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As Epístolas Gerais e o trabalho

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
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Introdução às Epístolas Gerais

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As sete cartas de Tiago, 1 e 2Pedro, 1, 2 e 3João e Judas são frequentemente chamadas de Epístolas Gerais (ou Universais) porque parecem falar à igreja cristã em geral, e não a igrejas específicas. Elas também estão unidas por seu interesse comum nas questões práticas, como liderança organizacional, trabalho árduo, justiça, bons relacionamentos e comunicação eficaz.

As Epístolas Gerais refletem o desafio essencial que os cristãos enfrentaram no Império Romano — como seguir Jesus em um ambiente difícil. Os primeiros cristãos enfrentaram problemas como escravidão, favoritismo e abuso por parte dos ricos e poderosos. Lidaram com palavras duras e conflitos. Lidaram com as tensões reais entre ambição e dependência de Deus, e com o medo de que fazer as coisas à maneira de Deus os colocaria em conflito com aqueles que detinham autoridade. Em geral, eles sentiam uma sensação de alienação vivendo e trabalhando em um mundo que parecia incompatível com o seguir a Jesus.

Muitos cristãos, hoje, experimentam tensões semelhantes no trabalho. Por um lado, muitos deles têm mais oportunidades de servir a Deus no trabalho do que em qualquer outra esfera da vida. O ambiente de trabalho empresarial, governamental, educacional, sem fins lucrativos e em casa confere um bem enorme à sociedade. Por outro lado, a maioria dos locais de trabalho geralmente não está focada nos propósitos de Deus, como servir ao bem comum, trabalhar em benefício dos outros, aprofundar os relacionamentos interpessoais, disseminar a justiça e desenvolver o caráter. Como o objetivo final no trabalho — geralmente maximizar o lucro — é diferente do objetivo final dos cristãos, devemos esperar uma tensão em nosso duplo papel de seguidores de Cristo e funcionários no local de trabalho fora da igreja. Embora a maioria dos locais de trabalho não seja intencionalmente má — assim como muitas partes do Império Romano não eram ativamente hostis aos seguidores de Jesus —, ainda pode ser um desafio para os cristãos servir a Deus no ambiente de trabalho. Como as Epístolas Gerais foram escritas para orientar os cristãos que experimentavam tensões no mundo ao seu redor, elas podem ser úteis para os cristãos em seu local de trabalho, hoje.

As Epístolas Gerais abordam diretamente essas questões práticas. Dois princípios principais fundamentam a variedade de itens tratados nessas cartas:

  1. Podemos confiar em Deus para nos prover.

  2. Devemos trabalhar para o benefício dos que estão em necessidade.

A partir desses dois princípios, as Epístolas Gerais extraem instruções que têm aplicações surpreendentemente práticas no ambiente de trabalho do século 21. Mas talvez não devêssemos nos surpreender. Deus escolheu o Império Romano como o lugar onde Deus entraria na vida humana por meio de Jesus Cristo. Deus também escolhe o ambiente de trabalho de hoje como um ponto de sua presença.

Tiago: Fé e trabalho

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Tiago traz uma perspectiva de ação orientada aos princípios de que podemos confiar em Deus para nos prover e de que devemos trabalhar para o benefício dos que estão em necessidade. Se a fé é real — se realmente confiamos em Deus —, nossa fé nos levará a todo tipo de ação prática para o benefício dos que estão em necessidade. Essa perspectiva faz de Tiago um livro eminentemente prático.

Perseverança, sabedoria e crescimento espiritual (Tg 1.1-5)

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Tiago começa enfatizando a profunda conexão entre a vida cotidiana e o crescimento espiritual. Especificamente, Deus usa as dificuldades e os desafios da vida e do trabalho diários para aumentar nossa fé. “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações; assim, vocês saberão que a prova da sua fé produz perseverança. No entanto, a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam perfeitos e íntegros, sem que lhes falte coisa alguma” (Tg 1.2-4). “Diversas provações” pode ser um impulso para o crescimento — incluindo problemas no trabalho —, mas Tiago está particularmente interessado em desafios tão intensos que resultam na “prova da [nossa] fé”.

Que tipo de desafios enfrentados no trabalho pode testar nossa fé em Cristo ou nossa fidelidade a ele? Um deles pode ser a hostilidade religiosa. Dependendo de nossa situação, a fé em Cristo pode nos expor a qualquer coisa, desde preconceitos menores a oportunidades limitadas de trabalho, demissões ou até lesão corporal ou morte no local de trabalho. Mesmo que os outros não nos pressionem, podemos nos sentir tentados a abandonar a fé se acharmos que ser identificados como cristão está prejudicando nossa carreira.

Outro tipo de provação pode ser ética. Podemos ser tentados a abandonar a fé — ou a fidelidade — cometendo roubo, fraude, desonestidade, negociações desleais ou tirando vantagem dos outros para enriquecer-nos ou para avançar na carreira. Outro tipo de provação provém do fracasso no trabalho. Alguns fracassos podem ser tão traumáticos que abalam nossa fé. Por exemplo, ser substituído (tornado irrelevante) ou demitido de um emprego pode ser tão devastador que questionamos tudo em que confiávamos anteriormente, incluindo a fé em Cristo. Ou podemos acreditar que Deus nos chamou para o trabalho, nos prometeu grandeza ou nos deve sucesso porque lhe fomos fiéis. O fracasso no trabalho, então, parece significar que Deus não é confiável ou nem mesmo existe. Ou podemos estar tão dominados pelo medo que duvidamos que Deus continuará a suprir nossas necessidades. Todos esses desafios relacionados ao trabalho podem testar nossa fé.

O que devemos fazer se nossa fé for testada no trabalho? Perseverar (Tg 1.3-4). Tiago nos diz que, se pudermos encontrar uma maneira de não ceder à tentação de abandonar a fé, de não agir de forma antiética ou de não entrar em desespero, veremos Deus conosco todo o tempo. Se não soubermos como resistir a essas tentações, Tiago nos convida a pedir a sabedoria necessária para isso (Tg 1.5). À medida que a crise passa, descobrimos que nossa maturidade cresceu. Em vez de sentir a falta daquilo que temíamos perder, sentimos a alegria de encontrar a ajuda de Deus.

Dependendo de Deus (Tg 1.5-18)

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Ao falar sobre sabedoria, Tiago começa a desenvolver o princípio de que podemos confiar em Deus para nos prover. “Se algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá generosamente sem reprovar ninguém, e lhe será concedida” (Tg 1.5). Pode parecer surpreendente que possamos pedir sabedoria a Deus para as tarefas do trabalho comum — tomar decisões, avaliar oportunidades, confiar em colegas ou clientes, investir recursos e assim por diante —, mas Tiago nos diz que peçamos “com fé, sem duvidar” e Deus nos dará a sabedoria de que precisamos. Nosso problema não está em esperarmos muita ajuda de Deus no trabalho, mas em esperarmos muito pouco (Tg 1.8).

É absolutamente essencial compreender isso. Se duvidarmos que Deus é a fonte de tudo o que precisamos, então somos o que Tiago chama de “instáveis”. A pessoa não decidiu se deve seguir a Cristo ou não. Isso a torna “instável em tudo o que faz”, não sendo capaz de realizar muito em benefício de ninguém, ou mesmo de receber “coisa alguma do Senhor” em seu próprio nome (Tg 1.7). Tiago não tem ilusões sobre quão difícil pode ser confiar em Deus. Ele conhece muito bem as provações que seu público já está começando a experimentar em todo o Império Romano (Tg 1.1-2). No entanto, ele insiste que a vida cristã deve começar confiando em Deus para prover.

Ele imediatamente aplica isso à esfera econômica, em Tiago 1.9-11. A pessoa rica não deve se iludir pensando que se deve a seu próprio esforço. Se dependermos de nossas habilidades, “murcharemos” mesmo enquanto cuidamos dos negócios. Em contrapartida, as pessoas pobres não devem pensar que isso se deve ao desfavor de Deus. Em vez disso, devem esperar ser colocados por Deus em “elevada posição”. O sucesso ou o fracasso decorre de muitos fatores além de nós mesmos. Aqueles que já perderam o meio de subsistência devido a recessão, venda de empresa, mudança de escritório, quebra de safra, discriminação, danos causados ​​por intempéries climáticas ou mil outros fatores podem testemunhar isso. Deus não nos promete sucesso financeiro no trabalho, nem nos condena ao fracasso, mas ele usa tanto o sucesso quanto o fracasso para desenvolver a perseverança necessária para vencer o mal. Se Tiago 2.1-8 nos convida a invocar a Deus em tempos de dificuldades, então os versículos 9-11 nos lembram de invocá-lo também em tempos de sucesso.

Observe que, embora Tiago contraste a bondade de Deus com a maldade do mundo, ele não nos permite pensar que estamos do lado dos anjos e aqueles ao nosso redor do lado dos demônios. Em vez disso, a separação entre o bem e o mal está no coração de todo cristão. “Cada um, porém, é tentado pelo seu próprio desejo, sendo por este arrastado e seduzido” (Tg 1.14). Ele está falando aos membros da igreja. Não devemos nos apressar em identificar a igreja como boa e o local de trabalho como ruim. Há maldade em ambas as esferas — como nos lembram os escândalos da igreja e as fraudes nos negócios —, mas, pela graça de Deus, podemos trazer bondade a ambas.

De fato, a comunidade cristã é um dos meios que Deus usa para ajudar os pobres. A promessa de Deus de prover para os pobres é cumprida — em parte — pela generosidade de seu povo, e a generosidade deles é resultado direto da generosidade de Deus para com eles. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto e descem do Pai das luzes” (Tg 1.17). Isso assevera que Deus é a fonte última de provisão e que os crentes são responsáveis ​​por fazer tudo o que puderem para levar a provisão de Deus aos necessitados.

Ouvir, agir e evitar a ira (Tg 1.19-21)

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Tiago continua sua orientação prática com palavras relativas ao ouvir. Os cristãos precisam ouvir bem tanto as pessoas (Tg 1.19) quanto Deus (Tg 1.22-25). “Sejam todos prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se” (Tg 1.19). Ouvimos não como uma técnica para influenciar alguém, mas como uma maneira de permitir que a palavra de Deus nos livre “de toda impureza moral e da maldade” (Tg 1.21). Curiosamente, Tiago sugere que ouvir os outros — e não apenas ouvir a palavra de Deus — é um meio de nos livrarmos da iniquidade. Ele não está dizendo que o que as pessoas expressam seja palavra de Deus, mas que ouvir os outros elimina a raiva e a arrogância que nos impedem de cumprir a palavra de Deus exposta nas Escrituras. “A ira do homem não produz a justiça de Deus. [...] Aceitem humildemente a palavra implantada em vocês, a qual é poderosa para salvar a vida de vocês” (Tg 1.20-21). Quando não gostamos do que as pessoas dizem — palavras que expressam desentendimento, crítica, rejeição —, é fácil reagir com raiva, especialmente em situações de grande pressão no trabalho. Mas agir assim geralmente piora nossa posição e sempre desacredita nosso testemunho como servos de Cristo. É muito melhor confiar em Deus para defender nossa posição, em vez de nos defendermos com um discurso irado e precipitado.

Esse conselho se aplica a todos os tipos de trabalho e ambientes de trabalho. Ouvir está consagrado na literatura empresarial como uma habilidade crucial de liderança. [1] As empresas devem ouvir atentamente seus clientes, funcionários, investidores, comunidades e outras partes interessadas. A fim de atender às verdadeiras necessidades das pessoas, as organizações precisam ouvir aquelas cujas necessidades elas esperam atender. Isso nos lembra que o ambiente de trabalho pode ser um solo fértil para a obra de Deus, assim como foi o Império Romano, apesar das dificuldades e da perseguição.

Praticantes da palavra: trabalhando pelos necessitados (Tg 1.22-27)

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Isso nos leva ao segundo princípio do trabalho fiel — trabalhar em benefício dos necessitados. “Sejam praticantes da palavra, não apenas ouvintes, enganando a vocês mesmos” (Tg 1.22). Esse princípio decorre naturalmente do princípio de confiar em Deus para suprir nossas necessidades. Confiar em Deus para suprir nossas necessidades nos libera para trabalhar em benefício dos outros. Em contrapartida, se nossa confiança em Deus não nos leva a agir em benefício dos necessitados, Tiago sugere que não confiamos em Deus de fato. Como Tiago coloca: “A religião que Deus, o nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas nas suas aflições” (Tg 1.27). Crença significa confiança, e confiança leva à ação.

A fonte da percepção de Tiago parece ser o próprio Jesus, especialmente seus ensinamentos sobre os pobres e o cuidado prático que ele demonstrou a uma variedade de pessoas marginalizadas. Isso pode ser visto, por exemplo, nas alusões de Tiago aos ensinamentos de Jesus sobre o lugar especial dos pobres no reino de Deus (Tg 2.5; Lc 6.20), assim como as advertências de Jesus sobre tesouros corroídos “na terra” (Tg 5.1-5; Mt 6.19).

Isso tem aplicação direta no trabalho, porque atender às necessidades é a marca número um de um ambiente de trabalho bem-sucedido, seja nos negócios, na educação, na saúde, no trabalho governamental, nas profissões liberais, nas organizações sem fins lucrativos ou em outros. Uma organização bem-sucedida atende às necessidades de seus clientes, funcionários, investidores, cidadãos, estudantes, clientes e outras partes interessadas. Esse não é o foco principal de Tiago — ele se concentra particularmente nas necessidades das pessoas pobres ou impotentes — mas, mesmo assim, se aplica. Sempre que uma organização atende às verdadeiras necessidades das pessoas, ela está fazendo a obra de Deus.

Essa aplicação não se limita ao atendimento de clientes em empresas estabelecidas. Exige ainda mais criatividade — e demonstra ainda mais a provisão de Deus — quando os cristãos atendem às necessidades de pessoas pobres demais para serem clientes de empresas estabelecidas. Por exemplo, um grupo de cristãos abriu uma fábrica de móveis no Vietnã para fornecer empregos a pessoas no nível mais baixo do espectro socioeconômico. Por meio da fábrica, Deus supre as necessidades tanto de clientes estrangeiros que precisam de móveis quanto de trabalhadores locais que anteriormente estavam desempregados. [1] Da mesma forma, a TriLink Global, uma empresa de investimentos liderada por Gloria Nelund, ajuda a iniciar negócios no mundo em desenvolvimento como um meio de atender às necessidades das pessoas pobres e marginalizadas. [2]

O dever dos cristãos não se limita em servir aos pobres e necessitados em seu local de trabalho. A estrutura social e o sistema político-econômico afetam fortemente o atendimento das necessidades dos pobres. Uma vez que os cristãos podem influenciar essa estrutura e esse sistema, temos a responsabilidade de garantir que atendam às necessidades tanto dos pobres e necessitados, como dos ricos e poderosos.

Discriminando os pobres e favorecendo os ricos (Tg 2.1-13)

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Tiago aplica ambos os princípios subjacentes como uma advertência contra o favoritismo em relação aos ricos e poderosos. Ele começa com o segundo princípio — trabalhar em benefício dos necessitados. “Se vocês de fato obedecerem à lei do reino, conforme a Escritura afirma: ‘Ame ao seu próximo como a você mesmo’, agem corretamente. Mas, se tratarem os outros com parcialidade, cometem pecado” (Tg 2.8-9). O pecado é que, quando favorecemos os ricos e poderosos, estamos servindo a nós mesmos e não aos outros. Isso ocorre porque os ricos e poderosos têm o potencial de nos conceder um pouco de suas riquezas e poder. Os pobres nada podem fazer por nós. Mas são eles os que precisam. Tiago ilustra esse ponto descrevendo o tratamento especial que pode ser dado na igreja a uma pessoa rica e bem vestida, enquanto uma pessoa pobre e mal vestida é tratada com desprezo. Mesmo em algo tão simples quanto ir à igreja, os pobres precisam de uma palavra de boas-vindas. Os ricos — sendo bem-vindos em todos os lugares — não passam necessidade.

Tiago se baseia em Levítico 19.18 — “ame ao seu próximo como a você mesmo” — para indicar que mostrar favoritismo para com os ricos e excluir ou menosprezar os pobres não é menos ofensa à lei de Deus do que assassinato ou adultério (Tg 2.8-12). Fazer isso significa que ou não estamos tratando o próximo como a nós mesmos, ou estamos falhando até mesmo em reconhecer que uma pessoa pobre é o próximo.

Embora Tiago esteja falando sobre reuniões na igreja, há aplicações para locais de trabalho. No trabalho, podemos prestar atenção às pessoas que podem nos ajudar ou às que precisam de nossa ajuda. Em um local de trabalho saudável, isso pode ser apenas uma questão de ênfase. Em um local de trabalho disfuncional — onde as pessoas são colocadas umas contra as outras em uma luta pelo poder —, é preciso coragem para ficar do lado dos que não têm poder. Recusar-se a ter favoritos é especialmente perigoso quando somos confrontados com favoritismo socialmente arraigado, como discriminação étnica, estereótipos de gênero ou intolerância religiosa.

Embora Tiago expresse seu argumento em termos de trabalhar para beneficiar os necessitados, essa aplicação levanta implicitamente o princípio de confiar em Deus. Se realmente confiássemos em Deus para nossa provisão, não seríamos tentados a favorecer tanto os ricos e poderosos. Não teríamos medo de nos associar à multidão impopular no trabalho ou na escola. Tiago não está nos exortando a fazer boas obras apesar da falta de fé em Cristo e de confiança na provisão de Deus. Tiago está demonstrando como as boas obras são possíveis por meio da fé em Cristo. Ironicamente, os próprios pobres já vivem essa realidade diariamente. “Acaso Deus não escolheu os que são pobres aos olhos do mundo para que sejam ricos na fé e herdem o reino que ele prometeu aos que o amam?” (Tg 2.5). Trata-se provavelmente de uma alusão às palavras de Jesus no Sermão do Monte ou da Planície (Mt 5.3; Lc 6.20). Os pobres não estão herdando o reino porque são pessoas melhores do que os ricos, mas porque confiam em Deus. Na falta de meios para depender de si mesmos ou para agradar aos ricos, eles aprenderam a depender de Deus.

Fé, obras e trabalho (Tg 2.14—26)

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Tiago aborda o tópico do trabalho em detalhes na segunda parte do capítulo 2. Ao discutir o trabalho, ele invariavelmente usa o plural “obras” (do grego erga) em vez do singular “obra” (do grego ergon). Isso leva alguns a supor que Tiago usa “obras” para diferenciar de “obra”. No entanto, erga e ergon são simplesmente formas no plural e no singular da mesma palavra. [1] Tiago está descrevendo todo tipo de trabalho, desde obras de caridade, como dar comida a alguém faminto, até obras no local de trabalho, como aumentar a produção sustentável de arrozais. Seu uso do plural mostra que ele espera que o trabalho dos cristãos seja contínuo.

O foco de Tiago no trabalho levou a uma profunda controvérsia sobre a carta. Lutero notoriamente não gostava de Tiago porque entendia Tiago 2.24 (“Vejam que uma pessoa é justificada pelas obras, não apenas pela fé”) como uma contradição a Gálatas 2.16 (“O homem não é justificado pelas obras da lei, mas sim pela fé em Jesus Cristo”). Outros líderes da Reforma Protestante não compartilhavam dessa visão, mas a objeção de Lutero acabou dominando a leitura protestante do texto de Tiago. [2] Embora não possamos entrar aqui no longo debate sobre Lutero e o livro de Tiago, podemos indagar brevemente se a ênfase de Tiago no trabalho está em desacordo com a rejeição protestante da “justificação pelas obras”.

O que o próprio Tiago diz? Tiago 2.14 é sem dúvida a peça central de seu argumento; portanto, consideraremos esta seção antes de prosseguir: “De que adianta, meus irmãos e irmãs, se vocês dizem que têm fé, mas não têm obras?” Tiago responde sem rodeios à sua própria pergunta, afirmando: “Assim também a fé, por si só, se não é acompanhada de obras, está morta” (Tg 2.17) — tão morta (como ele observa em um exemplo cuidadosamente escolhido) quanto alguém que precisa desesperadamente de comida e recebe apenas palavras vazias de bons desejos a seu próximo (Tg 2.15-16). Tiago dá como certo que acreditar em Cristo (confiar em Deus) o levará a sentir compaixão de alguém em necessidade e a agir para ajudá-lo.

Todos os dias temos oportunidade de atender às necessidades das pessoas para quem trabalhamos e entre as quais trabalhamos. Pode ser tão simples quanto garantir que um cliente confuso encontre o item certo para sua necessidade ou perceber que um novo colega de trabalho precisa de ajuda, mas tem medo de pedir. Tiago exorta-nos a preocupar-nos especialmente com os vulneráveis ​​ou marginalizados, e para isso talvez precisemos desenvolver, no local de trabalho, a prática de perceber quem são essas pessoas.

Esse é o cerne do livro de Tiago. Tiago não concebe que o trabalho esteja em desacordo com a fé. Não pode haver “justificação pelas obras”, porque não pode haver boas obras a menos que haja fé (confiança) em Deus. Tiago não quer dizer que a fé possa existir sem obras e, portanto, ser insuficiente para a salvação. Ele quer dizer que qualquer “fé” que não leve a obras está morta; em outras palavras, não é fé alguma. “Como o corpo sem espírito está morto, assim a fé sem obras está morta” (Tg 2.26). Tiago não ordena que os cristãos trabalhem em benefício dos necessitados em vez de colocar sua fé em Cristo, nem mesmo que o façam como complemento a colocar a fé em Cristo. Ele espera que os cristãos trabalhem em benefício dos necessitados como resultado de colocar a fé em Cristo. [3]

A percepção de que a fé cristã sempre leva à ação é, em si, uma lição a ser aplicada no local de trabalho. Não podemos dividir o mundo em espiritual e prático, pois o mundo espiritual é o prático. “Você pode ver que tanto a fé como as obras [de Abraão] estavam atuando juntas”, diz Tiago (Tg 2.22). Portanto, nunca podemos dizer: “Creio em Jesus e vou à igreja, mas deixo minha fé fora do meu trabalho”. Esse tipo de fé está morta. As palavras em Tiago 2.24 — “vejam que uma pessoa é justificada pelas obras, não apenas pela fé” — nos desafiam a desenvolver nosso compromisso com Cristo nas atividades diárias.

O restante da carta fornece aplicações práticas dos dois princípios subjacentes: confiar em Deus e trabalhar para beneficiar os necessitados. Dada a nossa avaliação de Tiago 2.14-26, prosseguiremos com a perspectiva de que essas aplicações são desdobramentos da fé em Cristo, válidas nos dias de Tiago e instrutivas nos nossos.

Domar a língua (Tg 3.1-12)

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Tiago segue sua orientação prática sobre o ouvir (ver Tg 1.19-21) com conselhos semelhantes sobre o falar. Aqui ele emprega uma das linguagens mais implacáveis do livro. “Assim também, a língua é um fogo; é um mundo de iniquidade. Colocada entre os membros do nosso corpo, contamina a pessoa por inteiro, incendeia todo o curso da sua vida, sendo ela mesma incendiada pelo inferno [...]. É um mal incontrolável, cheio de veneno mortífero” (Tg 3.6, 8). Tiago, sem dúvida, está bem ciente dos provérbios do Antigo Testamento que falam sobre o poder vivificante da língua (por exemplo, Pv 12.18: “Há quem fale sem refletir, e fere como espada, mas a língua dos sábios traz a cura”), mas ele também está ciente dos poderes mortíferos da língua. Muitos cristãos, com razão, tomam cuidado para não prejudicar os outros com discursos ásperos na igreja. Não devemos ser igualmente cuidadosos no trabalho para não amaldiçoar “os homens, feitos à semelhança de Deus”? (Tg 3.9, referindo-se a Gn 1.26-27). Fofocas na hora do cafezinho, calúnias, assédio, menosprezo dos concorrentes — quem nunca foi ferido por palavras duras no trabalho e quem nunca feriu outras pessoas?

Ambição egoísta e submissão a Deus (Tg 3.13—4.12)

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Tiago 3.14—4.12 também emprega os princípios, combinados, de dependência de Deus e serviço aos necessitados. Como de costume, Tiago os coloca em ordem inversa, discutindo primeiro o serviço e depois a confiança. Nesse caso, Tiago começa com uma admoestação contra a ambição egoísta, seguida de uma exortação à submissão a Deus.

Ambição egoísta (Tg 3.13—4.12)

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A ambição egoísta é o impedimento para a pacificação (Tg 3.16—4.11)

A ambição egoísta é o oposto do servir às necessidades alheias. A passagem é bem resumida em Tiago 3.16: “Pois, onde há inveja e ambição egoísta, há confusão e toda espécie de males”. Tiago destaca uma prática específica que sobrepuja a ambição egoísta: a pacificação. [1] “O fruto da justiça é semeado em paz pelos pacificadores” (Tg 3.18). Caracteristicamente, ele alude a um local de trabalho — colheita de grãos, no caso — para mostrar seu ponto de vista. Cita vários elementos da pacificação: sofrer pelo mal que causamos aos outros (Tg 4.9), humilhar-nos (Tg 4.10), abster-nos de calúnia, acusação e julgamento (Tg 4.11) e misericórdia e sinceridade (Tg 3.17). Todos esses podem e devem ser empregados pelos cristãos no trabalho.

A ambição egoísta é sobrepujada pela submissão a Deus (Tg 4.2-5)

A ambição egoísta causa desavenças e contendas dentro da comunidade cristã, e Tiago diz que a causa subjacente é a falha em depender de Deus. “Vocês cobiçam coisas, mas não as têm; matam e invejam, mas não conseguem obter o que desejam. Vivem lutando e fazendo guerras. Não têm, porque não pedem. Pedem, mas não recebem, porque pedem com más intenções, com o fim de gastar nos seus prazeres” (Tg 4.2-3). Deixamos de depender de Deus quando não lhe pedimos nem mesmo o que precisamos. Curiosamente, a razão de não dependermos de Deus está em queremos servir a nossos próprios prazeres, em vez de servir aos outros. Isso engloba os dois princípios em uma unidade integrada. Tiago afirma isso metaforicamente como um caso de amor adúltero com o mundo, pelo qual somos tentados a crer que podemos encontrar riqueza e prazer no mundo sem Deus (Tg 4.4-5). [2]

Investir nos outros (Tg 4.1-12)

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Embora Tiago use a metáfora do adultério, ele está se referindo à ambição egoísta em geral. Uma das tentações no trabalho é usar os outros como degraus para nosso próprio sucesso. Quando roubamos o crédito pelo trabalho de um subordinado ou colega de trabalho, quando retemos informações de um rival para promover-nos, quando transferimos a culpa para alguém que não está presente para se defender, quando tiramos vantagem de alguém em situação difícil, nos tornamos culpados de ambição egoísta. Tiago está certo ao dizer que essa é a principal fonte de litígios. Ironicamente, a ambição egoísta pode impedir o sucesso, em vez de promovê-lo. Quanto mais alta é nossa posição em uma organização, mais dependemos dos outros para obter sucesso. Pode ser tão simples quanto delegar tarefas a subordinados ou tão complexo quanto coordenar uma equipe de um projeto internacional. Mas, se temos a reputação de pisar nas pessoas para progredir, como podemos esperar que os outros confiem em nossa liderança e a sigam?

A solução está em submeter-nos a Deus, que criou todas as pessoas a sua imagem (Gn 1.27) e enviou seu Filho para morrer por todos (2Co 5.14). Submetemos-nos a Deus sempre que colocamos nossa ambição a serviço dos outros, em detrimento de nós mesmos. Queremos alcançar uma posição de autoridade e excelência? Ótimo, então devemos começar ajudando outros colaboradores a incrementarem sua autoridade e excelência. O sucesso nos motiva? Bom, então devemos investir no sucesso daqueles que nos rodeiam. Ironicamente, investir no sucesso dos outros também pode ser o melhor que podemos fazer por nós mesmos. De acordo com os economistas Elizabeth Dunn, da Universidade da Colúmbia Britânica, e Michael Norton, da Harvard Business School, investir em pessoas nos torna mais felizes do que gastar dinheiro conosco. [1]

Previsão empresarial (Tg 4.13-17)

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Tiago passa para uma nova aplicação ao dar um aviso específico sobre previsão empresarial. [1] De forma um tanto incomum, ele se concentra primeiro no princípio de confiar em Deus. Ele começa com palavras sóbrias: “Ouçam agora, vocês que dizem: ‘Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro’. Vocês nem sabem o que acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa” (Tg 4.13-14). Pode parecer que Tiago está condenando até mesmo o planejamento empresarial de curto prazo. Planejar com antecedência, no entanto, não é sua preocupação. Imaginar que estamos no controle do que acontece é o problema.

O versículo a seguir nos ajuda a entender o verdadeiro ponto de vista de Tiago: “Em vez disso, deveriam dizer: ‘Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo’” (Tg 4.15). O problema não é o planejamento; é planejar como se o futuro estivesse em nossas mãos. Somos responsáveis ​​por usar sabiamente os recursos, as habilidades, as conexões e o tempo que Deus nos dá. Mas não estamos no controle dos resultados. A maioria das empresas sabe muito bem como os resultados são imprevisíveis, apesar do melhor planejamento e execução que o dinheiro pode comprar. O relatório anual de qualquer corporação de capital aberto apresenta uma seção detalhada, geralmente com dez ou vinte páginas, sobre os riscos enfrentados pela empresa. Declarações como “o preço de nossas ações pode flutuar com base em fatores além de nosso controle” deixam claro que as corporações seculares estão altamente sintonizadas com a imprevisibilidade de que Tiago está falando.

Por que, então, Tiago tem de lembrar aos crentes o que as empresas comuns sabem tão bem? Talvez os crentes às vezes se iludam, pensando que seguir a Cristo os tornará imunes à imprevisibilidade da vida e do trabalho. É um erro. Em vez disso, as palavras de Tiago deveriam tornar os cristãos mais conscientes da necessidade de reavaliar, adaptar e ajustar constantemente. Os planos devem ser flexíveis e a execução adequar-se às mudanças. Em certo sentido, trata-se simplesmente de uma boa prática comercial. No entanto, em sentido mais amplo, trata-se de uma questão espiritual, pois precisamos responder não apenas às condições do mercado, mas também à direção de Deus em nosso trabalho. Isso nos traz de volta à exortação de Tiago para ouvir com profunda atenção. A liderança cristã não consiste em forçar os outros a cumprirem nossos planos e ações, mas em nos adaptar à palavra de Deus e a sua orientação para nossa vida.

Opressão dos trabalhadores (Tg 5.1-6)

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Tiago volta ao princípio de que o trabalho deve atender às necessidades dos outros. Suas palavras no início do capítulo 5 são contundentes. Ele adverte “os ricos”: “Chorem e lamentem-se, por causa das desgraças que virão sobre vocês” (Tg 5.1). Embora o ouro no cofre e as vestes nos armários deles possam parecer mais reluzentes que nunca, Tiago está tão certo de seu julgamento vindouro que se refere às riquezas deles como se já estivessem deterioradas: “A riqueza de vocês apodreceu, e as traças corroeram as suas roupas. O ouro e a prata de vocês enferrujaram” (Tiago 5.2-3). Sua autoindulgência conseguiu apenas fartá-los para o dia do abate (Tg 5.5). O dia do abate parece ser uma referência ao dia em que Deus julgará aqueles a quem chamou para liderar e cuidar de seu povo, mas que, em vez disso, os atacaram (Zc 11.4-7).

Essas pessoas ricas estão condenadas tanto pela maneira como adquiriram sua riqueza quanto pelo que fizeram (ou deixaram de fazer) com ela, quando a obtiveram. Tiago ecoa o Antigo Testamento ao repreendê-los por suas práticas comerciais injustas: "Vejam, o salário dos trabalhadores que ceifaram os seus campos e que vocês retiveram com fraude está clamando contra vocês. O lamento dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos” (Tg 5.4 ; cf. Lv 19.13). [1] O dinheiro que deveria estar nas mãos dos trabalhadores permanece no cofre dos proprietários de terras. E lá se mantém — eles acumulam riquezas e ignoram os necessitados ao seu redor (Tg 5.3).

Os líderes empresariais devem ser especialmente diligentes ao pagar seus funcionários de forma justa. Uma análise do que constitui um salário justo está além do escopo desta discussão, [2] mas as palavras de Tiago “o salário dos trabalhadores [...] que vocês retiveram com fraude” (Tg 5.4) são uma acusação de abuso de poder por parte desses ricos proprietários de terras. Os trabalhadores tinham direito ao salário, mas os ricos e poderosos encontraram uma maneira de evitar pagar-lhes sem serem punidos pelo sistema legal. Os ricos e poderosos geralmente têm meios de subverter o judiciário, e é surpreendentemente fácil exercer um poder injusto sem sequer reconhecê-lo. Os abusos de poder incluem classificação indevida de trabalhadores como contratados independentes, registro de trabalhadores em um código de qualificação inferior, remuneração menor para mulheres ou minorias que desempenhavam o mesmo trabalho dos demais e mão de obra infantil para trabalhos perigosos recusados pelos adultos. O uso indevido de poder nunca pode ser desculpável apenas por se constituir na chamada prática padrão.

Tiago também condena aqueles que “têm vivido luxuosamente na terra” e “têm se entregado aos prazeres” (Tg 5.5). A questão do que significa viver no luxo e no prazer também é complexa, mas confronta muitos cristãos de uma forma ou de outra. A principal preocupação de Tiago nessa passagem é o bem-estar dos pobres; portanto, a pergunta mais relevante poderia ser: “O modo como vivo reforça ou degrada a vida dos pobres? O que faço com o dinheiro ajuda a tirar as pessoas da pobreza ou a mantê-las assim?”.

Aguardando a colheita (Tg 5.7-20)

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Tiago conclui sua carta com uma variedade de exortações sobre paciência, veracidade, oração, confissão e cura. Como sempre, elas apelam para o princípio de que obras fiéis devem beneficiar os outros ou ser feitas na dependência de Deus, ou ambos. E, como sempre, Tiago faz aplicações diretas ao trabalho.

Paciência

Tiago começa com um exemplo de trabalho para ilustrar o iminente retorno de Cristo: “Portanto, irmãos, sejam pacientes até a vinda do Senhor. Vejam como o agricultor aguarda que a terra produza a preciosa colheita e como espera com paciência até virem as chuvas do outono e da primavera. Sejam também pacientes e fortaleçam o coração de vocês, pois a vinda do Senhor está próxima”(Tg 5.7-8). E, no final, ele ecoa essas palavras: “Elias era humano como nós. Ele orou fervorosamente para que não chovesse, e não choveu sobre a terra durante três anos e meio. Depois, orou novamente, e os céus enviaram chuva, e a terra produziu os seus frutos” (Tg 5.17-18).

A paciência no trabalho é uma forma de dependência de Deus. Mas no trabalho a paciência é difícil. Sua finalidade é obter resultados — caso contrário, não seria trabalho — e sempre existe a tentação de buscar resultados sem realizar de fato o trabalho. Se estamos investindo para ganhar dinheiro, não gostaríamos de ficar ricos rapidamente, em vez de vagarosamente? Essa mentalidade leva ao uso de informações privilegiadas, de esquemas de pirâmide financeira e ao uso em jogos de azar do dinheiro reservado para o supermercado. Se estamos trabalhando para ser promovidos, não deveríamos usar quaisquer meios disponíveis para nos posicionar melhor aos olhos de nosso supervisor? Isso leva a traições, roubo de crédito, fofocas e desintegração da equipe. Se trabalhamos para atingir uma cota, não poderíamos alcançá-la mais rapidamente com um trabalho de qualidade inferior e repassando os problemas para a pessoa seguinte na cadeia de produção? E não se trata apenas de problemas de moralidade individual. Um sistema de produção que recompensa a má qualidade é tão ruim ou pior do que o trabalhador que tira proveito dele.

Veracidade

“Sobretudo, meus irmãos, não jurem pelo céu, nem pela terra, nem por coisa alguma. Que o ‘sim’ de vocês seja realmente sim, e o ‘não’ seja não, para que não caiam em condenação” (Tg 5.12). Imagine um local de trabalho em que as pessoas sempre digam a verdade — não simplesmente evitando mentir, mas sempre dizendo o que quer que dê ao ouvinte a compreensão mais precisa de como as coisas realmente são. Não haveria necessidade de juramentos e xingamentos, de esclarecimentos retroativos, de cláusulas contratuais definindo quem recebe o quê em caso de distorções ou fraudes. Imagine se os vendedores sempre fornecessem dados extremamente informativos sobre seus produtos, se os contratos fossem sempre claros para todas as partes e se os chefes sempre dessem crédito preciso a seus subordinados. Imagine se nós sempre déssemos respostas que transmitissem o panorama mais preciso possível, em vez de ocultar sutilmente informações pouco lisonjeiras sobre nosso trabalho. Poderíamos ser bem-sucedidos no atual emprego ou na carreira? Poderíamos ser bem-sucedidos se todos se tornassem extremamente verdadeiros? Precisamos mudar nossa definição de sucesso? [1]

Oração

Tiago volta ao princípio da dependência de Deus em sua discussão sobre a oração. “Há alguém sofrendo entre vocês? Que ele ore”(Tg 5:13). “Se algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus” (Tg 1.5). Tiago está nos convidando a ser específicos com Deus. “Meu Deus, não sei como lidar com essa falha de produção e preciso de sua ajuda antes de falar com meu chefe”. Deus é capaz de realizar o que precisamos, embora não garanta responder a cada oração exatamente como esperamos. Muitos cristãos parecem estranhamente relutantes em orar sobre questões, situações, pessoas, necessidades, medos e perguntas específicas com que se deparam diariamente no trabalho. Esquecemos a exortação de Tiago de pedir orientação específica e até resultados específicos. Tenha fé, diz Tiago, e Deus nos responderá nas situações reais da vida. “Peça-a a Deus, que a todos dá generosamente sem reprovar ninguém, e lhe será concedida” (Tg 1.5).

Confissão e cura

Tiago nos exorta a confessar mutuamente os pecados, para que sejamos curados (Tg 5.16). As palavras mais interessantes no trabalho são “uns aos outros”. A suposição é que as pessoas pecam umas contra as outras, não apenas contra Deus, e no trabalho esse é certamente o caso. Enfrentamos pressão diária para produzir e agir, e temos tempo limitado para isso; portanto, muitas vezes agimos sem ouvir, marginalizamos aqueles que discordam, competimos de forma injusta, monopolizamos recursos, deixamos uma bagunça para o próximo limpar e descarregamos nossas frustrações nos colegas de trabalho. Ferimos e somos feridos. A única maneira de ser curado é confessar os pecados uns aos outros. Se alguém acabou de minar a promoção de um colega de trabalho por criticar de forma imprecisa seu desempenho, o transgressor precisa confessar isso para quem foi injustiçado, e não apenas para Deus em oração particular. O transgressor pode ter de confessar isso também para o restante do departamento, se quiser de fato reparar o dano.

Qual é a nossa motivação para a confissão e a cura? Para que possamos atender às necessidades dos outros. “Quem traz de volta um pecador do seu caminho errado salvará da morte a vida dessa pessoa” (Tg 5.20; grifo nosso). Salvar alguém da morte é atender a uma necessidade muito profunda! E talvez — já que somos todos pecadores — outra pessoa nos salve da morte, desviando-nos do erro em nossos caminhos.

1Pedro: Servindo ao mundo como sacerdotes estrangeiros residentes

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Escrevendo a um grupo de cristãos que estão sendo caluniados, falsamente acusados ​​e talvez até sofrendo abuso físico ​​por causa de sua lealdade a Jesus (1Pe 2.12, 18-20; 3.13-17; 4.4, 14, 19), Pedro explica que cristão é chamado a transformar seu sofrimento em serviço ao mundo. Cristo nos chamou para segui-lo em um mundo que não o reconhece. Somos estrangeiros residentes nesta terra estranha, que ainda não é nosso verdadeiro lar. Portanto, somos obrigados a experimentar “todo tipo de provação” (1Pe 1.6). No entanto, não somos vítimas do mundo, mas servos do mundo — “sacerdócio santo”, como Pedro coloca (1Pe 2.5) — trazendo as bênçãos de Deus para o mundo. O trabalho do cristão, então, é viver nesta terra estranha, abençoando-a até que Cristo volte e restaure o território ao seu reino.

Estrangeiros residentes e um sacerdócio real (1Pe 1.1—2.12)

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Na linha de abertura de sua carta, Pedro se dirige a seus leitores como “eleitos, peregrinos dispersos” (1Pe 1.1), uma frase que prenuncia toda a mensagem dele. Essa frase tem duas partes: “eleitos” e "peregrinos dispersos”.

Se você é um cidadão do reino de Cristo, é um peregrino disperso, porque, no momento, o mundo ao seu redor não está sob o domínio de Cristo. Você está vivendo sob domínio estrangeiro. Enquanto aguarda o retorno de Cristo, sua verdadeira cidadania no reino dele é uma “herança [que] está guardada nos céus para vocês” (1Pe 1.4). Como os exilados em qualquer país, você não desfruta necessariamente do favor dos governantes da terra em que vive. O próprio Cristo veio a esta terra, mas foi rejeitado “pelos homens” (1Pe 2.4), e todos os cidadãos de seu reino devem esperar o mesmo tratamento. No entanto, Deus nos chamou para ficar aqui, para residir nesta terra estranha, enquanto conduzimos a obra de Cristo (1Pe 1.15-17).

Tendo descrito o significado de ser “peregrinos dispersos”, Pedro retoma o outro termo de 1Pedro 1.1 — “eleitos”. Se você é cristão, foi eleito ou escolhido por Deus. Com que propósito? Para ser um dos sacerdotes de Deus no país estrangeiro em que reside. “Vocês também estão sendo utilizados como pedras vivas na edificação de uma casa espiritual para serem sacerdócio santo, oferecendo sacrifícios espirituais aceitáveis a Deus, por meio de Jesus Cristo” (1Pe 2.5). O título de sacerdote, ou “reino de sacerdotes”, é repetido em 1Pe 2.9.

Embora expressa em uma metáfora política, a discussão de Pedro ecoa a terminologia do trabalho: “obra” (1Pe 1.17), “prata ou ouro” (1Pe 1.18), “provado pelo fogo” (1Pe 1.7), “purificaram” (1Pe 1.22) e “edificação de uma casa espiritual” (1Pe 2.5). Os termos usados por Pedro nos lembram que vivemos em um mundo laboral e temos de encontrar uma maneira de seguir a Cristo nesse mundo em que estamos inseridos.

Sacerdotes no antigo Israel oferecem sacrifícios e bênçãos por Israel

Antes de continuar, devemos entender o significado de ser sacerdote no antigo Israel. Os sacerdotes desempenhavam duas funções principais: oferecer sacrifícios no templo, em Jerusalém, e pronunciar a bênção sacerdotal. [1] A fim de cumprir seu dever de oferecer sacrifícios, eles precisavam entrar nas porções internas do templo e — uma vez por ano, no caso do sumo sacerdote — permanecer no Santo dos Santos na presença divina. Para recitar a bênção sacerdotal, os sacerdotes tinham de falar pelo próprio Deus. Ambos os deveres exigiam que entrassem na presença de Deus. Isso, por sua vez, exigia pureza ou santidade excepcionais, uma vez que a presença de Deus não pode tolerar nada impuro ou contaminado. [2] No entanto, os sacerdotes serviam meio período de acordo com um sistema de rotação (Lc 1.8) e tinham empregos comuns como principal meio de subsistência. Embora não pudessem se isolar da vida cotidiana, tinham de manter a pureza, apesar da sujeira e da corrupção do mundo. (Clique aqui para saber mais sobre os sacerdotes no antigo Israel, em Números e o trabalho.)

Cristãos como sacerdotes oferecem sacrifício pessoal e bênçãos para os necessitados

Portanto, o fato de Pedro chamar os cristãos de “sacerdócio santo” (1Pe 2.5) e “reino de sacerdotes” (1Pe 2.9) não quer dizer que todos os cristãos devem pensar em si mesmos como pastores profissionais. Não significa que se tornar evangelista ou missionário é a maneira mais elevada de cumprir o chamado de Deus para ser povo escolhido. Significa que os cristãos devem viver uma vida de pureza excepcional independentemente de seu meio de vida. Só assim podemos oferecer sacrifícios a Deus e suas bênçãos em favor das pessoas ao redor.

Pedro afirma isso diretamente: “Amados, insisto em que, como estrangeiros e peregrinos no mundo, vocês se abstenham dos desejos carnais que guerreiam contra vocês. Tenham uma conduta correta entre os pagãos para que, mesmo que eles os acusem de praticar o mal, observem as boas obras que vocês praticam e glorifiquem a Deus no dia da intervenção dele” (1Pe 2.11-12). (Observe a preocupação em glorificar a presença de Deus “no dia da intervenção dele”.)

É claro que os cristãos não realizam o mesmo sacrifício que os sacerdotes judeus (não matamos animais). Em vez disso, realizamos o tipo de sacrifício que nosso Senhor fez: abnegação em benefício dos necessitados. “Para isso vocês foram chamados”, diz Pedro, “pois também Cristo sofreu no lugar de vocês e deixou exemplo para que sigam os seus passos” (1Pe 2.21). Isso não deve ser interpretado literalmente como morte de cruz, mas deve ser entendido como “sacrifícios espirituais” (1Pe 2.5) — significando atos realizados a custa de si mesmo, em benefício de pessoas em necessidade (1Pe 4.10). O ambiente de trabalho oferece oportunidades diárias de autossacrifício — pequenos ou grandes.

Esta breve pesquisa sobre 1Pedro 1.3—2.10 completa o quadro que Pedro pinta quando chama seus leitores de “ eleitos” e “peregrinos dispersos”. O termo “peregrinos dispersos” significa que vivemos essa vocação como estrangeiros residentes em uma terra que ainda não é nosso lar — um lugar atualmente caracterizado por injustiça sistêmica e corrupção. O termo “eleitos” afirma que os seguidores de Jesus — um “sacerdócio real” — têm a vocação do sacerdote de ser uma bênção para o mundo, especialmente por meio do autossacrifício.

Sofrendo sob as autoridades do mundo (1Pe 2.13—4.19)

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Como seria para os cristãos exercerem seu chamado como residentes estrangeiros e sacerdotes no ambiente de trabalho? Pedro traz instruções diretas a seus leitores, como estrangeiros e escravos. Como estrangeiros, devemos honrar e nos submeter ao governo civil de qualquer país em que nos encontremos (1Pe 2.13-14), mesmo que nossa cidadania no reino de Deus nos permita viver como “pessoas livres” (1Pe 2.16). Como escravos — que aparentemente constituíam um grande segmento dos leitores de Pedro, uma vez que ele não se dirige a nenhuma outra classe de trabalhadores — devemos nos submeter a nossos senhores, quer eles nos tratem de maneira justa ou não (1Pe 2.18-19). Na verdade, é de esperar um tratamento injusto (1Pe 4.12), o que nos oferece a oportunidade de seguir os passos de Cristo, sofrendo sem retaliar (1Pe 2.21). Observe que Pedro está falando sobre sofrer injustamente, não sofrer as consequências de sua própria incompetência, arrogância ou ignorância. É claro que você precisa sofrer obedientemente ao receber a punição justa.

Em termos práticos, você não é livre para desobedecer às autoridades, mesmo para obter o que acha que é seu por direito. Você certamente se encontrará em situações em que não receberá o que merece — uma promoção, um aumento, um escritório com uma janela, um plano de saúde decente. Você pode até descobrir que seu empregador o está traindo ativamente, forçando-o a trabalhar fora do expediente, punindo-o pelos erros de seu chefe. Pode parecer ético enganar seu empregador apenas o suficiente para compensar o que você foi enganado — dizer que está doente quando não está, cobrar itens pessoais da empresa, roubar material de escritório ou se divertir no expediente. Mas não: “É melhor sofrer por fazer o bem, se for da vontade de Deus, do que por fazer o mal” (1Pe 3.17). Deus não lhe dá a opção de tomar de volta o que lhe foi tirado injustamente. O fato de você ter mentido ou enganado alguém para compensar sua mentira ou engodo não torna sua ação menos má. Seu chamado é fazer o que é certo, mesmo em um ambiente de trabalho hostil (1Pe 2.20). “Não paguem mal com mal, nem insulto com insulto” (1Pe 3.9). Em vez disso, os cristãos devem tratar as autoridades — mesmo os senhores severos e injustos — com respeito e honra.

Por quê? Porque nossa vocação como sacerdotes é abençoar as pessoas, e não podemos fazê-lo enquanto nos defendemos, assim como Cristo não poderia morrer pela salvação do mundo enquanto se defendesse (1Pe 2.21-25). Cristo, é claro, não teve medo de exercer poder e desafiar a autoridade em certas circunstâncias, e Pedro não está reivindicando aqui recapitular todo o evangelho. Outras partes da Bíblia — especialmente os profetas — enfatizam o chamado de Deus para resistir à autoridade opressora e ilegítima. E submissão nem sempre significa obediência. Podemos nos submeter à autoridade desobedecendo abertamente e aceitando as consequências, como o próprio Jesus fez. Aqui e em toda a epístola, Pedro nos atrai quase que exclusivamente ao autossacrifício de Cristo como modelo.

Instruções para líderes e seguidores (1Pe 5)

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Pedro agora dá instruções aos líderes da igreja, chamados de “presbíteros” (“presbíteros” e “bispos” nas derivações do grego aportuguesado usadas em muitas igrejas hoje). O conselho também é bom para os líderes no ambiente de trabalho. Ele se concentra em servir os outros. “Pastoreiem o rebanho de Deus [...] de livre vontade, [...] com o desejo de servir” (1Pe 5.2). Não seja ganancioso por dinheiro (1Pe 5.2). Não exerça domínio sobre os outros, mas seja exemplo a ser imitado (1Pe 5.3). Pedro aconselha humildade aos jovens — na verdade, a todos — ao citar Provérbios 3.34: “Deus se opõe aos orgulhosos,

mas concede graça aos humildes” (1Pe 5.5). Essas questões não são exclusivas de 1Pedro, e não as desenvolveremos aqui. Basta lembrar que o conceito de liderança servidora, que circula amplamente no ambiente de trabalho, hoje, é bem conhecido de Pedro. Como poderia ser de outra forma, já que Jesus é o líder-servo por excelência (1Pe 4.1-2,6)?

2Pedro: Trabalho e Nova Criação

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A segunda carta de Pedro reforça muitos dos temas que vimos em Tiago e em 1Pedro sobre a necessidade de uma vida santa e a perseverança no sofrimento. Não os repetiremos, mas discutiremos apenas o capítulo 3, que levanta um profundo desafio para uma teologia do trabalho. Se “os céus e a terra que agora existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e para a destruição dos ímpios” (2Pe 3.7), qual é o valor de nosso trabalho nos dias atuais? Tomando emprestado o título do importante livro de Darrell Cosden, qual é o bem celestial do trabalho terreno? [1]

O fim do mundo e o fim do trabalho? (2Pe 3.1-18)

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Nosso trabalho terreno é importante para Deus? Darrell Cosden deu um retumbante “sim” a essa pergunta. Central para seu argumento é a ressurreição corporal de Jesus, que (1) afirma a bondade do mundo material, (2) demonstra que há continuidade entre o mundo presente e a nova criação, [1] e (3) é um sinal de que a nova criação, embora não totalmente realizada, foi iniciada. Nosso trabalho é, em última análise, valioso porque seus frutos, redimidos e transformados, terão um lar no céu. Mas o capítulo 3 parece questionar dois aspectos da teologia do trabalho de Cosden: (1) a bondade inerente da matéria criada e (2) a continuidade entre este mundo presente e o mundo vindouro, a nova criação.

Pedro está respondendo aqui a escarnecedores sem lei que afirmaram que Deus não interviria na história para julgar o mal (2Pe 3.3-4). Ele parece descrever um futuro que carece de toda continuidade com o mundo presente; ao contrário, parece a aniquilação do cosmos:

  1. “Os céus e a terra que agora existem estão reservados para o fogo, guardados para o dia do juízo e para a destruição dos ímpios.” (2Pe 3.7)

  2. “Os céus desaparecerão com um grande estrondo, os elementos serão desfeitos pelo calor, e a terra, e tudo o que houver nela, ficará exposta.” (2Pe 3.10)

  3. “Tudo será destruído dessa forma.” (2Pe 3.11)

  4. “Os céus serão desfeitos pelo fogo, e os elementos se derreterão pelo calor.” (2Pe 3.12)

  5. Mas não devemos nos apressar em presumir que a aniquilação está realmente em vista aqui. [2] Pedro está usando as imagens do fim dos tempos comumente encontradas nos oráculos proféticos do Antigo Testamento para garantir a seus leitores o julgamento iminente de Deus. Os profetas do Antigo Testamento e a literatura judaica do Segundo Templo empregavam regular e metaforicamente imagens de fogo para se referir tanto à purificação dos justos quanto à destruição de todo o mal. [3]

Uma leitura de 2Pedro 2.7, 10 e 2Pedro 3.12 de acordo com as convenções da literatura apocalíptica, entenderia o fogo e as imagens derretidas como uma metáfora para o processo no qual Deus separa o bem do mal. [4] É assim que Pedro usa imagens de fogo em sua primeira carta, lembrando seus leitores de que, como o ouro, eles também serão testados pelo fogo; a fé daqueles que passarem pelo fogo resultará em louvor (1Pe 1.5-7). Essas passagens enfatizam não que os céus e a terra serão literalmente aniquilados, mas que todo o mal será totalmente consumido. Da mesma forma, Pedro descreve cuidadosamente o mundo em termos de transformação e teste: “desfeitos pelo calor”, “desfeitos pelo fogo”, “juízo”, “reservado para o fogo”. Douglas Moo ressalta que a palavra usada por Pedro para “desfeitos pelo calor” em 2Pedro 3.10-12, luō, não conota aniquilação, mas, em vez disso, fala de transformação radical. Ele sugere “desfeita” como tradução alternativa. [5]

A referência de Pedro ao dilúvio do tempo de Noé (2Pe 3.5-6) ​​deve nos alertar contra a leitura de “inundação” no sentido de aniquilação total. O mundo não deixou de existir, mas foi purificado de toda a maldade da humanidade. A bondade da humanidade — limitada a Noé, sua família, suas posses e seu trabalho de cuidar dos animais a bordo — foi preservada, e a vida foi retomada na terra física.

Por fim, a visão positiva de Pedro sobre o futuro final descreve a renovação da ordem material: “Mas, de acordo com a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, onde habita a justiça” (2Pe 3.13). Não se trata de um submundo magro e desencarnado, mas um novo cosmos que contém um “céu” e uma “terra”. Em 2Pedro 3.10 lemos que “tudo o que houver nela, ficará exposta”. Exposta, não destruída. Assim, mesmo após a queima, as “obras” permanecerão.

Isso não quer dizer que 2Pedro seja a principal fonte para a teologia do valor eterno da obra presente, mas apenas que é consistente com essa teologia. [6] Embora possamos não receber tantos detalhes quanto gostaríamos, é claro que, para Pedro, há algum tipo de continuidade entre o que fazemos na terra agora e o que experimentaremos no futuro. Todo o mal será totalmente consumido, mas tudo o que é justo encontrará um lar permanente na nova criação. O fogo não apenas consome, ele purifica. A dissolução não sinaliza o fim do trabalho. Em vez disso, o trabalho feito para Deus encontra seu verdadeiro fim nos novos céus e na nova terra.

1João: Andando na luz

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Embora escrito em circunstâncias muito diferentes das de Tiago, [1] 1João também desafia a noção de que a fé pode viver sem “obras”, isto é, atos de obediência a Deus. No capítulo 2, João afirma que o conhecimento genuíno de Deus se manifesta por caráter e comportamento transformados, sintetizados em obediência a Deus:

Desta forma sabemos que o conhecemos: se obedecemos aos seus mandamentos. Aquele que diz: “Eu o conheço”, mas não obedece aos seus mandamentos, é mentiroso, e a verdade não está nele. Mas, se alguém obedece à sua palavra, nele verdadeiramente o amor de Deus está aperfeiçoado. Desta forma sabemos que estamos nele: quem afirma que permanece nele deve andar como ele andou. (1Jo 2.3-6)

Novamente de acordo com Tiago, 1João considera que cuidar dos necessitados é uma expressão do conhecimento genuíno de Deus. “Se alguém tiver recursos materiais, vir o seu irmão em necessidade e não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1Jo 3.17). Primeiro João nos leva um passo adiante na compreensão da relação entre fé e obras ou, para usar os termos de João, entre conhecimento de Deus e obediência.

Usando uma variedade de imagens, João explica que nossa obediência a Deus indica e é o resultado de uma realidade anterior, descrita de várias maneiras, como passar das trevas para a luz (1Jo 2.8-11), ser amado por Deus (1Jo 3.16; 4.7-10, 16, 19-20), sermos nascidos de Deus ou feitos filhos de Deus (1Jo 2.29; 3.1-2, 8-9) ou termos passado da morte para a vida (1Jo 3.14). De acordo com João, a vida correta é, antes de tudo, um resultado e uma resposta ao amor de Deus por nós:

Amados, amemos uns aos outros, pois o amor procede de Deus. Aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. Desta forma Deus manifestou o seu amor entre nós: ele enviou o seu Filho Unigênito ao mundo, para que pudéssemos viver por meio dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como expiação pelos nossos pecados. (1Jo 4.7-10)

João descreve o resultado desse processo como a capacidade de andar “na luz, como ele está na luz” (1Jo 1.7). O amor de Deus por meio do sacrifício expiatório de Jesus nos leva a um tipo de existência qualitativamente diferente, pela qual somos capazes de ver a vontade de Deus para nossa vida e andar de acordo com ela. Não acendemos a luz apenas de vez em quando. Andamos na luz continuamente, como um novo modo de vida.

Isso tem um significado imediato para a ética no trabalho. Nos últimos anos, tem havido uma atenção crescente à “ética da virtude”, após uma longa história de negligência no pensamento e na prática protestantes. [2] A ética da virtude se concentra na formação a longo prazo do caráter moral, e não na formulação de regras e no cálculo das consequências de decisões imediatas. Não que regras ou mandamentos sejam irrelevantes — “Porque nisto consiste o amor a Deus: obedecer aos seus mandamentos” (1Jo 5.3) —, mas que a formação moral a longo prazo está por trás da obediência às regras. Uma explanação completa está além do escopo desta discussão, [3] mas o conceito de João de andar na luz como um modo de vida certamente elogia a abordagem da virtude. O que fazemos (nossas “obras”) brota inevitavelmente de quem estamos nos tornando (nossas virtudes). “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4.19), e estamos nos tornando semelhantes a ele (1Jo 3.2).

Uma aplicação específica da metáfora da luz é que devemos agir no trabalho de forma aberta e transparente. Devemos aceitar o exame minucioso de nossas ações, em vez de tentar escondê-las da luz do dia. Nunca devemos fraudar investidores, falsificar registros de qualidade, fofocar sobre colegas de trabalho ou extorquir subornos enquanto andamos na luz. Nesse sentido, 1João 1.7 ecoa o evangelho de João 3.20-21: “Pois quem pratica o mal odeia a luz e não se aproxima da luz para que as suas obras não sejam manifestas. Quem, porém, pratica a verdade vem para a luz para que se veja claramente que as suas obras são realizadas por intermédio de Deus”. [4]

Considere, por exemplo, uma pessoa que faz negócios em um local onde as autoridades locais solicitam suborno frequentemente. O pedido é sempre feito em segredo. Não é um pagamento documentado e aberto, assim como uma gorjeta ou uma taxa de expedição para um serviço mais rápido. Não há recibos e a transação não é registrada em nenhum lugar. Ele tem usado João 3.20-21 como inspiração para trazer esses pedidos à luz. Ele dirá ao funcionário que está solicitando o suborno: “Não sei muito sobre esse tipo de pagamento. Eu gostaria de trazer o embaixador, ou a administração, para documentar isso”. Ele descobriu que essa é uma estratégia útil para lidar com o suborno. Embora se acredite amplamente que o suborno seja um meio eficaz — embora antiético — de aumentar a participação de mercado e o lucro, uma pesquisa de George Serafeim, da Harvard Business School, indica que o pagamento de suborno, na verdade, diminui o desempenho financeiro de uma empresa no longo prazo. [5]

De maneira semelhante, 1João ressalta que, para fazer um trabalho significativo no reino de Deus, não precisamos de emprego em tempo integral no ministério. Embora a maioria dos cristãos não ocupe funções remuneradas para realizar as chamadas tarefas “espirituais” de pregação e evangelismo, todos os cristãos podem andar na luz agindo em obediência a Deus (1Jo 3.18-19, 24). Todas essas ações vêm do amor a priori de Deus e, portanto, são profundamente espirituais e significativas. Assim, o trabalho fora da igreja tem valor, não apenas porque nele você pode ter a oportunidade de evangelizar, ou porque o salário pode ser usado para financiar missões, mas porque é um lugar onde você pode incorporar a comunhão com Cristo, servindo outros ao seu redor. O trabalho é uma maneira altamente prática de amar o próximo, porque é no trabalho que você cria produtos e serviços que atendem às necessidades das pessoas próximas e distantes. O trabalho é um chamado espiritual.

Nesse sentido, 1João nos leva de volta a Tiago. Ambos enfatizam que atos de obediência são parte integrante da vida cristã e um indicativo de sua influência na teologia do trabalho. Somos capazes de obedecer a Deus, no trabalho e em outros lugares, porque estamos nos tornando como Cristo, que deu a vida em benefício de outros necessitados.

2João e o trabalho

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A segunda carta de João se encaixa na estrutura geral das Epístolas Gerais, ao mesmo tempo em que oferece as próprias percepções sobre a vida e a obra em Cristo. É curto, mas cheio de instruções práticas.

Honestidade e falar a verdade em amor (2Jo 1-11)

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Verdade e amor em ação (2Jo 1-6)

Cada uma das cartas de João é notável por reunir os conceitos “verdade” e “amor” em um único conceito (1Jo 3.18; 2Jo 1, 3; 3Jo 3). Aqui, em 2João, encontramos o desenvolvimento mais amplo dele.

A graça, a misericórdia e a paz de Deus Pai e de Jesus Cristo, o seu Filho, estejam conosco em verdade e em amor. Alegrei-me muito, por ter encontrado alguns dos seus filhos vivendo na verdade, conforme o mandamento que recebemos do Pai. E agora, senhora, peço – não como se estivesse escrevendo um mandamento novo, mas o que já tínhamos desde o princípio – que amemos uns aos outros. (2Jo 3-5)

De acordo com João, amor mais verdade equivalem a um ambiente em que “a graça, a misericórdia e a paz” estarão conosco.

Lamentavelmente, muitas vezes agimos como se graça, misericórdia e paz dependessem do amor menos verdade. Podemos ocultar ou ocultar verdades desconfortáveis ​​em nossa comunicação com os outros no trabalho, na crença equivocada de que dizer a verdade não seria amoroso. Ou podemos temer que dizer a verdade levará a conflito ou má vontade, em vez de graça ou paz. Pensando que estamos sendo misericordiosos, deixamos de dizer a verdade.

Mas o amor deve sempre começar com a verdade. O amor vem a nós por meio de Cristo, e Cristo é a personificação perfeita da verdade de Deus. Ou seja, Deus sabe como as coisas realmente são, e ele envolve seu conhecimento em amor e o traz a nós por meio de seu Filho. Portanto, se quisermos amar como Deus ama, devemos começar com a verdade, não com falsidade, evasão ou contos de fadas. É fato que dizer a verdade pode levar a conflitos ou sentimentos perturbadores – nossos ou dos outros. Mas a graça, a misericórdia e a paz genuínas vêm de enfrentar a realidade e trabalhar através das dificuldades para alcançar resoluções genuínas.

Jack Welch, ex-CEO da General Electric (EUA), era uma figura controversa, em parte devido à sua prática de fazer avaliações de desempenho sinceras e verdadeiras. Ele informava aos funcionários mensalmente se estavam atendendo às expectativas. Uma vez por ano, ele lhes dizia se tinham desempenho superior, desempenho intermediário que requeria melhorar em áreas específicas ou desempenho inferior, que os colocava em risco de perder o emprego. [1] Alguns podem considerar uma tática dura, mas Welch considerava amoroso:

Aprendi que o pior tipo de gerente é aquele que pratica a falsa bondade. Eu digo às pessoas: Você se considera um bom gerente, um gerente gentil? Bom, adivinhem? Um dia você não estará mais lá. Você será promovido. Ou se aposentará. E um novo gerente chegará, olhará para o funcionário e dirá: “Olha, você não é bom o suficiente”. E, de repente, esse funcionário já estará com 53 ou 55 anos, com muito menos opções na vida. E agora você lhe dirá: “Vá para casa”? Que tipo de gerente é esse afinal? O tipo mais cruel. [2]

O custo da veracidade (2Jo 7-11)

“Muitos enganadores têm saído pelo mundo”, João nos lembra (2Jo 7), e dizer a verdade pode nos colocar em conflito com aqueles que se beneficiam do engano. Escolhemos dizer a verdade, apesar da oposição, ou participamos do engano? Se escolhermos o engano, é melhor pelo menos admitir que já não somos pessoas honestas. (Veja “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êx 20.16; Dt 5.20) em Deuteronômio 5:20; Êxodo 20.16 em www.teologiadotrabalho.orgpara saber mais sobre este tópico.)

Ed Moy, que mais tarde se tornaria chefe da Casa da Moeda dos Estados Unidos, conta a história de seu primeiro emprego após a faculdade. Quando começou a trabalhar, ele teve de preencher um relatório de despesas sobre o uso do carro da empresa, identificando uso pessoal separadamente do uso da empresa. A prática no escritório era listar uso pessoal apenas para o caminho de casa ao trabalho, reivindicando o restante como uso da empresa, mesmo que o objetivo da viagem fosse pessoal. Quando Ed falou honestamente sobre o uso pessoal, seu chefe quase o demitiu, explicando: “Somos mal pagos e essa é a nossa maneira de ganhar mais renda. Seu relatório fará que o resto de nós tenha problemas.” Ed disse respeitosamente: “Você pode me demitir, se é o que precisa fazer. Mas gostaria mesmo de ter alguém trabalhando com você que mentiria por algo tão pequeno? Como você poderia confiar nessa pessoa quando os riscos fossem maiores?” Ed manteve seu emprego, embora a transição tenha sido um pouco difícil! [3]

O que devemos fazer em relação aos relacionamentos com pessoas enganosas e falsos mestres? O exemplo de Ed sugere que romper o contato não é necessariamente a melhor solução. Podemos ser capazes de fazer mais pela causa da verdade e do amor permanecendo engajados e dizendo a verdade em meio ao engano do que saindo de cena. Além disso, se rompêssemos contato com todos os que já praticaram o engano, sobraria alguém, mesmo nós?

O valor da comunicação pessoal (2João 12-13)

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João termina a carta dizendo que deseja continuar a conversa pessoalmente. “Tenho muito a escrever a vocês, mas não é meu propósito fazê-lo com papel e tinta. Em vez disso, espero visitá-los e conversar com vocês face a face, para que a nossa alegria seja completa” (2Jo 12). Talvez ele perceba que tudo o que tem a comunicar poderia ser mal interpretado se apresentado impessoalmente, por meio de carta. Isso nos dá uma visão valiosa sobre comunicações sensíveis – algumas coisas são melhor ditas pessoalmente, mesmo que a distância dificulte a visão cara a cara.

Nos locais de trabalho do século 21, encontramos desafios ainda mais complexos para a comunicação pessoal. As opções de comunicação remota hoje incluem videoconferência, telefone, mensagens de texto, carta, e-mail, mídia social e muitas outras variações. Mas a comunicação eficaz ainda requer a adequação do meio à natureza da mensagem. O e-mail pode ser o meio mais eficaz para fazer um pedido, por exemplo, mas provavelmente não para comunicar uma avaliação de desempenho. Quanto mais complicada ou emocionalmente desafiadora for a mensagem, mais imediato e pessoal o meio deve ser. Pat Gelsinger, CEO da Intel Corporation, disse:

Eu tenho uma regra pessoal. Se vou e volto com alguém por e-mail mais de quatro ou cinco vezes sobre o mesmo tópico, paro. Interrompo. Pegamos o telefone ou nos encontramos cara a cara. Aprendi que, se você não resolver algo rapidamente, no momento em que se reúnem, um de vocês está bravo com o outro. Você acha que eles são incompetentes porque não conseguiram entender o que você descreveu tão claramente. Mas é por causa do meio, e é importante levar isso em conta. [1]

O meio incorreto para determinada comunicação pode facilmente levar a mal-entendidos, que é a falha em transmitir a verdade. Além de também poder atrapalhar a demonstração de amor. Portanto, escolher o meio certo de comunicação é essencial para comunicar a verdade e mostrar amor às pessoas com quem trabalhamos. Precisamos nos comunicar com respeito e compaixão, mesmo nas conversas difíceis, e especialmente quando nos comunicamos com pessoas de quem não gostamos muito. Às vezes, significa encontrar-se cara a cara, mesmo que seja inconveniente ou desconfortável.

3João e o trabalho

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Assim como 2João, 3João é tão curta que não se divide em capítulos. No entanto, contém duas passagens aplicáveis ao trabalho.

Um exemplo de fofoca no trabalho (3Jo 1-12)

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João endereça a carta a um “cooperador” (cf. 3Jo 8) chamado Gaio e demonstra um toque pessoal ao dizer: “Oro para que tudo vá bem com você e para que esteja tão saudável fisicamente como é espiritualmente” (3Jo 2). Ele presta atenção ao aspecto físico (saúde) e à alma de seu colega de trabalho. Por si só, trata-se de uma lição importante para o trabalho — não ver os colegas apenas como funcionários, mas como pessoas inteiras.

João então se mostra como exemplo de alguém que não está sendo bem tratado no trabalho. Um membro da congregação de nome Diótrefes tem depreciado a liderança “com palavras maldosas”, diz João (3Jo 10). Em todas as três cartas, a principal preocupação dele tem sido reunir verdade e amor (3Jo 1). Diótrefes está fazendo totalmente o oposto — falando com falsidade e ódio. Você quase pode sentir a dor de João quando ele diz — para usar a tradução mais dramática da Nova Versão Internacional — “chamarei a atenção dele para o que ele tem feito, depreciando-nos com palavras maldosas” (3Jo 10).

É duplamente doloroso que Diótrefes seja crente. Isso nos lembra que ser cristão por si só não nos torna perfeitos. Sem dúvida, Diótrefes pensa que está certo. O que reconhecemos como fofoca, ele talvez considerasse simplesmente como um alerta aos demais para que pudessem se proteger.

Quando opinamos sobre as pessoas no trabalho, costumamos causar impressões desfavoráveis sobre nós mesmos ou sobre elas? Um teste simples nos ajudaria a nos ver como os outros nos veem. Será que falaríamos das pessoas da mesma maneira se elas estivessem na sala? Se não, é muito provável que estejamos passando uma falsa impressão sobre elas, e uma má impressão sobre nós mesmos. João, embora tenha uma reclamação sobre Diótrefes, não está fofocando. Ele sabe que sua carta será lida em voz alta na igreja, de modo que sua reclamação ficará aberta para Diótrefes ouvir e responder.

Dar ao oponente a oportunidade de responder à sua reclamação é um elemento essencial da combinação de João sobre verdade e amor. Ele acredita que sua queixa contra Diótrefes é verdadeira, mas reconhece que seu oponente merece a oportunidade de se explicar ou defender. Quão diferente é o tipo de campanha de julgamento realizado pela imprensa sobre muitas figuras públicas da autalidade, em que as insinuações são espalhadas pelos meios de comunicação de massa, onde não há oportunidade de responder na mesma escala.

Esse princípio se aplica não apenas a como falamos de indivíduos, mas também de grupos. Denegrir coletivamente os outros é tão ruim quanto — se não pior que — fofocar ou caluniar alguém. Praticamente todo tipo de tratamento injusto dispensado às pessoas no trabalho começa por considerá-las membros de um grupo inferior ou perigoso. Sempre que ouvirmos isso, será um sinal para nos manifestar contra o preconceito e a culpa por associação, e a favor de encontrar a verdade sobre a situação específica.

A recomendação de João a Demétrio, o irmão que carregava a carta, também é interessante. João usa sua influência como líder na igreja para elevar Demétrio perante Gaio e sua igreja. João elogia Demétrio por sua vida de verdade e pelo respeito de outros crentes por ele. Os líderes no trabalho podem usar seu poder e influência de forma eficaz em prol da verdade, da justiça, do amor e da misericórdia, mesmo quando o evangelho não é reconhecido fora.

Cumprimente as pessoas pelo nome (3Jo 13-14)

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A carta termina com o mesmo pensamento presente em 2João. João tem coisas a comunicar que seriam mais bem expressas pessoalmente, em vez de por escrito (3Jo 13-14). Mas há uma reviravolta em 3João que oferece outra visão para o trabalho diário. No final, João acrescenta: “Saúde os amigos daí, um por um, nome por nome”. Falar o nome de uma pessoa aumenta ainda mais o toque pessoal que João reconhece ser necessário na comunicação.

Muitos de nós nos deparamos com centenas de pessoas no trabalho. Até certo ponto, precisamos nos comunicar com cada um deles, mesmo que seja apenas para evitar esbarrar um no outro no corredor. Quantos deles conhecemos bem o suficiente para cumprimentar pelo nome? Você sabe o nome do chefe do chefe do seu chefe? Provavelmente. Você sabe o nome da pessoa que esvazia o lixo em seu local de trabalho? Você cumprimenta as pessoas pelo nome quando está em conflito com elas? Você aprende o nome dos recém-chegados à organização que podem precisar de sua ajuda em algum momento? Os nomes que você se dá ao trabalho de aprender e aqueles que não se incomoda em aprender revelam muito sobre seu nível de respeito e compaixão pelas pessoas. João se importa o suficiente para cumprimentar “um por um” pelo nome.

Judas

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A breve carta de Judas pinta um quadro surpreendente de um ambiente de trabalho muito disfuncional — uma igreja arruinada por líderes ímpios. Alguns dos problemas são próprios das igrejas, como a negação de Jesus Cristo (Jd 4) e a heresia (a “rebelião de Corá”, Jd 11). Outros podem ocorrer em um ambiente de trabalho secular: rejeição da autoridade, calúnia (Jd 8), violência (“o caminho de Caim”) e ganância (o “erro de Balaão”, Jd 11). [1] Os piores abusos são perpetrados por líderes que se empanturram às custas de seus rebanhos. Eles “comem com vocês sem temor algum, de modo que pastoreiam a si mesmos”(Jd 12). As palavras de Judas se aplicam tanto a líderes da igreja que se apropriam indevidamente de fundos da igreja para os próprios prazeres quanto a executivos que saqueiam um fundo de pensão corporativo para sustentar os lucros relatados (e, portanto, seus bônus) ou a funcionários que navegam na Web no horário comercial.

Diante dessa má conduta, Judas dá uma ordem bem surpreendente e que se aplica tanto ao ambiente de trabalho quanto à igreja: tenha misericórdia. “Tenham compaixão daqueles que duvidam; salvem outros, arrebatando-os do fogo; a outros, ainda, mostrem misericórdia, com temor, odiando até a roupa contaminada pela carne”(Jd 22-23). Judas não tem medo de agir com firmeza contra o mal. Sua misericórdia não é branda ou fraca, como indicam suas imagens de fogo, medo e corpos contaminados. A misericórdia de Judas é severa. Mas, mesmo assim, é misericórdia, pois sua esperança não é apenas punir os ofensores, mas salvá-los.

Essa misericórdia severa pode ser o que algumas situações no trabalho exigem. Alguém que comete fraude, assedia outros trabalhadores ou mente para clientes não pode ser deixado de lado. Isso leva apenas a um mal maior. Em contrapartida a disciplina não pode se transformar em mera vingança. Aos olhos de Cristo, ninguém está além da esperança. O líder piedoso trata cada um com respeito e tenta discernir que tipo de disciplina pode levá-lo de volta ao aprisco.

Resumo e conclusão das Epístolas Gerais

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As Epístolas Gerais começam com os idênticos princípios de que seguir a Cristo nos torna capazes de confiar em Deus para nossa provisão, e que confiar em Deus para nossa provisão nos leva a trabalhar em benefício dos necessitados. Esses princípios fundamentam uma variedade de instruções práticas para a vida no trabalho (especialmente em Tiago) e insights teológicos para entender o lugar do trabalho na vida de fé. Isso nos levanta duas questões:

(1) Acreditamos nesses princípios? e (2) Estamos, de fato, aplicando-os em nossa vida profissional?

Acreditamos nos dois princípios?

Vemos inúmeras situações no ambiente de trabalho. Alguns lançam dúvidas sobre se podemos confiar em Deus para prover-nos. Outros afirmam isso. Todos conhecemos pessoas que pareciam confiar em Deus, mas não conseguiam o que precisavam. Pessoas perdem emprego, casa, poupança para a aposentadoria e até a própria vida. Em contrapartida, recebemos coisas boas que nunca poderíamos esperar e que nunca faríamos acontecer. Uma nova oportunidade surge, uma pequena realização leva a um grande sucesso, um investimento dá certo, um estranho supre nossas necessidades. É verdade que podemos confiar em Deus para fornecer o que realmente precisamos? As Epístolas Gerais nos chamam a lutar com essa pergunta profunda até que tenhamos uma firme resposta. Isso pode significar lutar com ela a vida toda. No entanto, seria melhor do que ignorá-la.

O princípio de que devemos trabalhar principalmente para o benefício dos necessitados também é questionável. Está em desacordo com a suposição básica da economia — segundo a qual todos os trabalhadores agem principalmente para incrementar a própria riqueza. Contraria a atitude predominante da sociedade em relação ao trabalho — “Procure ser o Número Um”. Exigimos provas (se tivermos o poder de fazê-lo) de que estamos sendo pagos de modo adequado. Exigimos igualmente provas de que nosso trabalho beneficia apropriadamente os outros?

Estamos aplicando os dois princípios no trabalho?

Podemos avaliar nosso nível de confiança na provisão de Deus ao examinar o que fazemos para prover a nós mesmos. Acumulamos conhecimento para nos tornarmos indispensáveis? Exigimos contratos de trabalho ou pára-quedas dourados para nos sentirmos seguros no futuro? Viemos trabalhar com medo de ser demitidos? Somos obcecados pelo trabalho e negligenciamos a família e a comunidade? Mantemos um emprego inadequado, apesar da humilhação, da raiva, do desempenho insatisfatório e até mesmo dos problemas de saúde por temer que não haja mais nada para nós? Não há regras rígidas, e algumas ou todas essas ações podem ser sábias e apropriadas em certas situações (exceto obsessão). Mas o que o padrão do que fazemos no trabalho diz sobre nosso grau de confiança em Deus para prover-nos?

A medida mais poderosa de nossa confiança em Deus, no entanto, não é o que fazemos por nós mesmos, mas o que fazemos pelos outros. Ajudamos as pessoas ao redor a se saírem bem no trabalho, mesmo que possam nos superar? Arriscamos nossa posição para defender colegas de trabalho, clientes, fornecedores e outras pessoas impotentes ou necessitadas? Escolhemos — dentro de qualquer escopo de escolha que possamos ter — trabalhar de modo a beneficiar os necessitados, tanto quanto a nós mesmos?

Precisamos responsabilizar-nos e aos outros por aplicar esses princípios no trabalho todos os dias, como nos lembra a carta de Judas. Obedecer à palavra de Deus não é uma questão de sensibilidade religiosa, mas de consequências concretas para nós mesmos e para aqueles afetados por nosso trabalho. No entanto, a responsabilidade não nos leva ao julgamento, mas a um coração misericordioso.

As Epístolas Gerais nos desafiam a reconceituar nossa noção não apenas de trabalho, mas de para quem estamos trabalhando. Se confiarmos em Deus para suprir nossas necessidades, poderemos trabalhar para ele e não para nós mesmos. Quando trabalhamos para Deus, servimos os outros. Quando servimos os outros, trazemos a bênção de Deus para um mundo onde, embora vivamos como membros da sociedade, somos cidadãos de outro reino. As bênçãos de Deus trazidas ao mundo por meio de nosso trabalho se tornam os próximos passos de Deus na transformação do mundo a fim de que se torne nosso verdadeiro lar. Portanto, enquanto trabalhamos “de acordo com a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, onde habita a justiça” (2Pe 3.13).

Versículos-chave e temas nas epístolas gerais

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Versículo

Tema

Tiago 2.15-16 Se um irmão ou uma irmã precisar de roupas e do alimento de cada dia e um de vocês lhe disser: “Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se”, sem, porém, lhe dar o que necessita, de que adianta?

Tiago 2.26 Portanto, como o corpo sem espírito está morto, assim a fé sem obras está morta.

1João 3.18-19 Filhinhos, não amemos de palavra nem da boca para fora, mas em ação e em verdade. Desta forma sabemos que somos da verdade e tranquilizaremos o nosso coração diante dele.

Tiago 3.16 Pois, onde há inveja e ambição egoísta, há confusão e toda espécie de males.

Princípio-chave de servir os outros em vez de servir a si mesmo.

Tiago 1.17 Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto e descem do Pai das luzes, que não muda como sombras inconstantes.

Princípio-chave de depender de Deus

Tiago 1.19 Meus amados irmãos, tenham isto em mente: sejam todos prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se.

Tiago 1.26 Se alguém se considera religioso, mas não refreia a língua, engana a si mesmo. A sua religião não tem valor algum!

Ouvir e evitar o discurso áspero

Tiago 2.9 Mas, se tratarem os outros com parcialidade, cometem pecado.

Não mostrar favoritismo

Tiago 4.13-14 Ouçam agora, vocês que dizem: “Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro”. Vocês nem sabem o que acontecerá amanhã!

Reconhecimento de que não somos a fonte de nosso próprio sucesso

Tiago 5.4 Vejam, o salário dos trabalhadores que ceifaram os seus campos e que vocês retiveram com fraude está clamando contra vocês. O lamento dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos.

Práticas trabalhistas e salariais justas

Tiago 5.8 Sejam também pacientes e fortaleçam o coração de vocês, pois a vinda do Senhor está próxima.

Paciência

Tiago 5.12 Que o “sim” de vocês seja realmente sim, e o “não” seja não, para que não caiam em condenação.

Veracidade

Tiago 5.13 Há alguém sofrendo entre vocês? Que ele ore.

Tiago 1.5 Se algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá generosamente sem reprovar ninguém, e lhe será concedida.

Oração por necessidades específicas

Tiago 5.16 Portanto, confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para serem curados. A oração de um justo é poderosa e eficaz.

Confessar aos outros e perdoar os outros

1Pedro 2.13-14 Por causa do Senhor, sujeitem-se a toda autoridade constituída entre os homens; seja ao rei, como autoridade suprema; seja aos governantes, como enviados por ele para punir os que praticam o mal e aprovar os que praticam o bem.

Obediência às autoridades civis

1Pedro 2.18-19 Escravos, sujeitem-se aos seus senhores com todo o respeito, não apenas aos bons e amáveis, mas também aos perversos. Porque é louvável que, por causa da sua consciência para com Deus, alguém suporte aflições, ainda que sofra injustamente.

Obediência às autoridades do local de trabalho

1Pedro 4.12 Amados, não estranhem o fogo que surge entre vocês para prová-los, como se algo estranho estivesse acontecendo.

Esperando a adversidade por seguir a Cristo

1Pedro 2.20 Pois que vantagem há em suportar açoites recebidos por terem pecado? Mas, se vocês suportam o sofrimento por terem feito o bem, isso é louvável diante de Deus.

Suportar o sofrimento

1Pedro 3.9 Não paguem mal com mal, nem insulto com insulto; ao contrário, bendigam, pois vocês sabem que para isso foram chamados e, assim, receberão bênção por herança.

Evitar retaliação

1Pedro 5.2-3 Pastoreiem o rebanho de Deus que está aos seus cuidados. Olhem por ele não por obrigação, mas de livre vontade, como Deus quer. Não façam isso por ganância, mas com o desejo de servir. Não ajam como dominadores dos que foram confiados a vocês, mas como exemplos para o rebanho.

Liderança servidora

2Pedro 3.13 Mas, de acordo com a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, onde habita a justiça.

Vida eterna em uma nova terra, purificada do mal

1João 1.7 Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Jesus, o seu Filho, nos purifica de todo pecado.

1João 3.2 Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, pois o veremos como ele é.

Transformação pessoal como fundamento da ética

Judas 12 [Eles] comem com vocês sem temor algum, de modo que pastoreiam a si mesmos.

Responsabilidade dos líderes

Judas 22-23 Tenham compaixão daqueles que duvidam; salvem outros, arrebatando-os do fogo; a outros, ainda, mostrem misericórdia, com temor, odiando até a roupa contaminada pela carne.

Misericórdia e responsabilidade não são mutuamente exclusivas