mulheres.
Contexto e esboço (Jó)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA autoria de Jó é anônima. Jó não parece ser um israelita, porque se diz que ele era da terra de Uz (Jó 1.1), que a maioria dos estudiosos sugere que ficava a sudeste do antigo Israel. Pelo fato de ser citado no livro de Ezequiel (Ez 14.14,20), parece que é melhor datar sua história como sendo anterior à vida de Ezequiel (século 6 a.C.). Sua história, em todo caso, é atemporal.
O livro contém uma grande variedade de gêneros literários (narrativa, poesia, visões, diálogos e outros) entrelaçados em uma obra-prima literária. O esboço mais comumente aceito identifica dois ciclos de lamento, diálogo e revelação, intercalados entre um prólogo e um epílogo:
Jó 1.1—2.11 | Prólogo — A prosperidade de Jó é perdida |
Jó 3.1-26 | O primeiro lamento de Jó |
Jó 4.1—27.23 | Diálogo com os três amigos |
Jó 28.1-28 | Sabedoria revelada |
Jó 29.1—31.40 | O segundo lamento de Jó |
Jó 32.1—37.24 | Diálogo com Eliú |
Jó 38.1—42.6 | Deus revelado |
Jó 42.7-17 | Epílogo — A prosperidade de Jó é restaurada |
Teologia e temas (Jó)
Voltar ao índice Voltar ao índiceMais conhecido pelos leitores da Bíblia como o homem justo que sofreu injustamente, Jó exemplifica a pessoa que questiona por que as pessoas boas sofrem. A fé que Jó tinha em Deus é posta à extrema prova, e a história sugere que o compromisso de Jó com Deus diminui. Como veremos, os problemas de Jó começam no trabalho, e o livro nos dá perspectivas valiosas sobre como um seguidor de Deus pode agir fielmente nos altos e baixos da vida profissional.
Prólogo (Jó 1—2)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo início do livro de Jó, somos apresentados a um fazendeiro excepcionalmente próspero chamado Jó.
A prosperidade de Jó é reconhecida como uma bênção de Deus (Jó 1.1-12)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo início do livro de Jó, somos apresentados a um fazendeiro excepcionalmente próspero chamado Jó. Ele é descrito como “o homem mais rico do oriente” (Jó 1.3). Como os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, sua riqueza era medida por seus muitos milhares de cabeças de gado, seus numerosos servos e sua família numerosa. Seus sete filhos e três filhas (Jó 1.2) são uma alegria pessoal para ele e um importante alicerce de sua riqueza. Nas sociedades agrícolas, os filhos fornecem a parte mais confiável do trabalho necessário em uma casa. Eles são a melhor esperança para uma aposentadoria confortável, o único plano de previdência disponível no Antigo Oriente Próximo, como é ainda hoje em muitas partes do mundo.
Jó considera seu sucesso como resultado da bênção de Deus. Somos informados de que Deus havia “abençoado tudo o que ele faz, de modo que os seus rebanhos estão espalhados por toda a terra” (Jó 1.10). O reconhecimento de Jó de que ele deve tudo à bênção de Deus é destacado por um detalhe incomum. Ele se preocupa que seus filhos possam inadvertidamente ofender a Deus. Embora Jó tenha o cuidado de permanecer “íntegro e justo” (Jó 1.1), ele se preocupa que seus filhos possam não ser tão meticulosos. E se um deles, entorpecido por muita bebida durante seus frequentes dias de festa, viesse a pecar, amaldiçoando a Deus (Jó 1.4)? Portanto, depois de cada festa, para evitar qualquer ofensa a Deus, “Jó mandava chamá-los e fazia com que se purificassem. De madrugada ele oferecia um holocausto em favor de cada um deles” (Jó 1.5).
Deus reconhece a fidelidade de Jó. Ele observa a Satanás (uma palavra hebraica que significa simplesmente “acusador” [1]): “Reparou em meu servo Jó? Não há ninguém na terra como ele, irrepreensível, íntegro, homem que teme a Deus e evita o mal” (Jó 1.8). O acusador vê uma abertura para a malícia e responde: “Será que Jó não tem razões para temer a Deus?” (Jó 1.9). Ou seja, Jó ama a Deus apenas porque Deus o abençoou tão ricamente? O louvor de Jó e suas ofertas queimadas “em favor de cada um” dos filhos são apenas um esquema calculado para manter a prosperidade? Ou, para usar uma imagem moderna, a fidelidade de Jó nada mais é do que uma moeda inserida na máquina de venda automática das bênçãos de Deus?
Poderíamos aplicar essa pergunta a nós mesmos. Nós nos relacionamos com Deus principalmente para que ele nos abençoe com as coisas que queremos? Ou, pior ainda, para que ele não estrague o sucesso que pensamos estar alcançando por conta própria? Nos bons tempos, isso pode não ser um problema evidente. Acreditamos em Deus. Nós o reconhecemos — pelo menos teoricamente — como a fonte de todas as coisas boas. Ao mesmo tempo, trabalhamos diligentemente, de modo que a bondade de Deus e nosso trabalho andam de mãos dadas. Quando os tempos são bons e prosperamos, é natural agradecer a Deus e louvá-lo por isso.
Deus permite que Satanás destrua a prosperidade de Jó (Jó 1.13-22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO problema da dor surge quando os tempos são difíceis. Quando somos preteridos para uma promoção ou perdemos o emprego, quando adquirimos uma doença crônica, quando perdemos pessoas que amamos, o que acontece então? Enfrentamos a pergunta: “Se Deus estava me abençoando durante os bons tempos, agora ele está me castigando?” Essa é uma pergunta extremamente importante. Se Deus está nos castigando, precisamos mudar nossos caminhos para que ele pare. Mas, se nossas dificuldades não são resultado de um castigo de Deus, seria tolice mudar nossos caminhos. Pode até ir contra ao que Deus quer que façamos.
Imagine o caso de uma professora que é demitida durante um corte no orçamento da escola. Ela pensa: “Este é o castigo de Deus, porque eu não me tornei missionária”. Tomando a demissão como um sinal, ela se matricula no seminário e toma dinheiro emprestado para pagar. Três anos depois, ela se forma e começa a tentar buscar apoio para sua missão. Se, de fato, Deus causou a demissão como castigo por ela não se tornar uma missionária, ela agora cessaria a ofensa. As contas estavam acertadas.
Mas e se sua demissão não fosse um castigo de Deus? E se Deus realmente não tiver intenção de que ela se torne uma missionária? Enquanto estiver no seminário, ela pode perder a oportunidade de servir a Deus como professora. Pior ainda, o que acontece se ela não conseguir apoio para seu trabalho como missionária? Ela não terá emprego e ainda poderá ter uma grande dívida por causa dos estudos. Ela se sentirá abandonada por Deus se seu plano de missão não der certo? Ela pode até perder a fé ou se tornar amarga em relação a Deus? Nesse caso, ela não seria a primeira. No entanto, isso tudo teria acontecido porque ela erroneamente presumiu que sua demissão era um sinal do castigo de Deus. A questão de saber se a adversidade é um sinal do desfavor de Deus não é algo fácil.
O acusador — Satanás — espera preparar exatamente essa armadilha para Jó. Satanás diz a Deus que, se ele remover as bênçãos que tão ricamente concedeu a Jó, “com certeza ele te amaldiçoará na tua face” (Jó 1.11; 2.4). Se Satanás conseguir fazer com que Jó acredite que está sendo punido por Deus, Jó pode ser pego em uma das duas armadilhas. Ele pode abandonar seus hábitos justos na suposição errônea de que são ofensivos a Deus. Ou, melhor ainda do ponto de vista do acusador, ele se tornará amargo com Deus por seu castigo imerecido e o abandonará completamente. De qualquer forma, será uma maldição jogada na face de Deus.
Deus permite que Satanás leve seu plano adiante. Não nos é dito o motivo. Em um dia angustiante, quase tudo o que Jó valorizava é roubado e as pessoas que ele ama — incluindo todos os seus filhos — são assassinadas ou mortas em tempestades violentas (Jó 1.13-16). Mas Jó não assume que Deus o está castigando nem fica amargo com o tratamento de Deus. Em vez disso, ele adora a Deus (Jó 1.20). Mesmo em seu pior momento, Jó abençoa a autoridade de Deus sobre todas as circunstâncias da vida, boas ou más. “O Senhor o deu, o Senhor o levou; louvado seja o nome do Senhor” (Jó 1.21).
A atitude perfeitamente equilibrada de Jó é notável. Ele entende corretamente sua prosperidade anterior como uma bênção de Deus. Ele não imagina que algum dia tenha merecido a bênção de Deus, embora reconheça que era justo (algo implícito em Jó 1.1,5 e declarado explicitamente em Jó 6.24-30, entre outros). Por saber que não merecia suas bênçãos anteriores, ele sabe que não merece necessariamente seus sofrimentos atuais. Ele não considera sua condição como uma medida do favor de Deus. Consequentemente, ele não finge saber por que Deus o abençoou com prosperidade em um momento e não em outro.
Jó é uma repreensão ao chamado “evangelho da prosperidade”, que afirma que aqueles que têm um relacionamento correto com Deus são sempre abençoados com prosperidade. Isso simplesmente não é verdade, e Jó é a maior prova disso. No entanto, Jó também é uma repreensão ao “evangelho da pobreza”, que afirma o oposto, que um relacionamento correto com Deus implica uma vida de pobreza. A ideia de que os crentes devem intencionalmente imitar a perda de Jó é exagero demais para aparecer mesmo à margem da discussão em Jó. Deus pode nos chamar a desistir de tudo, se tais circunstâncias forem necessárias, para servi-lo ou segui-lo. Mas o livro de Jó não sugere que Deus deseja inerentemente que alguém viva na pobreza. A prosperidade original de Jó foi uma bênção genuína de Deus, assim como sua extrema pobreza é uma calamidade genuína.
Jó pode permanecer fiel sob a adversidade porque entende a prosperidade com precisão. Por ter experimentado a prosperidade como uma bênção de Deus, ele está preparado para sofrer adversidades sem tirar conclusões precipitadas. Ele sabe o que não sabe, ou seja, por que Deus nos abençoa com prosperidade ou permite que soframos adversidades. E ele sabe o que sabe: que Deus é fiel, mesmo quando Deus permite que experimentemos grande dor e sofrimento. Eis o resultado: “Em tudo isso Jó não pecou e não culpou a Deus de coisa alguma” (Jó 1.22).
Deus permite que Satanás destrua a saúde de Jó (Jó 2.1-11)
Voltar ao índice Voltar ao índiceJó é capaz de suportar perdas avassaladoras sem comprometer sua “integridade” ou irrepreensibilidade [1] (Jó 2.3). Mas Satanás não desiste. Talvez Jó simplesmente não tenha enfrentado dor e sofrimento suficientes. Satanás agora o acusa de servir a Deus apenas porque ainda tem saúde (Jó 2.4). Portanto, Deus permite que o acusador aflija Jó “com feridas terríveis, da sola dos pés ao alto da cabeça” (Jó 2.7). Isso é especialmente irritante para a esposa de Jó, a ponto de ela lhe perguntar: “Você ainda mantém a sua integridade? Amaldiçoe a Deus, e morra!” (Jó 2.9). Ela aceita que Jó seja irrepreensível aos olhos de Deus, mas, diferentemente dele, não vê sentido em ser irrepreensível se isso não traz as bênçãos de Deus. Jó responde com um dos versículos clássicos das Escrituras: “Aceitaremos o bem dado por Deus, e não o mal?” (Jó 2.10).
Mais uma vez, encontramos Jó atribuindo todas as circunstâncias da vida a Deus. Enquanto isso, Jó não tem conhecimento da atividade celestial que está por trás de sua situação. Ele não pode ver o funcionamento interno do céu, e é apenas a integridade de sua fé que o impede de amaldiçoar a Deus. E nós? Assim como Jó, conseguimos reconhecer que não entendemos os mistérios do céu que moldam nossa prosperidade e nossa adversidade? Nós nos preparamos para a adversidade praticando fidelidade e ação de graças durante os bons tempos? O inabalável hábito de Jó de oração e sacrifício pode ter parecido estranho ou até obsessivo quando o encontramos em Jó 1.5. Mas agora podemos ver que uma vida inteira de práticas fiéis forjou sua capacidade de permanecer fiel em circunstâncias extremas. A fé em Deus pode vir em um instante. A integridade é formada ao longo da vida.
A adversidade de Jó surge em seu ambiente de trabalho, com a perda de seus meios de subsistência. Ela se espalha para sua família e, por fim, ataca sua saúde. Esse padrão nos é familiar. Podemos facilmente nos identificar tanto com nosso trabalho que os contratempos no ambiente de trabalho se espalham para nossa família e nossa vida pessoal. Os problemas no ambiente de trabalho ameaçam nossa identidade e até mesmo nossa integridade. Isso, somado à tensão prática de perder renda e segurança, pode prejudicar gravemente os relacionamentos familiares. Embora raramente causem mortes violentas, o estresse relacionado ao trabalho pode levar à destruição permanente de famílias. Por fim, podemos experimentar problemas de saúde física e mental debilitantes. Podemos não mais conseguir encontrar paz, descanso ou mesmo uma boa noite de sono (Jó 3.26). Em meio a tudo isso, Jó mantém sua integridade. Pode ser tentador traçar uma moral do tipo: “Não se envolva tanto com seu trabalho que os problemas dele afetem sua família ou sua saúde”. Mas isso não faria justiça à profundidade da história de Jó. Os problemas de trabalho afetaram sua família e sua saúde, além de seu trabalho. A sabedoria de Jó não é sobre como minimizar a adversidade mantendo limites sábios, mas sobre como manter a fidelidade mesmo nas piores circunstâncias da vida.
Os amigos de Jó chegam para consolá-lo (Jó 2.11-13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceCom Satanás tendo feito o seu pior, Jó realmente precisava de algum apoio. Os três amigos de Jó entram na história e são descritos como homens sensíveis, piedosos e solidários. Eles chegam a sentar-se com Jó por sete dias e sete noites (Jó 2.13). Eles são sábios o suficiente — naquele momento — para não dizer nada. O conforto vem da presença dos amigos na adversidade, não de qualquer coisa que eles possam dizer para melhorar as coisas. Nada que eles viessem a dizer poderia melhorar as coisas.
O primeiro lamento de Jó (Jó 3)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNão resta nada para Jó além de lamentar. Ele se recusa a se incriminar falsamente e se recusa a culpar ou abandonar Deus. Mas ele não hesita em expressar sua angústia nos termos mais fortes. “Pereça o dia do meu nascimento e a noite em que se disse: ‘Nasceu um menino!’” (Jó 3.3). “Por que não morri ao nascer, e não pereci quando saí do ventre?” (Jó 3.11). “Por que não me sepultaram como criança abortada, como um bebê que nunca viu a luz do dia?” (Jó 3.16). “Por que se dá vida àquele cujo caminho é oculto, e a quem Deus fechou as saídas?” (Jó 3.23). Observe que o lamento de Jó é quase inteiramente na forma de perguntas. A causa de seu sofrimento é um mistério. Na verdade, pode ser o maior mistério da fé. Por que Deus permite que as pessoas que ele ama sofram? Jó não sabe a resposta; portanto, a coisa mais honesta que ele pode fazer é externar tais perguntas.
Os amigos de Jó o acusam de fazer o mal (Jó 4—23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceLamentavelmente, os amigos de Jó não são capazes de suportar o mistério de seu sofrimento, então tiram conclusões precipitadas sobre sua origem. O primeiro dos três, Elifaz, reconhece que Jó tem sido uma fonte de força para os outros (Jó 4.3-4). Mas então ele se vira e coloca a culpa pelo sofrimento de Jó diretamente no próprio Jó. “Reflita agora”, diz ele, “Qual foi o inocente que chegou a perecer? Onde os íntegros sofreram destruição? Pelo que tenho observado, quem cultiva o mal e semeia maldade, isso também colherá” (Jó 4.7-8). O segundo amigo de Jó, Bildade, diz a mesma coisa. “Pois o certo é que Deus não rejeita o íntegro, e não fortalece as mãos dos que fazem o mal” (Jó 8.20). O terceiro amigo, Zofar, repete o refrão. “Se afastar das suas mãos o pecado e não permitir que a maldade habite em sua tenda, então você levantará o rosto sem envergonhar-se; será firme e destemido. ... A vida será mais refulgente que o meio-dia” (Jó 11.14-15,17).
O raciocínio deles é um silogismo. Deus envia calamidades apenas sobre pessoas iníquas. Você sofreu uma calamidade. Portanto, você deve ser iníquo. O próprio Jó evita esse falso silogismo. Mas é algo muito comumente aceito pelos cristãos. É chamada de teologia da retribuição divina e pressupõe que Deus abençoa aqueles que são fiéis a ele e castiga aqueles que pecam. Não é algo totalmente sem apoio bíblico. Existem muitos casos em que Deus envia calamidade como punição, como, por exemplo, no caso de Sodoma (Gn 19.1-29). Muitas vezes, nossas experiências confirmam essa posição teológica. Na maioria das situações, as coisas ficam melhores quando seguimos os caminhos de Deus do que quando os abandonamos. No entanto, Deus não trabalha sempre dessa forma. O próprio Jesus salientou que o desastre não é necessariamente um sinal do juízo de Deus (Lc 13.4). No caso de Jó, sabemos que a teologia da retribuição divina não é verdadeira, porque Deus diz que Jó é um homem justo (Jó 1.8, 2.3). O erro devastador dos amigos de Jó é aplicar uma generalização à situação de Jó, sem saber do que estão falando.
Qualquer pessoa que tenha passado um tempo com um amigo em sofrimento sabe como é difícil permanecer presente sem tentar dar respostas. É excruciante sofrer em silêncio com um amigo que deve reconstruir a vida pedaço por pedaço, sem nenhuma certeza sobre o resultado. Nosso instinto é investigar o que deu errado e identificar uma solução. Então imaginamos que podemos ajudar nosso amigo a eliminar a causa e voltar ao normal o mais rápido possível. Conhecendo a causa, saberemos pelo menos como evitar o mesmo destino. Preferimos dar uma razão para o sofrimento — seja ela certa ou errada — em vez de aceitar o mistério em meio ao sofrimento.
Os amigos de Jó sucumbem a essa tentação. Seria tolice imaginar que nunca faríamos o mesmo. Quanto dano os cristãos bem-intencionados causaram ao dar respostas que soam piedosas ao sofrimento, mesmo que não tenhamos ideia do que estamos falando? “É tudo para o melhor.” “Faz parte do plano de Deus.” “Deus nunca envia às pessoas mais adversidade do que elas podem suportar.” Como é arrogante imaginar que conhecemos o plano de Deus. Que tolice pensar que sabemos a razão do sofrimento de outra pessoa. Nem mesmo sabemos a razão de nosso sofrimento. Seria mais verdadeiro — e muito mais útil — admitir: “Não sei por que isso aconteceu com você. Ninguém deveria ter de passar por isso.” Se pudermos fazer isso, e então permanecer presentes, podemos nos tornar agentes da compaixão de Deus.
Os amigos de Jó não podem lamentar com Jó ou mesmo reconhecer que não têm base para julgá-lo. Eles estão determinados (literalmente, dado o papel de Satanás) a defender Deus, colocando a culpa em Jó. À medida que os discursos dos amigos continuam, sua retórica se torna cada vez mais hostil. Confrontados com a escolha autoimposta de culpar Jó ou culpar Deus, eles endurecem o coração contra seu ex-amigo. “Não são infindos os seus pecados?”, diz Elifaz (Jó 22.5), e então inventa algumas iniquidades para acusar Jó. “Você não deu água ao sedento e reteve a comida do faminto” (Jó 22.7). “Você mandou embora de mãos vazias as viúvas e quebrou a força dos órfãos” (Jó 22.9).
O último discurso de Zofar observa que os iníquos não desfrutarão de suas riquezas porque “Deus fará seu estômago lançá-las fora” (Jó 20.15) e que cada um “terá que devolver aquilo pelo que lutou, sem aproveitá-lo, e não desfrutará dos lucros do seu comércio” (Jó 20.18). Esta é uma correção apropriada da transgressão do ímpio, que “tem oprimido os pobres e os tem deixado desamparados; apoderou-se de casas que não construiu” (Jó 20.19). O leitor sabe que isso não se aplica a Jó. Por que Zofar está tão ansioso para culpar Jó? Será que às vezes também não estamos ansiosos demais para seguir os passos de Zofar quando nossos amigos enfrentam fracassos no trabalho e na vida?
O livro de Jó exige que nos olhemos no rosto dos amigos de Jó. Nós também — presumivelmente — sabemos distinguir o certo do errado e temos alguma noção dos caminhos de Deus. Mas não sabemos tudo dos caminhos de Deus, nem como eles se aplicam em todos os tempos e lugares. “Tal conhecimento é maravilhoso demais e está além do meu alcance; é tão elevado que não o posso atingir” (Sl 139.6). Os caminhos de Deus são muitas vezes um mistério além de nossa compreensão. É possível que também sejamos culpados de julgamentos ignorantes contra nossos amigos e colegas de trabalho?
Mas não precisam ser os amigos que nos acusam. Ao contrário de Jó, a maioria de nós está pronta para acusar a si mesmo. Qualquer um que tenha provado o fracasso provavelmente já pensou: “O que eu fiz para merecer isso?” É natural e não totalmente incorreto. Às vezes, por pura preguiça, informações incorretas ou incompetência, tomamos decisões ruins que nos levam a fracassar no trabalho. No entanto, nem todos os fracassos são o resultado direto de nossas próprias falhas. Muitos são o resultado de circunstâncias fora de nosso controle. Os ambientes de trabalho são complexos, com muitos fatores competindo por nossa atenção, muitas situações ambíguas e muitas decisões em que os resultados são impossíveis de prever. Como sabemos se estamos seguindo os caminhos de Deus o tempo todo? Como nós ou qualquer outra pessoa poderíamos saber genuinamente se nossos sucessos e fracassos se devem a nossas próprias ações ou a fatores além de nosso controle? Como alguém de fora poderia julgar a correção de nossas ações sem conhecer os detalhes íntimos de nossas situações? Na verdade, como poderíamos até mesmo julgar a nós mesmos, dar os limites de nosso próprio conhecimento?
Os amigos de Jó o acusam de abandonar a Deus (Jó 8—22)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm certo momento, os amigos de Jó deixam de questionar o que Jó fez de errado e passam a questionar se Jó abandonou a Deus (Jó 15.4; 20.5). Ao longo do caminho, os amigos encorajam Jó a voltar para Deus. Bildade instrui Jó a “implorar junto ao Todo-poderoso” (Jó 8.5), para que seu futuro seja “de grande prosperidade” (Jó 8.7) e cheio de “riso” e “brados de alegria” (Jó 8.21). Elifaz o exorta: “Se você voltar para o Todo-poderoso, voltará ao seu lugar” (Jó 22.23). Novamente, em termos gerais, esse é um bom conselho. Frequentemente nos afastamos de Deus e precisamos ser chamados de volta a ele. No entanto, nós, leitores, sabemos que Jó não fez nada para merecer seu sofrimento, e o efeito dos ataques de seus amigos é fazer com que Jó comece a duvidar de si mesmo. Justamente quando ele precisa que seus amigos acreditem nele, eles o impedem de acreditar em si mesmo. Como eles podem apoiá-lo quando já se decidiram quanto a ele?
Jó defende seu caso a Deus (Jó 5—13)
Voltar ao índice Voltar ao índiceEm contraste, Jó tem a sabedoria que muitos cristãos não têm. Ele sabe direcionar suas emoções para Deus, e não para si mesmo ou para os que o cercam. Ele acredita que a fonte das bênçãos — e até das adversidades — é Deus, então leva sua reclamação à fonte. “Mas desejo falar ao Todo-poderoso e defender a minha causa diante de Deus. ... Quantos erros e pecados cometi? Mostra-me a minha falta e o meu pecado. Por que escondes o teu rosto e me consideras teu inimigo?” (Jó 13.3,23-24). Ele reconhece que não entende os caminhos de Deus. “Ele realiza maravilhas insondáveis, milagres que não se pode contar” (Jó 5.9). Ele sabe que nunca poderá prevalecer em uma discussão contra Deus. “Ainda que quisesse discutir com ele, não conseguiria argumentar nem uma vez em mil. Sua sabedoria é profunda, seu poder é imenso. Quem tentou resistir-lhe e saiu ileso?” (Jó 9.3-4). Mas ele sabe que sua angústia precisa sair de algum lugar. “Por isso não me calo; na aflição do meu espírito desabafarei, na amargura da minha alma farei as minhas queixas” (Jó 7.11). É melhor direcioná-la a Deus, que pode lidar com isso facilmente, do que contra si mesmo ou contra aqueles que ele ama, que não podem.
Os amigos de Jó tentam proteger Deus (Jó 22—23)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTodos nós conhecemos os demônios que nos atormentam após o fracasso. Duvidamos de nós mesmos durante noites sem dormir, em momentos de autotortura. Parece até a coisa sagrada a se fazer — proteger Deus culpando a nós mesmos. Se duvidamos de nós mesmos assim, imagine como duvidamos de nossos amigos, embora raramente tenhamos consciência disso. Os amigos de Jó nos mostram como se faz. Em sua ânsia de proteger Deus dos protestos de Jó, eles aumentam seus ataques a Jó. No entanto, ao longo dos séculos, a leitura cristã de Jó viu os amigos como ferramentas de Satanás, não de Deus. Deus não precisa de proteção. Ele pode cuidar de si mesmo. Satanás gostaria de provar a Deus que Jó serviu a Deus apenas porque este o abençoou tão ricamente. Se Jó admitisse ter feito algo errado, quando na realidade não fez, estaria dando o primeiro passo para validar o ataque do acusador.
Por exemplo, o último discurso de Elifaz se concentra em colocar Deus acima de qualquer suspeita. “Pode alguém ser útil a Deus? Mesmo um sábio, pode ser-lhe de algum proveito?” (Jó 22.2). “Não está Deus nas alturas dos céus?” (Jó 22.12). “Sujeite-se a Deus, fique em paz com ele” (Jó 22.21). “O Todo-poderoso será o seu ouro, será para você prata seleta. É certo que você achará prazer no Todo-poderoso e erguerá o rosto para Deus. A ele orará, e ele o ouvirá, e você cumprirá os seus votos” (Jó 22.25-27).
Jó, no entanto, não está tentando culpar a Deus. Ele está tentando aprender com Deus. Apesar da horrível adversidade que Deus permitiu que afligisse Jó, ele acredita que Deus pode usar a experiência para moldar sua alma para melhor. “Se me puser à prova, aparecerei como o ouro”, diz Jó (Jó 23.10). “Executa o seu decreto contra mim, e tem muitos outros planos semelhantes” (Jó 23.14). Paul Stevens e Alvin Ung apontaram quantos eventos que moldam a alma ocorrem no trabalho. [1] As forças das trevas do mundo caído ameaçam minar nossa alma lá, mas Deus deseja que nossa alma saia como ouro, refinada e moldada à semelhança particular de Deus que ele tem em mente para cada um de nós. Imagine como seria a vida se pudéssemos encontrar crescimento espiritual não apenas quando estamos na igreja, mas em todas as horas que passamos trabalhando. Para isso, precisaríamos de conselheiros espirituais sábios e sensíveis quando enfrentarmos provações no trabalho. Os amigos de Jó, atolados em repetir inconscientemente máximas espirituais convencionais, não o ajudam em nada a esse respeito.
As queixas de Jó assumem um significado especial para o nosso trabalho (Jó 24)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTal como Jó, nosso sofrimento geralmente começa com dificuldades no trabalho. Mas raramente o povo de Deus está equipado — ou mesmo disposto — a ajudar uns aos outros a lidar com falhas e perdas no ambiente de trabalho. Podemos procurar um pastor ou um amigo cristão em busca de ajuda em um problema familiar ou de saúde, e eles podem ser realmente úteis. Mas, se/quando temos problemas no ambiente de trabalho, pedimos ajuda a eles? Se o fizermos, quanta ajuda provavelmente receberemos?
Por exemplo, imagine que você tenha sido tratado injustamente por sua chefe, talvez apontado como culpado pelo erro dela ou humilhado durante uma discussão legítima. Não seria apropriado revelar seus sentimentos a clientes, fornecedores, alunos, pacientes ou outras pessoas a quem você atende em seu trabalho. Seria prejudicial reclamar com seus colegas de trabalho, até mesmo com seus amigos. Se a comunidade cristã estivesse equipada para ajudá-lo a lidar com a situação, isso poderia ser uma bênção única. Mas nem toda igreja está totalmente equipada para ajudar as pessoas a lidar com dificuldades relacionadas ao trabalho. Seria esta uma área em que as igrejas precisam melhorar?
Vimos que Jó não tem medo de levar suas reclamações a Deus, incluindo reclamações relacionadas ao trabalho. A série de denúncias em Jó 24.1-12,22-25 diz respeito particularmente ao trabalho. Jó reclama que Deus permite que pessoas más escapem da injustiça no trabalho e na atividade econômica. As pessoas se apropriam de recursos públicos para ganho pessoal e roubam a propriedade privada dos outros (Jó 24.2). Exploram os fracos e impotentes para obter lucros enormes para si mesmas (Jó 24.3). Os arrogantes conseguem o que querem no trabalho, enquanto os honestos e humildes são lançados na terra (Jó 24.4). Os mais pobres não têm oportunidade de ganhar a vida e são reduzidos a catar lixo e até roubar dos ricos para alimentar suas famílias (Jó 24.5-8). Outros trabalham arduamente, mas não ganham o suficiente para desfrutar dos frutos de seu trabalho. “Carregam os feixes, mas continuam famintos. Espremem azeitonas dentro dos seus muros; pisam uvas nos lagares, mas assim mesmo sofrem sede” (Jó 24.10-11).
Jó sabe que toda bênção vem de Deus e que toda adversidade é permitida — se não causada — por Deus. Portanto, podemos sentir a dor aguda na queixa de Jó: “Sobem da cidade os gemidos dos que estão para morrer, e as almas dos feridos clamam por socorro. Mas Deus não vê mal nisso” (Jó 24.12). Os amigos de Jó o acusam de abandonar a Deus, mas a evidência parece mostrar que os justos são abandonados por Deus. Enquanto isso, os ímpios parecem levar uma vida encantadora. “Mas Deus, por seu poder, os arranca; embora firmemente estabelecidos, a vida deles não tem segurança. Ele poderá deixá-los descansar, sentindo-se seguros, mas atento os vigia nos caminhos que seguem” (Jó 24.22-23). Jó acredita que os ímpios serão abatidos. “Por um breve instante são exaltados, e depois se vão, colhidos como todos os demais, ceifados como espigas de cereal” (Jó 24.24). Mas por que Deus permite que os ímpios prosperem?
Não há resposta no livro de Jó, e não há resposta conhecida pela humanidade. A adversidade econômica é uma dor muito real que muitos cristãos enfrentam por anos ou mesmo por toda a vida. Talvez tenhamos de abandonar nossa educação quando somos jovens devido a dificuldades financeiras, e isso pode impedir que alcancemos nosso potencial no ambiente de trabalho. Podemos ser explorados por outros ou usados como bodes expiatórios para a ruína de nossas carreiras. Podemos nascer, lutar para sobreviver e morrer sob o domínio de um governo corrupto que mantém seu povo na pobreza e na opressão. Esses são apenas alguns exemplos relacionados ao trabalho. De muitas outras maneiras, podemos sofrer danos graves, dolorosos e injustos que nunca poderemos entender — muito menos remediar — nesta vida. Pela graça de Deus, esperamos nunca nos tornar complacentes diante da injustiça e do sofrimento. No entanto, há momentos em que não podemos consertar as coisas, pelo menos não imediatamente. Nessas situações, temos apenas três opções: inventar uma explicação plausível, mas falsa, sobre como Deus permitiu que isso acontecesse, como fazem os amigos de Jó; abandonar Deus; ou permanecer fiel a Deus mesmo sem receber uma resposta.
Sabedoria revelada (Jó 28)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA escolha de Jó é permanecer fiel a Deus. Ele entende que a sabedoria de Deus está muito além de sua compreensão. Jó 28 emprega a mineração como uma analogia para a busca de sabedoria. Ela revela que a sabedoria “não se encontra na terra dos viventes” (Jó 28.13), mas na mente de Deus. “Deus conhece o caminho para ela e conhece o seu lugar” (Jó 28.23). Este é um lembrete de que conhecimento técnico e habilidade prática não são suficientes para um trabalho verdadeiramente significativo. Também precisamos do espírito de Deus ao realizarmos nossas tarefas. Precisamos da orientação de Deus muito além do reino das coisas que comumente consideramos “espirituais”. Quando um professor tenta discernir como um aluno aprende, quando um líder tenta se comunicar com clareza, quando um júri tenta determinar a intenção de um réu, quando um analista tenta avaliar os riscos de um projeto, todos precisam da sabedoria de Deus. Seja qual for o objetivo de nosso trabalho, “Deus conhece o caminho; só ele sabe onde ela habita” (Jó 28.23).
No entanto, nem sempre podemos entrar em contato com a sabedoria de Deus. “Escondida está dos olhos de toda criatura viva, até das aves dos céus” (Jó 28.21). Apesar de nossas melhores tentativas — ou, às vezes, por causa de nossos esforços medíocres — podemos não encontrar a orientação de Deus para cada ação e decisão. Nesse caso, é melhor reconhecer nossa ignorância do que apostar na especulação ou na falsa sabedoria. Às vezes, a humildade é a melhor maneira de honrar a Deus. “No temor do Senhor está a sabedoria, e evitar o mal é ter entendimento” (Jó 28.28).
O segundo lamento de Jó (Jó 29—42)
Voltar ao índice Voltar ao índiceComo observado na introdução, Jó 29—42 marca um segundo ciclo de lamentação-discurso-revelação que recapitula o primeiro. Por exemplo, em Jó 29, a lembrança de Jó dos bons velhos tempos nos traz de volta à sua cena idílica no capítulo 1. Em Jó 30, a angústia de Jó por ter sofrido rejeição de muitos nos lembra do distanciamento de sua esposa no capítulo 2. O lamento de Jó nos capítulos 30—31 são versões prolongadas de seu lamento no capítulo 3. No entanto, cada fase do segundo ciclo traz uma nova ênfase.
Jó cai em nostalgia e autojustificação (Jó 29—30)
Voltar ao índice Voltar ao índiceAs novas ênfases no segundo lamento de Jó (Jó 29—42) são nostalgia e autojustificação. Jó diz: “Como tenho saudade dos meses que se passaram, dos dias em que Deus cuidava de mim” (Jó 29.2) e “quando a amizade de Deus abençoava a minha casa” (Jó 29.4). Ele se lembra de quando “minhas veredas se embebiam em nata e a rocha me despejava torrentes de azeite” (Jó 29.6). Ele se lembra de como era respeitado na comunidade, o que, na linguagem do Antigo Testamento, é retratado de maneira mais dramática por seu “assento na praça”, perto da “porta da cidade” (Jó 29.7). Jó era bem recebido por jovens e idosos (Jó 29.8) e tratado com respeito incomum pelos líderes e nobres (Jó 29.10). Ele era respeitado porque atendia às necessidades dos pobres, órfãos, viúvas, cegos, coxos, necessitados, estrangeiros e moribundos (Jó 29.12-16). Ele era seu defensor contra os ímpios (Jó 29.17).
A nostalgia de Jó aprofunda seu sentimento de perda quando ele percebe que muito do respeito que recebia no trabalho e na vida civil era superficial. “Agora que Deus afrouxou a corda do meu arco e me afligiu, eles ficam sem freios na minha presença” (Jó 30.11). “E agora os filhos deles zombam de mim com suas canções” (Jó 30.9). Algumas pessoas experimentam uma sensação semelhante de perda devido à aposentadoria, revés na carreira, perda financeira ou qualquer tipo de falha percebida. Podemos questionar nossa identidade e duvidar de nosso valor. Outras pessoas nos tratam de maneira diferente quando falhamos ou, pior ainda, simplesmente ficam longe de nós. (Pelo menos, os amigos de Jó foram vê-lo.) Ex-amigos agem com cautela quando precisam estar ao nosso redor, falam em voz baixa, como se esperassem que ninguém os visse perto de nós. Talvez eles pensem que o fracasso é uma doença contagiosa, ou talvez ser visto perto de um fracasso também os rotule como fracassados. “Eles me detestam e se mantêm à distância”, lamenta Jó (Jó 30.10).
Isso não quer dizer que todas as amizades sociais e no ambiente de trabalho sejam superficiais. É verdade que algumas pessoas fazem amizade conosco apenas porque somos úteis a elas, e então nos abandonam quando deixamos de ser úteis. O que realmente dói é a perda do que pareciam ser amizades genuínas.
Em contraste com seu primeiro lamento (Jó 3), Jó apresenta uma grande parte de autojustificação nesta rodada. “A justiça era o meu manto e o meu turbante” (Jó 29.14). “Eu era o pai dos necessitados” (Jó 29.16). Jó alardeia sua pureza sexual impecável (Jó 31.1,9-10). Sempre soubemos que Jó não estava sendo castigado por nenhuma falta. Ele pode ser preciso em sua autoavaliação, mas a autojustificação não é necessária nem agradável. A adversidade nem sempre traz o melhor de nós. No entanto, Deus permanece fiel, embora Jó não seja capaz de ver isso no momento, “pois”, como ele diz mais tarde, “eu tinha medo que Deus me destruísse” (Jó 31.23).
As práticas éticas de Jó se aplicam ao ambiente de trabalho (Jó 31)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo meio do segundo lamento de Jó (Jó 29—42), ele revela um tratado significativo sobre comportamento ético, que de certa forma antecipa o “Sermão do Monte” de Jesus (Mt 5—7). Mesmo querendo justificar suas próprias práticas, Jó fornece alguns princípios que se aplicam a muitas áreas de nossa vida profissional:
Evite a falsidade e o engano (Jó 31.5)
Não permita que os fins justifiquem os meios, ou seja, não permita que o coração (princípios) seja enganado pelos olhos (oportunismo) (Jó 31.7)
Pratique a generosidade (Jó 31.16-23)
Não se torne complacente em tempos de prosperidade (Jó 31.24-28)
Não faça seu sucesso depender do fracasso dos outros (Jó 31.29)
Admita seus erros (Jó 31.33)
Não tente obter algo por nada, mas pague adequadamente pelos recursos que consumir (Jó 31.38-40)
De particular interesse é esta passagem sobre como ele trata seus funcionários:
Se neguei justiça aos meus servos e servas, quando reclamaram contra mim, que farei quando Deus me confrontar? Que responderei quando chamado a prestar contas? Aquele que me fez no ventre materno não os fez também? Não foi ele que nos formou, a mim e a eles, no interior de nossas mães? (Jó 31.13-15).
Um empregador piedoso tratará os funcionários com respeito e dignidade. Isso é particularmente evidente na maneira como Jó leva a sério as queixas de seus servos, especialmente aquelas que eram direcionadas ao modo como ele os tratava. Jó aponta corretamente que aqueles que estão no poder terão de se apresentar diante de Deus para defender o tratamento que dispensam aos que estão sob eles. “Que farei quando Deus me confrontar? Que responderei quando chamado a prestar contas?” (Jó 31.14). Deus perguntará aos subordinados como seus superiores os trataram. Os superiores seriam sábios em fazer a mesma pergunta a seus subordinados, enquanto ainda é possível remediar seus erros. A marca dos verdadeiros e humildes seguidores de Deus é sua abertura à possibilidade de estarem errados, o que é mais evidenciado por sua disposição de responder a todas e quaisquer queixas legítimas. A sabedoria é necessária para discernir quais queixas realmente merecem atenção. No entanto, o objetivo principal é cultivar um ambiente no qual os subordinados saibam que os superiores acolherão apelos ponderados e racionais. Embora Jó esteja falando sobre si mesmo e seus servos, seu princípio se aplica a qualquer situação de autoridade: oficiais e soldados, empregadores e funcionários, pais e filhos (criar filhos também é uma ocupação), líderes e seguidores.
Nosso tempo tem visto grandes lutas por igualdade no ambiente de trabalho com relação a raça, religião, nacionalidade, sexo, classe e outros fatores. O livro de Jó antecipa essas lutas em milhares de anos. No entanto, Jó vai além da mera igualdade formal das categorias demográficas. Ele vê a dignidade igual de todas as pessoas em sua casa. Seremos como Jó quando tratarmos cada pessoa com toda a dignidade e o respeito devidos a um filho de Deus, independentemente de nossos sentimentos pessoais ou do sacrifício exigido de nossa parte.
É claro que essa verdade não impede que os chefes cristãos estabeleçam e exijam altos padrões no ambiente de trabalho. No entanto, exige que a ética de qualquer relacionamento no ambiente de trabalho seja caracterizado por respeito e dignidade, especialmente por parte dos poderosos.
Diálogo com Eliú (Jó 32—37)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNesse ponto, um jovem espectador chamado Eliú entra na discussão. Seu diálogo com Jó é paralelo ao discurso entre Jó e seus amigos nos capítulos 4—27. De acordo com Eliú, o novo elemento é que ele é inspirado a falar a sabedoria que faltava aos amigos de Jó. “Quem está com você é a perfeição no conhecimento”, ele anuncia (Jó 36.4). Eliú então denuncia os amigos por sua incapacidade de derrotar Jó (Jó 32.8,18). Por causa de seu orgulho — e lembrando que, quanto mais confiantes os amigos de Jó falavam contra ele, mais imprecisas se tornavam suas acusações —, não devemos esperar muita sabedoria de Eliú. Na maioria das vezes, ele simplesmente reitera os argumentos apresentados anteriormente. Seu plano é o mesmo dos amigos, que é primeiro convencer Jó de que ele fez algo para merecer essa punição, depois encorajar Jó a se arrepender a fim de receber bênçãos restauradas de Deus (Jó 36.10-11). Ele introduz um novo princípio relacionado ao trabalho, mostrando que é errado aceitar suborno (Jó 36.18). É uma declaração verdadeira, discutida mais profundamente em outras partes das Escrituras, mas erroneamente aplicada como uma falsa acusação contra Jó.
Deus aparece (Jó 38.1—42.9)
Voltar ao índice Voltar ao índiceNo primeiro ciclo do livro, os discursos dos amigos de Jó foram interrompidos pela revelação da sabedoria de Deus. O novo elemento no segundo ciclo é que o discurso de Eliú é interrompido pela dramática aparição do próprio Deus (Jó 38.1). Por fim, Deus cumpre o desejo de Jó de um encontro face a face. O leitor estava esperando para ver se Jó finalmente se deixaria levar e amaldiçoaria Deus na própria cara. Em vez disso, Jó se mantém firme, mas recebe uma instrução adicional sobre como a sabedoria de Deus está além do conhecimento humano.
Quem pode compreender a sabedoria de Deus? (Jó 38.4—42.6)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA primeira pergunta de Deus a Jó dá o tom de sua conversa, em sua maioria de mão única: “Onde você estava quando lancei os alicerces da terra? Responda-me, se é que você sabe tanto” (Jó 38.4). Empregando uma das mais espetaculares linguagens sobre a criação na Bíblia, Deus revela sua autoria exclusiva das maravilhas da criação. Isso ressoa fortemente no trabalho. Nosso trabalho reflete nossa criação à imagem de Deus, o grande Criador (Gn 1—2). Mas aqui Deus discorre sobre um trabalho que somente ele é capaz de fazer. “E os seus fundamentos, sobre o que foram postos? E quem colocou sua pedra de esquina, enquanto as estrelas matutinas juntas cantavam e todos os anjos se regozijavam?” (Jó 38.6-7). “Quem represou o mar pondo-lhe portas, quando ele irrompeu do ventre materno” (Jó 38.8). “É graças à inteligência que você tem que o falcão alça voo e estende as asas rumo ao sul? É por sua ordem, que a águia se eleva e no alto constrói o seu ninho?” (Jó 39.26-27).
Curiosamente, embutida em meio à autoridade de Deus sobre o mundo natural, há uma visão profunda da condição humana. Deus pergunta a Jó: “Quem foi que deu sabedoria ao coração e entendimento à mente?” (Jó 38.36). A resposta, claro, aponta para Deus. Ao mesmo tempo, isso afirma nossa busca por compreensão e demonstra seus limites. A sabedoria que Deus põe em nosso interior torna possível ansiarmos por uma resposta para o mistério do sofrimento. No entanto, nossa sabedoria vem apenas de Deus; portanto, não podemos ser mais espertos do que Deus com nossa própria sabedoria. Na verdade, ele implantou em nós apenas uma pequena fração de sua sabedoria, de modo que nunca teremos a capacidade de compreender todos os seus caminhos. Como vimos, pode ser bom para nossa alma expressar nossas queixas contra Deus. Mas seria tolice esperar que ele respondesse: “Sim, agora posso ver que eu estava errado”.
Buscando ainda mais esse encontro desigual, Deus lança um desafio impossível a Jó: “Aquele que contende com o Todo-poderoso poderá repreendê-lo? Que responda a Deus aquele que o acusa!” (Jó 40.2). Como Jó anteriormente já havia reconhecido que “não sei” costuma ser a resposta mais sábia, sua humilde resposta não é surpreendente. “Sou indigno; como posso responder-te? Ponho a mão sobre a minha boca” (Jó 40.4).
A maioria dos comentaristas sugere que Deus está dando a Jó uma visão mais ampla de suas circunstâncias. Assim como alguém que fica muito perto de uma pintura e não consegue apreciar a perspectiva do artista, Jó precisa dar alguns passos para trás para poder vislumbrar com mais clareza — se não entender completamente — os propósitos maiores de Deus.
Deus continua com um ataque frontal contra aqueles que o acusam de transgressão na administração de sua criação. Deus repudia as tentativas de Jó de se justificar. “Você vai pôr em dúvida a minha justiça? Vai condenar-me para justificar-se?” (Jó 40.8) A tentativa de Jó de transferir a culpa remonta à resposta de Adão, quando Deus perguntou se ele comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal. “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi” (Gn 3.12).
Levar nossas queixas a Deus é algo bom se tomarmos os livros de Jó, Salmos e Habacuque como modelos inspirados de como nos aproximarmos de Deus em tempos de angústia. No entanto, acusar Deus para encobrir nossas próprias falhas é o cúmulo da arrogância (Jó 40.11-12). Deus repudia Jó por fazer isso. No entanto, mesmo assim, Deus não condena Jó por expressar sua queixa contra Deus. A acusação de Jó contra Deus é errada além da razão, mas não além do perdão.
Jó consegue a audiência com Deus que ele estava pedindo. Isso não responde à sua pergunta se ele merecia o sofrimento que experimentou. Jó percebe que a culpa é dele, por esperar saber a resposta, e não de Deus, por não providenciá-la. “Certo é que falei de coisas que eu não entendia, coisas tão maravilhosas que eu não poderia saber” (Jó 42.3). Talvez seja apenas porque ele está tão impressionado com a presença de Deus que não precisa mais de uma resposta.
Se estivermos procurando uma razão para o sofrimento de Jó, também não a encontraremos. Por um lado, a provação de Jó deu a ele uma apreciação ainda maior pela bondade de Deus. “Sei que podes fazer todas as coisas; nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42.2). O relacionamento de Jó com Deus parece ter se aprofundado e, como resultado, ele se tornou mais sábio. Mais do que nunca, ele reconhece que sua prosperidade anterior não se devia à sua própria força e poder. Mas a diferença é apenas uma questão de grau. A melhoria incremental valeu a perda indescritível? Não recebemos uma resposta para essa pergunta de Jó ou de Deus.
Deus denuncia os amigos de Jó (Jó 42.7-9)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDeus denuncia os três amigos, cuja arrogante proclamação de falsa sabedoria tanto atormentou Jó. Em uma reviravolta satisfatória e irônica, ele declara que, se Jó interceder em nome deles, ele não os punirá por seus discursos ignorantes em lugar de Deus (Jó 42.7-8). Eles, que erroneamente exortaram Jó a se arrepender, agora dependiam de Jó para aceitar o arrependimento deles, bem como de Deus para cumprir a súplica de Jó em favor deles. O ato de Jó orar em nome deles nos lembra do primeiro capítulo, em que Jó ora pela proteção de seus filhos. Jó é um homem de oração, em todo e qualquer momento.
Como parte de nossa recuperação do fracasso, faríamos bem em orar por aqueles que nos atormentaram ou duvidaram de nós durante nossa dor. Mais tarde, Jesus nos chamou para orar por nossos inimigos (Mt 5.44, Lc 6.27-36), e esse ensino é visto em ambos os contextos como mais do que simplesmente terapêutico. Se pudermos orar por aqueles que nos perseguiram, podemos transcender as circunstâncias passageiras da vida e começar a apreciar a situação da perspectiva de Deus.
Epílogo — A prosperidade de Jó foi restaurada (Jó 42.7-17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA seção que encerra Jó contém um final digno de livros de histórias, no qual muitas das fortunas de Jó são restauradas. Muitas, mas não todas. Ele recebe o dobro da riqueza que tinha antes (Jó 42.10), além de uma nova geração de sete filhos e três filhas (Jó 42.13). Mas seus primeiros filhos se foram para sempre, o que é algo ruim em qualquer hipótese. Assim, embora leiamos que o final da vida de Jó foi mais abençoado do que seu começo (Jó 42.12), sabemos que ainda deve haver um gosto agridoce em sua boca. Após a ressurreição do Filho de Deus, sabemos aquilo que Jó não poderia saber, a saber, que a redenção final de Deus vem somente quando Cristo voltar para estabelecer seu Reino.
Jó deixa uma herança para suas filhas (Jó 42.13-15)
Jó faz algo impressionante após sua provação. Ele deixa uma herança para suas filhas, junto com seus filhos (Jó 42.15). Deixar uma herança para as filhas era algo inédito no Antigo Oriente Próximo, assim como era ilegal em grande parte da Europa até os tempos modernos. O que poderia ter levado Jó a dar esse passo sem precedentes? Sua tristeza por não poder fazer nada por suas filhas falecidas lhe deu a determinação de fazer tudo o que pudesse por suas filhas vivas? Sua dor foi o motor que o levou a superar as barreiras sociais contra a igualdade das mulheres nesse sentido? Seu sofrimento abriu seu coração para o sofrimento dos outros? Ou suas exigências abusivas de conhecer a justiça de Deus foram respondidas por uma compreensão mais elevada do amor de Deus por mulheres e homens? Não podemos saber a causa, mas podemos ver os resultados. Se nada mais nesta vida, o resultado de nosso sofrimento pode ser a libertação dos outros.
O livro chega ao fim (Jó 42.7-17)
E, assim, finalizamos o livro de Jó com observações e perguntas, em vez de conclusões claras. Jó se mostra fiel a Deus na prosperidade e na adversidade. Isso certamente é um modelo para nós. Mas os julgamentos odiosos feitos por seus amigos nos alertam contra a aplicação muito certa de qualquer modelo à nossa própria vida.
Deus se mostra fiel a Jó. Essa é a nossa esperança e conforto supremos. Mas não podemos prever como sua fidelidade se manifestará em nossa vida até que suas promessas sejam cumpridas no novo céu e nova terra. Seria tolice julgar os outros, ou mesmo a nós mesmos, com base nas evidências fracionárias disponíveis para nós, na sabedoria insignificante que somos capazes de compreender e nas perspectivas minúsculas que mantemos. Para as perguntas mais difíceis sobre as circunstâncias de nossa vida, a resposta mais sábia muitas vezes pode ser: “Não sei”.
Versículos e temas-chave em Jó
Voltar ao índice Voltar ao índiceVersículo | Tema |
Jó 1.9-10 “Será que Jó não tem razões para temer a Deus?”, respondeu Satanás. “Acaso não puseste uma cerca em volta dele, da família dele e de tudo o que ele possui? Tu mesmo tens abençoado tudo o que ele faz, de modo que os seus rebanhos estão espalhados por toda a terra”. | Se a lealdade a Deus depende da prosperidade que ele nos dá, nossa fé será, na melhor das hipóteses, superficial e, na pior, questionável. |
Jó 1.20-21 Ao ouvir isso, Jó levantou-se, rasgou o manto e rapou a cabeça. Então prostrou-se, rosto em terra, em adoração, e disse: “Saí nu do ventre da minha mãe, e nu partirei. O Senhor o deu, o Senhor o levou; louvado seja o nome do Senhor”. | A resposta mais apropriada às falhas em nossa vida profissional é reconhecer a autoridade de Deus sobre todas as áreas da vida, sejam elas boas ou más. |
Jó 28.28 No temor do Senhor está a sabedoria, e evitar o mal é ter entendimento. | Todo sucesso significativo na economia de Deus deve começar com um temor saudável ao Senhor. |
Jó 31.13-15 “Se neguei justiça aos meus servos e servas, quando reclamaram contra mim, que farei quando Deus me confrontar? Que responderei quando chamado a prestar contas? Aquele que me fez no ventre materno não os fez também? Não foi ele que nos formou, a mim e a eles, no interior de nossas mães?” | Tratar nossos funcionários como iguais — uma vez que eles também foram criados à imagem de Deus — necessariamente produz respeito e dignidade no relacionamento. |
Jó 38.36 Quem foi que deu sabedoria ao coração e entendimento à mente? | Deus é o criador e sustentador de todas as nossas habilidades. A falha em reconhecer o papel de Deus no sucesso de nossa carreira reduz nossa perspectiva e nos prepara para lutas espirituais. |
Introdução aos Salmos
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro de Salmos pode ser visto, em partes, como hinário, livro de orações, literatura sapiencial e antologia de poemas sobre Israel e Deus. Sua gama de assunto é surpreendentemente ampla. Por um lado, proclama louvor pelo Deus Altíssimo e lhe dirige orações (Sl 50.14-15) e, por outro, abrange experiências humanas tão íntimas quanto lamentar a perda de uma mãe (Sl 35.14). O livro dos Salmos é distinto no Antigo Testamento, pois a maior parte consiste em pessoas falando com Deus. Em outros lugares, o Antigo Testamento retrata principalmente Deus falando com as pessoas (como na Lei e nos Profetas), ou então é uma narrativa.
Embora tenham milhares de anos, praticamente todos os salmos, de uma forma ou de outra, refletem nossas próprias lutas e alegrias de hoje. Seja qual for o assunto de um salmo em particular, cada um dá voz às emoções que sentimos ao lidar com os problemas da vida. Alguns salmos capturam nosso deleite em Deus, à medida que experimentamos a presença divina conosco em uma situação difícil que teve um bom final. Outros expressam emoções cruas de raiva ou tristeza em uma luta para entender por que Deus não agiu como esperávamos que agisse, enquanto os ímpios continuam triunfando (Sl 94.3). Em alguns, Deus fala. Em outros, Deus está em silêncio. Alguns encontram uma solução, enquanto outros nos deixam com perguntas sem resposta.
Os salmos não foram todos escritos por uma só pessoa e nem ao mesmo tempo, como indica a variedade de atribuições em seus títulos descritivos. De fato, o estudo da autoria do livro dos Salmos — bem como suas datas de composição, contextos, propósitos, usos e transmissão — é um campo importante nos estudos bíblicos. As ferramentas da crítica da forma e da análise literária comparativa (especialmente comparações com a literatura ugarítica) têm grande presença nos estudos de Salmos. [1] Não tentaremos nos aprofundar nesses estudos em geral, mas contaremos com essas pesquisas, conforme necessário, para nos ajudar a entender e aplicar os salmos ao trabalho.
O trabalho nos salmos
Ao longo dos 150 salmos, o trabalho aparece com regularidade. Às vezes, o interesse dos salmos pelo trabalho está na ética individual, incluindo integridade e obediência a Deus em nosso trabalho, maneiras de lidar com oponentes e a ansiedade sobre o aparente sucesso de pessoas antiéticas. Outros salmos se interessam pela ética das organizações — sejam elas tão pequenas quanto uma família, ou tão grandes quanto uma nação. Há alguns temas modernos aos quais esses salmos se aplicam, como ética nos negócios, maneiras de lidar com a pressão institucional, globalização e as consequências de falhas no ambiente de trabalho e transgressões nacionais. Outro tema importante relacionado ao trabalho em Salmos é a presença de Deus conosco em nosso trabalho. Aqui encontramos tópicos como a orientação de Deus, a criatividade humana fundamentada em Deus (que sustenta toda a produtividade), a importância de fazer um trabalho verdadeiramente valioso e a graça de Deus em nosso trabalho. Os salmos têm um interesse particular no trabalho envolvido no casamento, na criação dos filhos e no cuidado dos pais. Por trás de todos os tópicos específicos está a proclamação dos Salmos sobre a glória de Deus em toda a criação. A grande variedade de temas relacionados ao trabalho em Salmos não é surpresa.
Os cinco livros de Salmos
A característica estrutural mais óbvia do Saltério é sua divisão em cinco livros: Livro 1 (Sl 1—41), Livro 2 (Sl 42—72), Livro 3 (Sl 73—89), Livro 4 (Sl 90—106) e Livro 5 (Sl 107—150). As razões e a história dessa divisão não são totalmente conhecidas. O Livro 1 concentra-se fortemente nas experiências de Davi, e o Livro 2 fala de Davi e do seu reino. O Livro 3 é mais sombrio, com muitas lamentações e reclamações. O livro termina no Salmo 89 com a aliança davídica em frangalhos e a nação em ruínas. O Livro 4 fala sobriamente da mortalidade humana (Sl 90), mas também fala triunfantemente de Deus como o grande rei que governa tudo (Sl 93; 95—99). O Livro 5 é mais variado, mas termina em celebração, pois as nações e toda a criação adoram o Deus de Israel (veja Sl 148).
Assim, vemos um movimento geral que vai do homem Davi para o reino de Davi, então mostra a proximidade do fim da dinastia de Davi, seguido pelo louvor do próprio Deus como rei da terra e, finalmente, o triunfo do reino de Deus. Isso dá uma direção narrativa ao Saltério como um todo. Mas muitos salmos da coleção não se encaixam nesse arranjo. Até certo ponto, o motivo da ordem atual dos salmos permanece um mistério. Se existe uma estrutura única e grandiosa, ou não a entendemos completamente ou ela não é seguida rigidamente.
Estratégias interpretativas para os Salmos
A natureza singular dos salmos pode tornar difícil entendê-los em seu contexto original, assim como sua aplicação à vida e ao trabalho de hoje. Salmos é uma coleção altamente diversificada, por isso fica difícil qualquer generalização. Devemos estudar os salmos como fonte de instrução? Lê-los como relatos históricos? Orar ou cantá-los individualmente ou com outras pessoas? A própria Bíblia não nos dá a resposta a essas perguntas. Antes de nos aprofundarmos na aplicação dos salmos ao trabalho, precisamos desenvolver estratégias interpretativas que nos ajudem a tirar o máximo proveito dos salmos.
Nossa abordagem aqui será explorar uma seleção de salmos escolhidos porque parecem dizer algo significativo sobre o trabalho ou algo significativo sobre a vida que se aplica significativamente ao trabalho. Na prática, isso geralmente quer dizer que os salmos foram selecionados porque os colaboradores, o comitê diretor ou os revisores do Projeto Teologia do Trabalho os consideraram particularmente significativos em seu próprio estudo ou experiência. Esse é um método de seleção reconhecidamente não sistemático. O comentário resultante não pretende ser exaustivo, nem mesmo necessariamente certo. Em vez disso, pretende ser uma série de exemplos de como grupos ou indivíduos cristãos podem empregar fielmente os salmos, à medida que buscam integrar sua fé e seu trabalho.
Livro 1 (Salmos 1—41)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro 1 consiste em grande parte de salmos falados por Davi individualmente, e não por Israel como nação. Eles abordam assuntos que dizem respeito a Davi pessoalmente, e isso os torna aplicáveis às situações que enfrentamos no trabalho por conta própria. Livros posteriores destacam os aspectos sociais e comunitários da vida e do trabalho.
Integridade pessoal no trabalho (Salmos 1)
Voltar ao índice Voltar ao índiceOs dois salmos iniciais estabelecem temas que percorrem todo o saltério. O salmo 1 descreve a integridade pessoal, indicando que é assim que todo leitor deve viver. Aplica isso especificamente ao trabalho e ao nosso desejo de sucesso. Ele diz que o justo “é como árvore plantada à beira de águas correntes: Dá fruto no tempo certo e suas folhas não murcham. Tudo o que ele faz prospera!” (Sl 1.3). O trabalho feito de maneira ética tende a prosperar. Essa é uma verdade geral e não uma regra infalível. Às vezes, as pessoas sofrem por agirem eticamente, no trabalho ou em qualquer outro lugar. Mas ainda é verdade que as pessoas que temem a Deus e são íntegras provavelmente se sairão bem. Isso ocorre porque eles vivem com sabedoria e porque a bênção de Deus está sobre eles.
Obediência a Deus (Salmos 2)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO salmo 2 centra-se na casa de Davi. Deus escolheu este reino e seu templo, Sião, para serem o foco do reino de Deus. Algum dia, os gentios se submeterão a ele ou enfrentarão a ira de Deus. Assim, Salmos 2.11-12 diz: “Adorem o Senhor com temor; exultem com tremor. Beijem o filho, para que ele não se ire e vocês não sejam destruídos de repente, pois num instante acende-se a sua ira. Como são felizes todos os que nele se refugiam!”. Jesus cumpriu as promessas feitas a Davi. Para nós, a lição é que devemos valorizar o Reino de Cristo acima de todas as coisas. Uma boa ética de trabalho é valiosa, mas não podemos fazer da prosperidade nossa prioridade. Não podemos servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6.24).
Trazendo nossos inimigos e oponentes a Deus (Salmos 4; 6; 7; 17)
Voltar ao índice Voltar ao índiceDepois dos salmos 1 e 2, o Livro 1 tem muitos salmos nos quais Davi reclama com Deus sobre seus inimigos. Esses salmos podem ser difíceis para os leitores de hoje, visto que Davi às vezes parece vingativo. Mas não devemos ignorar o fato de que, quando os inimigos estão ao seu redor, ele entrega o problema a Deus. Ele não procura resolver o assunto com suas próprias mãos.
Esses salmos têm aplicação no ambiente de trabalho. Frequentemente, conflitos e rivalidades aparecerão entre as pessoas no trabalho e, às vezes, essas brigas podem ser cruéis. Disputas no trabalho podem levar à depressão e à perda de sono. Salmos 4.8 é uma oração sobre inimigos pessoais, e diz: “Quando vocês ficarem irados, não pequem; ao deitar-se reflitam nisso, e aquietem-se”. Quando entregamos um assunto a Deus, podemos ter tranquilidade. Quando estamos no meio de uma batalha como essa, no entanto, nossas orações por ajuda podem parecer fúteis. Mas Deus ouve e responde: “Afastem-se de mim todos vocês que praticam o mal, porque o Senhor ouviu o meu choro” (Sl 6.8). Por outro lado, devemos ter o cuidado de manter nossa integridade em meio a tais conflitos. De nada adianta clamarmos a Deus se estivermos sendo mesquinhos, desonestos ou antiéticos no trabalho. “Senhor, meu Deus, se assim procedi, se nas minhas mãos há injustiça, se fiz algum mal a um amigo ou se poupei sem motivo o meu adversário, persiga-me o meu inimigo até me alcançar, no chão me pisoteie e aniquile a minha vida, lançando a minha honra no pó” (Sl 7.3-5). Salmos 17.3 faz o mesmo.
Autoridade (Salmos 8)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO salmo 8 é uma exceção no Livro 1, pois não se refere especificamente a Davi. Sua preocupação é com toda autoridade humana, não apenas o governo de Davi. Embora Deus tenha criado todo o universo (Sl 8.1-3), ele escolheu designar seres humanos para governar a criação (Sl 8.5-8). Este é um chamado elevado. “Tu o fizeste um pouco menor do que os seres celestiais e o coroaste de glória e de honra. Tu o fizeste dominar sobre as obras das tuas mãos; sob os seus pés tudo puseste” (Sl 8.5-6). Quando exercemos autoridade e liderança, fazemos isso como representantes de Deus. Nosso governo não pode ser arbitrário ou egoísta, mas deve servir aos propósitos de Deus. O principal deles é cuidar das criaturas da terra (Sl 8.7-8) e proteger os fracos e vulneráveis, especialmente as crianças (Sl 8.2).
Se conquistamos autoridade no trabalho, é tentador encarar nossa posição como uma recompensa por nosso trabalho árduo ou nossa inteligência e explorar nossa autoridade para ganho pessoal. Mas o salmo 8 nos lembra que a autoridade não vem como uma recompensa, mas como uma obrigação. É certo que devemos prestar contas aos superiores, aos conselhos de administração, aos curadores, aos eleitores ou a quaisquer outras formas terrenas de governança sob as quais servimos, mas isso por si só não é suficiente. Também devemos prestar contas a Deus. Os líderes políticos, por exemplo, têm o dever de prestar atenção à melhor ciência ambiental e econômica disponível ao considerar a política energética, esteja ela de acordo ou não com os ventos políticos atuais. Da mesma forma, os líderes empresariais são chamados a prever e evitar possíveis danos às crianças — sejam eles físicos, mentais, culturais ou espirituais — causados por seus produtos e serviços. Isso se aplica não apenas a brinquedos, filmes, televisão e alimentos, mas também a varejo, transporte, telecomunicações e serviços financeiros, entre outros.
Ética nos negócios (Salmos 15; 24; 34)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO Saltério diz muito sobre ética no ambiente de trabalho. Em Salmos 15.1,5 lemos: “Senhor, quem habitará no teu santuário? Quem poderá morar no teu santo monte? [... Aquele] que não empresta o seu dinheiro visando lucro nem aceita suborno contra o inocente. Quem assim procede nunca será abalado!”. Se admitirmos que os juros não são necessariamente proibidos no contexto contemporâneo (veja “A Bíblia proíbe a cobrança de juros?” em www.teologiadotrabalho.org), a aplicação desse salmo é que não devemos tirar vantagem dos outros no ambiente de trabalho. Empréstimos que aumentam as dívidas dos mutuários em dificuldades seriam um exemplo, assim como os cartões de crédito que intencionalmente aprisionam titulares inexperientes com taxas inesperadas e aumentos nas taxas de juros. Em um sentido mais amplo, qualquer produto ou serviço que tenha como alvo pessoas vulneráveis (ou “inocentes”) e as deixe em situação pior é uma violação da ética do Saltério. A boa ética nos negócios — e suas contrapartes em outros campos de trabalho — exige que os clientes se beneficiem genuinamente dos bens e serviços oferecidos a eles.
Salmos 24.4-5 acrescenta a isso que Deus aceita “aquele que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por deuses falsos. Ele receberá bênçãos do Senhor, e Deus, o seu Salvador lhe fará justiça”. A falsidade descrita aqui é perjúrio. Como no mundo moderno, também no mundo antigo era difícil se envolver em negócios sem, às vezes, ser envolvido em ações judiciais. A passagem nos leva a testemunhar honestamente e a não perverter a justiça por meio de fraude. Quando outros são inescrupulosos, nossa honestidade pode custar em promoções perdidas, transações comerciais, eleições, notas e publicações. Mas, a longo prazo, tais contratempos são triviais em comparação com a bênção e a justiça recebidas de Deus (Sl 24.5).
A ética também vem à tona em Salmos 34.12-13: “Quem de vocês quer amar a vida e deseja ver dias felizes? Guarde a sua língua do mal e os seus lábios da falsidade”. Isso pode se referir a qualquer tipo de engano, calúnia ou fraude. A referência a “dias felizes” simplesmente aponta que, se você enganar as pessoas ou caluniá-las, provavelmente criará inimigos. Em casos extremos, isso pode levar à sua morte nas mãos deles, mas, mesmo que não seja, a vida cercada por inimigos não é agradável. Se a vida é seu principal desejo, amigos confiáveis são muito mais lucrativos do que ganhos ilícitos. É possível que uma vida de integridade seja onerosa em termos mundanos. Em um país corrupto, um empresário que não dá subornos ou um funcionário público que não os aceita podem ser incapazes de obter uma renda estável. “O justo passa por muitas adversidades”, reconhece o salmo, “mas o Senhor o livra de todas”, acrescenta (Sl 34.19). Trabalhar com integridade pode ou não resultar em prosperidade, mas a integridade aos olhos de Deus é sua própria recompensa.
Confiando em Deus diante da pressão institucional (Salmos 20)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO salmo 20 nos ensina a confiar em Deus em vez de confiar no poder humano, como o poderio militar. “Alguns confiam em carros e outros em cavalos, mas nós confiamos no nome do Senhor, o nosso Deus” (Sl 20.7). Os ativos financeiros, tanto quanto os militares, podem ser a base para uma falsa confiança no poder humano. A propósito, devemos lembrar que, no mundo antigo, apenas os soldados da classe alta tinham cavalos e carros. Os soldados comuns seriam recrutados entre os camponeses e estariam a pé. É uma realidade perturbadora que a riqueza e o poder, mesmo que modestos, muitas vezes nos afastam de Deus.
A presença de Deus em nossas lutas no trabalho (Salmos 23)
Voltar ao índice Voltar ao índice“O Senhor é o meu pastor” (Sl 23.1). Se confiarmos em Deus, teremos a tranquilidade de saber que Deus cuida de nós, como um pastor cuida de suas ovelhas. Este é um lembrete para vermos nosso trabalho da perspectiva de Deus — não principalmente como um instrumento para nossa gratificação, mas como nossa parte na missão de Deus no mundo. “Guia-me nas veredas da justiça por amor do seu nome” (Sl 23.3, ênfase adicionada). Trabalhamos para honrá-lo e não para nossa própria glória — um lembrete poderoso que precisamos ouvir regularmente.
Uma perspectiva tão piedosa sobre nosso trabalho geralmente nos leva para nosso trabalho mais profundamente, não para longe dele. No salmo 23, vemos isso na maneira como a narrativa do salmo é impulsionada pelos detalhes do trabalho de pastoreio. Os pastores encontram água, boas pastagens e caminhos no deserto. Eles afastam os predadores com varas e cajados e confortam as ovelhas com suas palavras e sua presença. O salmo 23 é, antes de tudo, uma representação precisa do trabalho do pastor. Isso lhe dá a base necessária na realidade para ser significativo como meditação espiritual.
Embora procuremos honrar a Deus em nosso trabalho, isso não significa que o caminho será fácil. Às vezes, podemos nos encontrar no “vale de trevas” (Sl 23.4). Isso pode acontecer de várias maneiras, como a perda de um contrato, uma tarefa acadêmica que deu errado ou sentimentos de isolamento e falta de sentido em nosso trabalho. Ou pode vir como uma luta de longo prazo, como um ambiente de escritório tóxico ou a incapacidade de encontrar um emprego. Essas são coisas que preferimos evitar. Mas o salmo 23 nos lembra que Deus está próximo em todas as circunstâncias. “Não temerei perigo algum, pois tu estás comigo” (Sl 23.4a). O trabalho de Deus em nosso favor não é hipotético, mas tangível e real. Um pastor tem uma vara e um cajado, e Deus tem todos os instrumentos necessários para nos conduzir em segurança mesmo no pior da vida (Sl 23.4b). Deus cuidará de nós, mesmo em um mundo às vezes hostil, em que estamos “à vista dos meus inimigos” (Sl 23.5). É fácil lembrar disso quando as coisas estão calmas, mas aqui somos chamados a lembrar disso em meio ao desafio e à adversidade. Embora muitas vezes nem queremos pensar nisso, é por meio dos desafios de nossa vida que Deus opera seus propósitos em nós.
O salmo 23 conclui lembrando-nos do destino de nossa jornada com Deus. “E voltarei à [ou ‘habitarei na’] casa do Senhor enquanto eu viver” (Sl 23.6b). Como no Salmo 127 e em outros lugares, a casa ou o lar não é apenas um abrigo onde as pessoas comem e dormem, mas a unidade básica de trabalho e produção econômica. Assim, habitar na casa do Senhor não significa esperar até morrer para que possamos parar de trabalhar e receber nossa recompensa. Em vez disso, promete que está chegando o tempo em que encontraremos um lugar onde nosso trabalho e nossa vida possam prosperar. A primeira metade do versículo nos diz diretamente que essa é uma promessa para nossa vida presente e para a eternidade. “A bondade e a fidelidade me acompanharão todos os dias da minha vida” (Sl 23.6). A promessa de que Deus estará conosco, trazendo bondade e amor em todas as circunstâncias de nossa vida e trabalho, é um tipo de conforto mais profundo do que jamais poderemos obter ao esperar evitar todas as adversidades que possam nos acontecer.
A orientação de Deus em nosso trabalho (Salmos 25)
Voltar ao índice Voltar ao índiceA vida humana é uma série de escolhas, e muitas delas envolvem vocação. Devemos desenvolver o hábito de levar todas essas decisões a Deus. Lemos em Salmos 25.12: “Quem é o homem que teme o Senhor? Ele o instruirá no caminho que deve seguir”. Como Deus nos ensina o caminho a ser escolhido? O salmo 25 observa várias maneiras, começando com: “Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, ensina-me as tuas veredas; guia-me com a tua verdade e ensina-me” (Sl 25.4-5). Isso requer a leitura regular da Bíblia, a principal maneira pela qual conhecemos os caminhos de Deus e aprendemos sua verdade. Uma vez que conhecemos os caminhos de Deus, precisamos colocá-los em prática, sem precisar de orientação especial de Deus, na maioria dos casos. “Todos os caminhos do Senhor são amor e fidelidade para com os que cumprem os preceitos da sua aliança” (Sl 25.10). Sua aliança e seus decretos são encontrados, é claro, na Bíblia.
“Não te lembres dos pecados e transgressões da minha juventude”, acrescenta Salmos 25.7. Confessar nossos pecados e pedir a misericórdia de Deus é outra maneira de recebermos orientação de Deus. Quando somos honestos com Deus — e conosco mesmos — sobre nossos pecados, isso abre a porta para a orientação de Deus em nosso coração. “Perdoa todos os meus pecados”, o salmo pede (Sl 25.11,18). Quando somos perdoados por Deus, isso nos liberta para parar de tentar justificar a nós mesmos, o que, de outra forma, é uma poderosa barreira à orientação de Deus. Da mesma forma, a humildade em nosso trato com Deus e com as pessoas nos leva além da defensiva que bloqueia a orientação de Deus. “Conduz os humildes na justiça e lhes ensina o seu caminho”, como Salmos 25.9 nos informa.
“Os meus olhos estão sempre voltados para o Senhor”, continua o salmo (Sl 25.15). Recebemos a orientação de Deus quando procuramos evidências sobre as coisas com as quais Deus se importa, como justiça, fidelidade, reconciliação, paz, fé, esperança e amor. (O salmo não cita esses itens específicos, mas são exemplos de outras partes da Bíblia.) “Que a integridade e a retidão me protejam”, diz o texto (Sl 25.21). Integridade significa viver toda a vida sob um conjunto coerente de valores, em vez de, por exemplo, ser honesto e compassivo com nossas famílias, mas enganoso e cruel com nossos clientes ou colegas de trabalho. Pensar claramente sobre como aplicar nossos valores mais elevados no trabalho acaba sendo um meio de orientação de Deus, pelo menos na medida em que nossos valores mais elevados são formados pelas Escrituras e pela fidelidade a Cristo.
Embora esses meios de orientação possam parecer abstratos, eles podem ser muito práticos quando os colocamos em prática em situações de trabalho. A chave é ser específico em nosso estudo da Bíblia, confissão, oração e raciocínio moral. Quando levamos nossas situações reais e específicas de trabalho a Deus e à palavra de Deus, podemos encontrar Deus respondendo com a orientação específica de que precisamos. Para obter mais informações sobre a orientação de Deus em relação à nossa vocação ou chamado no trabalho, veja “Discernindo a orientação de Deus para um tipo específico de trabalho” em Visão geral sobre vocação em www.teologiadotrabalho.org.
Livro 2 (Salmos 42—72)
Voltar ao índice Voltar ao índiceTodos nós enfrentamos sentimentos de insegurança, e a ruína financeira está no topo de nossa lista de preocupações. No segundo livro do Saltério, vemos vários textos que se relacionam com os medos que assediam as pessoas e os caminhos a que elas recorrem em busca de ajuda. Assim, aprendemos sobre os verdadeiros e os falsos fundamentos da esperança em um mundo de incertezas.
A presença de Deus em meio ao desastre (Salmos 46)
Voltar ao índice Voltar ao índiceÀs vezes, o desastre ameaça nosso ambiente de trabalho, o trabalho em si ou nossa sensação de bem-estar. Esses desastres incluem os naturais (furacões, tornados, inundações, tufões, incêndios florestais), os econômicos (recessões, falências, colapso das principais instituições financeiras) e os políticos (mudanças repentinas na política, prioridades, guerra). O salmo 46 destaca a amplitude mundial que um desastre pode levar, e vemos isso hoje na economia global. As decisões cambiais tomadas em Londres e Pequim afetam o preço que os agricultores dos Estados Unidos ou da Indonésia obtêm por suas colheitas. A turbulência política no Oriente Médio pode afetar o preço da gasolina em uma pequena cidade em qualquer lugar do mundo, e isso, por sua vez, por meio de uma cadeia de acontecimentos, pode determinar se um restaurante local continuará funcionando. Mesmo que as economias antigas não fossem tão “globais”, as pessoas sabiam muito bem que aquilo que acontecia entre as nações poderia, mais cedo ou mais tarde, mudar suas vidas. O derretimento da terra implica que algum dia todos os poderes das nações serão vistos como tão efêmeros quanto castelos feitos de cera. A turbulência no mundo significa incerteza para o comércio, o governo, as finanças e todo tipo de trabalho.
Não importa quão grande possa ser o desastre, Deus é ainda maior.
Deus é o nosso refúgio e a nossa fortaleza,
auxílio sempre presente na adversidade.
Por isso não temeremos,
ainda que a terra trema e os montes afundem no coração do mar,
ainda que estrondem as suas águas turbulentas
e os montes sejam sacudidos pela sua fúria. (Sl 46.1-3)
Em meio a circunstâncias difíceis e ameaçadoras, podemos abordar nosso trabalho e nossos colegas de trabalho com calma, confiança e até alegria. Nossa confiança suprema está em Deus, cujo próprio ser fornece um refúgio de força e bem-estar quando nossas forças se esgotam. Não apenas nós individualmente, mas nossas comunidades e o mundo inteiro estão sob a graça de Deus. O desastre global não é páreo para a providência de Deus. Revisar a maneira como Deus cuidou de nós em circunstâncias anteriores — as nossas e as do povo de Deus — nos garante que Deus está conosco no meio da cidade (Sl 46.5) e em todos os lugares da terra (Sl 46.10). Às vezes, podemos até ter o privilégio de servir como um dos meios de Deus para ajudar outras pessoas em meio ao desastre.
Ansiedade quando pessoas sem escrúpulos têm sucesso (Salmos 49; 50; 52; 62)
Voltar ao índice Voltar ao índiceÀs vezes, os piedosos têm uma perspectiva distorcida sobre como Deus governa, e isso lhes causa ansiedade desnecessária. Eles pensam que os justos devem obviamente se sair bem na vida, enquanto os ímpios obviamente devem cair em ruína. Mas as coisas nem sempre seguem esse roteiro. Quando os ímpios prosperam, os cristãos sentem que o mundo virou de cabeça para baixo e que sua fé se mostrou vã. Salmos 49.16-17 responde o seguinte: “Não se aborreça quando alguém se enriquece e aumenta o luxo de sua casa; pois nada levará consigo quando morrer; não descerá com ele o seu esplendor”. A piedade não garante o sucesso comercial, e a impiedade não garante o fracasso. Aqueles que dedicam sua vida a ganhar dinheiro devem finalmente fracassar, pois fizeram um tesouro de algo que é possível perder (Lc 12.16-21). Veja “Preocupação para os ricos (Lc 6.25; 12.13-21; 18.18-30)” em Lucas e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org
Não se trata apenas de os ímpios terem de enfrentar o julgamento de Deus após a morte. Quando alguém que é mau, mas bem-sucedido, finalmente cai em ruínas, as pessoas percebem. Eles entendem a conexão entre como essa pessoa viveu e a calamidade que, em última análise, tomou conta dela. Salmos 52.7 descreve tal situação: ““Veja só o homem que rejeitou a Deus como refúgio; confiou em sua grande riqueza e buscou refúgio em sua maldade!” Por esta razão, Salmos 62.10 nos diz para não buscarmos segurança seguindo o caminho dos ímpios ou na aquisição de riquezas: “Não confiem na extorsão, nem ponham a esperança em bens roubados; se as suas riquezas aumentam, não ponham nelas o coração”. Em tempos difíceis, tendemos a olhar para aqueles que prosperaram por meio de práticas corruptas ou de clientelismo e acreditar que devemos fazer o mesmo, se quisermos escapar da pobreza. Mas, na verdade, apenas garantimos que compartilharemos sua desgraça diante das pessoas e sua condenação diante de Deus.
Por outro lado, se decidirmos confiar em Deus, devemos fazê-lo de forma plena e não superficial. Salmos 50.16 declara: “Mas ao ímpio Deus diz: ‘Que direito você tem de recitar as minhas leis ou de ficar repetindo a minha aliança?’ É uma coisa ruim alguém usar de fraude para ganhar riqueza. É uma coisa terrível fazer isso enquanto finge lealdade a Deus.
Faríamos bem em perguntar o que os outros veem quando observam nosso trabalho e a maneira como o fazemos. Por acaso damos justificativas quando tomamos atalhos éticos, discriminamos ou tratamos mal as pessoas, murmurando que aquilo é “bênção”, “favor” ou “vontade de Deus”? Talvez devêssemos ser mais relutantes em atribuir nossos aparentes sucessos à vontade de Deus e estar mais prontos para dizer simplesmente: “Eu não mereço isso”.
Livro 3 (Salmos 73—89)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO livro 3 de Salmos contém muita lamentação e queixa. O julgamento divino — positivo e negativo — vem à tona em muitos dos salmos aqui. Contemplar esses salmos nos dá um espelho no qual podemos explorar nossa própria fidelidade — ou a falta dela —, bem como expressar nossos sentimentos reais ao Deus que é capaz de reconciliar tudo consigo mesmo.
As consequências de falhas pessoais no ambiente de trabalho (Salmos 73)
Voltar ao índice Voltar ao índiceO salmo 73 retrata uma jornada quádrupla de tentação e fidelidade, desempenhando-a na obra do salmista. [1] No primeiro estágio, ele reconhece que o julgamento favorável de Deus é uma fonte de força