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Pessoas trabalham em meio a uma criação caída (Gênesis 4—8)

Comentário Bíblico / Produzido por Projeto Teologia do Trabalho
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Quando Deus expulsa Adão e Eva do Jardim do Éden (Gn 3.23-24), eles trazem consigo seus relacionamentos rompidos e seu trabalho árduo, esboçando uma existência em solo resistente. No entanto, Deus continua a prover-lhes o necessário, a ponto de costurar roupas para eles, quando eles mesmos não têm habilidade (Gn 3.21). A maldição não destruiu sua capacidade de se multiplicar (Gn 4.1-2) ou de alcançar certa medida de prosperidade (Gn 4.3-4).

O trabalho de Gênesis 1 e 2 continua. Ainda há terreno a ser cultivado e fenômenos da natureza a serem estudados, descritos e nomeados. Homens e mulheres ainda devem ser frutíferos, ainda devem se multiplicar, ainda devem governar. Mas agora, uma segunda camada de trabalho também deve ser realizada — a obra de curar, reparar e restaurar as coisas que dão errado e os males que são cometidos. Para colocar isto em um contexto contemporâneo, ainda é necessário o trabalho de agricultores, cientistas, parteiras, pais, líderes, e cada um em empreendimentos criativos. Mas o mesmo vale para o trabalho de policiais, médicos, agentes funerários, agentes penitenciários, auditores forenses e todos aqueles em profissões que restringem o mal, previnem desastres, reparam danos e restauram a saúde. Na verdade, o trabalho de todos é uma mistura de criação e reparo, encorajamento e frustração, sucesso e fracasso, alegria e tristeza. Grosso modo, há agora o dobro de trabalho a fazer do que havia no jardim. O trabalho não é menos importante para o plano de Deus, mas ainda é mais importante.

O primeiro assassinato (Gênesis 4.1-25)

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Gênesis 4 detalha o primeiro assassinato, quando Caim mata seu irmão Abel em um ataque de ciúmes. Ambos os irmãos trazem o fruto de seu trabalho como oferta a Deus. Caim é agricultor e traz alguns frutos da terra, sem indicação no texto bíblico de que este seja o primeiro ou o melhor de seus produtos (Gn 4.3). Abel é pastor e traz as “primeiras crias”, os melhores, as “as partes gordas” de seu rebanho (Gn 4.4). Embora ambos estejam produzindo alimentos, eles não estão trabalhando nem adorando juntos. O trabalho não é mais um lugar de bons relacionamentos.

Deus olha com favor para a oferta de Abel, mas não para a de Caim. Nessa primeira menção à ira na Bíblia, Deus adverte Caim a não entrar em desespero, mas a dominar seu ressentimento e trabalhar por um resultado melhor no futuro. “Se você fizer o bem, não será aceito?”, o Senhor lhe pergunta (Gn 4.7). Mas Caim cede à sua ira e mata seu irmão (Gn 4.8; cf. 1Jo 3.12 ; Jd 11 ). Deus responde à ação com estas palavras:

“Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão. Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo”. (Gn 4.10-12)

O pecado de Adão não trouxe a maldição de Deus sobre as pessoas, mas apenas sobre a terra (Gn 3.17). O pecado de Caim traz a maldição da terra sobre o próprio Caim (Gn 4.11). Ele não pode mais cultivar o solo, e Caim, o lavrador, torna-se um fugitivo errante, finalmente se estabelecendo na terra de Node, a leste do Éden, onde constrói a primeira cidade mencionada na Bíblia (Gn 4.16-17). (Veja Gn 10—11 para saber mais sobre o tema das cidades.)

O restante do capítulo 4 segue os descendentes de Caim por sete gerações até Lameque, cujos atos tirânicos fazem seu ancestral Caim parecer inofensivo. Lameque nos mostra um endurecimento progressivo no pecado. Primeiro vem a poligamia (Gn 4.19), violando o propósito de Deus para o casamento em Gênesis 2.24 (cf. Mt 19.5-6). Depois, uma vingança o leva a matar alguém que apenas o golpeou (Gn 4.23-24). No entanto, em Lameque também vemos o início da civilização. A divisão do trabalho — que causou problemas entre Caim e Abel — traz aqui uma especialização que possibilita certos avanços. Alguns dos filhos de Lameque criam instrumentos musicais e usam ferramentas de bronze e ferro (Gn 4.21-22). A capacidade de criar música, de fabricar os instrumentos para tocá-la e de desenvolver avanços tecnológicos na metalurgia estão todos dentro do escopo dos criadores que fomos criados para ser à imagem de Deus. As artes e as ciências são um desdobramento digno do mandato da criação, mas o elogio de Lameque sobre seus atos cruéis aponta para os perigos que acompanham a tecnologia em uma cultura depravada e inclinada à violência. O primeiro poeta humano após a queda celebra o orgulho humano e o abuso de poder. No entanto, a harpa e a flauta podem ser redimidas e usadas no louvor a Deus (1Sm 16.23), assim como a metalurgia, que entrou na construção do tabernáculo hebraico (Êx 35.4-19,30-35).

À medida que as pessoas se multiplicam, elas começam a divergir. Por meio de Sete, Adão tinha esperança de uma semente piedosa, que incluía Enoque e Noé. Mas, com o tempo, surge um grupo de pessoas que se afastam dos caminhos de Deus.

Quando os homens começaram a multiplicar-se na terra e lhes nasceram filhas, os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram bonitas, e escolheram para si aquelas que lhes agradaram. Então disse o Senhor: “Por causa da perversidade do homem, meu Espírito não contenderá com ele para sempre; ele só viverá cento e vinte anos”. Naqueles dias, havia nefilins na terra, e também posteriormente, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas lhes deram filhos. Eles foram os heróis do passado, homens famosos. O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. (Gn 6.1-5)

O que a linhagem piedosa de Sete — por fim restrita apenas a Noé e sua família — poderia fazer contra uma cultura tão depravada que levaria Deus a tomar a decisão de destruí-la completamente?

Para muitos cristãos hoje, uma grande preocupação no ambiente de trabalho é como observar os princípios que acreditamos refletir a vontade e os propósitos de Deus para nós, como portadores ou representantes de sua imagem. Como podemos fazer isso nos casos em que nosso trabalho nos pressiona para o caminho da desonestidade, deslealdade, mão de obra de baixa qualidade, salários e condições de trabalho degradantes, exploração da vulnerabilidade de colegas de trabalho, clientes, fornecedores ​​ou da comunidade em geral? Pelo exemplo de Sete — e de muitos outros nas Escrituras —, sabemos que há espaço no mundo para as pessoas trabalharem de acordo com o desígnio e o mandato de Deus.

Quando outros podem cair no medo, na incerteza e na dúvida, ou sucumbir ao desejo ilimitado de poder, riqueza ou reconhecimento humano, o povo de Deus pode permanecer firme no trabalho ético, significativo e compassivo, porque confiamos em Deus para nos ajudar a superar as dificuldades que se mostram difíceis de lidar sem a graça de Deus. Quando as pessoas são abusadas ou prejudicadas pela ganância, injustiça, ódio ou negligência, podemos defendê-las, fazer justiça e curar feridas e divisões, porque temos acesso ao poder redentor de Cristo. Os cristãos, dentre todas as pessoas, podem se dispor a lutar contra o pecado que encontramos em nossos ambientes de trabalho, quer ele surja das ações de outras pessoas ou de nosso próprio coração. Deus anulou o projeto em Babel porque “em breve nada poderá impedir o que planejam fazer” (Gn 11.6); as pessoas não se referiam às nossas habilidades reais, mas à nossa arrogância. No entanto, pela graça de Deus, realmente temos o poder de realizar tudo o que Deus tem reservado para nós em Cristo, que declara que “nada lhes será impossível” (Mt 17.20) e “nada é impossível para Deus” (Lc 1.37).

Será que realmente trabalhamos como se acreditássemos no poder de Deus? Ou desperdiçamos as promessas de Deus simplesmente tentando sobreviver sem causar confusão?

Deus chama Noé e cria um novo mundo (Gênesis 6.9-8.19)

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Algumas situações podem ser resgatáveis. Outras podem estar além da redenção. Em Gênesis 6.6-8, ouvimos o lamento de Deus sobre o estado do mundo e da cultura pré-diluvianos, bem como sua decisão de começar de novo:

Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e isso cortou-lhe o coração. Disse o Senhor: “Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, os homens e também os grandes animais e os pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito”. A Noé, porém, o Senhor mostrou benevolência.

De Adão até nós, Deus procura pessoas que possam se posicionar contra a cultura do pecado, quando necessário. Adão falhou no teste, mas gerou a linhagem de Noé, “homem justo, íntegro entre o povo da sua época; ele andava com Deus” (Gn 6.9). Noé é a primeira pessoa cuja obra é principalmente redentora. Ao contrário de outros, que estão ocupados tirando a vida do solo, Noé é chamado para salvar a humanidade e a natureza da destruição. Nele vemos o progenitor de sacerdotes, profetas e apóstolos, que são chamados à obra da reconciliação com Deus, e daqueles que cuidam do meio ambiente, que são chamados à obra da natureza redentora. Em maior ou menor grau, todos os trabalhadores, desde Noé, são chamados para a obra de redenção e reconciliação.

E que projeto de construção é a arca! Contrariando as chacotas dos vizinhos, Noé e seus filhos devem derrubar milhares de ciprestes e, com eles, fazer tábuas na quantidade suficiente para construir um zoológico flutuante. Essa embarcação de três andares precisa ter capacidade para transportar as várias espécies de animais e armazenar comida e água necessárias por um período indefinido. Apesar das dificuldades, o texto nos assegura que “Noé fez tudo exatamente como Deus lhe tinha ordenado” (Gn 6.13-22).

No mundo dos negócios, os empreendedores estão acostumados a correr riscos, trabalhando contra a sabedoria convencional para criar novos produtos ou processos. É necessária uma visão de longo prazo, em vez de atenção aos resultados de curto prazo. Noé enfrentou o que às vezes deve ter parecido uma tarefa impossível, e alguns estudiosos da Bíblia sugerem que a construção real da arca levou cem anos. Também é preciso fé, tenacidade e planejamento cuidadoso diante de céticos e críticos. Talvez devêssemos acrescentar o gerenciamento de projetos à lista de desenvolvimentos pioneiros de Noé. Hoje, inovadores, empreendedores e aqueles que desafiam as opiniões e os sistemas predominantes em nossos ambientes de trabalho ainda precisam de uma fonte de força interior e convicção. A resposta não é nos convencermos a correr riscos tolos, é claro, mas recorrer à oração e ao conselho dos sábios em Deus quando formos confrontados com oposição e desânimo. Talvez precisemos de um florescimento de cristãos talentosos e treinados para o trabalho de encorajar e ajudar a refinar a criatividade de inovadores nos negócios, na ciência, na academia, nas artes, no governo e em outras esferas de trabalho.

A história do dilúvio, encontrada em Gênesis 7.1—8.19, é bem conhecida. Por mais de meio ano, Noé, sua família e todos os animais saltitam dentro da arca, enquanto as inundações se alastram, fazendo a arca girar na água que cobria o topo das montanhas. Quando finalmente o dilúvio diminui, o solo está seco e uma nova vegetação está surgindo. Os ocupantes da arca mais uma vez pisam em terra firme. O texto ecoa Gênesis 1, enfatizando a continuidade da criação. Deus sopra um “vento” sobre “as profundezas” e “as águas” retrocedem (Gn 8.1-3). No entanto, em certo sentido, aquele era um mundo novo, remodelado pela força do dilúvio. Deus estava dando à cultura humana uma nova oportunidade de começar do zero e acertar. Para os cristãos, isso prenuncia o novo céu e a nova terra em Apocalipse 21—22, quando a vida e o trabalho humanos são levados à perfeição dentro do cosmos, curados dos efeitos da Queda, como discutimos em "Deus traz à existência o mundo material” (Gn 1.1-2).

O que pode ficar menos aparente é que este, o primeiro trabalho de engenharia em larga escala da humanidade, é um projeto ambiental. Apesar — ou talvez como resultado — do relacionamento rompido da humanidade com a serpente e todas as criaturas (Gn 3.15), Deus atribui a um ser humano a tarefa de salvar os animais e confia nele para fazê-lo fielmente. As pessoas não estavam isentas do chamado de Deus para dominar “sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.28). Deus está sempre trabalhando para restaurar o que foi perdido na Queda, e ele usa como seu principal instrumento a humanidade — caída sim, mas em restauração.