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Instruções sobre o trabalho (Êxodo 20.1-17 e 21.1—23.9)

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
10 commandments 620

O “Livro da Aliança” de Israel (Êx 24.7) incluía os Dez Mandamentos, também conhecidos como Decálogo (literalmente, as “palavras”, Êx. 20.1-17), e as ordenanças de Êxodo 21.1—23.19 . Os Dez Mandamentos são redigidos como mandamentos gerais para fazer ou não fazer algo. As ordenanças são uma coleção de jurisprudências, que aplicam os valores do Decálogo a situações específicas, usando um formato “Se... então...”. Essas leis se encaixam no mundo social e econômico do antigo Israel. Elas não são um código legal exaustivo, mas funcionam como exemplos, servindo para coibir os piores excessos e estabelecendo precedentes legais para lidar com casos difíceis. [1]

Os Dez Mandamentos (Êxodo 20.1-17)

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Os Dez Mandamentos são a expressão suprema da vontade de Deus no Antigo Testamento e merecem nossa atenção. Eles devem ser considerados não como os dez mandamentos mais importantes entre centenas de outros, mas como um resumo de toda a Torá. O fundamento de toda a Torá repousa nos Dez Mandamentos, e em algum lugar dentro deles devemos ser capazes de encontrar toda a lei. Jesus expressou a unidade essencial dos Dez Mandamentos com o restante da lei, quando resumiu a lei nas famosas palavras: “‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.37-40). Toda a lei, assim como os profetas, é indicada sempre que os Dez Mandamentos são expressos.

A unidade essencial dos Dez Mandamentos com o restante da lei e sua continuidade com o Novo Testamento nos convida a aplicá-los ao trabalho de hoje de maneira ampla, à luz do restante das Escrituras. Ou seja, ao aplicar os Dez Mandamentos, levaremos em consideração passagens das Escrituras relacionadas, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.

“Não terás outros deuses além de mim” (Êxodo 20.3)
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O primeiro mandamento nos lembra que tudo na Torá flui do amor que temos por Deus, o que, por sua vez, é uma resposta ao amor que ele tem por nós. Este amor foi demonstrado pela de Israel operada por Deus “da terra da escravidão” no Egito (Êx 20.2). Nada na vida deve nos preocupar mais do que nosso desejo de amar e ser amado por Deus. Se nós tivermos alguma outra preocupação mais forte em relação a nós do que nosso amor por Deus, não significa tanto que estarmos quebrando as regras de Deus, mas sim que não estamos realmente em um relacionamento com Deus. A outra preocupação — seja dinheiro, poder, segurança, reconhecimento, sexo ou qualquer outra coisa — tornou-se nosso deus. Esse deus terá seus próprios mandamentos em desacordo com os de Deus, e inevitavelmente violaremos a Torá se cumprirmos as exigências desse deus. A observância dos Dez Mandamentos só é concebível para aqueles que começam não tendo outro deus além de Deus.

No campo do trabalho, isso significa que não devemos permitir que o trabalho ou seus requisitos e frutos substituam Deus como nossa preocupação mais importante na vida. “Nunca permita que alguém ou alguma coisa ameace o lugar central de Deus em sua vida”, como diz David Gill. [1] Como muitas pessoas trabalham principalmente para ganhar dinheiro, um desejo excessivo por dinheiro provavelmente seja o perigo mais comum do trabalho em relação ao primeiro mandamento. Jesus advertiu exatamente sobre esse perigo. “Ninguém pode servir a dois senhores... Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6.24). Mas quase tudo relacionado ao trabalho pode se tornar distorcido em nossos desejos, a ponto de interferir em nosso amor por Deus. Quantas carreiras chegam a um fim trágico porque os meios para realizar coisas pelo amor de Deus — como poder político, sustentabilidade financeira, compromisso com o trabalho, status entre colegas ou desempenho superior — tornam-se um fim em si mesmos? Quando, por exemplo, o reconhecimento no trabalho se torna mais importante do que o caráter no trabalho, não é um sinal de que a reputação está substituindo o amor de Deus como a preocupação principal?

Uma maneira prática de avaliação é perguntar se nosso amor a Deus é demonstrado pela maneira como tratamos as pessoas no trabalho. “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão’ (1Jo 4.20-21). Se colocarmos nossas preocupações individuais à frente de nossas preocupações com as pessoas com quem, para quem e entre quem trabalhamos, tornamos nossas preocupações individuais nosso deus. Em particular, se tratarmos as outras pessoas como coisas a serem manipuladas, obstáculos a serem superados, instrumentos para obter o que queremos ou simplesmente objetos neutros em nosso campo de visão, demonstraremos que não amamos a Deus de todo o nosso coração, alma e mente.

Nesse contexto, podemos começar a listar algumas ações relacionadas ao trabalho que têm alto potencial de interferir em nosso amor por Deus. Fazer um trabalho que viola nossa consciência. Trabalhar em uma organização em que temos de prejudicar os outros para ter sucesso. Trabalhar tantas horas que temos pouco tempo para orar, adorar, descansar e aprofundar nosso relacionamento com Deus. Trabalhar entre pessoas que nos desmoralizam ou nos seduzem para longe de nosso amor por Deus. Trabalhar onde o álcool, o abuso de drogas, a violência, o assédio sexual, a corrupção, o desrespeito, o racismo ou outros tratamentos desumanos arruínam a imagem de Deus em nós e nas pessoas que encontramos em nosso trabalho. Se pudermos encontrar maneiras de evitar esses perigos no trabalho — mesmo que isso signifique encontrar um novo emprego — seria sábio fazê-lo. Se isso não for possível, podemos pelo menos estar cientes de que precisamos de ajuda e apoio para manter nosso amor a Deus diante de nosso trabalho.

“Não farás para ti nenhum ídolo” (Êxodo 20.4)
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O segundo mandamento levanta a questão da idolatria. Ídolos são deuses que nós mesmos criamos, deuses que nada têm em si próprios a não ser o que nós mesmos criamos, deuses sobre os quais pensamos ter controle. Nos tempos antigos, a idolatria muitas vezes assumia a forma de adoração a objetos físicos. Mas a questão é realmente de confiança e devoção. Em última análise, em que depositamos nossa esperança de bem-estar e sucesso? Qualquer coisa que não seja capaz de cumprir nossa esperança — ou seja, qualquer coisa que não seja Deus — é um ídolo, seja ou não um objeto físico. A história de uma família que forja um ídolo com a intenção de manipular Deus, bem como as desastrosas consequências pessoais, sociais e econômicas que se seguem, são memoravelmente contadas em Juízes 17—21.

No mundo do trabalho, é comum falar em dinheiro, fama e poder como ídolos em potencial, e com razão. Eles não são ídolos em si e, de fato, podem ser necessários para cumprirmos nossos papéis na obra criadora e redentora de Deus no mundo. No entanto, começamos a cair na idolatria quando imaginamos que temos total controle sobre eles, ou que, ao alcançá-los, nossa segurança e prosperidade serão garantidas. O mesmo pode ocorrer com praticamente todos os outros elementos do sucesso, incluindo preparação, trabalho árduo, criatividade, risco, riqueza e outros recursos e circunstâncias favoráveis. Como trabalhadores, temos de reconhecer o quanto isso é importante. Como povo de Deus, devemos reconhecer quando começamos a idolatrá-los. Pela graça de Deus, podemos vencer a tentação de adorar essas coisas no lugar de Deus. O desenvolvimento de sabedoria e habilidade genuinamente piedosas para qualquer tarefa é “para que você confie no Senhor” (Pv 22.19; grifo do autor).

O elemento distintivo da idolatria é a natureza humana do ídolo. No trabalho, surge o perigo de idolatria quando confundimos nosso poder, nosso conhecimento e nossas opiniões com a realidade. Quando paramos de nos responsabilizar pelos padrões que estabelecemos para os outros, deixamos de ouvir as ideias dos outros ou procuramos esmagar aqueles que discordam de nós, não estamos começando a nos tornar ídolos?

“Não tomarás em vão o nome do SENHOR, o teu Deus” (Êxodo 20.7)
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O terceiro mandamento literalmente proíbe o povo de Deus de tomar “em vão” o nome de Deus. Isso não precisa se restringir ao nome “YHWH” (Êx 3.15), mas inclui “Deus”, “Jesus”, “Cristo” e assim por diante. Mas o que significa tomar em vão? Isso inclui, é claro, o uso desrespeitoso para xingar, caluniar e blasfemar. Mas, mais significativamente, inclui atribuir falsamente desígnios humanos a Deus. Isso nos proíbe de reivindicar a autoridade de Deus para nossas próprias ações e decisões. Lamentavelmente, alguns cristãos parecem acreditar que seguir a Deus no trabalho consiste principalmente em falar por Deus com base em seu entendimento individual, em vez de trabalhar respeitosamente com os outros ou assumir a responsabilidade por suas ações. “A vontade de Deus é que…” ou “Deus está punindo você por…” são coisas muito perigosas de se dizer e quase nunca válidas quando ditas por um indivíduo sem o discernimento da comunidade de fé (1Ts 5.20-21). À luz disso, talvez a tradicional reticência dos judeus em proferir até mesmo o termo traduzido por “Deus” — sem falar do próprio nome divino — demonstre uma sabedoria que os cristãos muitas vezes carecem. Se fôssemos um pouco mais cuidadosos ao usar a palavra “Deus”, talvez fôssemos mais criteriosos ao afirmar que conhecemos a vontade de Deus, especialmente no que se refere a outras pessoas.

O terceiro mandamento também nos lembra que respeitar os nomes humanos é importante para Deus. O Bom Pastor “chama as ovelhas pelo nome” (Jo 10.3), enquanto nos adverte que, se você chamar outra pessoa de louco (ou “tolo”, NAA), então “corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.22). Tendo isso em mente, não devemos fazer uso indevido do nome de outras pessoas ou chamá-las por apelidos desrespeitosos. Usamos o nome das pessoas de forma errada quando o fazemos para amaldiçoar, humilhar, oprimir, excluir e fraudar. Usamos bem o nome das pessoas quando o fazemos para encorajar, agradecer, demonstrar solidariedade e acolher. Simplesmente aprender e dizer o nome de alguém é uma bênção, especialmente se essa pessoa é frequentemente tratada como alguém sem nome, invisível ou insignificante. Você sabe o nome da pessoa que esvazia sua lixeira, atende sua ligação telefônica ou dirige seu ônibus? Se esses exemplos não dizem respeito ao próprio nome do Senhor, eles dizem respeito ao nome daqueles que foram feitos à sua imagem.

“Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias” (Êxodo 20.8-11)
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A questão do sábado é complexa, não apenas no livro de Êxodo e no Antigo Testamento, mas também na teologia e na prática cristãs. A primeira parte do mandamento exige que se pare de trabalhar um dia a cada sete. As outras referências em Êxodo ao sábado estão em Êxodo 16 (sobre colher maná), Êxodo 23.10-12 (o sétimo ano e a meta de descanso semanal), Êxodo 31.12-17 (pena por violação), Êxodo 34.21 e Êxodo 35.1-3. No contexto do mundo antigo, o sábado era exclusivo de Israel. Por um lado, esse foi um presente incomparável para o povo de Israel. Nenhum outro povo antigo teve o privilégio de descansar um dia em cada sete. Por outro lado, exigia uma confiança extraordinária na provisão de Deus. Seis dias de trabalho tinham de ser suficientes para plantar, colher, carregar água, fiar e tirar o sustento da criação. Enquanto Israel descansava um dia por semana, as nações ao redor continuaram a forjar espadas, preparar flechas e treinar soldados. Israel tinha de confiar em Deus para não deixar que um dia de descanso levasse a uma catástrofe econômica e militar.

Enfrentamos a mesma questão de confiança na provisão de Deus hoje. Se obedecermos ao mandamento de Deus de observar o próprio ciclo de trabalho e descanso de Deus, seremos capazes de competir na economia moderna? São necessários sete dias de trabalho para ter um emprego (ou dois ou três empregos), limpar a casa, preparar as refeições, cortar a grama, lavar o carro, pagar as contas, terminar os trabalhos da escola e comprar roupas? Ou podemos confiar em Deus para nos sustentar, mesmo que tiremos um dia de folga durante o curso de cada semana? Podemos reservar um tempo para adorar a Deus, orar e nos reunir com outras pessoas para estudo e encorajamento e, se o fizermos, isso nos tornará mais ou menos produtivos em geral? O quarto mandamento não explica como Deus fará com que tudo dê certo para nós. Ela simplesmente nos diz para descansar um dia a cada sete.

Os cristãos traduziram o dia de descanso como o Dia do Senhor (domingo, o dia da ressurreição de Cristo), mas a essência do sábado não é escolher um dia específico da semana em detrimento de outro (Rm 14.5-6). A polaridade que realmente está na base do sábado é trabalhar e descansar. Tanto o trabalho quanto o descanso estão incluídos no quarto mandamento. Os seis dias de trabalho fazem parte do mandamento tanto quanto o dia de descanso. Embora muitos cristãos corram o risco de permitir que o trabalho esmague o tempo reservado para o descanso, outros correm o risco de evitar o trabalho e tentar levar uma vida de lazer e dissolução. Isso é ainda pior do que negligenciar o sábado, pois “se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família, negou a fé e é pior que um descrente” (1Tm 5.8). O que precisamos é de um ritmo adequado de trabalho e descanso, que, juntos, sejam bons para nós, nossa família, nossos funcionários e nossos hóspedes. O ritmo pode ou não incluir vinte e quatro horas contínuas de descanso, caindo no domingo (ou sábado). As proporções podem mudar devido a necessidades temporárias (o equivalente moderno de tirar um boi do poço no sábado, veja Lc 14.5) ou a necessidades mutáveis ​​das fases da vida.

Se o excesso de trabalho é o nosso principal perigo, precisamos encontrar uma maneira de honrar o quarto mandamento sem instituir um novo e falso legalismo que oponha o espiritual (adoração no domingo) contra o secular (trabalho de segunda a sábado). Se evitar o trabalho é o nosso perigo, precisamos aprender a encontrar alegria e significado em trabalhar como um serviço a Deus e ao próximo (Ef 4.28).

“Honra teu pai e tua mãe” (Êxodo 20.12)
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Há muitas maneiras de honrar — ou desonrar — seu pai e sua mãe. Nos dias de Jesus, os fariseus queriam restringir isso a falar bem deles. Mas Jesus salientou que obedecer a esse mandamento inclui trabalhar para sustentar seus pais (Mc 7.9-13). Honramos as pessoas trabalhando para o bem delas.

Para muitas pessoas, um bom relacionamento com os pais é uma das alegrias da vida. Servir com amor a eles é um deleite, e obedecer a esse mandamento é fácil. Mas somos postos à prova por esse mandamento quando achamos difícil trabalhar em favor de nossos pais. Podemos ter sido maltratados ou negligenciados por eles. Eles podem ser controladores e intrometidos. Estar perto deles pode minar nosso senso de identidade, nosso compromisso com nosso cônjuge (incluindo nossas responsabilidades sob o terceiro mandamento) e até mesmo nosso relacionamento com Deus. Mesmo que tenhamos um bom relacionamento com nossos pais, pode chegar um momento em que cuidar deles seja um grande fardo, simplesmente por causa do tempo e do trabalho que isso exige. Se o envelhecimento ou a demência começarem a roubar sua memória, suas capacidades e sua boa índole, cuidar deles pode se tornar uma profunda tristeza.

No entanto, o quinto mandamento vem com uma promessa: “a fim de que tenhas vida longa na terra que o Senhor, o teu Deus, te dá” (Êx 20.12). De alguma forma, honrar nosso pai e nossa mãe de maneira prática tem o benefício prático de nos dar uma vida mais longa (talvez no sentido de mais realização) no Reino de Deus. Não nos é dito como isso ocorrerá, mas somos instruídos a esperar por isso e, para tanto, devemos confiar em Deus (veja o primeiro mandamento).

Como essa é uma ordem para trabalhar em benefício dos pais, é inerentemente uma ordem do ambiente de trabalho. O ambiente de trabalho pode ser onde ganhamos recursos para sustentá-los ou pode ser onde os ajudamos nas tarefas da vida cotidiana. Ambos são trabalho. Quando aceitamos um emprego porque ele nos permite viver perto deles, enviamos dinheiro para eles, fazemos uso dos valores e dons que eles desenvolveram em nós ou ainda fazemos coisas que eles nos ensinaram como sendo importantes, então estamos honrando-os. Quando nós limitamos nossas carreiras para que possamos estar presentes com eles, limpar e cozinhar para eles, dar-lhes banho e abraçá-los, levá-los aos lugares de que gostam ou diminuir seus medos, estamos honrando-os.

Também devemos reconhecer que, em muitas culturas, o trabalho que as pessoas fazem é ditado pelas escolhas de seus pais e pelas necessidades de suas famílias, e não por suas próprias decisões e preferências. Às vezes, isso dá origem a sérios conflitos para os cristãos, que encontram as exigências do primeiro mandamento (seguir o chamado de Deus) e do quinto mandamento competindo entre si. Eles se veem forçados a fazer escolhas difíceis que os pais não entendem. Mesmo Jesus experimentou esse mal-entendido com os pais quando Maria e José não conseguiram entender por que ele permaneceu no templo enquanto sua família partia de Jerusalém (Lc 2.49).

Em nosso ambiente de trabalho, podemos ajudar outras pessoas a cumprir o quinto mandamento, assim como nós mesmos obedecemos. Podemos lembrar que funcionários, clientes, colegas de trabalho, chefes, fornecedores e outros também têm família e, então, podemos ajustar nossas expectativas para apoiá-los a honrar suas famílias. Quando outras pessoas compartilham ou reclamam sobre suas dificuldades com os pais, podemos ouvi-las com compaixão, apoiá-las de forma prática (por exemplo, oferecendo-se para fazer um turno no trabalho para que elas possam estar com os pais), talvez oferecer uma perspectiva piedosa para que considerem, ou simplesmente refletir a graça de Cristo para aqueles que sentem estar falhando em seus relacionamentos entre pais e filhos.

“Não matarás” (Êxodo 20.13)
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Infelizmente, o sexto mandamento tem uma aplicação muito prática no ambiente de trabalho moderno, onde 10% de todas as mortes relacionadas ao trabalho (nos Estados Unidos) são homicídios. [1] No entanto, admoestar os leitores deste artigo para que “não mate ninguém no trabalho”, provavelmente não mudará muito essa estatística.

Mas o assassinato não é a única forma de violência no ambiente de trabalho, apenas a mais extrema. Jesus disse que até mesmo a ira é uma violação do sexto mandamento (Mt 5.21-22). Como Paulo observou, podemos não ser capazes de evitar o sentimento de raiva, mas podemos aprender a lidar com ele. “Quando vocês ficarem irados, não pequem. Apazigúem a sua ira antes que o sol se ponha” (Ef 4.26). A implicação mais significativa do sexto mandamento para o trabalho, então, pode ser: “Se você ficar com raiva no trabalho, procure ajuda para controlar a raiva”. Muitos empregadores, igrejas, entidades governamentais e organizações sem fins lucrativos oferecem aulas e aconselhamento sobre controle da raiva, e aproveitá-las pode ser uma maneira altamente eficaz de obedecer ao sexto mandamento.

Assassinato é homicídio intencional, mas a jurisprudência que decorre do sexto mandamento mostra que também temos o dever de evitar mortes não intencionais. Um caso que serve de ilustração é quando um boi (um animal de trabalho) chifra um homem ou uma mulher até a morte (Êx 21.28-29). Se o evento era previsível, o dono do boi deve ser tratado como um assassino. Em outras palavras, os proprietários/gerentes são responsáveis ​​por garantir a segurança no ambiente de trabalho dentro do razoável. Esse princípio está bem estabelecido na lei na maioria dos países, e a segurança no ambiente de trabalho é objeto de atenção significativa do governo, da autorregulamentação do setor e de políticas e práticas organizacionais. No entanto, ambientes de trabalho de todos os tipos continuam a exigir ou permitir que as pessoas trabalhem em condições desnecessariamente inseguras. Os cristãos que de alguma maneira ajudam a estabelecer as condições de trabalho, supervisionar os trabalhadores ou modelar as práticas no ambiente de trabalho são lembrados pelo sexto mandamento de que condições seguras de trabalho estão entre suas maiores responsabilidades no mundo do trabalho.

“Não adulterarás” (Êxodo 20.14)
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O ambiente de trabalho é um dos ambientes mais comuns de adultério, não necessariamente porque o adultério ocorre no próprio ambiente de trabalho, mas porque surge das condições de trabalho e do relacionamento com colegas de trabalho. A primeira aplicação ao ambiente de trabalho, então, é literal. As pessoas casadas não devem fazer sexo com pessoas que não sejam seus cônjuges, no trabalho ou por causa de seu trabalho. Obviamente, isso exclui profissões ligadas ao sexo, como prostituição, pornografia e barriga de aluguel, pelo menos na maioria dos casos, na medida em que os trabalhadores tenham escolha. Mas qualquer tipo de trabalho que corroa os laços do casamento infringe o sétimo mandamento. Existem muitas maneiras pelas quais isso pode ocorrer. Um trabalho que incentiva fortes laços afetivos entre colegas de trabalho, sem apoiar adequadamente seus compromissos com os cônjuges, como pode acontecer em hospitais, empreendimentos, instituições acadêmicas e igrejas, entre outros lugares. Condições de trabalho que colocam as pessoas em contato físico próximo por períodos prolongados ou que não incentivam limites razoáveis ​​para encontros fora do expediente, como pode acontecer em tarefas de campo prolongadas. O trabalho pode sujeitar as pessoas a assédio sexual e a pressão para fazer sexo com aqueles que detêm poder sobre elas. O trabalho pode inflar o ego das pessoas ou expô-las à bajulação, como pode ocorrer com celebridades, atletas famosos, gurus dos negócios, altos funcionários do governo e os super-ricos. O trabalho pode exigir tanto tempo longe — física, mental ou emocionalmente — que desgasta os laços entre os cônjuges. Tudo isso pode representar perigos que os cristãos fariam bem em reconhecer e evitar, melhorar ou resguardar-se. No entanto, a seriedade do sétimo mandamento surge não tanto porque o adultério é sexo ilícito, mas porque quebra uma aliança ordenada por Deus. Deus criou marido e mulher para se tornarem “uma só carne” (Gn 2.24), e o comentário de Jesus sobre o sétimo mandamento destaca o papel de Deus na aliança matrimonial. “O que Deus uniu, ninguém separe” (Mt 19.6). Cometer adultério, portanto, não é apenas fazer sexo com alguém que você não deveria, mas também quebrar uma aliança com o Senhor Deus. De fato, o Antigo Testamento frequentemente usa a palavra adultério e as imagens que o cercam para se referir não ao pecado sexual, mas à idolatria. Os profetas frequentemente se referem à infidelidade de Israel à sua aliança de adorar somente a Deus como “adultério” ou “prostituição”, como se vê em Isaías 57.3, Jeremias 3.8, Ezequiel 16.38 e Oseias 2.2, entre muitos outros. Portanto, qualquer quebra de fé com o Deus de Israel é figurativamente adultério, quer envolva sexo ilícito ou não. Esse uso do termo “adultério” une o primeiro, o segundo e o sétimo mandamentos e nos lembra que os Dez Mandamentos são expressões de uma única aliança com Deus, e não algum tipo de lista das dez principais regras.

Portanto, o trabalho que exige ou nos leva à idolatria ou à adoração de outros deuses deve ser evitado. É difícil imaginar como um cristão poderia trabalhar como tarólogo, criador de arte ou música idólatra ou editor de livros blasfemos. Atores cristãos podem achar difícil desempenhar papéis profanos, irreligiosos ou espiritualmente desmoralizantes. Tudo o que fazemos na vida, incluindo o trabalho, tende, em algum grau, a melhorar ou diminuir nosso relacionamento com Deus. Ao longo da vida, o estresse constante do trabalho, que nos diminui espiritualmente, pode ser devastador. É um fator que faríamos bem em incluir em nossas decisões de carreira, na medida em que tivermos escolhas.

O aspecto distintivo das alianças violadas pelo adultério é que elas são alianças com Deus. Mas toda promessa ou acordo feito por um cristão não é implicitamente uma aliança com Deus? Paulo nos exorta: “Tudo o que fizerem, seja em palavra ou em ação, façam-no em nome do Senhor Jesus” (Cl 3.17). Contratos, promessas e acordos são certamente coisas que fazemos em palavras ou atos, ou ambos. Se fizermos todas elas em nome do Senhor Jesus, isso não significa que algumas promessas devam ser honradas porque são alianças com Deus, enquanto outras podem ser quebradas porque são apenas humanas. Devemos honrar todos os nossos acordos e evitar induzir outras pessoas a quebrá-los. Se isso está contido em Êxodo 20.14 em si mesmo ou se está exposto nos ensinamentos do Antigo e do Novo Testamento que dela derivam, a afirmação “Guarde as suas promessas e ajude os outros a cumprir as deles” pode servir como uma excelente derivação do sétimo mandamento no mundo do trabalho.

“Não furtarás” (Êxodo 20.15)
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O oitavo mandamento é outro que tem o trabalho como seu assunto principal. Roubar é uma violação do trabalho adequado, porque priva a vítima dos frutos de seu trabalho. Também é uma violação do mandamento de trabalhar seis dias por semana, já que, na maioria dos casos, o roubo é um atalho para o trabalho honesto, o que mostra novamente a inter-relação dos Dez Mandamentos. Portanto, podemos tomar como palavra de Deus que não devemos roubar daqueles para quem, com quem ou entre quem trabalhamos.

O furto ocorre de muitas formas, além do roubo propriamente dito. Sempre que nos apossamos de algo de valor sem consentimento de seu legítimo dono, estamos cometendo um roubo. Apropriar-se indevidamente de recursos ou fundos para uso pessoal é roubar. Usar o engano para fazer vendas, ganhar participação no mercado ou aumentar os preços é roubar, porque o engano significa que o que o comprador consente não é a situação real. (Veja a seção sobre “Exagero” em Verdade e Engano em www.teologiadotrabalho.org para saber mais sobre esse assunto.) Da mesma forma, lucrar tirando vantagem do medo, vulnerabilidade, impotência ou desespero das pessoas é uma forma de roubo, porque seu consentimento não é verdadeiramente voluntário. Violar patentes, direitos autorais e outras leis de propriedade intelectual é roubar porque priva os proprietários da capacidade de lucrar com sua criação, nos termos da lei civil.

Lamentavelmente, muitos trabalhos parecem incluir um elemento de aproveitar-se da ignorância dos outros ou da falta de alternativas para forçá-los a fazer transações com as quais, de outra forma, não concordariam. Empresas, governos, indivíduos, sindicatos e outros podem usar seu poder para coagir outras pessoas a pagar salários, preços, termos financeiros, condições de trabalho, horários ou outros fatores injustos. Podemos até não estar roubando bancos, roubando de nossos empregadores ou furtando lojas, mas muito provavelmente podemos estar participando de práticas injustas ou antiéticas que privam outras pessoas de certos direitos que deveriam ser delas. Resistir a essas práticas pode ser difícil e até mesmo trazer consequências para nossa carreira, mas, mesmo assim, somos chamados a agir assim.

“Não darás falso testemunho contra o teu próximo” (Êxodo 20.16)
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O nono mandamento honra o direito à própria reputação. [1] Ele encontra aplicação direta em processos judiciais em que o que as pessoas dizem retrata a realidade e determina o curso da vida. Decisões judiciais e outros processos legais exercem grande poder. Manipulá-los mina o tecido ético da sociedade e, portanto, constitui uma ofensa muito grave. Walter Brueggemann diz que esse mandamento reconhece “que a vida em comunidade não é possível, a menos que haja uma arena na qual haja confiança pública de que a realidade social será descrita e relatada de forma confiável”. [2]

Embora afirmado na linguagem do tribunal, o nono mandamento também se aplica a uma ampla gama de situações que afetam praticamente todos os aspectos da vida. Nunca devemos dizer ou fazer algo que desvirtue outra pessoa. Brueggemann novamente fornece uma visão:

Os políticos procuram destruir uns aos outros em campanhas negativas; colunistas de fofocas se alimentam de calúnias; e nas salas de estar cristãs, reputações são manchadas ou destruídas enquanto o café é servido em porcelana fina com a sobremesa. Esses tribunais informais são conduzidos sem o devido processo legal. Acusações são feitas; boatos são permitidos; difamações, perjúrios e comentários caluniosos são proferidos sem objeção. Sem provas, sem defesa. Como cristãos, devemos nos recusar a participar ou a tolerar qualquer conversa em que uma pessoa esteja sendo difamada ou acusada sem que a pessoa esteja presente para se defender. É errado transmitir boatos de qualquer forma, mesmo como pedidos de oração ou preocupações pastorais. Mais do que simplesmente não participar, cabe aos cristãos impedir os rumores e aqueles que os espalham. [3]

Isso sugere ainda que a fofoca no ambiente de trabalho é uma ofensa grave. Parte disso diz respeito a assuntos pessoais e externos, o que é bastante maligno. E quanto aos casos em que um funcionário mancha a reputação de um colega de trabalho? A verdade pode realmente ser dita quando aqueles de quem se fala não estão lá para falar por si mesmos? E as avaliações de desempenho? Que medidas devem ser adotadas para garantir que os relatórios sejam justos e precisos? Em larga escala, o negócio de marketing e propaganda opera no espaço público entre organizações e indivíduos. No interesse de apresentar os próprios produtos e serviços da melhor maneira possível, até que ponto se pode apontar as falhas e fraquezas da concorrência, sem incorporar sua perspectiva? É possível que os direitos do seu “próximo” incluam os direitos de outras empresas? O escopo de nossa economia global sugere que esse mandamento pode ter uma aplicação muito ampla. Em um mundo em que a percepção muitas vezes conta para a realidade, a retórica da persuasão eficaz pode ou não ter muito a ver com a verdade genuína. A origem divina desse mandamento nos lembra de que as pessoas podem não ser capazes de detectar quando nossa representação dos outros é precisa ou não, mas Deus não pode ser enganado. É bom fazer a coisa certa quando ninguém está olhando. Com este mandamento, entendemos que devemos dizer a coisa certa quando qualquer um está ouvindo.

(Veja Verdade e engano em www.teologiadotrabalho.org para uma discussão muito mais completa desse tópico, incluindo se a proibição de “falso testemunho contra o próximo” inclui todas as formas de mentira e engano.)

“Não cobiçarás a casa do teu próximo [...] nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20.17)
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A inveja e a ganância podem surgir em qualquer lugar da vida, inclusive no trabalho, onde status, salário e poder são fatores rotineiros em nossos relacionamentos com as pessoas com quem passamos muito tempo. Podemos ter muitos bons motivos para desejar realizações, promoções ou recompensas no trabalho. Mas a inveja não é um deles, assim como não um bom motivo é trabalhar obsessivamente por inveja da posição social que isso pode possibilitar.

Em particular, enfrentamos no trabalho a tentação de inflar falsamente nossas realizações às custas dos outros. O antídoto é simples, embora às vezes difícil de fazer. Torne uma prática consistente reconhecer as realizações dos outros e dar a eles todo o crédito que merecem. Se pudermos aprender a nos alegrar com — ou pelo menos reconhecer — os sucessos dos outros, cortaremos a força vital da inveja e da cobiça em ação. Melhor ainda, se pudermos aprender a trabalhar para que nosso sucesso ande de mãos dadas com o sucesso dos outros, a cobiça será substituída pela colaboração e a inveja, pela unidade.

Leith Anderson, ex-pastor da Wooddale Church, em Eden Prairie, Minnesota, diz: “Como pastor titular, é como se eu tivesse um suprimento ilimitado de moedas no bolso. Sempre que dou crédito a um membro da equipe por uma boa ideia, elogio o trabalho de um voluntário ou agradeço a alguém, é como se estivesse enfiando uma moeda do meu bolso no dele. Esse é o meu trabalho como líder, passar moedas do meu bolso para o bolso dos outros, para aumentar o apreço que outras pessoas têm por elas.” [1]

Veja “De uma atitude de descontentamento ao contentamento”, em Visão geral de provisão e riqueza em www.teologiadotrabalho.org.

Jurisprudências no livro da aliança (Êxodo 21.1—23.33)

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Segue-se uma coleção de jurisprudências, decorrentes dos Dez Mandamentos. Em vez de desenvolver princípios detalhados, o texto dá exemplos de como aplicar a lei de Deus aos tipos de casos que comumente surgem na conduta da vida diária. Como casos, todos estão inseridos nas situações enfrentadas pelo povo de Israel. De fato, em todo o Pentateuco (a Torá), pode ser difícil separar o que são as leis específicas e o que é a narrativa e a exortação ao redor. Quatro seções da jurisprudência são particularmente aplicáveis ​​ao trabalho hoje.

Escravidão ou contrato de servidão (Êxodo 21.1-11)
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Embora Deus tenha libertado os hebreus da escravidão no Egito, a escravidão não é universalmente proibida na Bíblia. A escravidão era permitida em certas situações, desde que os escravos fossem considerados membros plenos da comunidade (Gn 17.12), recebessem os mesmos períodos de descanso e feriados que os não escravos (Êx 23.12; Dt 5.14-15; 12.12) e fossem tratados com humanidade (Êx 21.7,26-27). Mais importante ainda, a escravidão entre os hebreus não pretendia ser uma condição permanente, mas um refúgio voluntário e temporário para pessoas que sofriam o que, de outra forma, seria uma pobreza desesperada. “Se você comprar um escravo hebreu, ele o servirá por seis anos. Mas no sétimo ano será liberto, sem precisar pagar nada” (Êx 21.2). A crueldade por parte do proprietário resultava em liberdade imediata para o escravo (Êx 21.26-27). Isso tornava a escravidão hebraica masculina mais como um tipo de contrato de trabalho de longo prazo entre indivíduos do que o tipo de exploração permanente que caracterizou a escravidão nos tempos modernos.

A escravidão feminina hebraica era, em certo sentido, ainda mais protetora. O principal propósito contemplado para a compra de uma escrava era que ela pudesse se tornar esposa do comprador ou do filho do comprador (Êx 21.8-9). Como esposa, ela se tornava socialmente igual ao proprietário de escravos, e a compra funcionava muito como a doação de um dote. De fato, ela é até chamada de “esposa” pela lei (Êx 21.10). Além disso, se o comprador deixasse de tratar a escrava com todos os direitos devidos a uma esposa comum, ele era obrigado a libertá-la. “Ela poderá ir embora sem precisar pagar nada” (Êx 21.11). No entanto, em outro sentido, as mulheres tinham muito menos proteção do que os homens. Potencialmente, toda mulher solteira enfrentava a possibilidade de ser vendida para um casamento contra sua vontade. Embora isso a tornasse uma “esposa” em vez de uma “escrava”, será que o casamento forçado era menos questionável do que o trabalho forçado?

Além disso, uma brecha óbvia é que uma menina ou mulher poderia ser comprada como esposa para um escravo, e não para o proprietário do escravo ou o filho. Como resultado, ela seria escrava permanente do proprietário (Êx 21.4), mesmo quando o período de escravidão do marido terminasse. A mulher se tornava escrava permanente de um proprietário que não se tornou seu marido e que não se via obrigado a dar nenhuma das proteções devidas a uma esposa.

A proteção contra a escravidão permanente também não se aplicava a estrangeiros (Lv 25.44-46). Os homens capturados na guerra eram considerados espólio e se tornavam propriedade perpétua de seus donos. Mulheres e meninas capturadas na guerra — que aparentemente eram a grande maioria dos cativos (Nm 31.9-11,32-35; Dt 20.11-14) — enfrentavam a mesma situação que as escravas de origem hebraica (Dt 21.10-14), incluindo a escravidão permanente. Os escravos também podiam ser comprados de nações vizinhas (Ec 2.7), e nada os protegia contra a escravidão perpétua. As outras proteções concedidas aos escravos hebreus se aplicavam aos estrangeiros, mas isso deve ter sido um pequeno consolo para aqueles que enfrentaram uma vida inteira de trabalhos forçados.

Em contraste com a escravidão como se deu nos Estados Unidos, que geralmente proibia o casamento entre escravos, os regulamentos em Êxodo visam preservar as famílias intactas. “Se chegou solteiro, solteiro receberá liberdade; mas se chegou casado, sua mulher irá com ele” (Êx 21.3). No entanto, muitas vezes, como vimos, o resultado real dos regulamentos foi o casamento forçado.

Independentemente de quaisquer proteções oferecidas pela lei, a escravidão não era de forma alguma um modo de vida agradável. Os escravos eram uma propriedade, independentemente da duração de sua escravização. Quaisquer que fossem as regulamentações, na prática provavelmente havia pouca proteção contra maus-tratos, e abusos ocorriam. Como em grande parte da Bíblia, a palavra de Deus em Êxodo não aboliu a ordem social e econômica existente, mas instruiu o povo de Deus a viver com justiça e compaixão em suas circunstâncias atuais. Aos nossos olhos, os resultados parecem — e devem parecer — muito inquietantes.

De qualquer forma, antes de nos tornarmos presunçosos demais, devemos dar uma olhada nas condições de trabalho que prevalecem hoje entre as pessoas pobres em todos os cantos do mundo, incluindo os países desenvolvidos. Labor incessante para aqueles que trabalham em dois ou três empregos para sustentar as famílias, abuso e exercício arbitrário de poder por aqueles que estão no poder e apropriação indevida dos frutos do trabalho por operadores de negócios ilícitos, funcionários corruptos e chefes com conexões políticas. Milhões de pessoas trabalham hoje sem os regulamentos fornecidos pela Lei de Moisés. Se era a vontade de Deus proteger Israel da exploração, mesmo na escravidão, o que Deus espera que os seguidores de Cristo façam por aqueles que sofrem a mesma opressão, ou pior, hoje?

Restituição comercial e Lei do Talião (Êxodo 21.18—22.15)
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As leis casuísticas estabeleciam penalidades para infrações, incluindo muitas relacionadas diretamente ao comércio, especialmente no caso de responsabilidade por perdas ou danos. A chamada Lei do Talião, que também aparece em Levítico 24.17-21 e Deuteronômio 19.16-21, é central para o conceito de retribuição. [1] Literalmente, a lei diz para pagar “vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida e contusão por contusão” (Êx 21.23-25). A lista é notavelmente específica. Quando os juízes de Israel faziam seu trabalho, devemos realmente acreditar que eles aplicavam punições dessa maneira? Será que um queixoso que foi queimado devido à negligência de alguém realmente ficaria satisfeito em ver o ofensor literalmente queimado no mesmo grau? Curiosamente, nesta mesma parte do Êxodo, não vemos a Lei do Talião sendo aplicada dessa maneira. Em vez disso, um homem que fere gravemente outro em uma briga deve pagar pelo tempo perdido da vítima e cobrir suas despesas médicas (Êx 21.18-19). O texto não diz que ele deve ficar parado para receber uma surra pública e comparável de sua ex-vítima. Parece que a Lei do Talião não determinou a penalidade padrão para crimes graves, mas estabeleceu um teto máximo para danos que poderiam ser reivindicados. Gordon Wenham observa: “Nos tempos do Antigo Testamento, não havia polícia ou ministério público, de modo que todo processo e punição tinham de ser realizados pela parte ofendida e sua família. Assim, seria bem possível que as partes lesadas não insistissem em seus plenos direitos sob a Lei do Talião, mas negociasse um acordo mais baixo ou até perdoasse o ofensor por completo”. [2] Essa lei pode ser percebida por alguns hoje como selvagem, mas Alec Motyer observou: “Quando a lei inglesa enforcava uma pessoa por roubar uma ovelha, não era porque o princípio de ‘olho por olho’ estava sendo praticado, mas porque tinha sido esquecido.” [3]

Essa questão de interpretar a Lei do Talião ilustra que pode haver uma diferença entre fazer o que a Bíblia diz literalmente e aplicar o que a Bíblia instrui. Obter uma solução bíblica para nossos problemas nem sempre será uma questão simples. Os cristãos devem usar maturidade e discernimento, especialmente à luz do ensinamento de Jesus, para renunciar à Lei do Talião e não resistir a um malfeitor (Mt 5.38-42). Ele estava falando de uma ética pessoal ou esperava que seus seguidores aplicassem esse princípio nos negócios? Funciona melhor para pequenas ofensas do que para grandes? Aqueles que fazem o mal criam vítimas que devemos defender e proteger (Pv 31.9).

As instruções específicas sobre restituição e penalidades para roubo atingiam dois objetivos. Primeiro, eles responsabilizavam o ladrão por devolver o roubo ao proprietário original ou por compensá-lo totalmente por sua perda. Em segundo lugar, eles puniam e educavam o ladrão, fazendo com que ele experimentasse toda a dor que havia causado à vítima. Esses objetivos podem formar uma base cristã para o trabalho do direito civil e criminal hoje. O trabalho judiciário atual opera de acordo com estatutos e diretrizes específicas estabelecidas pelo Estado. Mas, mesmo assim, os juízes têm certa liberdade para estabelecer sentenças e penalidades. Para disputas que são resolvidas fora dos tribunais, os advogados negociam para ajudar seus clientes a chegarem a um acordo conclusivo. Em tempos recentes, surgiu uma perspectiva chamada “justiça restaurativa”, com ênfase na punição que restaura a condição original da vítima e, na medida do possível, restaura o agressor como um membro produtivo da sociedade. Uma descrição e avaliação completas de tais abordagens estão além do nosso escopo aqui, mas queremos observar que as Escrituras têm muito a oferecer aos sistemas contemporâneos de justiça a esse respeito.

Nos negócios, os líderes às vezes precisam mediar entre funcionários que têm sérios problemas relacionados ao trabalho entre si. Decidir o que é certo e justo afeta não apenas os envolvidos na disputa, mas também pode afetar toda a atmosfera da organização e até servir para abrir precedentes sobre como os trabalhadores podem esperar que seja no futuro. Os riscos imediatos podem ser muito altos. Além disso, quando os cristãos devem tomar esse tipo de decisão, os espectadores tiram conclusões sobre nós como pessoas, bem como sobre a legitimidade da fé pela qual alegamos viver. Claramente, não podemos prever todas as situações (e o livro de Êxodo também não o faz). Mas sabemos que Deus espera que apliquemos suas instruções e podemos ter certeza de que perguntar a Deus como amar nosso próximo como a nós mesmos é o melhor ponto de partida.

Oportunidades produtivas para os pobres — respiga (Êxodo 22.21-27; 23.10-11)
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Deus deseja fornecer oportunidades para os pobres, e isso é visto nos regulamentos que beneficiam estrangeiros, viúvas e órfãos (Êx 22.21-22). O que esses três grupos tinham em comum era que não possuíam terras para se sustentar. Muitas vezes, isso os deixava pobres, de modo que estrangeiros, viúvas e órfãos são os que primeiro vêm à mente sempre que “os pobres” são mencionados no Antigo Testamento. Em Deuteronômio, a preocupação de Deus por essa tríade de pessoas vulneráveis ​​exigia que Israel lhes fornecesse justiça (Dt 10.18; 27.19) e acesso à comida (Dt 24.19-22). A jurisprudência sobre o assunto também é desenvolvida em Isaías 1.17,23; 10.1-2; Jeremias 5.28; 7.5-7; 22.3; Ezequiel 22.6-7; Zacarias 7.8-10; e Malaquias 3.5 .

Um dos mais importantes desses regulamentos é a prática de permitir que os pobres colham, ou “recolham”, os grãos restantes dos campos ativos e colham todas as colheitas voluntárias em campos em repouso. A prática conhecida como respigar não era uma esmola, mas uma oportunidade para os pobres se sustentarem. Os proprietários de terras eram obrigados a deixar cada campo, vinha e pomar em repouso um ano a cada sete, e os pobres tinham permissão para colher qualquer coisa que pudesse crescer lá (Êx 23.10-11). Mesmo em campos ativos, os proprietários deveriam deixar parte do grão no campo para que os pobres colhessem, em vez de limpá-lo exaustivamente (Lv 19.9-10). Por exemplo, um olival ou uma vinha deveriam ser colhidos apenas uma vez a cada estação (Dt 24.20). Depois disso, os pobres tinham o direito de recolher o que sobrava, talvez o que fosse de menor qualidade ou que demorasse mais para amadurecer. Essa prática não era apenas uma expressão de bondade, mas também uma questão de justiça. O livro de Rute gira em torno dessa prática com efeitos encantadores (veja “Rute 2.17-23” em Rute e o trabalho em www.teologiadotrabalho.org).

Hoje, há muitas maneiras pelas quais plantadores, produtores e distribuidores de alimentos compartilham com os pobres. Muitos deles doam para despensas e abrigos aquilo que sobra do dia, mas que ainda serve como alimento saudável. Outros trabalham para tornar os alimentos mais acessíveis, aumentando sua própria eficiência. Mas a maioria das pessoas, pelo menos nos países desenvolvidos, não se dedica mais à agricultura como meio de vida, e são necessárias oportunidades para os pobres em outros setores da sociedade. Nas sociedades industriais e tecnológicas de hoje, a utilização eficiente de recursos é a base do sucesso da produção. Não há nada para se colher no chão de uma bolsa de valores, de uma montadora ou de um laboratório de programação. Mas o princípio de fornecer trabalho produtivo para trabalhadores vulneráveis ​​ainda é relevante. As corporações podem empregar de forma produtiva pessoas com deficiências mentais e físicas, com ou sem assistência do governo. Com treinamento e apoio, pessoas de origens desfavorecidas, prisioneiros que retornam à sociedade e outros que têm dificuldade em encontrar um emprego convencional podem se tornar trabalhadores produtivos e ganhar a vida.

Outras pessoas economicamente vulneráveis ​​podem ter de depender de contribuições em dinheiro, em vez de receber oportunidades de trabalho. Aqui, novamente, a situação moderna é complexa demais para proclamarmos uma aplicação simplista da lei bíblica. Mas os valores subjacentes à lei podem oferecer uma contribuição significativa para o projeto e a execução de sistemas de bem-estar público, caridade pessoal e responsabilidade social corporativa. Muitos cristãos têm papéis significativos na contratação de trabalhadores ou na elaboração de políticas de emprego. Êxodo nos lembra que empregar trabalhadores vulneráveis ​​é uma parte essencial do que significa para um povo viver sob a aliança de Deus. Junto com o Israel da antiguidade, os cristãos também experimentaram a redenção de Deus, embora não necessariamente em termos idênticos. Mas nossa simples gratidão pela graça de Deus é certamente um motivo poderoso para encontrar maneiras criativas de servir aos necessitados ao nosso redor.

Empréstimos e garantias (Êxodo 22.25-27)
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Outro conjunto de leis regulamentava o dinheiro e as garantias (Êx 22.25-27). Duas situações estão em vista. A primeira se refere a um membro necessitado do povo de Deus que precisa de um empréstimo financeiro. Este empréstimo não deve ser feito de acordo com os padrões usuais de empréstimo de dinheiro. Deve ser feito sem “juros”. A palavra hebraica neshekh (que em alguns contextos significa “mordida”) atraiu muita atenção acadêmica. Será que neshek se referia à cobrança de juros excessivos e, portanto, injustos, além da quantia razoável de juros necessária para manter financeiramente viável a prática de emprestar dinheiro? Ou se referia a algum tipo de juros? O texto não tem detalhes suficientes para estabelecer isso de forma conclusiva, mas a última opção parece mais provável, porque, no Antigo Testamento, neshek sempre se refere a emprestar àqueles que estão em circunstâncias miseráveis ​​e vulneráveis, para quem pagar qualquer tipo de juros seria um fardo excessivo. [1] Colocar os pobres em um ciclo interminável de endividamento financeiro estimulará o compassivo Deus de Israel a agir. Se essa lei foi ou não boa para os negócios, não é isto que está em questão aqui. Walter Brueggemann observa: “A lei não discute sobre a viabilidade econômica de tal prática. Simplesmente requer a necessidade de cuidados de maneira concreta e espera que a comunidade resolva os detalhes práticos”. [2] A outra situação é a de um homem que coloca seu único casaco como garantia de um empréstimo. Este deve ser devolvido a ele à noite, para que ele possa dormir sem pôr em perigo sua saúde (Êx 22.26-27). Isso significa que o credor deve visitá-lo pela manhã para pegar o casaco do dia e continuar fazendo isso até que o empréstimo seja pago? No contexto de tão óbvia miséria, um credor piedoso poderia evitar o quase absurdo desse ciclo simplesmente não esperando que o tomador do empréstimo desse qualquer garantia. Essas regulamentações podem ter menos aplicação ao sistema bancário atual em geral do que aos sistemas atuais de proteção e assistência aos pobres. Por exemplo, o microcrédito em países menos desenvolvidos foi desenvolvido com taxas de juros e políticas de garantias sob medida para atender às necessidades das pessoas pobres que, de outra forma, não teriam acesso ao crédito. O objetivo — pelo menos nos primeiros anos, a partir da década de 1970 — não era maximizar o lucro para os credores, mas fornecer instituições de crédito sustentáveis ​​para ajudar os pobres a escapar da pobreza. Mesmo assim, o microfinanciamento luta para equilibrar a necessidade do credor por um retorno sustentável e taxas de inadimplência com a necessidade do devedor de taxas de juros acessíveis e termos de garantia não restritivos. [3]

A presença de regulamentos específicos seguindo os Dez Mandamentos significa que Deus quer que seu povo o honre, colocando em prática suas instruções para atender a necessidades reais. A preocupação emocional sem ação deliberada não dá aos pobres o tipo de ajuda de que precisam. Como disse o apóstolo Tiago: “A fé sem obras está morta” (Tg 2.26). Estudar as aplicações específicas dessas leis no antigo Israel nos ajuda a pensar sobre as maneiras específicas pelas quais podemos agir hoje. Mas lembramos que, mesmo naquela época, essas leis eram apenas ilustrações. Terence Fretheim conclui assim: “Há uma abertura para a aplicação da lei. O texto convida o ouvinte/leitor a estender essa passagem a todas as esferas da vida em que a injustiça possa ser encontrada. Em outras palavras, alguém é convidado pela lei a ir além da lei”. [4]

Uma leitura cuidadosa revela três razões pelas quais o povo de Deus deve guardar essas leis e aplicá-las a novas situações. [5] Primeiro, os próprios israelitas foram oprimidos como estrangeiros no Egito (Êx 22.21; 23.9). Ensaiar essa história não apenas mantém a redenção de Deus em vista, mas a memória se torna uma motivação para tratar os outros como gostaríamos de ser tratados (Mt 7.12). Segundo, Deus ouve o clamor dos oprimidos e faz algo a respeito, especialmente quando não o fazemos (Êx 22.22-24). Terceiro, devemos ser seu povo santo (Êx 22.31; Lv 19.2).